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A agenda da transformação: a grande imprensa e a hegemonia neoliberal no Brasil (a imprensa paulista e a 'nova república')

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RESUMO

Este trabalho objetiva analisar os posicionamentos da grande imprensa diária paulista – os jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo – no tocante à disputa pela transformação da Agenda política e econômica no Brasil entre 1986 e 1989. Neste período, os fracassos dos Planos de estabilização econômica, a elaboração da nova Constituição (com implicações na relação entre Estado e mercado) e a campanha presidencial foram alvos de um intenso embate político/ideológico, no contexto de profundas mudanças internacionais, relacionadas sobretudo ao ocaso do socialismo e à hegemonia da visão neoliberal. A imprensa, em razão de sua capacidade de espraiar idéias, atua como aparelho privado de hegemonia através da formulação de imagens e da utilização da retórica, o que a torna um ator político privilegiado, pois, além do mais, formula e retransmite conteúdos fortemente ideológicos.

PALAVRAS-CHAVE

Neoliberalismo; Agenda; Hegemonia; Imprensa.

ABSTRACT

The aim of the present study is to analyze the press position – newspapers Folha de

S. Paulo and O Estado de S. Paulo – related to the changes in the political and

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acts as a private vehicle of hegemony through the creation of images and use of rhetoric, what makes the press a privileged political actor, since, moreover, it formulates and conveys highly ideological contents.

KEY WORDS

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SUMÁRIO

I. Apresentação e problematização ... 4

1. Jornal Folha de S. Paulo... 22

1.1. À guisa de conclusão (Folha de S. Paulo)... 90

2. Jornal O Estado de S. Paulo ... 91

2.1. À guisa de conclusão (O Estado de S. Paulo) ... 158

II. Conclusão geral ... 159

III. Bibliografia ... 162

1. Em relação aos referenciais teóricos ... 162

2. Em relação ao Liberalismo/Ultraliberalismo e Keynesiano ... 164

3. Em relação à imprensa ... 170

4. Em relação à análise do discurso ... 174

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A AGENDA DA TRANSFORMAÇÃO: A GRANDE

IMPRENSA E A HEGEMONIA NEOLIBERAL NO

BRASIL (A IMPRENSA PAULISTA E A “NOVA

REPÚBLICA”)

*

Francisco C. P. Fonseca

I. APRESENTAÇÃO E PROBLEMATIZAÇÃO

1

Este estudo objetiva investigar o desenvolvimento histórico do liberalismo no século XX – seguindo a tradição da história das idéias. Para tanto, tem-se como pressuposto que as idéias só repercutem caso sejam personificadas por atores sociais concretos; estes, voltam-se à formação do consenso, da hegemonia, que, desta forma, é continuamente perseguida pelos grupos sociais em disputa.

Portanto, este trabalho intenta compreender a hegemonia das idéias neoliberais através da grande imprensa brasileira (notadamente os jornais Folha de S. Paulo e O

Estado de S. Paulo2), num momento de transição mundial da agenda

político/econômica e dos valores ético/políticos. Afinal, é particularmente a grande imprensa escrita diária, que discutiremos conceitualmente mais abaixo – através de órgãos que representam verdadeiros aparelhos privados de hegemonia –, o agente de

*

O NPP agradece aos alunos que participaram da pesquisa que originou o presente relatório como monitores de pesquisas, Artur Yabe Milanez e André Oliveira Perosa.

1 Utilizazremos, neste trabalho, a expressão ultraliberal, em vez de neoliberal – embora mantivéssemos esta última

denominação no título – em virtude do caráter “vulgarizado” que o termo neoliberalismo adquiriu, o que implicou uma baixa capacidade explicativa. Portanto, o sufixo ultra desnuda o caráter radicalizado do “neo”liberalismo.

2 Tendo em vista que citaremos inúmeras vezes ambos os jornais neste trabalho, os mesmos serão referidos por suas

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recepção mais notório da hegemonia alcançada pelas idéias ultraliberais a partir dos anos 80.

Observe-se que a década de 80 do século XX sintetizou a maior transformação político/ideológica desde o advento das experiências socialistas, a partir de 1917, e do imperante – nos países capitalistas pós-depressão econômica e especialmente pós-2ª guerra – consenso keynesiano acerca da legitimação e necessidade de intervenção do Estado nas relações econômicas e sociais. Em outras palavras, a

ideologia ultraliberal – personificada num programa de reformas principalmente

econômico, mas também político e mesmo "ético", através da formulação de um novo ethos – logrou ser bem sucedida em seu intento universalizador de pressupostos particularistas (discutidos abaixo) em nome de supostas aspirações

sociais comuns, objetivo por excelência ideológico, alcançando um novo consenso3.

Por sua vez, a prática keynesiana, por significar intervenção estatal na economia, regulandoa, inclusive de forma direta, com vistas ao contínuo ciclo produção/redistribuição da renda – perpassado por valorações igualitárias no âmbito do capitalismo –, conseguiu solucionar a crise de acumulação capitalista instaurada a partir de 1929. Tal solução, por excelência antiliberal – e não anti-capitalista, ressalve-se –, desde então colocou à margem os arautos do liberalismo,

propugnadores do livremercado como remédio para todos os males da economia4.

3 Para Perry Anderson, ao identificar a capacidade universalizante da ideologia “neo” liberal: "Política e

ideologicamente (...) o neoliberalismo alcançou êxito num grau com o qual seus fundadores provavelmente jamais sonharam, disseminando a simples idéia de que não há alternativas para os seus princípios, que todos, seja confessando ou negando, têm de adaptar-se a suas normas. Provavelmente nenhuma sabedoria convencional conseguiu um predomínio tão abrangente desde o início do século como o neoliberal hoje. Este fenômeno chama-se hegemonia, ainda que, naturalmente, milhões de pessoas não acreditem em suas receitas e resistam a seus regimes." ANDERSON, Perry. "Balanço do Neoliberalismo" In GENTILI, Pablo e SADER, Emir. Neoliberalismo: As Políticas Sociais e o Estado Democrático. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1995, pág. 23.

4 O keynesianismo representou uma nova maneira de gerir os fatores econômicos, pois: "A intervenção econômica

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Tanto o socialismo como o pensamento keynesiano (enquanto princípios teóricos e experiências práticas) estavam, cada qual à sua maneira e com finalidades distintas, e sem que se desconsidere suas ambigüidades e contradições, embuídos de valores

ético/políticos relacionados à igualdade social, tais como: justiça social,

solidariedade coletiva, redistribuição de renda, desconfiança (absoluta, o primeiro, e relativa, o último) em relação à instituição do mercado, crença na necessidade de intervenção e regulação do Estado, entre tantos outros. Estes valores foram personificados, portanto, seja pela tradição socialista, seja social democrata, seja simplesmente keynesiana ("intervencionista") – mas que têm como traço comum a rejeição aos valores liberais vinculados ao mercado, à concorrência, ao

individualismo, entre outros5. Assim, o corpus doutrinário do liberalismo, assentado

na propriedade privada, no lucro, na divisão social do trabalho e na valorização da esfera privada burguesa, em última instância prega a "liberdade" (enfaticamente dos agentes econômicos), contrastando, portanto, com a tradição igualitarista, personificada nas vertentes acima delineadas.

Ora, a década de 80 registra justamente o soçobrar daquele conjunto de valores ético/políticos de cunho igualitário, tendo em vista as ações concretas de partidos políticos portadores de plataformas ultraliberais que ascenderam ao poder,

originalmente na Inglaterra e logo em seguida nos Estados Unidos6. Estes dois

intervenção assumiu um caráter legítimo, não mais em tempo de guerra apenas (imobilização de todos os recursos disponíveis contra o inimigo), mas também em tempo de paz, para sustentar o crescimento econômico. Mudança ideológica considerável [em relação ao período anterior, caracterizado como 'laissez-faire'], que dominou as idéias desde a Grande Depressão dos anos 30 até meados dos anos 70: 'período keynesiano', ligado ao advento da política econômica." BRUNHOFF, Suzanne de. A Hora do Mercado: Crítica do Liberalismo. São Paulo, Unesp, 1991, pág. 22.Com isso, "(...) a política econômica parece ter-se tornado um atributo natural do Estado." Idem, ibidem, pág. 26.

5 Ao seu modo, e com valores radicalmente autoritários, o fascismo e o nazismo representaram igualmente a total

rejeição dos valores liberais, por mais que mantivessem a propriedade privada. Mais incisivamente ainda, representavam valores antiiluministas.

6 De um ponto de vista histórico e econômico, em verdade a primeira experiência concreta de implementação do

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países, através respectivamente do partido Conservador (liderado por Margareth Thatcher), a partir de 1979, e do partido Republicano (comandado por Ronald Reagan), a partir de 1980, efetivaram reformas internas – acompanhadas por um sem número de contradições – que fundamentalmente privilegiaram o mercado,

concebido como instituição basilar e panacéica da sociedade e o risco pessoal como atributo da liberdade, no bojo de um novo padrão comportamental individualista que deveria se articular ao “mercado livre”, entre muitas outras

reformas; conseqüentemente, o Estado interventor e regulador passou a ser

concebido como óbice à liberdade individual e ao progresso material (devido,

agora, à consideração de seu caráter perdulário, autoritário e paternalista), transformando-se idéias (que foram consubstanciadas em práticas) como justiça social, solidariedade e redistribuição de renda em excrescências a serem suprimidas.

Daí o estabelecimento da avalanche privatista, isto é, a venda de empresas estatais à iniciativa privada como forma (inclusive transformada em mote) de retirar o Estado da atuação direta na economia. Afinal, o papel estatal deveria ser "mínimo" no que tange às relações econômicas, o que significa fundamentalmente a garantia da propriedade privada e dos contratos estabelecidos entre os particulares, e a precedência absoluta da esfera privada em relação à esfera pública, o que implicou num ataque às garantias sociais. Tais reformas compuseram, portanto, uma nova

Agenda político/econômica, claramente antitética à anterior (keynesiana). Por sua

vez, por mais que a literatura aponte a existência de uma crise fiscal e mesmo de processos estagflacionários em diversos países de capitalismo central entre os anos 70 e 80, de forma alguma a reversão ideológica em foco pode ser considerada “natural”; tratou-se, pois, de embate ideológico, embate este que os movimentos ultraliberais assumiram a dianteira.

corpus teórico ultraliberal, que tem nas liberdades políticas um corolário não necessário, em função da ênfase ao

mercado como locus da liberdade, como veremos.

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Ocorreu, conseqüentemente, que esta nova Agenda e este novo conjunto de valores

ético/políticos, por excelência anti-igualitários, pois enfatizadores da "liberdade",

notadamente "negativa"7, além de justificar o desenvolvimento das experiências

concretas, especialmente nos dois países citados, passou a se espraiar por todos os quadrantes, com poucas exceções. Tais experiências, e valores que as justificaram/justificam, foram, do ponto de vista tanto da fundamentação teórica quanto da retórica ideológica, providos, entre outros, especialmente por autores como Friedrich Von Hayek e Milton Friedman, e pelas instituições de produção

teórica em que militaram: as Escolas Austríaca e de Chicago8.

Em outras palavras, a hegemonia keynesiana vinculada a uma perspectiva "social" da produção e distribuição da renda fora substituída impiedosamente pela avalanche

7 O conceito de liberdade negativa é expresso pelo maior líder do movimento ultraliberal, F. Von Hayek, para

quem: "Afirma-se, muitas vezes, que nosso conceito de liberdade é meramente negativo. E isso é verdade, no sentido de que a paz é também um conceito negativo, assim como são negativas a segurança, a calma, ou ainda a ausência de qualquer mal ou impedimento. A liberdade pertence justamente a essa classe de conceitos: ela define a ausência de um obstáculo determinado – a coerção do homem pelo homem. Somente se torna positiva mediante o uso que delas fazemos. A liberdade não nos assegura qualquer oportunidade específica, mas deixa a nosso critério a forma de usar as circunstâncias nas quais nos encontramos". HAYEK, F. V. Os Fundamentos da Liberdade. São Paulo/Brasília: Visão/UNB, 1983, pág. 15, ênfases nossas.

8

A Escola Austríaca é constituída por um grupo de economistas que lecionou na Universidade de Viena e sustentou algumas idéias comuns, mais tarde englobadas no marginalismo. O ponto de partida (...) consistiu em chamar a atenção para os fundamentos psicológicos do valor (...) acreditaram poder reconstituir abstratamente os mecanismos da vida econômica." DICIONÁRIO DE ECONOMIA. São Paulo: Abril Cultural, 1985, pág. 144. F. von Hayek já se tornara figura proeminente nesta Escola, onde os fundamentos de seu pensamento já teriam se estabelecido, pois, para ele: "(...) a economia de mercado constitui um sistema auto-regulador (uma 'cataláxia), que não necessita da intervenção governamental para funcionar de modo harmonioso. A economia de mercado, entregue a seus mecanismos espontâneos, produz (...) um resultado melhor que o que as economias mistas com uma política econômica ativa podem produzir. Durante a grande recessão dos anos trinta, Hayek opôs-se veementemente ao estímulo da conjuntura (pela redução das taxas de juros ou a aceleração dos gastos públicos), sustentando que a única coisa a fazer consistia em deixar as forças do mercado funcionarem." VERGARA, Francisco. Introdução aos Fundamentos Filosóficos do Liberalismo. São Paulo, Nobel, 1995, págs. 106 e 107.

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enfatizadora do "mercado livre" de um nova hegemonia, a hegemonia (ultra)liberal – vertente contemporânea do pensamento liberal, caracterizada pelo conservadorismo e pela reação às práticas "intervencionistas" e aos valores sociais. Neo (ou ultra) liberalismo, portanto, que representa uma "releitura" do liberalismo clássico, na medida em que:

"(...) reproduz um conjunto heterogêneo de conceitos e argumentos, 'reinventando' o liberalismo mas introduzindo formulações e propostas muito mais próximas do conservadorismo político e de uma sorte de darwinismo social distante pelo menos das vertentes liberais do século XX."9

Quanto ao embate ideológico que vimos falando, Eric Hobsbawm assim o historiciza:

"A batalha entre keynesianos e neoliberais não era nem um confronto puramente técnico entre economistas profissionais, nem uma busca de caminhos para tratar de novos e perturbadores problemas econômicos. (...) Era uma guerra de ideologias incompatíveis. (...) a economia nos dois casos racionalizava um compromisso ideológico, uma visão a priori da sociedade humana. Os neoliberais desconfiavam e sentiam antipatia pela social democrata Suécia, uma espetacular história de sucesso econômico do século XX, não porque ela ia ter problemas nas Décadas de Crise –

9 DRAIBE, Sônia. "As Políticas Sociais e o Neoliberalismo" In REVISTA USP: Dossiê

Liberalismo/Neoliberalismo, nº 17, março/abril/maio de 1993, pág. 86.

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como tiveram outros tipos de economia –, mas porque se baseava no 'famoso modelo econômico sueco, com seus valores coletivistas de igualdade e solidariedade' (Financial Times, 11/11/90). Por outro lado, o governo da sra. Thatcher na Grã-Bretanha era impopular na esquerda, mesmo durante seus anos de sucesso econômico, porque se baseava num

egoísmo associal, na verdade antisocial." 10

A descrição acima demonstra bem o tipo de embate travado entre keynesianos e ultraliberais, num contexto marcado pela dicotomia entre mercado e Estado (por parte do liberais) e pela memória da destruição econômico/social (concebida, pelos antiliberais) como causada pelo liberalismo do tipo “laissez-faire” – esta memória fora transformada em crença. Pode-se dizer que tal embate domina o século, mesmo

hoje; ocorre, contudo, que a hegemonia mudou de mãos. É neste sentido que

Richard Cockett retrata, brilhantemente, as minúcias deste conflito, que remonta as primeiras décadas deste século XX. Segundo ele:

“The debate between Hayek, the economic liberals and Keynes during the 1930s was crucial in sharpening and crystallizing the thinking of the former school, and paved the way for the formulation of an international movement of economic liberals against Keynesian economics, of which the Paris meeting in 1938 [reunido em torno de Walter Lipman – FCPF] was the first small rally. (...) The academic debate between the ‘Keynesians’ and the economic liberals during the 1930s, sometimes referred to as the ‘economic calculation’ debate, was, it could be said, the

crucial intellectual debate of the century in the democratic West.” 11

10 HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos: O Breve Século XX (1914-1991). São Paulo, Cia. das Letras, 1995,

pág. 399.

11 COCKETT, Richard. Thinking the Unthinkable (Think-Tanks and the Economic Counter-Revolution,

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É de fundamental importância observar que o autor retrata tanto o debate político/ideológico (onde os think-tanks possuem um papel-chave) como o debate acadêmico stricto sensu, reforçando a idéia de que a hegemonia, inicialmente keynesiana, e agora liberal, se estabelecera tanto em termos teóricos como político/ideológicos.

Portanto, a hegemonia ultraliberal é observada mesmo em países como o Brasil, onde o Estado capitaneou com enorme sucesso o modelo "substituidor de importações" – modelo que transformou o país de agrário-exportador em urbano-industrial, possuidor de um mercado interno razoavelmente extenso. É interessante notar que, no contexto latino-americano, a Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL) teve enorme influência quanto à políticas – keynesianas – de industrialização, através de uma perspectiva que levava em consideração a assimetria “centro-periferia” no capitalismo. A figura de Roberto Simonsen, em contraposição ao ultraliberal Eugênio Gudin, sintetiza, nos anos 40, este debate no

Brasil12, depois reinterpretado pela Cepal, em que sobressai a figura de Celso

Furtado.

A Agenda político/econômica ultraliberal, de certa forma implementada no início da década de 80 na Inglaterra e nos EUA e logo tornada internacional, produziu efeitos globais, mesmo que diferenciais em cada realidade regional. Resta-nos saber como, no Brasil, tal Agenda, associada aos valores ético/políticos acima delineados, se configurou.

Por outro lado, consideramos ser a imprensa – notadamente a grande imprensa escrita – a instituição que, nas sociedades complexas, é capaz ao mesmo tempo de publicizar, universalizar e sintetizar as linhagens ideológicas. Isso porque a periodicidade diária (que lhe confere mais agilidade do que as revistas semanais),

12 Este debate e questões correlatas são analisados por MORAES, Reginaldo C. C. de. Planejamento: Democracia

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com todo o aparato das manchetes, editoriais, artigos, charges, fotos, reportagens, entre outros recursos, possibilita aos jornais uma influência sutil, capaz de sedimentar – de maneira não mecânica, contudo – uma dada idéia, opinião, imagem ou representação. Não bastasse isso, as trincheiras ideológicas (ocupação das instituições produtoras de cultura, no sentido de constituição de uma visão de mundo), no contexto de uma guerra de posições (busca do poder através da conquista cumulativa de espaços político/ideológicos), são particularmente expressas nos jornais, pois os mesmos, para além da clareza dos instrumentos que possuem, certamente objetivam a veiculação de idéias que influenciem seja a chamada opinião pública, sejam os detentores do poder estatal, sejam determinados segmentos sociais (dos quais, por vezes, são porta-vozes). O que pode ser confirmado, a rigor, pela intensa participação que estes jornais tiveram em momentos candentes da história política do país, tais como o envolvimento do jornal

O Estado de S. Paulo na chamada revolução constitucionalista de 1932 e nas

conspirações que levaram ao golpe de 1964 e na influência que o jornal Folha de S.

Paulo obteve na campanha das "diretas já" em 1984, entre outros exemplos 13.

Afinal, a imprensa representa uma das instituições mais eficazes na inculcação de idéias no que tange a grupos estrategicamente reprodutores de opinião – constituídos pelos estratos médios e superiores da hierarquia social brasileira –, caracterizando se como fundamentais aparelhos privados de hegemonia – isto é, entidades voltadas à propagação de idéias com vistas à obtenção do consenso acerca de determinadas idéias ou visão de mundo, consenso este consubstanciado em

13 A grande imprensa, concebida como ator político/ideológico – perspectiva que adotamos –, deve ser

compreendida "(...) fundamentalmente como instrumento de manipulação de interesses e de intervenção na vida social." CAPELATO, Maria Helena e PRADO, Maria Lígia. O Bravo Matutino- Imprensa e Ideologia: o Jornal O

Estado de S. Paulo. São Paulo, Alfa-Omega, 1980, pág. XIX.

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hegemonia. Para Gramsci, segundo um de seus maiores exegetas no Brasil, Carlos Nelson Coutinho, os aparelhos privados de hegemonia:

"(...) são organismos sociais 'privados', o que significa que a adesão aos mesmos é voluntária e não coercitiva, tornando os assim relativamente autônomos em face do Estado em sentido estrito [no contexto, portanto, de sua configuração ampliada, isto é, sociedade política + sociedade civil, possível nas conformações sociais do tipo "ocidente" – FCPF]; mas deve se observar que Gramsci põe o adjetivo 'privado' entre aspas, querendo com isso significar que – apesar desse seu caráter voluntário ou 'contratual' – eles têm uma indiscutível dimensão pública, na medida em

que são parte integrante das relações de poder em dada sociedade."14

O parco universo leitor de jornais no Brasil não representa propriamente um óbice a tal perspectiva tendo em vista as funções intelectuais reprodutoras, exercidas pelos referidos estratos sociais que a eles (jornais) têm acesso, representarem um núcleo capaz de espraiar certas idéias e determinada visão de mundo. Tais estratos funcionam, portanto, como (estratégicos) retransmissores das idéias centrais que a

grande imprensa elabora e/ou carreia – porém, jamais, enfatize-se, de forma

automática. Conseqüentemente, a questão central a que este estudo se propõe diz respeito à recepção/transmissão por parte da grande imprensa do novo conjunto de valores que rapidamente se tornara hegemônico em escala global. O discurso ideológico produzido por essa imprensa necessita, portanto, ser analisado com vistas à captação de seu recebimento/formulação das novas idéias liberais agora reluzentes.

14 COUTINHO, Carlos Nelson. Marxismo e Política: A Dualidade de Poderes e Outros Ensaios. São Paulo, Cortez,

1994, págs. 54 e 55.

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Por mais que tenha havido rearranjos no posicionamento do mercado editorial e na influência político/ideológica entre os dois jornais em foco ao longo da década de 80 e mesmo da de 90, são esses os grandes formadores de opinião do país, isto é, os órgãos que, na imprensa diária, lançam idéias que potencialmente modelarão a opinião majoritária dos indivíduos, a começar pelos estratos capazes de reproduzi-las; afinal, a mídia propriamente dita, em especial a televisão, possui tanto uma linguagem (em sentido amplo) fundamentalmente fugaz como um público demasiado heterogêneo para que pudesse substituir os periódicos (notadamente os diários) como formadores nucleares de opinião. Estes últimos, portanto, possuem um público mais homogêneo, pois, como dissemos, constituído dos, exíguos, estratos médio e superior da hierarquia social brasileira. Na verdade, de certa forma pode-se afirmar serem justamente os jornais (secundados pelas grandes revistas) um dos meios que influenciam o restante da mídia, através da reprodução, nesta, dos grandes eixos formulados pela imprensa escrita – não se desconsiderando, contudo,

as divergências de interesses/visão de mundo passíveis de existir entre os mesmos15.

Por sua vez, os editoriais destes órgãos representam a posição oficial do periódico e sua linha de conduta, e que por isso serão alvos principais, com algumas complementações, de nossa análise. Por mais que a elaboração do jornal seja algo extremamente complexo, em função da quantidade de pessoas envolvidas, da diversidade de temas, da velocidade e mutabilidade da informação e do próprio processo jornalístico, que se inicia de certa forma na reportagem e termina impresso nas páginas do periódico, entre inúmeros outros aspectos, há no jornal um linha, um eixo que os editoriais expressam. A forte hierarquia existente nos periódicos demonstra claramente que, apesar desta extrema complexidade, os donos do jornal possuem um amplo controle sobre o processo produtivo – e conseqüentemente sobre o produto final – das notícias, cada vez mais, diga-se, concebidas como mercadoria. Por isso, segundo José Marques de Melo, nas sociedades capitalistas:

15 Além dos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, os jornais O Globo e Jornal do Brasil, assim como a

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“(...) o editorial reflete não exatamente a opinião de seus proprietários nominais mas o consenso das opiniões que emanam dos diferentes núcleos que participam da propriedade da organização. Além dos acionistas majoritários, há financiadores que subsidiam a operação das empresas, existem anunciantes que carreiam recursos regulares para os cofres da organização através da compra de espaço, além de braços do aparelho burocrático do Estado que exercem grande influência sobre o processo jornalístico pelos controles que exercem no âmbito fiscal, previdenciário, financeiro.

“Assim sendo, o editorial afigura-se como um espaço de contradições. Seu discurso constitui uma teia de articulações políticas e por isso representa um exercício permanente de eqüilíbrio semântico. Sua vocação é a de apreender e conciliar os diferentes interesses que perpassam sua operação cotidiana.

[No Brasil, contudo, os editoriais] “(...) embora se dirijam formalmente à ‘opinião pública’, na verdade encerram uma relação de diálogo com o

Estado.” 16

O editorial representa, portanto, segundo a passagem acima, um locus especial no jornal, tendo em vista condensar seus múltiplos interesses. Deve-se, contudo, relativizar a afirmação do autor de que, no Brasil, o editorial dialoga fundamentalmente com o Estado, pois, além deste, objetiva, como veremos, influenciar outras arenas decisórias – tais como partidos políticos, movimentos sociais, representantes orgânicos de classes sociais, entidades profissionais, entre outras –, pois representam retransmissores potenciais da opinião do jornal. Por outro lado, o jornal, particularmente através do editorial, pode ser canal de expressão

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destes setores. Trata-se, portanto, de uma relação dialética, compreensível somente através da observação sistemática do processo histórico e do posicionamento dos jornais perante o mesmo.

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Observe-se que o corpus teórico gramsciano permite-nos captar o significado e o sentido do que afirma Hayek, pois, segundo este:

"Na luta pelo apoio moral dos povos do mundo, a falta de uma sólida filosofia deixa o Ocidente em grande desvantagem. Há muito que o estado de espírito de seus líderes intelectuais se vem caracterizando pela desilusão com seus princípios, pelo desprezo por suas realizações e pela preocupação com a criação de 'mundos melhores'. Não é com esse estado

de espírito que se pode esperar ganhar adeptos. Se quisermos vencer a grande luta que se está travando no campo das idéias [leia- se

liberalismo contra o igualitarismo socialista e keynesiano – FCPF],

devemos, antes de mais nada, saber em que acreditamos. Devemos

também ter idéia clara daquilo que desejamos preservar, se não quisermos perder o rumo."

[E continua o autor, expressando claramente que sua atuação teórico/ideológica visa a obtenção da hegemonia ultraliberal – FCPF – , pois:]

“(...) devemos esperar que, aqui, ainda exista um amplo consenso com respeito a certos valores fundamentais. Mas este consenso já não é mais

explícito; e, para que tais valores voltem a predominar, há urgente

necessidade de sua reafirmação e defesa." 17

17 HAYEK, Friedrich Von. Os Fundamentos da Liberdade, op. cit., págs. XXXII e XXXIII, ênfases nossas.

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Como se observa, a passagem acima demonstra a impressionante lucidez acerca da importância e necessidade da conquista dos valores e crenças que fundam um consenso, uma hegemonia. Dessa forma, fica claro que os ideólogos do ultraliberalismo possuíam armas teórico/ideológicas para o embate acerca da hegemonia, tornando-se fundamental para tanto, contudo, a existência de veículos carreadores das idéias que formulavam. Estes veículos foram, entre outros, os centros universitários e notadamente a grande imprensa. Assim, tanto a elaboração de certas idéias – no caso da imprensa nacional vinculadas à realidade brasileira – como a canalização de um conjunto delas (em boa parte práticas, à guisa de um receituário, provindas de autores como Hayek, por exemplo), personificadas numa visão determinada de mundo, isto é, o ultraliberalismo, fazem com que a (grande) imprensa seja peça fundamental na montagem do "quebra-cabeças" acerca da – aqui pressuposta – conquista hegemônica por parte do ultraliberalismo. Vejamos, então, como Gramsci define a relação entre a imprensa e seus receptores, isto é, os leitores:

"(...) o elemento fundamental [além do aspecto comercial] para a sorte de um periódico é o ideológico, isto é, o fato de que satisfaça ou não

determinadas necessidades intelectuais, políticas 18.

[Em contrapartida – FCPF:] "Os leitores devem ser considerados a partir de dois pontos de vista principais: 1) como elementos ideológicos 'transformáveis' filosoficamente, capazes, ducteis, maleáveis à transformação; 2) como elementos 'econômicos', capazes de adquirir as publicações e de fazê-las adquirir por outros. Os dois elementos, na realidade, nem sempre são destacáveis, na medida em que o elemento

Além do mais, prossegue o autor: "(...) são as idéias neoliberais que fixam os parâmetros de toda a política econômica. Elas fixam esses parâmetros no sentido em que não existe mais qualquer concepção alternativa coerente de como as economias capitalistas modernas devem ser conduzidas. A tradição keynesiana está quebrada e desmoralizada." Idem, ibidem, pág. 149.

18 GRAMSCI, Antonio. Os Intelectuais e a Organização da Cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1985,

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ideológico é um estímulo ao ato econômico da aquisição e da

divulgação." 19

A simultaneidade do caráter ideológico e econômico que o leitor (receptor) possui, em Gramsci, remete-nos uma vez mais à caracterização da grande imprensa, pois estruturada como: a) aparelho privado de hegemonia, b) empresa capitalista, e c) ator político (por vezes assemelhado a um partido político). Esta tripla caracterização pode implicar, em determinadas circunstâncias, uma certa tensão e/ou contradição para o jornal, pois eventualmente seus interesses empresariais podem chocar-se, por exemplo, com sua atuação ideológica. De toda forma, o que mais nos interessa é a compreensão da imprensa como entidade fundamental ao embate ideológico em direção a uma hegemonia.

Por outro lado, o movimento/circulação das idéias – igualmente fundamental à análise da reconquista da hegemonia ultraliberal – só se efetiva devido à encampação ou personificação que os atores sociais, de intelectuais à imprensa, delas (as idéias) realizam, o que implica portanto a impossibilidade de sua autonomização, isto é, de sua existência à margem dos grupos (atores) sociais concretos. Um corpo doutrinário de idéias – necessariamente constituído de um "núcleo duro", de valores, símbolos e motes, entre outros elementos – só adquire viabilidade (entendida como capacidade-de legitimar-se e de se apresentar como alternativa de poder) caso os grupos sociais (em sentido amplo) sejam capazes de encarná-lo e promovê-lo, isto é, colocá-lo em disputa com outras alternativas. E isso tendo em vista o contínuo movimento de elaboração, desenvolvimento, hegemonia, ocaso e reelaboração/reapropriação das idéias. Assim foi o que, aparentemente, ocorreu com o ultraliberalismo que, como vimos procurando demonstrar até aqui, resistiu defensivamente por mais de quatro décadas à hegemonia keynesiana, até conseguir suplantá-la. (É claro, obviamente, que, simplesmente, as idéias podem "morrer", isto é, não serem mais encampadas por nenhum grupo social relevante).

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Logo, qualquer pretensão ao "fim da história" quando da vitória de uma determinada

ideologia sobre outra(s) deve ser vista como um ingênuo devaneio ufanista 20.

Tal movimento/circulação das idéias será ainda mais eficaz caso haja uma esfera pública minimamente democrática, vinculada ao referido conceito gramsciano de "ocidente", pois possibilitadora de embates relativamente livres, porém normalmente assimétricos.

No que tange aos procedimentos metodológicos utilizados neste estudo,

observamos fundamentalmente os editoriais de ambos os jornais entre 1987 e 1989 21

(em razão dos efeitos dos planos de estabilização econômica, do processo constituinte e das eleições presidenciais). A seleção dos mesmos deu-se através da observação cotidiana dos que tivessem relação com os temas previamente agendados – e descritos abaixo; além disso, em função dos editoriais referirem-se especialmente a certas matérias (coberturas jornalísticas), tais como reportagens e cadernos especiais que ambos os periódicos produziram, alguns destes também foram selecionados e analisados. Portanto, procedeu-se de forma a captar o jornal em seu dia-a-dia.

20 Francis Fukuyama tornou-se o símbolo, quando da publicação de seu livro "The End of History and the Last

Man. New York: 1992", da euforia capitalista (liberal) acerca do caráter definitivo, isto é, eterno, da vitória do capitalismo – configurada como liberal-democrata – sobre o socialismo, ocorrida com a queda do muro de Berlim e, depois, com o esfacelamento da União Soviética. Sintetizando o apressado espírito vitorioso, Fukuyama previu o "fim da história", isto é, a impossibilidade de outro sistema econômico/político/social (ou, em outras palavras, de outro modo de produção) que não o capitalismo. Tal hipótese provocou enorme controvérsia, sendo contestada paradigmaticamente por Robert Kurz que, em seu "O Colapso da Modernização: Da Derrocada do Socialismo de Caserna à Crise da Economia Mundial. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993", afirma, como expressa o próprio título, ser o ocaso do socialismo o acontecimento que levará de roldão o próprio capitalismo.

Cf. também ANDERSON, Perry. O Fim da História: De Hegel a Fukuyama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.

21 Segundo o projeto original deste estudo, analisaríamos o período compreendido entre 1987 e 1989. Contudo,

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Por outro lado, é interessante observar também que a eventual ausência, nos editoriais, das temáticas a serem investigadas, notadamente em certas conjunturas candentes, será também um elemento considerável. Dessa forma, procuramos deixar que nossos atores se expressem, sendo, enfatize-se, seu eventual silêncio também uma amostra da realidade no que tange à recepção da Agenda/valores ultraliberais.

Quanto aos temas componentes da Agenda/Valores em foco, objetivamente procuraremos observar nos editoriais as seguintes questões, entre outras correlatas:

a) justiça social e distribuição de renda;

b) questão tributária (por exemplo, a discussão sobre impostos progressivos ou proporcionais, muito significativa no debate entre os ultraliberais);

c) mercado, isto é, a concepção do mesmo: se resolutor, ou não, das disfunções da economia, e de que forma: se integral ou parcialmente;

d) relação Estado/mercado, ou melhor, a concepção de como são/deveriam ser criadas e distribuídas a riqueza;

e) Estado, ou melhor, concepção de seu papel e funções;

f) regulamentação e desregulamentação da economia e das relações sociais;

g) protecionismo e liberalização da economia;

h) crise econômica (inflação, crise fiscal e déficit público, por exemplo), ou seja, diagnóstico da mesma;

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j) relação capital/trabalho;

k) a própria expressão "neoliberalismo", inusual até então, e mesmo simplesmente "liberalismo";

l) concepção do papel da imprensa; entre outros eventualmente surgidos da investigação.

Os temas em foco constituem, como dissemos, uma verdadeira Agenda da transformação, pois informam a formulação de temas e questões que alteraram profundamente o modelo de desenvolvimento brasileiro, tendo em vista sobretudo o nacional-desenvolvimentismo construído a partir de 1930.

1. JORNAL FOLHA DE S. PAULO

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tais questões. Em abril 1986, num editorial chamado sintomaticamente “Privilégio das estatais”, em que considera insuficiente a mera venda parcial de ações das empresas do Estado em razão de uma (requerida) transformação estrutural da economia, afirma:

“A persistência e o agravamento, na economia brasileira, de uma situação

em que o Estado concorre abertamente com o setor privado – ou mesmo

o substitui integralmente, tomando a si funções que este poderia desempenhar por sua própria conta – têm motivado pressões justificadas, no sentido de que se desenvolva uma política conseqüente de

privatização. (...) as atividades governamentais viram sua abrangência

estender-se para muito além daqueles setores onde sua presença, por razões sociais ou estratégicas, seria indispensável; (...) o principal problema do setor público (...) é o da sua pouca eficiência gerencial. (...) mesmo naqueles setores produtivos onde a presença do setor público não

é descartável a curto prazo, [é necessário que] se faça uma completa

reformulação de mecanismos e práticas administrativas.” (01/04/86, ênfases nossas)

Observa-se, portanto, que o jornal justifica a retirada, gradual e condicionada, do Estado na economia em função da crise econômica e não por razões intrínsecas ao

seu funcionamento, como o fazem os que argumentam com pressupostos

ultraliberais22.

22 Segundo um dos principais nomes da Escola Austríaca (ultraliberal), Ludwig Von Mises, o Estado é

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Em outras palavras, segundo a lógica aparente da FSP, esta procura demonstrar que as condições macroeconômicas internacionais mudaram, o que teria ocasionado ao Estado uma redefinição de suas funções, especialmente tendo em vista seus problemas fiscais, gerenciais e de sobreposição ao setor privado, sufocando-o. O fundamental a reter refere-se, portanto, ao fato do jornal enfatizar os fatores que teriam levado à superação do Estado enquanto empresário, adotando então uma

perspectiva histórica – procura observar as necessidades de outrora, como a

insuficiência de capitais privados, e as de hoje: abundância dos mesmos conjugada à ineficiência da gestão pública empresarial. Nesse sentido, apesar da crescente crítica às empresas estatais – alvo maior das considerações – tangenciar muitas vezes o discurso conservador, dado o caráter pejorativo com que estas empresas são (progressivamente) tratadas, avalia-se que há espaço para a atuação do setor público, desde que remodelado e não voltado à área produtiva. Assim, ao combater o argumento de que a existência de empresas públicas lucrativas provaria a eficácia do Estado empresário, afirma num editorial denominado, provocativamente, “O sofisma das estatais”:

“Caso à parte no zoológico administrativo do Estado brasileiro, as empresas estatais são objeto de polêmica constante. (...) as estatais lucrativas têm como fator decisivo para os seus superávits o fato de se beneficiarem de uma situação de monopólio, que retira a validade de qualquer elogio à sua competência burocrática ou gerencial. A pergunta é inevitável: expostas à concorrência, sem o poder de fixar artificialmente os preços de seus produtos, teriam estas empresas a mesma lucratividade?” (28/06/86)

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Acompanhando os títulos dos editoriais que, paulatinamente, demonstram o vigor das críticas à atividade empresarial do Estado, o conteúdo dos mesmos torna-se também mais agudo, procurando minar as resistências pró-estatais.

Por outro lado, é importante ressaltar que a FSP alude ao tema da privatização/intervenção do Estado demonstrando estar o mesmo na agenda política – daí a recorrência em iniciar os editoriais referindo-se ao debate e à polêmica estabelecidos em torno da existência de tal agenda. O fato de o país estar prestes a passar por um processo constituinte, em que os conflitos se aflorariam dentro e fora do Congresso em torno do papel do Estado e do Mercado na nova Constituição, é fator-chave para compreender tal controvérsia. Afinal, a sociedade se polarizou, sobretudo a partir de 1987 – entre desenvolvimentistas, e assemelhados, e liberais/conservadores –, tendo no bloco à esquerda e no “Centrão” os respectivos representantes destas correntes no Congresso Constituinte. Como sabemos, tal controvérsia – que levaria a um maior ou menor papel do Estado na economia e nas questões sociais, entre outros aspectos – resultou numa nova Constituição que fundamentalmente acomodou interesses e visões de mundo de ambas as tendências. O jornal, como aparelho privado de hegemonia pressionara para que suas posições influenciassem – além do leitor – os próprios constituintes, dado o caráter decisório das opções destes.

Argumentar a favor ou contra a intervenção do Estado implicará, para a FSP, avaliar o grau de igualdade social através da redistribuição da renda, isto é, se o Estado atua eficaz e eficientemente para resolver esta questão, pois seria sua atividade primordial nesta quadra da economia brasileira. A radicalização entre

desenvolvimentistas (nacionalistas e esquerda) – que lutavam por uma maior

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duas correntes, principalmente no que tange ao referido papel do setor público na economia/distribuição de renda, tendo em vista os debates constituintes:

“O debate sobre as desigualdades sociais no Brasil tem-se envolvido de uma série de preconceitos e resistências (...) o temor de que os futuros constituintes terminem por abalar alguns preceitos básicos da iniciativa privada tem suscitado, entre os setores conservadores, ressalvas quanto à

quaisquer iniciativas de cunho social que puderem ser propostas nesse Congresso. (...)

“Na verdade, o problema maior é definir qual estratégia deve ser utilizada para combater a pobreza absoluta sem que o governo ceda à tentação de recorrer ao mero assistencialismo (...) e sem que se acredite que apenas o mais completo controle estatal sobre a sociedade será capaz de resolver as presentes injustiças e desigualdades. Não se pretende, obviamente, negar o papel de liderança que caberá ao Estado brasileiro neste processo. (...) trata-se de elaborar parâmetros para uma estratégia econômica de longo prazo que, combinada a uma política fiscal agressiva, crie mecanismos para a redistribuição da renda nacional. (...)

“Da capacidade de conciliar-se a dinâmica do mercado com uma atuação firme no sentido de intensificá-la, eliminando suas distorções e integrando a ela os setores hoje marginalizados, depende o sucesso do sistema de livre iniciativa no país.” (07/07/86, ênfases nossas)

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“benesses” do capitalismo. Aparentemente, portanto, a FSP aproxima-se de um pensamento social democrata, keynesiano. Na verdade, o jornal parece mover-se entre dois opostos, pois, se por um lado posiciona-se vigorosamente contra o movimento sindical – invariavelmente considerado nefasto ao país –, de outro se autoproclama moderno e progressista. Afinal, tornou-se a grande referência político/jornalística especialmente desde a campanha das “diretas-já”, alcançando o

feito de jornal mais vendido do país 23.

Ainda em relação à defesa na livre iniciativa, tal posição permanece não radicalizada, pois a FSP requer que a mesma tenha mais liberdade e mais espaço na economia brasileira, mas de forma alguma aceita a competição sem limites, notadamente entre o capital estrangeiro e o nacional. Há, portanto, um duplo movimento: primeiro, de valorização da iniciativa privada em detrimento do Estado-empresário, fazendo com que este redirecione suas atividades às áreas sociais; segundo, do estabelecimento de formas de proteção ao capital privado nacional – sem o impedimento da entrada do capital estrangeiro – como forma de capacitá-lo à concorrência internacional, preservando os interesses (considerados) “estratégicos” do país. Nesse sentido, a proposta (de setores governamentais) de liberalização de importações – para abastecer o mercado interno e consequentemente baixar o preços – de diversos produtos, em função do Plano Cruzado, é descartada pelo jornal. Invoca os exemplos argentino e chileno para demonstrar as repercussões negativas

23 Entre 1984 e 1986, dados que dispomos, a circulação entre os quatro principais jornais configurava-se desta

forma:

(Entre 3ª feira e Sábado) (Aos Domingos) 1984 1985 1986 1984 1985 1986

FSP 209.493 224.857 282.405 FSP 312.505 340.035 412.799 OG 200.121 213.683 263.769 OG 408.248 436.343 486.546 OESP 180.643 190.033 211.453 OESP 349.073 368.100 412.226 JB 139.888 132.499 157.397 JB 237.803 229.729 266.186

(Obs.: FSP – Folha de S. Paulo; OG – O Globo; OESP – O Estado de S. Paulo; JB – Jornal do Brasil. Fonte: Anuário Brasileiro de Mídia.)

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às economias locais, em nome da baixa da inflação. Para a FSP: “(...) é imprescindível que as autoridades governamentais avaliem criteriosamente propostas para atenuar as restrições à importação, a fim de evitar que o desenvolvimento do parque industrial brasileiro seja comprometido.” (02/04/86)

Mais incisivamente ainda, afirma que os setores que exigem tecnologia de ponta, como a química fina, entre outros, deveriam ser efetivamente protegidos – exceto, enfatize-se, por intermédio de reservas de mercado – dado o caráter “estratégico” que representariam ao país. Por isso, apoia firmemente a intenção do governo de proteger o capital nacional neste setor. Esta intenção fora consubstanciada em um projeto elaborado por alguns ministérios. Mesmo discordando parcialmente quanto a certos mecanismos de tal projeto, que permitiria a produção nacional de medicamentos devido, entre outros fatores, aos incentivos governamentais, entre os quais o impedimento à importação de similares aqui fabricados, o apóia, pois, para a

FSP:

“É justificável a preocupação governamental ao considerar estratégico e prioritário o setor de química fina e, particularmente, o ramo farmacêutico. Os gastos anuais com a importação de produtos dessa área situam-se em torno de US$1,7 bilhão, equivalente a quase 10% do valor das importações brasileiras. (...) [Por outro lado] uma efetiva proteção à indústria nacional poderia ser proporcionada por uma adequada estrutura de tarifas alfandegárias. Mesmo existindo similar nacional, pode haver casos nos quais as empresas prefiram os produtos importados, ainda que submetidos a altos impostos aduaneiros.

“É legítima a defesa de uma indústria nacional incipiente como a de química fina.” (11/07/86, ênfases nossas)

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rejeita terminantemente qualquer iniciativa (considerada) xenófoba ou de isolamento ao capitalismo internacional. Daí sua proposta de elevação das tarifas de importação como forma de incentivar a produção nacional sem que isso impedisse a importação do similar nacional, caso se quisesse – no contexto de outros incentivos, em sentido amplo, governamentais.

Esses exemplos uma vez mais demonstram o distanciamento do jornal em relação ao ultraliberalismo, uma vez que discurso social e proteção a certos setores do capital

nacional não fazem parte do repertório desta doutrina. Contudo, seu discurso

pró-desestatização – concebida, esta, grosso modo pelo jornal como retirada do Estado das atividades empresariais – permanece. Mas também ainda não o será – durante este ano de 1986 – radical. Por isso, o jornal aplaude a maneira “não ideológica” e sim “realista” com que os candidatos a deputado, de linhagens ideológicas distintas – Delfim Netto e José Serra –, estariam tratando do tema em suas campanhas eleitorais:

“Acima das explorações doutrinárias e dos conflitos diretos de poder, a importância de uma crítica à ineficiência estrutural do setor público surge assim na ordem do dia, e parece suscitar um empenho crescente para sua correção, por parte de segmentos de distinta orientação política. Encarar

o assunto com realismo significa, na verdade, reconhecer os profundos desajustes a que a ação empresarial do Estado tem conduzido, assim como a impossibilidade de um processo brusco de privatização das empresas públicas. A extinção das atividades empresariais do Estado, sua

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A passagem acima, especialmente onde a enfatizamos, deixa claro, de um lado a

“ética da responsabilidade”24 do jornal e, de outro, sua não vinculação aos ventos

ultraliberais. Por mais que se afastasse progressivamente de uma postura nacional-desenvolvimentista, através de fortes críticas aos (considerados) desvios e disfuncionalidades do Estado, rejeita aquilo que ficou conhecido como “privatização selvagem”, isto é, a rápida venda, quase que simultânea, de todas as empresas estatais. Note-se que tal estilo de privatizar ocorreu em outros países, num processo de verdadeiro sucateamento do setor público. A FSP descarta-o ao reconhecer a complexidade da questão e, mais ainda, o papel até então desempenhado pelo Estado na economia e na sociedade brasileiras. A isso chamou de “realismo” – em substituição à, considerada, ideologização sobre o tema. Cabe notar, contudo, ser correto afirmar que, mesmo uma postura dita realista pode conter – e normalmente o contém – influências de certas doutrinas. Por isso, preferiremos continuar a denominar esta postura da FSP como filiada à “ética da responsabilidade” em razão, por sua vez, seja de sua visão de mundo (social democrata?), seja de seus compromissos/representações sociais (de classe).

Por fim, é importante ressaltar que o jornal continuamente cobrara ações governamentais efetivas no sentido de desestatizar o país, reclamando crescentemente que o governo Sarney faria muito proselitismo mas produziria pouquíssimos resultados nesta questão. Por isso, sem negar, realisticamente, como lhe é usual, o papel do Estado em certos setores, afirma:

“(...) alguns investimentos do governo em programas de infra-estrutura, além de essenciais para incentivar as inversões da iniciativa privada, não poderiam ser realizadas de outra forma. (...) não basta a desestatização; é fundamental para o reequilíbrio financeiro do setor público um esforço no

24 Segundo a clássica distinção de Max Weber, portar a “ética da responsabilidade” implica preocupar-se com as

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sentido de promover o saneamento das estatais. [Por outro lado] (...) criou-se um sem-número de programas, comissões e grupos de estudo com o objetivo de redefinir a presença do Estado na economia, mas muito pouco se conseguiu até agora de concreto.” (01/10/86)

Portanto, o jornal cobra ações concretas por parte do governo – e progressivamente irá se irritar com seu, considerado, imobilismo – ao mesmo tempo em que rejeita qualquer iniciativa radical ou que considere informada por algum viés ideológico. O próprio reconhecimento da complexidade do tema o faz ser de certa forma condescendente com o governo Sarney neste ano de 1986, mesmo ao final do ano, quando o Plano Cruzado já estava em franco declínio. Mais ainda, o fato de haver eleições no mês seguinte ao do editorial acima talvez tenha inibido a FSP a um enfrentamento mais conflitivo com o poder, até porque, aparentemente, desde que seu novo projeto editorial fora implantado jamais procurou distanciar-se em demasia do pensamento médio de seus leitores e da chamada “opinião pública” como um todo, que, naquele momento, ainda estava “anestesiada” com os efeitos inéditos da

“estabilidade” da moeda 25.

25 A relação de maior distanciamento ou proximidade com os leitores, isto é, com a opinião média da sociedade, à

luz do Projeto Folha, pode ser apercebida nesta significativa afirmação de Otávio Frias Filho de que “(...) é muito mais útil que a sociedade tenha um jornal que é sensível às mudanças que ocorrem a cadadia, muito mais útil que os leitores tenham um jornal que se modifica à medida que a disposição deles, leitores, vai se modificando, do que ter um jornal fossilizado, que é uma ideologia incrustrada na sociedade, que não se modifica há décadas [ou seja,

OESP] (...) Eu acho que o jornal tem que ser movido pela conjuntura mesmo. E a Folha faz isso. (...) Quando esses

leitores tinham uma atitude politicamente neutra, quando eles tinham uma atitude até de endossar o regime, a Folha tinha uma atitude correspondente nessa linha e, quando os leitores se deslocam para uma posição mais crítica, mais reivindicante, a Folha se desloca também.” (Entrevista à revista Lua Nova, CEDEC, vol. 1, nº 2, jul/set. 1984, pág. 38) Apesar de muito significativa, por demonstrar explicitamente a ausência de uma vinculação doutrinária por parte do jornal, esta posição de seu diretor-proprietário precisa ser relativizada, pois em diversos momentos, como veremos, a FSP manteve certas posições que diferiam essencialmente da opinião da população como um todo e/ou de seus leitores, opinião esta medida através de pesquisas de opinião. Exemplo maior: as empresas estatais (que veremos mais adiante). Entre outros trabalhos importantes que discutem o atual projeto editorial da Folha de S.

Paulo, cf. o trabalho do jornalista deste jornal que apresenta a perspectiva da própria FSP: LINS DA SILVA,

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Em 1987 o jornal prossegue em sua caminhada rumo a um distanciamento26 cada

vez maior da perspectiva nacional-desenvolvimentista ou mesmo keynesiana – esta, em termos de indução estatal ao desenvolvimento econômico. Como se verá, fixa-se na idéia – a rigor bastante enfatizada durante 1986, como vimos – de que o papel do Estado é essencialmente social, tornando-se o Estado-empresário um óbice à consecução da justiça social. Novos argumentos e imagens, contudo, serão utilizados como forma de tornar consensual sua visão sobre o tamanho e o papel do Estado na economia, no quadro mais amplo acerca do modelo de desenvolvimento. Por isso, em 1987, questões como privatização, desestatização, reorientação do papel do Estado, livre iniciativa, desigualdade social e suas causas, entre outros temas, continuaram a ocupar espaço considerável nos editoriais e reportagens da

FSP. Não podemos nos esquecer que o processo constituinte iniciara-se

efetivamente neste ano, dominando o debate político tendo em vista que seu resultado determinaria as novas regras do jogo político e econômico do país. Daí a imprensa como um todo, e em particular seus maiores formadores de opinião – a imprensa escrita – participarem integralmente do debate, que mais pareceu, em larga medida, uma guerra ideológica. Por isso, avançar posições – ainda mais para um jornal ascendente política e empresarialmente, como a FSP – na trincheira

político/ideológica que representou o Congresso Constituinte seria fundamental às

pretensões de um aparelho privado de hegemonia. Em função desse contexto, logo no início de janeiro a FSP publica um editorial intitulado, sintomaticamente, “No rumo da privatização”. Diz o jornal:

Ideologia, Notícia e Mercado – A pós-modernidade tecnocrática da Folha de S. Paulo. Tese de Doutoramento, ECA/USP, 1990, enfatiza a lógica tecnocrata presente na FSP.

26 Podemos falar em guinada em razão de estudos que retratam as posições do jornal anteriormente ao período em

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“O programa de desestatização no Brasil é antigo. É também inoperante e tem apresentado parcos resultados. Os exemplos de privatização são tão raros quanto insignificantes (...)

“O Brasil não segue, assim, o caminho trilhado por algumas das mais avançadas democracias européias. Como mostrado pela reportagem de ontem desta Folha, o retraimento do Estado como produtor de bens e serviços considerados não típicos de governos é a tendência dominante na Europa (...)

“É óbvio que o processo de privatização no Brasil precisa levar em conta as condições específicas de sua economia. Muitos setores de ponta exigem investimentos volumosos que no passado justificaram a intervenção estatal e cujos resultados positivos em industrialização acelerada dispensam maiores considerações. (...) [porém] O setor privado nacional demonstra possuir hoje uma capacidade de poupança que lhe permitiria participar mais ativamente em áreas que se encontram nas mãos de empresas públicas. Ademais, é notória a maior eficiência do setor privado (...) Mas se o processo econômico tende a prescindir do Estado-empresário, o mesmo não pode ser inferido quanto ao seu papel regulador (...) [através da] presença fortemente reguladora e fiscalizatória do Estado, impedindo que práticas oligopolísticas e predatórias acabem por prejudicar o consumidor e inviabilizar o processo concorrencial.

“É preciso reavaliar a presença do Estado na economia brasileira (...) E nesta empreitada, a análise do que ocorre em outros países poderá

oferecer importantes contribuições.” (06/01/87, ênfases nossas)

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ideológico poderoso de persuasão aos leitores, e crescentemente adotado; dessa forma, os editoriais comentam um (suposto) fato, que quase sempre conflui para corroborar os argumentos ou teses propugnados pelo jornal. No caso, as reportagens – tidas e requeridas como imparciais – relatariam as “mazelas” e a “ineficiência” (em sentido amplo) do Estado, representando um silogismo que os editoriais se encarregam de concluir.

Um outro e fundamental tipo de argumento, expresso acima, será, por outro lado, utilizado profusamente a partir deste ano: trata-se da (apresentada como) constatação de que há uma tendência internacional no sentido de reduzir a participação do Estado enquanto agente de desenvolvimento, liberando o mercado até então regulado. Daí o constante comentário, nos editoriais, sobre estes processos em diversos países. A lógica do argumento, ao fundamentar-se no diagnóstico de que em praticamente todos os quadrantes o mercado vem assumindo funções que o Estado se intrometera, procura demonstrar que o Brasil, ao retardar seu processo de desestatização, estaria perdendo o “bonde histórico” do desenvolvimento, que teria mudado seu vetor. O que não se observa, neste argumento, é uma investigação das

causas que levaram a tal transformação em escala internacional 27.

No que se refere especificamente ao Brasil, o método retórico/argumentativo utilizado pela FSP poderia ser chamado de “histórico-comparativo”, pois procura observar os recursos financeiros e políticos do capital nacional no passado, assim como a conjuntura internacional, notadamente a partir dos anos 30, e nos anos 80. Pode-se concluir deste “método” que o jornal continua a não assumir, de forma

27 De acordo com alguns trabalhos que investigaram a cobertura da grande imprensa especificamente em relação ao

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principista, que a livre iniciativa é, por natureza, de forma imanente, superior ao Estado – argumento, este, tipicamente ultraliberal. Logo, a relação entre Estado e

Mercado (através, neste, dos capitais privados nacionais e internacionais) seria mutável, submetida a variáveis históricas. Mais ainda, há que se ressaltar a permanência dos condicionantes à privatização no Brasil, dada a magnitude da

inserção do setor público na economia e a complexidade de se promover um processo de desestatização. Por fim, a precedência da esfera privada sobre a pública pode ser verificada através da solicitação do papel regulador do Estado em relação ao mercado, isto é, seu regramento e fiscalização. Tal regulação, contudo, não deveria ser tomada nem como intervenção empresarial do Estado nem como intermediação das relações privadas, e sim como indutora e garantidora da competição. É por isso que, ao criticar a proibição – considerada indevida – por parte do Estado, na esfera municipal, da abertura do comércio aos domingos, considera que: “É preciso não confundir a idéia do moderno Estado de bem-estar social – que garante aos cidadãos direitos fundamentais – com a orgia regulamentadora que no Brasil sufoca o empreendimento particular, deixando um espaço mínimo de não intervenção.” (06/04/87). É importante observar que o jornal continua aceitando a existência de um Estado de bem-estar, desde que não intervenha demasiadamente no espaço da livre iniciativa.

Mesmo não adotando argumentos ultra ou neoliberais, a FSP torna-se mais e mais combativa do Estado-empresário e interventor. Em função disso, novos argumentos serão esgrimidos com o objetivo de substituí-lo desses papéis. Estes argumentos, que veremos abaixo, destoam dos até então apresentados, pois creditam ao Estado males que o mesmo não possuía, na visão do próprio periódico, até recentemente. Nesse sentido, afirma o jornal que:

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“Não há razão para que esta máquina de distorções se mantenha indefinidamente a pressionar o déficit público.(...)

“Nada explica que o Estado se mantenha, permanentemente, controlando empresas de modo ineficaz e em prejuízo de toda a sociedade.” (06/04/87)

Como se observa, as estatais, que anteriormente eram “vítimas” da política macroeconômica do governo federal (e mesmo da dívida externa), tendo suas tarifas congeladas e conseqüentemente sua capacidade de investimento profundamente afetada, passam agora a vilãs do déficit público. Isto representa uma guinada bastante significativa no discurso do jornal.

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“O paradoxo evidencia-se na atitude – característica de alguns setores empresariais – de disparar baterias contra o intervencionismo estatal, defender o livre jogo do mercado, pedir menor governo e, ao mesmo tempo, reivindicar do Estado facilidades e concessões para salvar grupos que enfrentam dificuldades. São distorções típicas de uma tradição paternalista e assistencialista, agravadas e multiplicadas pela fragilidade de uma economia subdesenvolvida.” (02/12/87)

A incisividade deste editorial é bastante significativa. Mas, voltando ao papel do Estado, o jornal manterá suas críticas à xenofobia presente nos setores nacionalistas e à esquerda no Congresso Constituinte assim como às resistências dos conservadores à atuação social da esfera pública. Um dos pontos mais citados diz respeito ao capital estrangeiro, que os segmentos nacionalistas queriam, segundo a

FSP, extirpar da economia brasileira. O jornal mostra-se francamente favorável à

participação deste capital na economia nacional, exceto em alguns setores, como a química fina e mesmo a informática, entre outros, com a renitente condição de que a proteção ao capital nacional somente poderia ocorrer por via tarifária. Em outras palavras, dever-se-ia taxá-lo para promover a indústria nacional, em alguns casos, e não impedi-lo de entrar no país. Afinal, o país teria um profundo gap tecnológico em relação a outros países que necessitaria ser rapidamente superado. Por isso, para o jornal: “O que precisa ser evitado, acima de tudo, é a xenofobia anacrônica, que só faria por retardar o desenvolvimento econômico e social do país.” (16/04/87) – caso da mineração, entre outras, tendo em vista que os constituintes à esquerda quereriam impedir que o capital estrangeiro atuasse nesta área.

Referências

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