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Ouvir o documentário: vozes, músicas, ruídos

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Academic year: 2021

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Ouvir o documentário

vozes, músicas, ruídos

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

Reitor

João Carlos Salles Pires da Silva Vice-reitor

Paulo César Miguez de Oliveira Assessor do Reitor

Paulo Costa Lima

EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

Diretora

Flávia Goulart Mota Garcia Rosa Conselho Editorial

Alberto Brum Novaes Angelo Szaniecki Perret Serpa Caiuby Alves da Costa Charbel Niño El Hani Cleise Furtado Mendes

Dante Eustachio Lucchesi Ramacciotti Evelina de Carvalho Sá Hoisel José Teixeira Cavalcante Filho Maria do Carmo Soares Freitas Maria Vidal de Negreiros Camargo

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Guilherme Maia José Francisco Serafim

(Org.)

Ouvir o documentário

vozes, músicas, ruídos

Salvador EDUFBA 2015

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2015, autores

Direitos dessa edição cedidos à Edufba. Feito o Depósito Legal

Grafia atualizada conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009.

Capa, Projeto Gráfico, Editoração e Arte final

Igor Fonsêca de Araújo Almeida

Revisão e Normalização

Larissa Nakamura Filipe Castro Sandra Batista

Apoio financeiro:

Fundação Cultural do Estado da Bahia (FUNCEB)

Sistema de Bibliotecas – UFBA

Ouvir documentário: vozes, músicas, ruídos / Guilherme Maia, José Francisco Serafim (Org.). - Salvador: EDUFBA, 2015.

219 p.

ISBN 978-85-232-1419-7

1.Documentário (Cinema) - Música. 2. Filmes etnográficos - Música. 3. Música para cinema - Pesquisa. 4. Documentário (Cinema) - Brasil - Pesquisa. 5. Rouch, Jean - Crítica e interpretação. 6. Jaguar (Filme). I. Maia, Guilherme. II. Serafim, José Francisco.

CDD - 791.433 Editora afiliada à

Editora da UFBA Rua Barão de Jeremoabo s/n – Campus de Ondina 40170-115 – Salvador – Bahia Tel.: +55 71 3283-6164 Fax: +55 71 3283-6160 www.edufba.ufba.br edufba@ufba.br

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SUMáRIO

7 APRESENTAçãO

Guilherme Maia José Francisco Serafim

13 O FILME DOCUMENTáRIO E A ChEGADA DO SOM

Bill Nichols

27 A ESCUTA DO COMENTáRIO NO FILME

ANTROPOLóGICO

Marcius Freire

37 BREVES CONSIDERAçõES ACERCA DOS SONS

NO FILME ETNOGRáFICO

Joceny de Deus Pinheiro

59 A INVENçãO DA ETNOFICçãO EM JAGuAR,DE JEAN

ROUCh: uma análise da mise-en-scène do comentário

Sandra Straccialano Coelho

83 O DOCUMENTáRIO COMO TOMADA DE PALAVRA:

reflexões sobre a mise-en-scène da fala e os dispositivos documentais

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95 UM CABRA MARCADO PELAS CANçõES: ensaio sobre a poética musical dos documentários de Eduardo Coutinho

Guilherme Maia de Jesus

121 A BIOGRAFIA CANTADA DE A MúSiCA

SEGuNDO TOM JOBiM Márcia Carvalho

133 O DOCUMENTáRIO INDIRETO DE VLADIMIR

CARVALhO EM O PAíS DE SãO SARuê

Sérgio Puccini

147 SENSAçãO E SENTIMENTO: o som do Rap do Pequeno

Príncipe contra as Almas Sebosas Ana Rosa Marques

161 AS VOzES DE ChRIS MARkER

José Francisco Serafim

183 ESTRATéGIAS DE APROxIMAçãO: as vozes de

Agnès Varda no documentário Os catadores e eu

Tatiana Levin Lopes da Silva

197 O USO DO SOM EM FALSOS DOCUMENTáRIOS

DE hORROR

Rodrigo Carreiro

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APRESENTAçãO

Este livro deriva do projeto de pesquisa Tendências da Música no Do-cumentário Brasileiro Contemporâneo (beneficiado pelo Edital PPP 022/2009 Fapesb/CNPq) e do I Seminário Internacional Ouvir o docu-mentário: música, vozes e ruídos, realizado com recursos da Fundação Cultural do Estado da Bahia (Edital Setorial de Audiovisual 12/2012), do mesmo Edital PPP Fapesb/CNPq, e com o apoio da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e da Universidade Federal da Bahia (Ufba). O núcleo gestor das duas atividades foi o Laboratório de Análise Fílmica (LAF) do Póscom/Ufba, grupo de pesquisa liderado pelos organizadores deste livro.

Como é de conhecimento dos pesquisadores da área do audiovi-sual, o documentário, discutido em livros, artigos, encontros e semi-nários; difundido em mostras, festivais, na programação televisiva e no ciberespaço; ensinado e produzido pelas escolas de nível superior, por organizações do terceiro setor e em cursos livres, e fomentado por políticas culturais, tem atraído um interesse crescente de realizadores, apreciadores e pesquisadores. Em dinâmica semelhante, a partir das sementes plantadas nos anos 1980 por autores como Michel Chion, Rick Altman, Weis, Belton e Claudia Gorbman, entre outros, os aspec-tos sonoros das obras audiovisuais passaram a receber cada vez mais atenção da pesquisa acadêmica e, hoje, já se pode dizer sem receio que um corpo considerável de pesquisadores do mundo inteiro se dedica a refletir sobre a audiovisão, como diz Chion.

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No caso específico do Brasil, a produção acadêmica sobre o som no cinema tem crescido de forma expressiva nos últimos anos, como demonstra a pesquisa intitulada “Os estudos do som no cinema: evo-lução quantitativa, tendências temáticas e o perfil da pesquisa bra-sileira contemporânea sobre o som cinematográfico”, orientada pelo Prof. Eduardo Simões dos Santos Mendes, na qual foi realizado um levantamento bibliográfico e criada uma base de dados com livros, te-ses, dissertações e artigos acadêmicos publicados entre 2001 e 2011. A criação do seminário Estudos do Som, a partir do xIII Encontro da Socine e, consequentemente, a reunião de pesquisadores, antes dis-persos em comunicações individuais, permitiram o aprofundamento das discussões e o início da consolidação de uma nova área de pesquisa no Brasil, construindo a base para um cenário contemporâneo vigo-roso, no qual importantes revistas acadêmicas da área do audiovisual dedicam números com dossiê temático centrado em questões relativas ao som cinematográfico.

Embora, nos últimos anos, este campo de investigação esteja atraindo alguma atenção de pesquisadores brasileiros, como podemos observar, por exemplo, no dossiê dedicado à música nos documentá-rios, publicado no número 12 da Revista DOC On-line, assim como em alguns artigos sobre questões sonoras publicados em outras edições desta mesma revista,1 no âmbito dos estudos sobre documentários,

a imagem e/ou o conteúdo das falas – em suas tensões, distensões, fissuras e rupturas em relação ao “real” – são objetos que, via de regra, costumam deixar pouco espaço para reflexões acerca dos aspectos so-noros das obras. De modo análogo, no campo dos estudos sobre trilhas sonoras, é facilmente comprovável que os filmes de ficção ocupam o epicentro das preocupações e não é arriscado afirmar que ainda são poucos os estudos nos quais, ao som dos documentários, é conferido o status de um problema de pesquisa. Em consulta recente ao portal Fil-mSound.org,2 entre mais de 80 títulos de livros e artigos dedicados aos

1 Nos referimos, aqui, a artigos como MARTINS, J. A. R. de C. Polifonias do documentário: lingua-gens sonoras e plasticidades documentais (1930-1940). DOC On-line, Corvilhã, n. 2, p. 151-153, 2007; e WELLER, F. O Corvilhã som no documentário clássico: as tecnologias da intimidade na escola britânica. Doc On-line, n. 15, p. 319 – 358, 2013.

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estudos do som no cinema, apenas um3 tem o som dos documentários

como objeto específico de discussão. Mesmo cientes de que a listagem é incompleta, como nos informa o portal, fica clara a extensão do reino da ficção nesse campo de pesquisa.

O que colocou em marcha o projeto Tendências da Música no Do-cumentário Brasileiro Contemporâneo, iniciado em 2009, e o seminá-rio Ouvir o documentáseminá-rio: música, vozes e ruídos, realizado em 2012, foi justamente, a vontade de construir mais pontes e intensificar o tráfego de conhecimento entre o campo dos estudos sobre o docu-mentário e o das pesquisas sobre trilhas sonoras. Iniciado em 2009, o projeto Tendências da Música no Documentário Brasileiro Contem-porâneo examinou, sob uma perspectiva imanente, os modos de ope-ração da música em um corpus construído a partir do livro Filmar o real: sobre o documentário brasileiro contemporâneo, de Consuelo Lins e Cláudia Mesquita, e dos artigos publicados no livro Ensaios no real: o documentário brasileiro hoje, organizado por César Migliorin, com con-tribuições de alguns dos mais importantes pesquisadores do campo no Brasil. Já o Seminário Ouvir o documentário, visou ampliar o escopo da pesquisa para além de questões relacionadas à música, incluindo os outros elementos constitutivos das trilhas sonoras: os ruídos, as vozes e o silêncio. O evento reuniu pesquisadores oriundos de prestigiadas instituições brasileiras, como Universidade Federal da Bahia (UFBA), Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal Fluminense (UFF) e Universi-dade Estadual de Campinas (UNICAMP), e recebeu, como conferencis-ta convidado, o Prof. Bill Nichols, da San Francisco Sconferencis-tate University (SFSU).

Este livro espera, enfim, contribuir para uma compreensão mais ampla do estatuto do som no contexto dos debates sobre o filme do-cumental, das perspectivas metodológicas capazes de dar conta das especificidades do uso do som nos documentários e dos modos como o chamado cinema do real lida com aquele que pode ser considerado

3 JEFFREY, R. Conventions of sound in documentary. In: ALTMAN, R. Sound theory, sound practice-ed. New York: Routledge: Chapman, 1992. p. 217-234.

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o menos realista dos recursos audiovisuais: a música extradiegética, concebida e aplicada na pós-produção.

Bill Nichols, com seu texto “O filme documentário e a chegada do som”, traz considerações acerca da chegada do som ao cinema nos anos 1930 e observa a importância do mesmo para o nascente gênero do-cumental.

Os três textos seguintes trazem contribuições sobre um subgênero do documentário: o cinema antropológico. Marcius Freire, em seu tex-to “A escuta do comentário no filme antropológico”, traz subsídios que visam à compreensão de aspectos vinculados ao comentário presente em muitos documentários antropológicos. Já em “Breves Considera-ções Acerca dos Sons no Filme Etnográfico”, Joceny Pinheiro aborda a questão do som nos filmes documentais antropológicos em um sen-tido mais amplo, dialogando com autores importantes tanto para o campo da antropologia como do cinema. O texto de Sandra Coelho, “A invenção da etnoficção em Jaguar de Jean Rouch: uma análise da mise--en-scène do comentário”, traz uma análise do filme Jaguar, de Rouch, analisando-o, sobretudo, sobre o prisma do comentário e de sua rela-ção com a etnoficrela-ção documental.

Amaranta Cesar, em seu texto “O documentário como tomada de palavra: reflexões sobre a mise-en-scène da fala e os dispositivos docu-mentais”, traz uma reflexão sobre os procedimentos de mise-en-scène da fala, tais quais foram colocados em prática, nos anos 1960, pelo documentarista canadense Pierre Perrault.

Guilherme Maia e Márcia Machado abordam, em seus artigos, o documentário nacional, tendo por foco a presença da música nos filmes. No texto de Maia, “Um cabra marcado pelas canções: ensaio sobre a poética musical dos documentários de Eduardo Coutinho”, o autor aborda a obra de Coutinho sob o prisma da utilização da música em seus documentários. Já Márcia Machado analisa o documentário A música segundo Tom Jobin, tendo por interesse uma discussão sobre as obras biográficas, subgênero tão presente na atualidade da cena do-cumental.

Sergio Puccini e Ana Rosa Marques trazem, em seus artigos, uma contribuição através da análise de dois documentários nacionais.

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Puc-cini em “O documentário indireto de Vladimir Carvalho em O país de são saruê”, traz um contributo apresentando as formas utilizadas pelo cineasta Vladimir Carvalho para estruturar a faixa sonora do filme O país de São Saruê. Já Ana Rosa Marques, no artigo “Sensação e senti-mento: o som do O Rap do Pequeno Príncipe contra as Almas Sebosas”, apresenta uma reflexão sobre as sonoridades, sobretudo as musicais, presentes no documentário de Paulo Caldas e Marcelo Luna.

O cinema de autor e a relação deste com as sonoridades presen-tes nos filmes são abordados nos textos de José Francisco Serafim e de Tatiana Levin. Serafim, em seu texto, “As vozes de Chris Marker”, traz uma reflexão sobre a presença do comentário em três documen-tários do cineasta francês. Já Tatiana Levin, no artigo “Estratégias de aproximação: as vozes de Agnés Varda no documentário Os catadores e eu”, aborda a obra de Varda sob o prisma da dupla voz da realizadora, presente nesse filme.

“O uso do som em falsos documentários de horror”, de Rodrigo Carreiro, traz um questionamento para o gênero documental, ao abor-dar os falsos documentários. Carreiro analisa as estratégias de sonori-zação utilizadas pelos realizadores de documentários de horror, sobre-tudo através do uso do foundfootage, e visa encontrar padrões recor-rentes no subgênero mockumentary.

Espera-se que os textos aqui apresentados, tendo em vista a grande diversidade de temas e enfoques, contribuam para o avanço no campo dos estudos do som no cinema documentário, em suas múltiplas ver-tentes, contemplando tanto as vozes como a música e os ruídos.

Guilherme Maia José Francisco Serafim

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Bill Nichols

Tradução: Carolina Guimarães e Tiago Canário

O FILME DOCUMENTáRIO E A

ChEGADA DO SOM

Em nenhum lugar do mundo, a chegada do som ao filme documentá-rio corresponde, exatamente, à chegada do som ao longa-metragem ficcional (1926-1928). Do mesmo modo que o cinemascope, a cor e a maior parte dos efeitos óticos, filmes sonoros eram uma possibilidade muito antes de se tornarem uma realidade. Se o momento exato no qual o som irrompe no filme de ficção é uma questão de tecnologia, financiamento, estética, marketing e expectativas da audiência, não é menos uma questão de problemas similares, resolvidos de uma manei-ra diferente, pamanei-ra o filme documentário. As datas de tmanei-ransições cru-ciais, no entanto, diferem. Para o documentário, as datas relevantes são o começo dos anos de 1930, os anos de 1960 e de 1980. O foco, aqui, é a chegada do som nos anos de 1930, com uma breve menção às datas posteriores.

Exatamente no final dos anos 1920, quando o advento do som na indústria do filme de ficção incitou um vívido debate (principalmente sobre o uso sincronizado ou não sincronizado do som e entre as rela-ções de subordinação ou contraponto aos personagens e às imagens), também o advento do som no documentário colocava uma série de alternativas. Estas variavam de poéticas narrativas a retratos evoca-tivos, assim como de comentários produzidos em estúdio à fala das

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pessoas em sua vida cotidiana. As escolhas feitas em meio a essas al-ternativas são parte de uma história maior sobre a natureza e função do filme documentário no período do fim dos anos de 1920 ao final da década de 1930, quando um modo dominante de documentário expo-sitivo tomou a dianteira e se tornou o equivalente ao modelo clássico de produção de hollywood.

Duas características notáveis desse período são as fronteiras ex-tremamente fluidas entre o documentário e o impulso vanguardista e a recusa dos documentaristas em adotar a tecnologia sonora incor-porada pelos estúdios de hollywood. A mistura fluida das tendências surreal/desfamiliarizante e antropológica/descritiva nos filmes de não ficção fomentou uma experimentação considerável com o som, en-quanto a rejeição da gravação nos moldes dos estúdios atrasou a ado-ção de entrevistas e a representaado-ção de indivíduos comuns falando por si próprios – até o grande crescimento desta possibilidade em locações do mundo real, ao invés de estúdios de som, nos anos de 1960.

Na era do cinema mudo, o documentário, como um modo de re-presentação que oferecia perspectivas a respeito do mundo histórico – sustentado por um enquadramento institucional, uma comunidade de realizadores e munido de convenções específicas, correspondendo a expectativas distintas da audiência – ainda não existia. Nós escreve-mos agora sobre essa história inicial com um conhecimento em retros-pectiva que não podemos negar, mas que, também, não podemos pro-jetar de volta a uma época que precede sua chegada. O cinema carecia de divisões taxonômicas que podemos, agora, pensar que são naturais ou inevitáveis. O primeiro cinema misturava casualmente o encenado e não encenado, atores e não atores, fato e ficção. O factual e o ficcio-nal se tornaram companheiros facilmente, assim como um desejo por surpreender, divertir e entreter tão grande ou maior quanto o desejo por informar ou esclarecer. Somente quando o filme de ficção ganhou uma posição dominante é que todas as outras formas de cinematogra-fia foram relegadas a um status de subordinação ou marginalização,

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o qual, ainda não necessariamente, diferenciava, com cuidado, esses formatos alternativos.1

Do vasto leque de possibilidades que o primeiro cinema ofereceu, algumas têm sido lembradas, outras esquecidas, algumas adotadas, outras ignoradas, algumas enaltecidas, outras ridicularizadas. Cada nova história abre a possibilidade de reconstruir esse leque dos lem-brados, adotados e enaltecidos ou dos perdidos, esquecidos e supri-midos e de desconstruir as histórias que vieram antes. Deve-se fazê--lo, no entanto, dentro do terreno do que sobreviveu (e muito pouco sobrevive por acidente).

Comparado com a quantidade de material que sobreviveu e ganhou reconhecimento na história do cinema narrativo, é chocante quão pou-cos exemplos do que chamamos hoje de documentário são comumente identificados no período anterior ao dos anos de 1930. Jack C. Ellis (1989), em sua história do documentário, por exemplo, cita apenas 26 títulos dos anos de 1920 na América, Europa e União Soviética como trabalhos significativos, enquanto Lewis (c1979) lista apenas 22 títulos significativos do mesmo período. Alguns desses, como Rien que Les heu-res2, de Alberto Cavalcanti, poderiam facilmente ser classificados como

parte da história inicial do cinema experimental, mas, devido ao vago estado no qual todos os filmes não ficcionais existiam, podem ser pro-priamente considerados um exemplo primitivo da tradição documen-tal. Essas listas sugerem quão severamente limitado o campo de refe-rências se tornou. Também é digno de nota que nenhum desses filmes da década de 1920 fazem uso do som (embora, alguns possam muito bem ter tido acompanhamento musical ao vivo durante sua exibição).

Quando Louis Lumière demonstrou de modo particular sua nova invenção, o cinematógrafo, em março de 1895, mostrando A saída dos operários da fábrica Lumières, houve o choque de parecer colocar 1 Discuto a ligação entre documentário e vanguarda em Documentary film and the modernist

avant-garde. Este argumento foi posteriormente desenvolvido no meu Introdução do documen-tário (2005). O uso da gravação em estúdio ocorria ocasionalmente, como no caso de Night Mail (Harry Watt e Basil Wright, 1936), mas, na maioria das vezes, os documentaristas

prefe-riam filmar sem som, construindo uma colagem de imagens e adicionando uma trilha musical e comentários em voz over de inclinação poética ou retórica.

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a própria vida sobre a tela. Erick Barnouw (1974, p. 7, tradução nos-sa) descreveu o efeito desse modo: “O familiar, visto outra vez desse modo, trouxe perplexidade”.3 Lumière pode ter agido por conveniência

ou por visão quando escolheu filmar seus próprios trabalhadores dei-xando a fábrica Lumière para sua demonstração, mas a familiaridade da cena pareceu espantar ainda mais. Espectadores poderiam atestar que o que eles agora viam na tela era o que podiam já ter visto na re-alidade. Se havia algum artifício era o de parecer duplicar a rere-alidade. O que poderia ser mais convincente dos poderes do cinematógrafo do que ver alguma coisa já reconhecível e familiar, reapresentada de um modo totalmente não familiar, mas notavelmente reconhecível? Uma surpresa semelhante acompanhou a invenção do fonógrafo, com sua inquietante habilidade de reproduzir mecanicamente qualquer tipo de som audível.

Claramente, um aspecto central da fascinação inicial com o cinema foi a habilidade de reconhecer o mundo que já habitávamos. O extra-ordinário poder da câmera fotográfica de pegar pedaços da realidade e congelá-los dentro de um quadro ilusionista cresceu exponencialmen-te nesta sucessão de tirar o fôlego, com imagens cinematográficas que restituíam movimento e vida à imagem congelada. Os vivos, aparente-mente embalsamados em um pedaço de filme, de repente voltavam à vida repetindo ações e restaurando eventos que, até aquele momento, pertenciam ao domínio do irreversível: o passado histórico.

O cinema tornou possível um arquivo da realidade, diferente de qualquer outro precedente. O ato de reconhecimento deu a este arqui-vo um apelo notável sobre o espectador. Nas imagens em movimento, o espectador distingue figuras humanas em três níveis de reconheci-mento: 1) períodos históricos e seus habitantes de maneira geral; 2) figuras públicas bem conhecidas desses períodos (Roosevelt, Lênin ou hitler, por exemplo) e 3) indivíduos já conhecidos pessoalmente, mas nunca vistos na forma de figuras em movimento. (NIChOLS, 1991)

A impressão de realidade transmitida pelo filme depende forte-mente desse ato de reconhecimento, e isto deu ao cinema dos primei-3 “The familiar, seen a new in this way, brought astonishment”.

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ros tempos uma distinção que permaneceria no coração da tradição documental. O som, seja ele fala, efeitos sonoros ou música, aumenta a distinção, especialmente quando parece emanar da mesma fonte his-tórica que a própria imagem. Filmes de ficção aproveitaram do poder de reconhecimento para criar um panteão de figuras reconhecíveis – não reconhecíveis pela sua significância histórica e não conhecidas pessoalmente pelo espectador, mas familiares a partir de sua aparição em filme depois de filme: a estrela. Com raras exceções, os primeiros documentários, especialmente na União Soviética e na Grã-Bretanha, enfatizavam o tom emocional e questões sociais, causas comuns e in-divíduos típicos, ao invés do indivíduo carismático. Colagem, mais que personagem, estava na ordem do dia.

O uso de estrelas para criar um nível poderoso de reconhecimento (e identificação através de meios complexos como estilo de atuação, estrutura da trama e edição –raccord de movimento e de olhar, ponto de vista) começou a centralizar a imagem em volta de uma figura com-plexa de corpo, indivíduo (ou ator), personagem e a aura da estrela. Si-multaneamente, começou um movimento no filme de ficção, longe de figuras igualmente plausíveis do espaço social, causas comuns, coliga-ções ou coletividades, culturas e suas transformacoliga-ções. Cada vez mais, era dado como certo que uma história deveria mover-se em torno de ações e dilemas que envolvessem somente um indivíduo ou herói, re-presentado por uma estrela.

A representação dos trabalhadores começou, talvez inadvertida-mente, por Lumière e permaneceu central à tradição de representação social na União Soviética, e de uma maneira igualmente hagiográfica, na Grã-Bretanha, mas raramente em outros lugares. O alcance extra-ordinário de trabalhos de Esfir Shub (The Fall of the Romanov Empire,4

The Great Road5 etc.) e Dziga Vertov (Kino Pravda,6 um Homem com uma

Câmera, 1929), bem como os trabalhos algumas vezes criticados por sua dependência em situações encenadas, como Greve (1925) ou O En-4 A Queda do Império Romanov, 1927.

5 A Grande Estrada, 1927.

6 Cinema-Verdade (1922-1925). Série de documentários produzida por Vertov, Elizaveta Svilova e Mikhail Kaufman.

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couraçado Potemkin (1926), de Eisenstein, pertenciam a um alcance de possibilidades cinematográficas que gradualmente se tornaram margi-nalizadas ou suprimidas pelo documentário mainstream, uma vez que este modo estava mais alinhado com a mão guia daquele que seria o equivalente à estrela para o documentário: um distinto e seguro co-mentador, cuja onisciência iria nos guiar através do curso do filme. Durante toda a década de 1930 e além, o comentário, em sua miría-de miría-de formas, seria a marca miría-definidora do documentário. A vanguarda em geral rejeitou esse dispositivo ou o utilizou ironicamente, como fez Luis Buñuel, em Las Hurdes, tierra sin pan (1932).7

O uso inicial do som no documentário enfatizou a representação do mundo histórico familiar, habitado com representantes típicos e expresso através de uma colagem poderosa de sons e imagens. O indi-víduo único ocupa uma posição muito mais marginal do que no flores-cente longa metragem de ficção, e as questões sociais uma, muito mais vital. A estrela, se existe alguma que sirva como ponto de identificação central, é o comentário falado. é a voz do filme, chegando na forma de “Ele, que já sabe”, uma vez que é uma voz que parece dirigir sons e imagens para apoiar uma perspectiva cuidadosamente trabalhada, conhecida desde o princípio. O filme se prepara para transmitir esta perspectiva de forma comovente e convincente, e a voz é aquela do re-alizador sem corpo, onisciente, invulnerável, que retém controle total sobre o conjunto de imagens e o ritmo do filme. Sua persistência é vivi-damente demonstrada no trabalho de ken Burns, cujos comentadores em voz over, de David McCullough, em A Guerra Civil (1990), a Peter Coyote, em The Dust Bowl,8 retornam a este modelo clássico, se não um

tanto ultrapassado.

O documentário, de forma geral, começa com o reconhecimento, por parte do espectador, de imagens que representam ou se referem ao mundo histórico. Para fazer isso, os realizadores adicionam sua própria voz ou perspectiva, por vários meios. O documentário, portanto, ocu-pa uma zona complexa de representação, na qual as artes de observar, responder e escutar devem ser combinadas com a arte de dar forma, 7 Terra sem Pão.

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interpretar ou arguir. Espectadores vieram a perceber que o que eles veem quando assistem a um documentário é uma complexa, muitas vezes semivisível, mistura do historicamente real e do construído pelo discurso. Para o prazer do reconhecimento, são adicionadas jornadas pessoais, imperativos morais, exortações políticas, descobertas espiri-tuais, contos de advertência, desejos românticos e idílios encantados.

A representação do mundo histórico, combinada com a voz dis-tintiva do realizador, começou a dar ao domínio do documentário um valor de uso que chamou a atenção de políticos e governos, para não mencionar poetas e aventureiros. Era possível não apenas representar a realidade com grande exatidão (algo que poderia ter permanecido primeiramente de interesse científico), mas também dar à audiência uma visão do mundo que nunca tinha sido vista e oferecê-la com poder emocional, graças, não em pequena medida, ao uso do som.

Esses impulsos se bifurcaram gradualmente em duas divisões prin-cipais do filme não ficcional, o documentário e o filme de vanguarda, mas no começo essas distinções eram borradas (como as listas de filmes discutidos como documentários por Ellis e Lewis sugerem). Aqueles de partida para explorar o mundo ao redor e representá-lo de uma for-ma reconhecível estavam simultaneamente interessados em descobrir como eles poderiam dar nova forma a esse mundo, através de técnicas cinematográficas. O modo documental emergente permitiu ao espec-tador ver um mundo novo de uma perspectiva e por um propósito.

Outro modo de pensar essas duas tendências não excludentes (do-cumentário e vanguarda) é pensá-las como versões cinematográficas de um impulso antropológico do século vinte, empenhado em alargar o escopo do familiar e do reconhecível, e a um correspondente impulso surrealista, determinado a chocar ou a sacudir assunções existentes sobre o familiar e o reconhecível, dentro da nossa própria cultura (CLI-FFORD, 1988). Mannahatta (1921), de Paul Strand e Charles Sheeler; H2O (1929), de Ralph Steiner; Rien que lês heures, de Alberto Caval-canti; A Ponte (1927),de Joris Ivens, e Ménilmontant (1926), de Dimi-tri kirsanoff, estão entre os filmes discutidos por Ellis (1989) e Lewis (1979), que enfatizam o impulso surrealista, através da estranha

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jus-taposição, muito vívida, enquanto Nanook do norte permanece como a instância mais celebrada do estranho feito familiar.

A questão da voz do realizador e o quanto ela permaneceu discreta ou altamente perceptível muitas vezes teve precedência na distinção ficção/não ficção. Muito do notável sucesso de Robert Flaherty com a exibição de Nanook do norte, por exemplo, resultou de sua astuta com-binação de uma atitude documental diante de um mundo preexistente e uma estratégia narrativa com a sua discreta – porque tão reconheci-damente humanista – representação. Na voz romântica de Flaherty, Nanook se torna a primeira estrela do filme documentário; e seu conto de luta contra a natureza, o equivalente, no documentário, ao folcló-rico e clássico conto de hollywood sobre a jornada de um herói contra obstáculos e adversidades. (BARNOUW, 1974)

O êxito de Flaherty no lançamento teatral de seu filme é um fator--chave para o estabelecimento de seu pioneirismo, e esse sucesso é de-vido, claramente, à sua habilidade de recorrer a aspectos dos filmes de ficção, estruturas narrativas e uma específica e apelativa perspectiva (humanista) sobre as relações do homem com o mundo. A centralidade de Nanook contrasta com a marginalidade de /Redes/The Wave,9

dirigi-do por Emilio Gómez Muriel e Fred zinnemann, que compartilha com Flaherty o uso de técnicas ficcionais e narrativas, mas substitui seu humanismo por um socialismo vagamente definido.

Flaherty não quis encadear uma série de cenas semi-conectadas de eventos díspares, como o menos sucedido comercialmente in the Land of Head-Hunters,10 de Edward S. Curtis (1914) – restaurado e

renomea-do como in the Land of the War Conoes,11 – uma narrativa não ficcional

situada entre o kwakiutl e o Noroeste do Pacífico, em um espírito cla-ramente similar ao do conto do Innuit no ártico, de Flaherty. Ele foi além do estilo de câmera de Curtis, no qual, com frequência, uma única longa tomada constituía a cena, adotando muitos dos meios de edição dos filmes de ficção (closes, edição continuada, match actions e assim por diante); ao mesmo tempo em que manteve um grande respeito pela 9 A onda, 1936.

10 Na Terra dos Caçadores de Cabeça, 1914. 11 Na Terra da Guerra das Canoas, 1972.

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tomada longa, quando a duração real de um evento tem importância significativa. Flaherty também utilizou o familiar (e comovente) conto de um núcleo doméstico (o de Nanook), em lugar das escabrosas histó-rias de ciúmes sexuais, cerimônias dúbias e rituais, como o de caça de cabeças, além do excesso dramático de modo geral.

Os títulos, para esse filme silencioso, serviram a um propósito com-parável àquele do comentário em voz over depois da chegada do som: guiaram o espectador aos significados e valores pretendidos pelo reali-zador e proveram um esqueleto da narrativa para as cenas ilustrativas da vida Innuit. Flaherty quis contar uma história e documentar a vida de um povo. Se esses dois objetivos entravam ou não em contradição, ou de que modo eles se combinaram para produzir efeitos específicos, de acordo com a voz do cineasta, isso pode não ter incomodado Flaher-ty tanto quanto incomodou a documentaristas e teóricos desde então. A encenação ou reconstrução foi uma solução lógica para o dilema paradoxal que os documentaristas frequentemente enfrentam: como filmar um evento real que ocorreu antes que a câmera pudesse registrá--lo, ou gravá-lo para um efeito narrativo. Nanook of the North não foi, certamente, o primeiro filme desse tipo. Ao menos desde in the Land of the Head-Hunter, de Curtis, no qual ele “[...] reconstruiu meticulo-samente [configurações] para um contato inicial de autenticidade”12

(BRIGARD, 1975, p. 19, tradução nossa), o objetivo do realizador, do antropólogo e do narrador pareciam inteiramente compatíveis. Eles também tornaram mais opacas as fronteiras entre a ficção, que de algum modo deve ser encenada, e o documentário, que enuncia um mundo preexistente e não fabrica outro.

Contanto que as invenções do realizador fossem consideradas hon-rosas (contanto que os espectadores compartilhassem as intenções apa-rentes dos criadores), esses modos de moldar criativamente a realidade eram prontamente aceitos. Eles foram, de fato, a pedra fundamental na reedição criativa de cenas existentes, no trabalho de Esfir Shub, com suas compilações de filmes e noticiários. Foram também rapidamente aceitos por muitos espectadores dos filmes britânicos de John Grier-12 “[...] painstakingly reconstructed [settings] for pre-contact authenticity.”

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son, na década de 1930, como em Correio Noturno (1936), ou The Saving of Bill Blewitt (1936), 13 de harry Watt. Estratégias similares de

remo-delamento e construção, que então poderiam ser apresentadas como realidade, também foram centrais para Pare Lorentz, com O Arado que Destruiu as Planícies (1936) e O Rio (1937), filmes patrocinados pelo governo dos Estados Unidos e que, efetivamente, introduziram o som no documentário norte americano. O iglu desproporcional e incomple-to de Flaherty, por exemplo, escapou à crítica, pois teve “intenção na autenticidade do resultado”.14 (BARNOUW, 1974, p. 38) Cineastas

me-nos escrupulosos também podem ter procurado uma autenticidade de resultados semelhante, mas com fins menos bem intencionados. Tais fins, uma vez detectados, não justificavam mais os meios.

Durante muito tempo, no início da história do documentário, foi a tomada única que manteve uma relação especial com a realidade his-tórica (e mesmo, essa deixa um espaço considerável para a fabricação, se feita no espírito de uma busca antropológica pela autenticidade). A combinação de tomadas permaneceu, com menor facilidade, unida por princípios de fidelidade e autenticidade, em um senso empírico direto (como nos lembram fortemente os filmes de Vertov e Eisenstein e os filmes fortemente experimentais citados por Ellis, 1989 e Lewis, 1979). Conjuntos com colagens de imagens orientadas pela velocida-de, ritmo e composição frequentemente subordinaram as representa-ções realistas do tempo e do espaço a efeitos estéticos. Certa selvageria reinou sobre o fluxo de imagens e sobre as recentes trilhas musicais para antigos documentários, como a música ao vivo da Alloy Orches-tra, para um Homem com uma Câmera (realizado pela primeira vez em 1995), que explode em energia e dinamismo compatíveis com a mon-tagem frenética do filme. Nesse nível mais amplo, técnicas de junção de uma série de artefatos ou fragmentos, próximos das colagens mo-dernistas, permaneceram em uso até a introdução de formatos compi-lados de som, mais compatíveis com os princípios do realismo.

As tensões e dinâmicas dos primeiros documentários, ao se apro-priarem do som no formato de música e especialmente como comen-13 A Poupança de Bill Blewitt.

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tário em voz over, mudaram radicalmente nos anos 1960. Câmeras portáteis e gravadores de fita, capazes de registrar o som sincronizado com as locações reais, abriram um novo mundo de possibilidades. Rea-lizadores puderam observar o que se revelava diante da câmera, como se a câmera não tivesse influência sobre ele, ou como se ela pudesse participar da vida dos outros, especialmente por meio de entrevistas. Isso alterou o status da voz. Não mais a voz desencarnada, onisciente e invulnerável do “Ele que já sabe” (muitas vezes cristalizada em um plano de filmagens roteirizado e em um comentário escrito, que podia ser concluído antes de iniciar as filmagens), o cineasta adotou uma posição encarnada, situada e frequentemente mais vulnerável, como um entre muitos, embora o único com uma filmadora, para quem o futuro se revelava no curso da realização do filme em lugar de já ter tomado forma antes do início das filmagens. Era a voz ou perspectiva do “Ele, que ainda não sabe”, e aquilo que acontece, acontece fora de seu controle total.

O realizador agora tinha menos necessidade de elaborar um enqua-dramento dramático para um filme do que no passado, montando ima-gens diversas para servir a um objetivo temático; a cobrança, então, era para encontrar ou moldar a qualidade dramática na vida vivida diante da câmera, seja nos momentos observados ou por meio de interações com o realizador (nas quais, muitas vezes, as ilustrativas imagens de arquivo substituíram os antigos conjuntos de montagens selvagens). O percurso das imagens não era mais uma colagem de cenas que cons-truíam um estado de espírito ou uma atitude, eles eram os parceiros ligados à voz do sujeito falante. O cineasta mantinha sua câmera sobre aquele que falava, em sincronia, para a câmera ou para outros, e sacri-ficava, voluntariamente, o controle completo da imagem, para auten-ticar a origem das vozes de muitas pessoas que emergiam pelas telas dos cinemas. Ouvir com um ouvido preciso se tornou prioridade tão alta como falar por meio de comentário, com uma eloquência apurada. Estrelas do documentário, semelhantes a Nanook, surgiram em ritmo acelerado. Eram indivíduos que guiavam nossa atenção com sua elo-quência, idiossincrasia ou intensidade emocional. Paul Brennan, em Caixeiro-Viajante, 1968 (de Albert e David Maysles), Jason, em Portrait

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of Jason, 196715 (Shirley Clark), hubert humphrey e John F. kennedy,

em Primárias, 1960 (de Drew Associates), e Edith e Little Edie Bouvier Beale, em Grey Gardens, 1975 (de Albert e David Maysles) ajudaram a erguer um panteão de figuras documentais de proporções memorá-veis, por meio tanto do que disseram quanto do que fizeram.

As inovações dos anos 1960 permanecem, assim como as do rico caldeirão de experimentações dos anos 1930. é na década de 1980 que essas duas tendências confluem, nos trabalhos inovadores de Michael Moore e Errol Morris, entre outros, que seguiram os caminhos abertos por figuras como Emile de Antonio, em No Ano do Porco, 1968 que usa som e música de forma expressionista, e Connie Field, em The Life and Times of Rosie the Riveter16(1980), que introduziu imagens de arquivo

apenas como subversão.

Errol Morris, em particular, com seu marcante The Thin Blue Line (1988),17 alinhou com habilidade e vigor os impulsos antropológicos

e surreais do início do documentário, em um efeito extraordinário (o filme ajuda a garantir a libertação de um homem inocente sentencia-do à morte por assassinato). Seus 35 mm foram cuidasentencia-dosamente ilu-minados e habilmente compostos por cenas evocadas, tanto quanto descritas. Close de reportagens jornalísticas cobriam fragmentos das sentenças, cujo significado permanecia inacessível para espectadores que viam um campo visual que se tornou estranho, embora familiar. As encenações mantiveram a intencionalidade da representação au-têntica, embora o que Morris tenha procurado autenticar fossem as memórias subjetivas, as narrativas autocentradas, os relatos dos sus-peitos aos investigadores e as supostas testemunhas. Nenhuma en-cenação, das muitas incluídas no filme, representa “o que realmente aconteceu”, mas todas atestam o conjunto de dúvidas e autoenganos que envolviam o que foi, de fato, a verdade sobre quem matou ou não o oficial de polícia.

Morris também utilizou a trilha musical de Philip Glass com forte efeito, dando aos testemunhos e às encenações um impacto fantas-15 Retrato de Jason.

16 A Vida e a Época de Rosie, a Rebitadeira. 17 A tênue Linha Azul.

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magórico, etéreo, mas forte. O filme assumiu algumas das qualidades performativas que giravam em torno de atores sociais, ou temas, em documentários mais observacionais ou participantes. Ele falou de for-ma carismática e comovente por meio de sons e ifor-magens, não for-mais restritas àquilo que acontece em frente às câmeras, mas novamente livres para falar na voz inventiva e pessoal que abordava a realida-de e o espectador com a mesma verve. As qualidarealida-des que fizeram os documentários iniciais dos anos 1920 e 1930 atraentes – suspense, narrativa, música, colagem de imagens e uma mistura de fabricação e observação, encenação e escuta – servem para construir engajamento emocional e envolvimento intelectual com um mundo familiar e, no-vamente, estranho e desconcertante.

RefeRências:

BARNOUW, E. Documentary: a history of the non-fiction film. New York: Oxford University Press, 1974.

BRIGARD, E. The history of ethnographic film. In: hOCkINGS, P. Principles of visual anthropology. The hague: Mouton, 1975. p. 13-43. CLIFFORD, J. The predicament of culture: twentieth-century

ethnography, literature and art. Cambridge: harvard University Press, 1988.

ELLIS, J. C. The documentary idea: a critical history of english-language documentary film and video. Englewood Cliffs: Prentice hall, 1989.

IN ThE LAND of the head hunters. Direção de Edward Curtis, USA, 1914, (65 min).

LAS hURDES, tierra sin pan. Direção: Luis Buñuel. Producão: Ramón Acín. Roteiro Rafael Sánchez Ventura, Luis Buñuel e Pierre Unik. Música: Darius Milhaud e Johannes Brahms. Madrid : [L. Buñuel & Ramón Acin], 1932. 1 bobina cinematográfica (27 min.), son. 16 mm.

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LEWIS, J. The documentary tradition. 2nd. ed. New York: W.W. Norton

& Company, c1979.

NANOOk of the North. Direção: Robert Joseph Flaherty. Estados unidos: Athépicture, 1922. (79 min).

NIChOLS, B. Documentary film and the modernist avant-garde. Critical inquiry, Chicago, v. 27, n. 4, p. 580-610, 2001.

NIChOLS, B. introdução ao documentário. Campinas: Papirus, 2008. NIChOLS, B. Representing reality: issues and concepts in

documentary. Bloomington: Indiana University Press, 1991. NIGhT Mail. Produção de harry Watt e Basil Wright. London: Associated British Film Distributors, 1936.

REDES/The wave. Direção de Fred zinnemann; Emilio Gómez Muriel. México: [s.n], 1936, (65 min).

ThE ThIN Blue Line. Errol Morris, USA:  american playhouse, channel 4 television corporation, DVD, 1988. (103 min.).

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Marcius Freire

A ESCUTA DO COMENTáRIO NO

FILME ANTROPOLóGICO

Antes de adentrarmos o sujeito mesmo destas nossas breves reflexões sobre o tema em tela, vamos pedir emprestada uma definição de co-mentário que nos satisfaz e, espero, satisfaça também aos leitores. Se-gundo Claudine de France (1995, p. 84), o comentário seria

um enunciado oral ou escrito que exprime uma reflexão qualquer sobre um real que ele – comentário – coloca em cena através de sua evocação direta, equivalente da imagem, ou indireta, a partir do suporte cênico que a imagem oferece desse mesmo real.

O comentário pode – e é quase sempre o caso – desempenhar uma função das mais importantes no filme de não ficção. Aliás, é sabido que o documentário de fatura clássica raramente pode se privar desse importante elemento em seu processo de produção de sentido. Para além das imposições técnicas – à época do cinema mudo – que não dei-xavam outra opção ao realizador que a de acrescentar evocações ver-bais relativas ao sensível mostrado pelas imagens, quando estas não exprimiam por si sós os aspectos desse sensível, desejados pelo reali-zador. Nesse caso, a linguagem verbal fazia a sua aparição através das cartelas, dos intertítulos que, na maioria dos casos, extrapolavam os

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contornos do mostrado penetrando no não mostrado e, muitas vezes, suprindo a carência do mostrável não mostrado.

No entanto, mesmo depois do advento do som, o documentário continuou como que acorrentado à linguagem verbal só que, desta vez, os elos mais sólidos dessa corrente são constituídos, quase sempre, pelo comentário sonoro.

As razões para esse estado de coisas já fizeram correr muita tinta, e não é o caso de contribuirmos com mais algumas gotas para esse ma-nancial. Todavia, parece-nos de bom alvitre levantar algumas questões sobre as relações da linguagem verbal com um subgênero do documen-tário que, a nosso ver, não foi, ainda, objeto de uma reflexão exaustiva: o documentário de cunho antropológico. Evidentemente não vamos, aqui, exaurir o tema, pois não é o caso de fazê-lo no espaço de um artigo. Assim, vamos, antes, traçar algumas das linhas mais proeminentes do relevo desse objeto com o intuito de tentar assentar algumas peças no revestimento da pavimentação do caminho que levará até seu interior.

Sem qualquer intenção de levantar mais uma vez a sempiterna querela que alguns e algumas gostam de alimentar sobre as distinções entre documentário e ficção, sabemos que, de maneira geral – e to-mando emprestado uma noção cara à corrente teórica cognitivista, bem representada por Noël Carroll e Carl Plantinga, entre outros – o filme de não ficção é um artefato audiovisual que faz asserções sobre o mundo histórico e, para tanto, se serve, quase sempre, de elementos já dados nesse mesmo mundo histórico para construir seus discursos. Ora, esses elementos existentes no mundo, independentemente da presença da câmera, desempenham papéis e possuem uma dinâ-mica própria no interior da sociedade em que são encontrados. Ao ex-tirpá-los de seus habitats naturais, ao separá-los do conjunto de fatos sociais aos quais pertencem, ao interferir na organização que lhes é própria, o cineasta, por não poder tudo mostrar, pois, de acordo com a lei de exclusão parcial ou total concebida por xavier de France (1989, p. 16): “[…] segundo a qual não se pode registrar alguma coisa sem que o registro de outras coisas seja impossibilitado (exclusão total) ou prejudicado (exclusão parcial)”, é obrigado a trabalhar com fragmen-tos desse mundo e, posteriormente, na sala de montagem/edição,

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dar--lhes o sentido por ele desejado. Mas como juntar esses fragmentos de forma coerente e adequada aos seus desejos?

é nesse momento que entra em cena o comentário. Este será um de seus trunfos, pois será sobretudo através de sua mediação que o cine-asta irá construir suas sequências significantes. O comentário funcio-na, então, como ponto de sutura que rearranja os fragmentos extraí-dos do mundo histórico, de forma muitas vezes desordenada, dando--lhes sentido. Existe, então, nessa operação, um processo de evocação, através do verbal, daquilo que a imagem não mostra ou mostra de for-ma insuficiente. Estamos, portanto, diante de dois procedimentos de mise-en-scène: a da imagem e a do comentário. Como diria Claudine de France (1995), a primeira baseada na mostração e seu produto, o mostrado; a segunda baseada na evocação e seu produto, o evocado.

Sim, evocado. Pois o verbal jamais poderá mostrar, mas, assim como a linguagem escrita dele derivada, ele só poderá evocar, fazer com que o leitor ou, no nosso caso, o espectador, imagine aquilo que ele enuncia. Evidentemente, quanto a esse discurso, seja verbal ou, em se tratando das cartelas antes mencionadas, escritas, vem se juntar a imagem a que esse discurso faz menção ou dele se desprende, sua missão será bem mais de completar, acrescentar, ressaltar, sublinhar ou, mesmo, con-tradizer, elementos dessas imagens às quais ele está atrelado. Levando--se em conta que, assim como as imagens, esse discurso verbal também é fruto das intenções do realizador do produto final, que será o filme, é lícito reafirmar aquilo que dissemos acima, citando Claudine de France (1995): que estamos lidando com dois processos de en-scène: mise--en-scène das imagens e misemise--en-scène do comentário.

Também é importante levar em conta que, quando estamos falando de elementos do mundo, fragmentos do mundo captados e colocados em cena pelo cineasta, não estamos nos referindo apenas às imagens, mas, também, aos sons, aos ruídos, às vozes. Desde o advento do som direto no começo dos anos l960, esse fato se tornou uma realidade. Portanto, não devemos esquecer que, se a câmera pode enquadrar os detalhes do mundo histórico que melhor se adequam aos desígnios do cineasta, o mesmo não se pode dizer do som. Este último, mesmo que captado com um microfone unidirecional, dificilmente poderá isolar,

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assim como faz a câmera com as suas variadas possibilidades de ângu-los e enquadramentos, os elementos desejados pelo observador-cineas-ta no momento de seu registro. Assim, um dos artifícios para corrigir as distorções eventualmente inseridas no conjunto da massa sonora recolhida é lançar mão do comentário. Uma outra é a legenda. Mas, so-bre essa possibilidade, remetemos o leitor ao judicioso artigo de David MacDougall “Subtitling Ethnographic films: Achetypes into Individua-lities”, publicado na Visual Anthropology Review na primavera de 1995.

Contudo, já que nos referimos a esse artigo de MacDougall, não seria inútil nos reportarmos a uma de suas passagens que ilustra, de maneira apropositada, aquilo que aqui estamos discutindo. Diz ele:

O material do documentário é, com frequência, maçante e ambí-guo, e sendo as conversas na vida corrente mais desordenadas e complexas do que na ficção, o documentário requer mais escolhas do que a ficção sobre o que deve ser legendado e como legendar. Na ficção, o diálogo é normalmente coerente, e as linhas do diálogo raramente se sobrepõem. No documentário acontece justamente o contrário. Frequentemente várias pessoas falam ao mesmo tempo e vários tópicos são discutidos intermitentemente. Quando cenas são incluídas para apontar ou anunciar temas significantes, a ma-neira como as legendas são escritas podem geralmente fazer a di-ferença entre uma temática clara e a confusão. A escolha da frase pode apontar a cena em uma direção específica. (MACDOUGALL, 1995, p. 86)

Ora, não nos parece inapropriado substituir o papel das legendas aqui exposto por MacDougall (1995) pelo comentário. Este é um recur-so de utilização usual, tanto em documentário quanto em reportagens televisivas: o abafamento ou esfumamento do som original do mundo histórico que, como vimos, pode ser bem confuso, e sua substituição por um comentário explicativo, esclarecedor, coerente.

No filme documentário clássico – mas também no documentário antropológico, que aqui nos interessa –, essa mise-en-scène do verbal resulta de três processos autônomos e, no mais das vezes, complemen-tares: o comentário elaborado pelo realizador antes, durante (no caso

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de entrevistas, por exemplo) ou depois, quando da pós-produção. No primeiro caso, um roteiro ou esboço de roteiro, servirá como apresen-tação ou introdução ao tema a ser abordado pelo filme e, posterior-mente, registrado pelas imagens. Esse comentário colocará o especta-dor em sintonia com o corpus imagético-sonoro deste último – o filme. Muitas vezes, tal evocação verbal remete ao não mostrável, àqueles as-pectos do mundo histórico que não pertencem ao domínio do sensível e, consequentemente, devem ser evocados através de outros artifícios de mise-en-scène, no caso, uma mise-en-scène do verbal.

é o que acontece na abertura de Jaguar (1954-1967), filme rodado por Jean Rouch no Níger em 1954 e apenas concluído, justamente com a introdução do comentário, 13 anos depois, em 1967. À época traba-lhando sobre os processos migratórios no interior da áfrica do oeste, Rouch (1988) explica como, uma vez por ano, milhares de jovens dei-xam o Níger para se aventurar na antiga Costa do Ouro, então colônia britânica e, hoje, Gana, em busca de algum sustento. Rouch (1988) não apenas explica esse fenômeno social como descreve a experiência cinematográfica que vai levar a cabo juntamente com os três nigerinos seus amigos. E a experiência consistia, justamente, em reproduzir o percurso migratório, sublinhando as peripécias de seus personagens ao longo da travessia de um país a outro. Toda essa parte introdutória é do domínio do não mostrável. As imagens que a acompanham são meramente ilustrativas, já que se limitam a indicar o habitat e identi-ficar os três aventureiros.

Retomando Claudine de France (1995), poderíamos dizer que, nes-sa introdução estamos diante de duas mises-en-scène do real: uma base-ada na mostração que devolve ao espectador o seu produto: o mostrado (no caso, como dissemos, o habitat dos personagens); a outra, baseada na evocação que leva esse mesmo espectador a imaginar o processo migratório anunciado e a antecipar mentalmente a experiência que vai reproduzi-lo; ou seja, o produto da evocação verbal: o evocado.

Não se deve esquecer que estamos nos referindo aqui a um filme que foi realizado quando ainda não existia o som sincronizado, e as câmeras, mecânicas, possuíam uma autonomia que não ia além dos 30 segundos. Logo, qualquer som vindo do mundo histórico deveria ser

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introduzido na pós-produção. Isso poderia levar alguns a arguirem que a divisão que fizemos acima entre as três modalidades de comentário estaria ontologicamente comprometida, uma vez que todo filme cujo som tenha sido objeto de uma captação não sincronizada com a ima-gem teria o seu comentário alocado na terceira categoria, aquela que implica a sua adição ao processo de pós-produção.

Ora, mas o critério por nós utilizado para essa divisão nada tem de técnico. Ao contrário. Tal divisão, cuja função não é outra senão aquela de facilitar o entendimento das relações do realizador com o comen-tário, tem como vetor o procedimento de mise-en-scène deste último no processo de construção do artefato fílmico. Os dois primeiros tipos de inserção do comentário, aquele que serve de preâmbulo àquilo que, pedindo emprestado a Van Gennep (2011) a sua divisão do rito, cha-maríamos de “fase liminar” do fluxo audiovisual que constitui o filme, sendo, portanto, esse preâmbulo sua fase preliminar, ambos podem ser tanto inseridos na pós-produção quanto – em se tratando de som direto – no momento mesmo do registro. Mas a função do comentário não deixa de ser, neste caso, a de apresentar aquilo que vai ser desen-volvido na já mencionada fase liminar.

O segundo modo de mise-en-scène do verbal a que nos referimos anteriormente diz respeito àquele comentário que acontece em plena complementaridade com a mise-en-scène das imagens. A esse tipo de comentário, Claudine de France (1995) chama de “comentário direto”. Quer dizer, ele evoca um não mostrado não mostrável, remetendo a aspectos do mundo histórico que não estão nem poderiam estar pre-sentes nas imagens, uma vez que remetem à memória, desejos, frus-trações, afetos dos personagens mostrados. Encontramos esse tipo de situação em vários filmes de Eduardo Coutinho, o que nos leva, por via de consequência, a conjeturar que tal procedimento é quase um apaná-gio da entrevista; marca registrada dos filmes de Coutinho.

Pensemos em O fim e o princípio; em Jogo de cena ou, mesmo, em muitas sequências do já ontológico Cabra marcado para morrer. Em quantos momentos não estamos na presença de uma evocação verbal do inapreensível, no intangível; de aspectos não mostrados e não mos-tráveis do mundo histórico em pauta? São os comentários, as falas do

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realizador e de seus personagens que produzem sentido; é o vaivém entre o sensível: expressões faciais, paisagem, ambiente... e o expresso – ou exprimido – através do verbal que penetramos nesse mundo.

Segundo Coutinho (2005, p. 119), para realizar um documentá-rio, “é preciso sair de si”. Tal afirmação é feita pelo diretor ao tratar das especificidades do documentário, sobretudo no que diz respeito à presença do realizador (e da câmera) interferir na realidade filma-da. Assumindo que não apenas nos filmes, mas no próprio cotidiano, as interações entre as pessoas são tanto espontâneas quanto encena-das, Coutinho apresenta uma questão crucial a partir de MacDougall (2005, p. 119): “O documentário é isso: o encontro do cineasta com o mundo, em geral socialmente diferente e intermediado por uma câme-ra que lhe dá um poder, e esse jogo é fascinante”. A pessoa entrevis-tada, segundo Coutinho, “inventa” para o realizador um personagem que só existe no momento próprio do encontro:

Portanto, o fundamental do documentário ou acontece no instan-te do encontro ou não aconinstan-tece. E se não aconinstan-tece, não instan-tem filme. E como você depende inteiramente do outro para que aconteça algo, é preciso se entregar para ver se acontece. (MACDOUGALL, 2005, p. 121)

O personagem resultante desse encontro, que aparece no momen-to da montagem do filme, é sempre mais extraordinário que a pessoa, pois sintetiza diversos tempos nela existentes e, desse modo, o que se filma são “momentos intensos de encontros que produzem até um efeito ficcional, e que são ficcionais no sentido de que o dia a dia é uma outra coisa”. (MACDOUGALL, 2005, p. 121)

Por fim, chegamos à terceira categoria rapidamente esboçada no começo desta apresentação. Aquela em que todo o comentário é aco-plado às imagens na pós-produção. Ou seja, toda a mise-en-scène do verbal é como que descolada da mise-en-scène das imagens. O que te-mos é um comentário indireto, cujo poder se manifesta através da pro-dução de sentido que ele confere àquilo que a imagem mostra, escon-de, sublinha, esfuma etc. Conforme afirma Claudine de France (1995),

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podemos mesmo dizer que o comentário indireto tem a última palavra sobre aquilo que é mostrado, que ele assume o papel de uma supra mise-en-scène detentora de múltiplas funções: confirmação, correção, complementação, substituição etc., com frequência sob a forma de uma narração roteirística. Em suma, um comentário que parte de um roteiro pré-estabelecido.

Tal é o caso do comentário de Le Dama d’Ambara (1974), filme de Jean Rouch sobre um ritual de encerramento do luto de um dignitário Dogon. Realizado juntamente com Germaine Dieterlen, todo o comen-tário desse filme é feito a partir dos textos de Marcel Griaule, que era um especialista dessa etnia da áfrica do Oeste. Eminentemente poé-tico, mas impregnado da mitologia Dogon, o comentário possui sua própria mise-en-scène. Diversas vozes se superpõem na narrativa de Jean Rouch. A cada personagem mítico que a imagem revela, o nar-rador – o próprio Rouch – como que assume o seu papel, fala por ele, fala sobre ele, explica, conta, reconta. O evocado, aqui, complementa o mostrado. Ele é um duplo, remetendo tanto ao mostrável efetivamen-te mostrado quanto ao apenas evocável. Mas, mesmo quando se refere à mostração, a mise-en-scène do comentário jamais assume um caráter de “dupla descrição”, pois que, além de sublinhar o mostrado, ele o interpreta do ponto de vista do mito.

Um outro exemplo emblemático de comentário “roteirístico”, ou seja, superposto às imagens, cuja mise-en-scène assume o papel de comentário indireto nos termos apresentados por Claudine de France (1995), encontramos no filme The Song of Ceylan,(1934) de Basil Wri-ght. Wright utilizou um sistema de som sofisticado para a época, mas segundo a sua própria descrição, tratava-se de um sistema arcaico, que deixava mais ruído do que sons inteligíveis. Mas, o que nos interessa aqui é a forma como foi escolhida e utilizada a narração. O cineasta relata que estava se perguntando como iria fazer o comentário do fil-me quando, no mofil-mento em que o estava editando e que não tinha ideia de como iria construir esse comentário, estava passando perto do British Museum e aconteceu de dar uma olhadela na vitrine de uma livraria quando avistou um livro sobre o Ceilão, de autoria de Robert

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knox. Tão logo começou a ler o livro, se deu conta de que era daquilo que ele precisava. (MACDOUGALL, 1995)

Assim como “Le Dama d’Ambara, The Song of Ceylan, possui a mise--en-scène de um comentário indireto que, como no primeiro caso, cha-mamos de roteirístico (o texto de Robert knox), que complementa a mostração e evoca o não mostrável. Os sons captados através dos gra-vadores rudimentares permanecem e adquirem significados com a su-perposição da narração, assim como acontece com o Le Dama d’Ambara.

Vamos encontrar um contraexemplo de comentário indireto mal-sucedido na filmografia do mesmo Jean Rouch; e o que é mais signi-ficativo é que se trata de seu primeiro filme Au pays des Mages Noirs (1947). Segundo as suas próprias palavras, o filme

[...] foi rodado em preto e branco e era mudo. As filmagens duraram nove meses (1946-1947), o tempo de descida do rio Níger numa piroga. As Actualités Françaises o compraram e reduziram a 10 seus 30 minutos. Na falta de som real, foram acrescentados uma música imbecil e um comentário lido por um comentarista do Tour de Fran-ce, com sua voz característica. O título foi dado por eles. Comercial-mente, o filme fun cionou muito bem [...]. Em 1951, voltei ao Níger para fazer um segundo filme sobre a caça ao hipopótamo, pois es-tava realmente envergonhado com o primeiro. (ROUCh, 1988, p. 231, grifo do autor)

O filme resultante dessa experiência foi Bataille sur le grand fleuve (1951), aquele que entrou para a história do filme etnográfico como tendo recebido o comentário mais pertinente, mais a propósito nas relações filmador/filmados, ou seja, cineasta/pessoas filmadas. Dese-joso de colocar uma música de acompanhamento no filme que, ele, era mudo, Rouch se viu admoestado pelos seus sujeitos: “Como, onde é que você ouviu música durante a caça ao hipopótamo?” Seguindo a velha tradição dos westerns, no momento mais dramático eu havia co-locado uma música, mas que havia sido muito bem escolhida, pois se tratava de Gawey, Gawey, “o tema dos caçadores”. Mas os pescadores então me disseram: “Sim, é verdade, mas o hipopótamo que está

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em-baixo d’água tem ouvidos muito bons, e si tocarmos alguma música ele vai embora! [...]”. (ROUCh, 1981, p. 11)

“Como assim?! se colocarmos uma música o hipopótamo vai ouvir e vai escapar”.

Depois desse dia, a obra do Griot Gaulois passou a contar com a participação mais efetiva das pessoas observadas e, após a realização de Horendi, o filme etnográfico jamais voltou a ser o mesmo. Mas aqui não é o lugar para tratar desse assunto, pois se o fizéssemos seríamos levados a sair do contexto a que nos propusemos neste texto.

RefeRências

COUTINhO, E.; xAVIER, I.; FURTADO, J. O sujeito (extra) ordinário. In: MOURãO, M. D.; LABAkI, A. (Org.). O cinema do real. São Paulo: Cosac Naify, 2005. p. 96-141.

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Joceny de Deus Pinheiro

BREVES CONSIDERAçõES

ACERCA DOS SONS NO FILME

ETNOGRáFICO

Turner (1982) uma vez argumentou que as dinâmicas e os fenômenos sociais que o antropólogo encontra durante seu trabalho de campo, embora cheios de cores, formas, odores e sons, e sempre em constante mudança, quando traduzidos para a escrita antropológica tendem a se tornar estáticos, sem vida. Muitas vezes incapaz de traduzir a vi-vacidade, a dramaticidade e a flexibilidade da matéria sobre a qual se debruça, essa escrita antropológica acaba por dar à luz uma narrativa fria, dura e distanciada do encontro de subjetividades do qual se origi-na. Nossa análise, diria Turner (1982), “pressupõe um cadáver”.

Na direção contrária a essa tendência, muitos antropólogos têm experimentado as mídias audiovisuais, acreditando que, se é possível evocar os gestos, as cores e os sons com que se deparam em suas ex-periências de pesquisa e de vida, é possível devolver a carne e o pulso ao esqueleto abstrato a que Turner (1982) faz alusão em sua crítica. é nesse lugar, ou seja, na devolução de um corpo vivo à antropologia, que a articulação entre imagem, som e texto ganha expressão. Os fil-mes etnográficos são, em grande medida, resultado dessa aposta. No entanto, se, por um lado, prolifera o discurso acerca da importância desse gênero na disciplina, por outro, frequentemente se esquece que

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tal meio de produção e exposição do conhecimento é, por excelência, de natureza audiovisual, isto é, constitui-se a partir da articulação en-tre som, imagem e texto, e não apenas enen-tre imagem e texto.

Som e imagem definem o nosso entendimento do Outro e da re-alidade representada. O próprio ato de mediar essa rere-alidade se faz por meio de som e imagem. Nesse processo, como já salientado pelo teórico de som Chion (1994) e pelos antropólogos Iversen e Simonsen (2010, p. 10):

O som modifica a imagem, e a imagem modifica o som. Assim, as dimensões visual e aural devem ser analisadas conjuntamente, pois não podem se separar, e não são separadas pelos membros da audi-ência que experimentam som e imagem simultaneamente. Ao sen-tar num auditório para assistir um filme etnográfico, um mundo se projeta e é criado através de sons tanto quanto de imagens, de modo que ambos contribuem para a narrativa, para a feitura deste mundo, e a nossa experiência de assistir uma realidade mediada .

Todavia, o som foi e continua a ser objeto de poucas reflexões na antropologia. O presente texto discute o lugar (negligenciado) do som no filme etnográfico. Partindo da compreensão de que a trilha sonora de um filme é constituída por todo o conjunto de sons que lhe caracte-riza, isto é, música, efeitos sonoros, diálogos e comentários; faço eco à afirmação de outros autores, para quem, salvo algumas exceções que só confirmam a regra, os sons e, em especial os sons não-verbais, raras vezes foram objeto de atenção para a antropologia audiovisual, assim como para a antropologia de um modo geral. (hENLEY, 2010)

Por sons não verbais me refiro aos sons do ambiente natural e humano, os quais formam, nos termos de Schafer (1977), nosso am-biente sônico, ou a paisagem sonora a qual vivenciamos. Através da argumentação presente neste texto, procuro mostrar como a pouca atenção dada à dimensão sonora, não verbal, do filme etnográfico, constitui um reflexo do próprio modo como se concebe, ao longo do século xx, o uso de mídia audiovisual na antropologia. Trazendo para o texto referências diversas, exploro a ideia de que os sons não verbais, uma vez captados e tratados de forma competente, têm por função

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contribuir não só para com o aumento da densidade etnográfica dos processos abordados como também para a adição de um caráter mais sensorial à experiência de contato com o filme.

Em termos de organização, após uma caracterização de como a mí-dia audiovisual adentra a cena da pesquisa antropológica, apresento as ideias centrais que norteiam o texto “Seeing, hearing, feeling: sound and the despotism of the eye in ‘visual’ anthropology”, do antropólogo Paul henley (2010), no qual se aponta para a forma como o som é pen-sado no cinema de ficção, em contraste com o cinema documentário e o filme etnográfico. As ideias de henley (2010) são fundamentais para a construção do argumento aqui apresentado, pois o mesmo afirma que se os realizadores de filmes etnográficos dessem tanta atenção à captação e à edição de sons como costumam dar aos problemas de téc-nica, metodologia e estilo no uso da câmera, bem como às teorias de edição de imagens, seria possível realizar filmes com mais qualidade, complexidade e grau de etnograficidade. Partindo da sugestão de hen-ley, discuto a inaudibilidade do som não verbal no filme etnográfico, em seguida, trazendo para o texto exemplos de autores-realizadores que romperam com tal padrão, com filmes em que tais tipos de sons foram sistematicamente organizados a fim de intensificar a textura experiencial e conotativa do espectador.

filme etnográfico: do nascimento ao desenvolvimento

Quem trabalha com antropologia geralmente tem a oportunidade de observar e participar de uma série de acontecimentos centrais para a organização das vidas sobre as quais se debruça, seja no contexto urba-no, rural, local ou transnacional. Os eventos aí observados com frequ-ência acontecem em espaços públicos, onde diversos tipos de audiên-cia e, portanto, diversas práticas discursivas interagem entre si, dando a esses estudiosos a oportunidade de elaborar narrativas etnográficas verdadeiramente ricas. Aqui, penso, por exemplo, na importância que tem, para a pesquisa de muitos etnólogos, a realização das rodas de Toré, dança-ritual bastante difundida entre populações indígenas do nordeste brasileiro; nos momentos de efervescência musical e

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