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O culto a Santa Joana Princesa em Aveiro - memórias e percursos

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História

Mestrado em História e Património

O culto a Santa Joana Princesa em Aveiro

– memórias e percursos

Nuno Gonçalo Rebelo da Paula

2016-2018

[ESTA PÁGINA APENAS SERÁ

INCLUÍDA NA VERSÃO DEFINITIVA

(2)

Nuno Gonçalo Rebelo da Paula

O culto a Santa Joana Princesa em Aveiro – memórias e percursos

Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em História e Património, orientada pelo(a) Professor Doutor Luís Carlos Ferreira Correia do Amaral

Faculdade de Letras da Universidade do Porto

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[ESTA PÁGINA SÓ SERÁ INCLUÍDA NA VERSÃO DEFINITIVA]

O culto a Santa Joana Princesa em Aveiro – memórias e

percursos

Nuno Gonçalo Rebelo da Paula

Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em História e Património, orientada pelo Professor Doutor Luís Carlos Ferreira Correia do Amaral

Membros do Júri

Professor Doutor …. Faculdade …. - Universidade ... Professor Doutor …. Faculdade …. - Universidade … Professor Doutor …. Faculdade …. - Universidade ...

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Sumário

Declaração de honra ... 9 Agradecimentos ... 10 Resumo ... 11 Abstract ... 12 Índice de ilustrações ... 13

Índice de tabelas (ou de quadros)] ... 16

Introdução ... 17

1. Fontes informativas sobre Santa Joana Princesa---19-31 1.1 Breve nota biográfica……….19-21 1.2 A fonte informativa para uma biografia ou hagiografia joaninas: o Memorial.---21-31 2. Da memória ao culto à Infanta em Aveiro---31-62 2.1 Pela comunidade do Mosteiro de Jesus e pela Ordem dos Pregadores---31-39 2.2 Pela Casa Ducal de Aveiro---39-41 2.3 Pela Diocese de Aveiro e pelos seus bispos (1.ª fase: 1774-1882; 2.ª fase: desde 1938)---42-62 2.3.1 Santa Joana Princesa e a Diocese de Aveiro---42-43 2.3.2 A Bem-aventurada Joana de Portugal e os Bispos de Aveiro---43

2.3.2.1 D. António Freire Gameiro de Sousa (1727-†1774-+1799)---43-45 2.3.2.2 D. António José Cordeiro (1750-†1801-+1813)---45-47 2.3.2.3 D. João Evangelista de Lima Vidal (1874-1938/†1940-+1958)---48-51 2.3.2.4 D. Domingos da Apresentação Fernandes (1895-†1958-+1962)---52-53 2.3.2.5 D. Manuel de Almeida Trindade (1918-†1962-1988-+2006)---54-59 2.3.2.6 D. António Baltasar Marcelino (1930-†1988-+2013)---59-61 2.3.2.7 D. António Francisco dos Santos (1948-†2006-+2017)---62

2.3.2.8 D. António Manuel Moiteiro Ramos (1956-†2014)---62

3. Pela (Real) Irmandade de Santa Joana Princesa (desde 1877 até 2005)---62-112 3.1 As Irmandades na Igreja: história, regulativos e realidade---62-65 3.2 A Real Irmandade de Santa Joana Princesa---65-75 3.3 Espaços de culto da Irmandade de Santa Joana Princesa---76-78 3.3.1 Igreja de Jesus---79

3.3.2 Sacristia da Igreja de Jesus--- 80

3.3.3 Túmulo---80

3.4 Alfaias do antigo Mosteiro e da Irmandade---81 3.5 Estatutos fundacionais (1877)---95-97 3.6 Os segundos Estatutos (1925)---98-100 3.7 Os terceiros Estatutos (1943)---100-103 3.8 Os atuais Estatutos (1991)---103-105 3.9 Atualidade---105-106

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3.10 Formalidades não escritas---107-108 3.11 Os graus juvenis da Irmandade---108-112 4. Pela autarquia---112-114 5. Instrumentos normativos--- 114-124 5.1 Os processos de beatificação e canonização---114-116 5.2 A bula de Beatificação (1693)---116-120 5.3 O processo canónico na atualidade---120-124 6. Na memória e na identidade de Aveiro, na prática dos crentes---124-144 6.1 O culto na expressão artística---124 6.2 O culto das relíquias---124-125 6.3 O culto externo: o caso da Procissão de Santa Joana – única no país pela sua realidade antropológica, etnográfica e expressão pública da veneração---125-144 7. Santa Joana Princesa na memória contemporânea de Aveiro---144-147 8. Santa Joana Princesa na identidade de Aveiro---147-152 9. Culto a Santa Joana em Aveiro: realidade patrimonial imaterial?---153-155 Conclusão ... 156 Referências bibliográficas ... 157-161 Anexo I - Fiel narração da tresladação Santa Joana Princesa e mais sucessos

antecedentes - José Pereira Baião em Portugal Glorioso e Illustrado---167-172

Anexo II - Sessão de 5 de março de 1874---173-175 Anexo III – Carta do Bispo-conde de Coimbra à Irmandade---176 Anexo IV – Convocatória da Irmandade para as comemorações do IV Centenário do

falecimento de Santa Joana---177-178

Anexo V – Programma da grande solemnidade religiosa que ha de ter logar em Aveiro

nos dias 17 e 18 de Maio proximo em honra de Santa Joanna Princeza---179-180

Anexo VI – Quarto Centenario da morte da Princeza Santa Joanna---181 Anexo VII – Carta de D. Domingos da Apresentação Fernandes---182-183 Anexo VIII – Programa comemorativo de 1952---184 Anexo X – Programa comemorativo de 1965---185-186 Anexo XI – Instrumentos litúrgicos após Declaração do Padroado---187 Anexo XII – Criação da Paróquia de Santa Joana---188-189 Anexo XIII – A Igreja paroquial de Santa Joana---190-191 Anexo XIV: A criação da Freguesia de Santa Joana---192

Anexo XV – Receitas e despesas do culto entre 1985 e 1988---193-194 Anexo XVI – Documento de doação da Estátua de Santa Joana---195

Anexo XVII – Programa comemorativo dos 500 anos do nascimento de D.ª Joana---196-197

Anexo XVIII – Documento da Diocese de Aveiro---198-199 Anexo XIX – Tábua informativa das Festividades entre 1890 e 2005---200-204 Anexo XX – Os artigos dos Estatutos de 1877---205-209 Anexo XXI – Os artigos dos Estatutos de 1925---210-213 Anexo XXIII – Os artigos dos Estatutos de 1991---214-215

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Declaração de honra

Declaro que a presente dissertação O culto a Santa Joana Princesa em Aveiro – memórias e percursos é de minha autoria e não foi utilizado previamente noutro curso ou unidade curricular, desta ou de outra instituição. As referências a outros autores (afirmações, ideias, pensamentos) respeitam escrupulosamente as regras da atribuição, e encontram-se devidamente indicadas no texto e nas referências bibliográficas, de acordo com as normas de referenciação. Tenho consciência de que a prática de plágio e auto-plágio constitui um ilícito académico.

Aveiro, 30 de setembro de 2018

(10)

Agradecimentos

Este trabalho tem uma palavra de sentido agradecimento ao Professor Doutor Luís Carlos Correia Ferreira do Amaral que, com a maior compreensão nas contingências do tempo e das distâncias, acudiu prontamente às dúvidas e lacunas com recomendações sempre oportunas e o estímulo bastante para se chegar ao momento presente.

A todas as instituições e pessoas que concederam documentação, sugestões e pormenores, regista-se igualmente a nossa gratidão.

É devido um agradecimento aos Aveirenses, em todas as suas classificações sociais, que há mais de meio milénio mantém acesa, diante da memória da Infanta D.ª Joana, a chama do seu agradecimento e da sua devoção, sendo a matéria deste trabalho.

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Resumo

Num dilatado período de tempo, entre 1490 e os nossos dias, Aveiro tem dedicado culto religioso a uma Infanta que viveu num pequeno mosteiro com grande humildade e espírito de serviço e ali faleceu. Imediatamente, não só as religiosas como a população iniciaram uma espontânea devoção à filha do Rei D. Afonso V.

Ora, neste lastro de tempo, é longa a narrativa sobre o culto a D.ª Joana. Poderíamos optar por uma narrativa contínua, sem reflexões de grande dimensão ou tentativas de compreensão da intensidade de culto. Pelo contrário, tentámos compreender os agentes divulgadores desse mesmo culto e as expressões que ele tomou ao longo dos tempos.

No entanto, registemos que este nosso trabalho é um somatório de informações de diversas proveniências, por forma a encontrarmos no culto à Bem-aventurada Joana de Portugal em Aveiro uma realidade com vários matizes e não apenas um foco que registasse ano por ano essa devoção.

É nosso objetivo que este trabalho contribua, tanto quanto possível, para a compreensão da importância da presença e do culto à Infanta D.ª Joana na identidade local, quer na sua dimensão material e patrimonial quer humana.

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Abstract

In a long period of time, between 1490 and today, Aveiro has dedicated religious worship to an “Infanta” who lived in a small monastery with great humility and spirit of service and died there. Immediately, not only the religious women and the population began a spontaneous devotion to the daughter of King D. Afonso V.

Now, in this ballast of time, there is a long narrative about the cult of “Infanta Joana”. We could choose a continuous narrative, without large reflections or attempts to understand the intensity of worship. On the contrary, we have tried to understand the agents of this cult and the expressions he has taken over the ages.

However, let us note that this work of ours is a summation of information from various sources, so that we find in the cult of Blessed Joan of Portugal in Aveiro a reality with many nuances and not only a focus that yearly records this devotion.

It is our objective that this work contributes, as much as possible, to the understanding of the importance of the presence and worship of the “Infanta Joana” in the local identity, both in its material and patrimonial dimension and in the human dimension.

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Índice de ilustrações

Túmulo da Bem-aventurada Joana de Portugal---83

Cofre-relicário com hábito e correia---85

Relicário com madeixa de cabelo---85

Tábua quinhentista representando a Infanta---87

Imagem da Igreja de Jesus---88

Imagem processional da Bem-aventurada Joana---127

Resplendor de imagem---128 Coroa de espinhos---128 Vestido da imagem---128 Punhos da imagem---129 Escapulário da imagem---129 Faixa da imagem---130 Sapatos da imagem---130 Capa da imagem---130 Véu da imagem---131

(14)

Vestido interior---131

Meias da imagem---131

Crucifixo da imagem---132

Imagem processional de São Domingos---133

Estrela de prata e quartzo hialino a simular estigma---133

Resplendor de imagem---134

Vara de duplo travessão com cruz e açucena---134

Vestido de imagem---134 Mangas da imagem---135 Punhos da imagem---135 Escapulário da imagem---136 Faixa da imagem---136 Capuz da imagem---136 Manto da imagem---137 Remate de estandarte---138

(15)

Estandarte---138

Pormenor do estandarte---139

Ciriais---139

Lavanda e gomil de água às mãos---139

Turíbulos---140 Navetas---141 Santo Lenho---141 Custódia---142 Umbela---142 Vasos processionais---143

(16)

Índice de tabelas e quadros

Tabelas

Tabela dos processos canónicos---35-36

Graus juvenis da Irmandade---109-110

Tábua dos instrumentos canónicos e civis do culto---121-123

Genealogia da santidade na monarquia portuguesa---162

Tabela de dados do mapa de culto a Santa Joana por concelhos em 2018---164-165

Tabela de receitas e despesas entre 1985 e 1988---193-194

(17)

Introdução

O presente trabalho não constitui a apresentação de interrogações, estudos, formulações e a apresentação de uma conclusão sobre um determinado problema. Parte, sim, de uma realidade existente num território, que conheceu diversos matizes e dimensões, ao mesmo tempo que se sedimentava no tempo por diversos agentes.

O conteúdo das próximas páginas expõe da maneira mais sistemática, mas também abrangente e rigorosa, tanto quanto possível, o culto que se presta à Infanta D.ª Joana de Portugal, vulgarmente conhecida por Santa Joana Princesa. De facto, não é ainda canonizada e na sua curta vida de 38 anos, apenas em dois deles susteve a coroa de princesa. Era, sem dúvida, Joana e foi precisamente o retirar de tudo quanto era passageiro, motivo de desentendimento ou soberba aos seus dias que a terá feito escolher Aveiro como o seu destino. Foi onde viveu dezoito anos, de forma humilde e sinceramente religiosa, embora sem ter cumprido votos solenes, por razões políticas e de saúde. Num mosteiro pobre e rigoroso, foi uma como as demais, sem deixar, porém, as suas responsabilidades, sempre que o dever do sangue a chamava.

Ao longo de mais de meio milénio muito se escreveu, falou e rezou à Bem-aventurada Infanta D.ª Joana. O nosso objetivo foi precisamente reunir todos os elementos possíveis e exequíveis de serem tratados num trabalho de dissertação, do ponto de vida normativo, artístico, pastoral, político e social sob a unidade de um culto que se presta em Aveiro. Na verdade, não foi a Vila ou Cidade quem escolheu Santa Joana, mas sim o contrário, o que talvez justifica a densidade da impressão da Infanta na identidade aveirense.

O filão lógico destas páginas é o entendimento que temos de existir, no caso presente, uma transmutação; isto é, na medida em que a Infanta exerceu em Aveiro grande influência e constitui, ainda hoje a sua maior referência, nos dias em que conviveu com as Irmãs e, embora indiretamente com a povoação, tomou as suas preocupações e foi uma entre os demais. O seu irmão, D. João II, concedeu-lhe o senhorio de Aveiro. A população suspendeu a auréola da santidade na madrugada da sua morte. A Igreja reconheceu a sua bem-aventurada. Artistas, músicos, sacerdotes e

(18)

historiadores encontraram nela matéria bastante para constituir motivo de inspiração, estudo e oração a cujos registos agora nos aproximamos. É essa transmissão pelos tempos fora que pretendemos avaliar, na consciência de que não trazemos novidades surpreendentes sobre a Infanta D.ª Joana, mas não deixamos de ter presente no nosso espírito, ao iniciar este trabalho, o volume imenso em matéria e em espécie que sobre ela existe.

Congregar, refletir e, por fim, demonstrar são os simples meios e objetivo deste trabalho para maior conhecimento da Bem-aventurada Infanta Joana de Portugal no culto que se manifesta em Aveiro.

(19)

1. Fontes informativas sobre Santa Joana Princesa

1.1. Breve nota biográfica

Qualquer personalidade deverá ser vista no seu tempo e lugar: só assim compreendemos os traços gerais de personalidade que se evidenciam em determinado momento, bem como a reação que os contemporâneos manifestaram perante as suas atitudes, sejam elas de âmbito meramente pessoal ou de alcance político.

A Infanta D.ª Joana1 nasceu a 6 de fevereiro de 1452, no Paço da Alcáçova, sendo filha de D. Afonso V e de sua mulher, D. Isabel de Coimbra ou de Lencastre. D. João II veio ao mundo em 1455 e foi jurado herdeiro do trono. A Infanta – que o povo continuara a chamar Princesa – acabaria por desempenhar uma função quase maternal junto do Príncipe Perfeito, aquilatando os acessos mais despóticos e violentos do jovem herdeiro. Apesar do que Rui de Pina – fiel moço de escrivaninha de D. João II promovido a cronista – escreveu sobre a Infanta (que a sua vida religiosa se devera a grandes despesas de sua casa), certo é que, pelo alto siso demonstrado pela filha, D. Afonso V transferiu para ela o que a sua mãe pertencera: o lugar feminino de proeminência na corte, o governo do antigo Paço da Rainha2, o legado de joias maternas e até o selo de chancela para autenticação de documentos. Apesar da juventude ligada a responsabilidades sociais e da aura de temperança e conselho que desenvolveu junto do pai e do irmão, D.ª Joana, não abandonou os serões cortesãos e os encargos adstritos à filha de um Rei. Desde muito cedo se dedicou a rigorosas práticas ascéticas, de penitência e assistência, no maior segredo que lhe era possível. A Infanta anunciou firmemente a escolha da vida religiosa, manifestando-a após a chegada do pai das tomadas de África, período durante o qual exerceu, de facto, a regência do reino3. Ante a dignidade, eloquência e noção de irrevogabilidade da sua decisão, D. Afonso V acedeu ao pedido da filha. D.ª Joana permaneceu algum tempo entre as religiosas de

1

Vide, para o conjunto da biografia da Infanta, GASPAR, João Gonçalves – A princesa Santa Joana e a

sua época, 1452-1490. 3ª ed. revista. Aveiro: Câmara Municipal de Aveiro, 2012. Pp.37-279.

2

Cf. MORENO, Humberto Baquero e Isabel Vaz de Freitas – A corte de D. Afonso V: o tempo e os

homens. Gijón: Ediciones Trea, 2006.

3

(20)

Odivelas, solicitando que se seguisse marcha para Norte, até chegar ao destino por ela pretendido. Ei-los em Coimbra: haveria melhor paradeiro para a Infanta exercer piedade e oração, consentâneos com o seu real estado, que na casa fundada pela Rainha Santa Isabel, sua antepassada? Santa Clara, porém, não lhe agradou e novamente pediu que se prosseguisse caminho: este terminaria na pobre Vila de Aveiro, onde florescia um Mosteiro de rigoroso preceito religioso: o das Dominicanas de Jesus. Era ali a sua Tebaida, terra que mais parecia lugar de desterro que de gente, no dizer do Príncipe herdeiro. Para D.ª Joana constituía a minha Lisboa, a pequena.

Parece-nos que fica, assim, por terra o argumento de Rui de Pina, segundo o qual a decisão de D. Afonso V em fechar a casa da Infanta fora tomada para restringir despesas e para evitar qualquer escândalo ou difamação que pudesse acontecer em sua casa. O monarca desejava, porém, que a sua filha não vivesse num ambiente duvidoso, no meio de tantas damas, donzelas e oficiais.

Permaneceu a Infanta dezoito anos na vila à beira-Ria, intervalados com obrigatórias saídas devido à peste que grassava no povoado. Estando o mal debelado ou pelo menos mais distante, regressava a real senhora para o humilde cenóbio. A saúde e as razões de Estado, sempre fortes e como alto preço a pagar por uma liberdade condicionada, não permitiram que a Infanta professasse solenemente. Efetuou votos simples, mas, pela humildade e naturalidade com que realizava as tarefas quotidianas – mais até que pela imposição da sua condição num restrito grupo de religiosas e proto religiosas – D.ª Joana exerceu, entre elas, um ajuizado e espiritualmente muito rico ascendente no conselho pessoal e dotação material e espiritual. Nunca desempenhou qualquer função diretiva no Mosteiro, nem sequer nele vivia propriamente, mas numas casas anexas que lhe permitiam, querendo, participar nos atos de culto. Neles tomava parte sempre e com notável devoção e abnegação: sentada no último lugar no coro, reservado às noviças. Nas lides da comunidade, o seu nome Soror Iffante surgia igualmente no último lugar e na obrigação dos serviços mais simples. A contradição entre a grandeza da personalidade – a maior que até então em Aveiro residiu – e a simplicidade da vida orante permitem-nos considerar que logo aquela comunidade

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religiosa tomou a Infanta como seu património, isto é, enquanto mais-valia do Mosteiro e da própria Vila junto das necessidades mais prementes da casa e de Aveiro.

Enfermiça e sempre com os horizontes temporais colocados para o Além, a filha de D. Afonso V faleceu com fama de santidade na madrugada de 12 de maio de 1490, sozinha entre as Irmãs e os padres do convento dominicano vizinho. Em testamento, as propriedades e seus bens pessoais legou ao sobrinho D. Jorge, filho ilegítimo de D. João II, criado pela tia em Aveiro, e aos seus próximos, e tendo concedido já anteriormente em documento a liberdade aos escravos ao seu serviço, fez do Mosteiro de Jesus seu herdeiro espiritual. O próprio Rui de Pina, quando refere a morte da Princesa, escreveu:

Foi depois mudada para o Mosteiro de Jesus, de Aveiro, onde, sem casar, com o nome de honesta e mui virtuosa, acabou sua vida.

1.2 A fonte informativa para uma biografia ou hagiografia joaninas: o

Memorial

Conserva-se no antigo Mosteiro de Jesus um códice onde se encontram num só volume Crónica da Fundação do Mosteiro de Jesus, de Aveiro e Memorial da Infanta

Santa Joana Filha del Rei Dom Afonso V.

Não é este o espaço para a análise interna dos dois documentos, mas não deixaremos de referir os aspetos considerados respeitantes à figura da Infanta D.ª Joana. Primeiramente relembremos que, aos nossos dias apresentaram-se apenas duas edições com a sua transcrição, por António Gomes da Rocha Madahil, em 19394, e pelo

4

In Crónica da Fundação do Mosteiro de Jesus, de Aveiro, e Memorial da Infanta Dona Joana Filha Del

Rei Dom Afonso V – leitura, revisão e prefácio António Gomes da Rocha Madahil. Aveiro, 1939. Pp.

IX-XXXIX.

Socorremo-nos de Madahil para apurar as características exógenas do manuscrito.

Tal como chegou aos nossos dias”, o códice é constituído por 161 folhas de pergaminho “da terra”, grosseiramente preparado, agrupadas em “cadernos”: os 6 primeiros, de 4 fls. duplas; os 6 seguintes, de 5; os cadernos XIII e XIV de 4; o XV, de 5; o XVI, de 4; o XVII tem apenas I fl.; o XVIII, 4; o XIX tem 5; e há ainda, a seguir, I fl. simples. No século XVIII apensaram aos cadernos de pergaminho 22 folhas complementares de papel onde ficaram registados sucessos subsequentes. Há ainda mais três de papel igual, em branco.

“Chamadas” de caderno para caderno, unicamente; a numeração deles, à cabeça da 1.ª folha de cada um, e com algarismos romanos, vai até o caderno IX, faltando daí em diante.

No canto inferior direito, rosto, a primeira folha de cada caderno foi marcada com “assinatura”; por excepção, o 1.º caderno está “assinado” nas quatro primeiras folhas: a, a ii, … a iiij. […]

(22)

Pe. Dr. Domingos Maurício Gomes dos Santos, em 19635, no âmbito dos seus estudos sobre o Mosteiro de Jesus. Tem sido amplamente divulgada a primeira página da

Crónica e do Memorial, e foram diversos os trabalhos que se debruçaram sobre a

autoria de um e outro ou de ambos, consoante as conclusões dos seus autores6. Carece-se, no entanto, de um estudo aprofundado dos dois manuscritos, quer do ponto de vista paleográfico e baquigráfico, quer do despiste para as autorias que se lhe(s) atribuem e respetivo enquadramento na produção cronística conventual e na hagiografia portuguesa. De facto, no que ao Memorial diz respeito, há mais de quinhentos anos que a sua matéria vem sendo fonte de informação ora para fins históricos, literários ou artísticos ora com claros objetivos hagiográficos ou pastorais. Os pergaminhos

Medem as folhas, actualmente 297 x 209 mm em consequência da 2.ª encadernação, que destruiu, com o novo corte, parte da primitiva numeração; pelo que resta dela podemos ainda verificar que era de algarismos árabes, como veio a ser a que actualmente se conserva.

A segunda numeração revela-nos que a primitiva folha 45 foi arrancada; para diante verificam-se várias outras mutilações, não podendo determinar-verificam-se a época em que foram praticadas; como no texto se não notam faltas, é de crer que as folhas cortadas fossem brancas.

Até à fl. 43, a numeração actual acompanha a primitiva, que se distingue ainda a a par dela. Da fl. 45 em diante verificam-se diferenças: a actual 45 era antigamente a 46, continuando essa proporção até à 110, que primitivamente era a 111.

A 113 actual foi 115, e assim por diante; mas já a 137 mostra ter sido 148, seguindo até à 143 com essa diferença.

A 153 foi outrora a 155, e com essa distância entre as duas numerações se alcança o final do manuscrito.

De folha para folha o texto não apresenta “chamadas” nem “assinaturas”; a “mancha” foi preparada regrando-se o pergaminho a tinta muito leve e marcando na lauda duas colunas de 205 x 70 mm; nas margens exteriores, por vezes, encontram-se ainda os picos do compasso, à distância de 6 milímetros uns dos outros, aproximadamente. Aproveitam-se ainda os dois lados de cada folha.

Cada coluna apresenta 34 linhas, em média, e é, muitas vezes, limitada por traços de tinta que chegam à extremidade das folhas. A mancha total da página, incluindo o espaço que separa as duas colunas, mede 150 x 205 mm, com insignificantes diferenças. Resultam daí amplas margens, calibradas de harmonia com os preceitos clássicos de proporção.

Não há “títulos correntes”.

Caligrafia gótica, já da decadência; capitais traçadas a vermelhão, algumas vezes sobre fundo filigranado violeta. Mais raramente, em princípio de certos capítulos, grandes capitais a azul. Epígrafes também a vermelhão, bem como “caldeirões”. Por todo o texto, maiúsculas tocadas de amarelo.

5

SANTOS, Maurício Gomes dos – O Mosteiro de Jesus de Aveiro: Companhia dos Diamantes de Angola (Serviços Culturais), II/2 – 1967. Pp. 225-301

6

VERDELHO, Telmo – Revista da Universidade de Aveiro n.ºs 6,7,8 – Aveiro, 1989, 1990, 1991. A

memória das palavras e dos gestos no “Memorial da Infanta Dona Joana Filha Del Rei Dom Afonso V”.

Pp. 221-240. VERDELHO, Telmo – Revista da Universidade de Aveiro n.ºs 6,7,8 – Aveiro, 1989, 1990, 1991. Breve nota sobre a autoria Memorial da Infanta Dona Joana Filha e da Crónica da Fundação do

Mosteiro de Jesus. Pp. 241-264. SOBRAL, Cristina – A vida da Princesa Santa Joana de Portugal:

hipóteses de autoria. RLM, XXVII (2015) ESPÍRITO SANTO, Ana – Actas del IV Encuentro

hispano-suizo de filólogos noveles Universität Basel Suiza – 2005. Para una edición del Memorial da Infanta

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continuam, assim, a aguardar por mãos pacientes que o considerem e divulguem contemporaneamente.

Em segundo lugar, e partilhando da ideia defendida por Paula Almeida Mendes7, reproduzida adiante, vem pairando grande silêncio sobre a enorme produção hagiográfica portuguesa entre Quinhentos e Oitocentos. As histórias da literatura, antologias ou dicionários8 não lhe conferem importância de maior.

Não será despiciendo ainda recordar:

Em Portugal, a partir de finais do século XVI, o número de edições de “Vidas”, não só de santos, como também devotas, foi conhecendo um significativo aumento. Esta tendência acentua-se no século XVII, época em que se assiste a um relativo e, em alguns momentos, muito significativo crescimento do número de obras produzidas, e manter-se-á, com algumas oscilações, até cerca de meados do século XVIII. A partir desse período, a edição de hagiografias e biografias devotas sofreu, efectivamente, uma muito significativa redução, que poderá, talvez, ser explicada, não só pelo facto de os jesuítas, grandes cultores e divulgadores destes textos exemplares, terem sido expulsos do reino português, como também pela emergência de um racionalismo imbuído do espírito das Luzes, inscrito num processo de secularização a que a Igreja católica procurou responder com outro tipo de estratégias que, porém, ao longo do século XIX, não ignoraram o poder da escrita de “Vidas” de santos ou exemplos de virtude.

Embora todos os indícios apontem para a redação do Memorial nos inícios da centúria de Quinhentos sem o pretender, portanto, ele vai de encontro às diretrizes apontadas pelo Concílio de Trento (1545-1563), segundo o qual o especto salvífico na ótica católica não pode ser abrangido apenas por meio hagiográfico, mas igualmente pela heroicidade e maravilhosismo, entenda-se, milagres, que os tempos futuros incentivariam9. Portanto, a escrita da vida de quem se considerava santo residia na glorificação da personagem, para edificação espiritual de quem com a sua vida tomasse

7

In MENDES, Paula Almeida –Entre a aprendizagem da santidade e a predestinação divina. Algumas

notas sobre a infância e a adolescência em “vidas” de religiosas portuguesas (séculos XVII-XVIII) in

Via Spiritus 19 (2012). Porto: CITICEM. Porto, 2012. Pp. 123-143.

8

Cf. SILVA, Maria João B. Marques da Silva – Vida da Infanta Santa Joana in Dicionário de Literatura

Medieval Galega e Portuguesa. Lisboa: Caminho, 1993. Pp. 660-661.

9

Cf. URBANO, Carlota Miranda – A hagiografia depois de Trento in Concílio de Trento: inovar na

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contacto, e igualmente com forma de sustentação e de comprovação da fama sanctitis da veneranda pessoa. Assim, o Memorial joanino insere-se, no campo da santidade, na codificação dos modelos dessa mesma comunhão plena com Deus e na redefinição daquela pela Igreja católica pós-tridentina.

Atentemos, por fim, no conteúdo, autoria e datação.

No primeiro segmento diremos que quer a Crónica quer o Memorial constituem a matéria duma preocupação explícita e implícita de salvaguardar a memória de uma comunidade e, dentro desta, duma figura em particular. Se na generalidade poderemos considerar que o primeiro documento se centra na Madre Brites Leitoa, fundadora do Mosteiro de Jesus de Aveiro, e tem como objetivo o louvor daquilo que é digno de ser glorificado num mortal e perpetuar na memória da comunidade religiosa o espírito que lhe preside, o legado da Madre que deve ser prosseguido e aperfeiçoado e a fixação dos aspetos identitários daquele grupo orante constituído em família, não de sangue mas de fé. Já o Memorial encontra naturalmente todo o seu protagonismo na Infanta D.ª Joana, identificando na descrição sequencial da sua vida um exemplo rumo à santidade de estímulo para a comunidade e futuros leitores, salvaguardando a pobreza da pena que escreve tão perfeita vida. Não nos detendo na questão das diferenças entre os dois textos (estrutura, finalidades, fontes informativas que parecem informá-los, etc.), recordemos que a autora não pretendeu escrever uma biografia, mas sim deixar por escrito, por imperativo de consciência e para memória futura, a vida de alguém em cuja santidade acredita. Por conseguinte, não se lhe exigirá a frieza na análise dos acontecimentos, mas compreenda-se o espírito piedoso, a atitude crente e a redação beatifica da interpretação dos factos no campo do maravilhoso. Defendemos, por fim, a complementaridade dos dois textos: a Crónica antecede, prepara, regulamenta a vida religiosa dominicana em Aveiro e desenha o arquétipo de monja como forma de vida perfeita, virtuosa e penhor salvífico, pela pobreza, castidade, recolhimento e clausura, e o Memorial personifica esse mesmo arquétipo, mesmo numa não-religiosa e figura real, o que lhe adensa a heroicidade nas provações, a santidade no dia-a-dia partilhado e no padroado que exerce sobre a comunidade religiosa e aveirense, explanado ao longo do texto.

(25)

Quanto à autoria, introduzimos desde já palavras de Madahil10:

Verifica-se grande uniformidade caligráfica em todo o códice, excluídas, evidentemente, as continuações que pelos anos adiante lhe foram lançadas; no entanto, algumas ligeiras variantes dão-nos o direito de pensar se não terá havido intervenção de mais uma pessoa na sua escrita, logo após as primeiras folhas.

Mais adiante refere também:

A fl. 113 escreveu-se posteriormente o “Memorial das cousas santas que foram da dita excellente princesa e muito virtuosa Senhora. ha Senhora Iffante dona Johana”; a letra procura imitar a caligrafia própria do códice, mas reconhece-se logo que é doutra mão e não muito mais recente; o facto não é destituído de importância porque se tem invocado esta página para provar a antiguidade do documento.

E ainda:

O livro não está assinado e do texto não consta declaradamente quem o tenha escrito; mas, socorrendo-nos dos elementos indirectos que por todo ele se encontram, alguma coisa podemos concluir.

Assim, verifica-se que as narrativas pertencem a uma Religiosa do próprio Mosteiro; contemporânea da Infanta, a cujo falecimento assistiu; efectivamente – a) “referindo-se a S. Domingos, patrono da Ordem a que o Mosteiro pertencia, designa-o por nosso padre sã domingos”; – b) falando da fundadora do convento, chama-lhe “ha muy virtuosa nossa madre brytiz leytoa”. […] – e) à Infanta, a cada passo trata por a Infante dona Johanna “nossa” Senhora.

E outros mais exemplos se encontram no texto, provando que se trata seguramente de uma religiosa e contemporânea da Infanta na comunidade.

O historiador considerou que no Mosteiro seria conhecida a autoria das piedosas

e ingénuas narrativas, e o seu nome não seria de todo desconhecido da comunidade. O

anonimato por humildade e a assunção pessoal de um desígnio interior das dominicanas de Aveiro – o perpetuar da vida da Infanta – poderão ser o justificativo imediato para a autora escudar a sua identidade. Porém, prossegue ainda Madahil, registam-se a admissão de três sobrinhas de Fr. João de Guimarães, Prior do Mosteiro masculino de

10

(26)

Aveiro e que orientara os primeiros tempos da vida conventual das religiosas dominicanas na vila. Escreveu-se no Memorial:

Ho ãno do Senhor de Myl quatrocenttos . sessenta e sete . lancarom ho avyto a tres sobrinhas do padre frey Joham de Guimaraães . a saber . Margaarida pinheyra . E a sua Irmãa Catherina pinheyra . E a Ynes eanes prima destas.

Ora sucede que, neste trecho do Memorial, sublinharam o nome de Margarida Pinheira e escreveram na margem:

esta escreveo a vida da Princesa Sta.

A cor da tinta e a caligrafia, no entanto, demonstram ser de lavra posterior ao texto que anotaram. Desconhece-se, porém, quando se realizou tal anotação e por mão de quem. Por outro lado, foca-se a autoria no Memorial, nada dizendo, no entanto, sobre a Crónica. Outro elemento perturba mais ainda este registo. O nome sublinhado é o de Margarida Pinheira; no entanto, a anotação foi escrita à margem das duas últimas linhas do registo, principiando no alinhamento paralelo às palavras Catherina pinheyra, originando, assim, nova hipótese de autoria.

Antes de elencar as possibilidades quanto à autoria do Memorial, registemos a expressão esta escreveo a vida da Princesa Sta , a qual poderá indicar tanto a pessoa que o redigiu, de facto, como a pessoa que o copiou, na sua função de escriba.

Na sua introdução, Madahil refere George Cardoso e o seu Agiologio, com impressão de 1666, e atribui a narrativa a Catarina Pinheiro, não justificando, porém, a sua opção. E é este o primeiro autor que aborda o problema da autoria. Daniel Paperbrochio, em obra dedicada à Infanta, saída do prelo em 1679, não aceitou a atribuição que treze anos antes fora dada ao Memorial e defende Margarida Pinheiro, cruzando datas e narrativas da vida da Infanta e nas quais a narradora estivera presente. E durante mais de duzentos e cinquenta anos a autoria não foi ponto de discussão quando ao texto se referia qualquer hagiológico. Só em 1879 o aveirense Marques Gomes, num esboço biográfico da Infanta D.ª Joana, atribui o Memorial a Bernarda Pinheiro, mudando de opinião para Margarida Pinheiro em 1890, e terminando em Catarina Pinheiro em 1910. Todavia, nenhuma das opções foi justificada. Mas se este historiador contactou diretamente com a documentação existente no antigo Mosteiro de

(27)

Jesus, já o mesmo não sucedeu com a francesa J. Belloc, em cuja biografia joanina de 1899 atribui a Margarida Pinheiro a lavra, crê Madahil apenas como reflexo de informação alheia. E é esta a opinião do próprio historiador: ambos os códices são da mesma pessoa, o estilo afigurava-se-lhe de uma só mão, confirmada pelo facto de a autora, tratando do Mosteiro, se referir já à vida da Infanta scrypta sobre ssy brevemente

segundo he posto no cabo desta leenda. Margarida Pinheiro parece-lhe a religiosa que

escreveu o Memorial, e apresenta argumentos. Baseia-se não só no sublinhado já referido, mas também no facto de nenhuma outra irmã privara tanto com a Infanta como esta, uma vez que desempenhava funções de sua sacristã e criada.

Ana Espírito Santo11, além de não considerar o códice como um todo, mas antes narrativas distintas e independentes, até pelos espaços em branco que as medeiam, também o índice que cada uma apresenta comprova tal independência. E estranha que a autora espanhola se incline para tal opinião, porquanto diz, na sua análise, que, se se está perante uma cópia, existiu um trabalho preparatório, pressupõe um conhecimento prévio da obra a copiar, já que os capítulos foram marcados nos cadernos de pergaminho. Os já referidos espaços em branco são justificados pela autora espanhola como erros no tamanho do texto que se supunha ser copiado. Finalmente, refere Ana Espírito Santo que não é de excluir uma mesma mão a realizar os dois trabalhos, embora reconheça as distinções entre ambas. A identidade dessa mão, porém, a historiadora não aborda.

O ano de 1990 foi particularmente relevante, naturalmente na sua dimensão festiva e cultural, porquanto se completavam a 12 de maio os quinhentos anos do passamento da Infanta D.ª Joana. A Universidade de Aveiro empreendeu, pois, jornadas de estudos, onde, entre outros temas, se abordou o Memorial.

Telmo Verdelho12 considerou:

11

ESPÍRITO SANTO, Ana – Actas del IV Encuentro hispano-suizo de filólogos noveles Universität Basel Suiza – 2005. Para una edición del Memorial da Infanta Santa Joana.

12

VERDELHO, Telmo – Revista da Universidade de Aveiro n.ºs 6,7,8 – Aveiro, 1989, 1990, 1991.

Breve nota sobre a autoria Memorial da Infanta Dona Joana Filha e da Crónica da Fundação do Mosteiro de Jesus. Pp. 241-264.

(28)

Rocha Madahil perdeu-se na floresta de testemunhos autorais e textuais. A atribuição a Margarida Pinheiro parece-nos inaceitável porque é incompatível com a informação do próprio texto. Catarina Pinheiro (1464-1528) irmã mais nova de Margarida, é que foi provavelmente a recatada autora das piedosas narrativas historiográficas. Mas a questão não pode transitar definitivamente em julgado. Uma certa margem de mistério no respeitante à autoria continuará a fazer parte do encanto desta “leenda” aveirense.

Ora, excluindo da autoria pela Madre Maria de Ataíde, superiora do Mosteiro (que estaria mais ligada à sua fase fundacional e teria sobre ambas os documentos do códice uma dimensão de mandato quanto à sua redação), Isabel Luís, última sobrevivente do grupo das fundadoras do Mosteiro (que, ausentando-se de Aveiro a partir de 1518, não presenciou alguns dos acontecimentos narrados e ocorridos posteriormente a este ano) e Margarida Pinheiro (que exclui, por um lado, na medida em que se narram com precisão os acontecimentos ocorridos no Mosteiro por Agosto de 1480, altura em que a religiosa e a Madre Maria de Ataíde estavam fora de Aveiro, não podendo, pois, ter conhecimento pormenorizado do que ali sucedera naquele período em que acompanharam a Infanta D.ª Joana, que saíra do cenóbio devido à peste que grassava na vila. Além disso, se possuísse, segundo crê o autor, a categoria de Cronista, não teria sido enviada para Setúbal, com setenta anos, para fundar a comunidade dominicana local. Por outro lado, os seus afazeres litúrgicos, de sacristã da Infanta e ensino de canto às noviças, não lhe deixaria nem tempo disponível para obras de tal monta. Verdelho inclina-se claramente para Catarina Pinheiro, que viveu com as fundadoras desde os três aos dezasseis anos de idade, tendo professando em 1480 e acompanhado de perto toda a vivência da Infanta intramuros do Mosteiro. E se Madahil atenta para o sublinhado a Margarida Pinheiro e a anotação sobre a autoria do Memorial são tomadas como um todo, o autor considera que uma mão terá feito o sublinhado e outra o registo.

(29)

Se Ana Maria e Silva Machado13 não coloca o problema da autoria, mas se ocupa essencialmente da finalidade do Memorial, já Cristina Sobral aponta Isabel Luís como a religiosa a quem cabe a redação do texto. A defendê-la tem o facto de pertencer ao grupo fundacional do Mosteiro, ao contrário de Margarida e de Catarina Pinheiro (é digna de nota a utilização do nós no sermão pregado por Frei Pero Diaz, no início da clausura, bem como mais adiante nas recomendações que nos dizia Frei João de Guimarães). Além disso, e parece-nos curioso este pormenor, no louvor que realizado às religiosas do Mosteiro, quanto mais não fosse o recorrente virtuosa, qualquer adjetivo foi omitido aos nomes de Catarina Álvares e de Isabel Luís. E Cristina Sobral optou por esta última uma vez que, quando se organizou a vida regular em 1465, já Isabel Luís sabia ler e escrever, sendo-lhe entregues as funções formativas junto das noviças, sendo ela, aliás, quem conduziu a tomada de hábito da Infanta. Mas já na Crónica, foi com pormenor narrada a morte e sepultura da Madre Brites Leitoa, tendo sido precisamente Isabel Luís quem acompanhou todos estes momentos, não existindo quer na Crónica quer do Memorial indicação nenhuma sobre o destino dado a Isabel. Outro dado importantíssimo é o facto de esta religiosa ter ocupado as funções de copista do Mosteiro, o que a colocam, acima das demais Irmãs, na melhor posição para contacto com documentos e disponibilidade de tempo para redação. Contrapõe-se, por isso a Telmo Verdelho, no argumento respeitante saída de Isabel Luís do Mosteiro em 1518, segundo este, justamente na altura em que a narrativa estaria a ser composta, bem como o facto de não ter podido assistir a alguns episódios que são contados

pormenorizadamente e que a autora declara não presenciado. Para Cristina Sobral o

argumento não colhe, porquanto Telmo Verdelho não identifica um acontecimento sequer em que Isabel Luís estivesse ausente e, segundo a autora, nem poderia indicá-lo, já que a Crónica se detém em 1482 e o Memorial em 1490 e a religiosa apenas sai do Mosteiro em 1518.

Parece-nos, no entanto, importante um dado, já pré-anunciado por Madahil. Aquando do inquérito no primeiro processo para a beatificação da Infanta, foi perguntado às religiosas sobre a autoridade e crédito do códice que existia no cartório

13

MACHADO, Ana Maria e Silva Machado, Revista da Universidade de Aveiro n.ºs 6,7,8 – Aveiro, 1989, 1990, 1991. Pp. 299-310.

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do Mosteiro. Todas elas afirmaram que não tinham conhecimento de crédito de quem escrevera o livro visto que entre a época que ele fora escrito e a dos depoimentos mediava cerca de um século e não existia qualquer documento referente ao livro. Porém:

Todas as freiras que depuseram, disseram ser tradição que o livro tinha sido escrito pela Madre Margarida Pinheiro e algumas até declaram que do próprio livro constava ter sido esta freira que escrevera14.

Considerando o clima ascético de culto da verdade, será de ter em alguma conta o valor da tradição que as religiosas testemunham no seu depoimento.

Quanto à datação, informa Madahil:

O manuscrito não está datado; mas não me parece impossível fixar com grande aproximação a época em que deve ter sido caligrafado; com esse problema se relaciona outro, não apresentado ainda, que eu saiba: é o problema da originalidade deste códice. Será ele o único que se escreveu, ou terá existido outro anterior?

Se Madahil baliza a datação do Memorial entre 1490 e 1525, tendo por referência o último averbamento realizado à morte de uma religiosa dominicana de Aveiro, a 7 de Outubro desse ano. Já Maria João Branco da Silva não crê na origem quinhentista do documento e reduz substancialmente o período possível da sua datação, colocada entre 1518 e 1525, sem, porém, a argumentar.

Já Telmo Verdelho considera Muito provavelmente a redacção do texto ocorreu

entre 1514 e 1520. Se Madahil definira a data 1490 antes da qual não poderia ter sido composto o Memorial, o autor considerou no estudo de 1990 que o estudioso joanino deixou passar uma informação essencial contida no próprio texto. A “composição”, isto é, a redacção não poderia ter sido anterior a 1513. Com efeito, a p. 49 da “Crónica” introduz-se uma prolepse narrativa que remete para acontecimentos passados em 1513. E mais adiante refere que apenas quatro religiosas tinham assistido a

quase todos o período de fundação do Mosteiro e à permanência da Infanta em Aveiro e

14

NEVES, Francisco Ferreira Neves – Primeiro processo para a beatificação e canonização de Santa

(31)

foi sobre elas que recaíram as suas considerações, que acima reproduzimos, quanto à autoria dos documentos do códice.

Já Cristina Sobral considera que o período plausível para produção é 1513-1525. Segundo a investigadora, os cinco anos que medeiam entre 1513 e a saída da religiosa que pressupõe ser autora (1518) seriam mais do que suficientes para a composição da obra, particularmente se esta estivesse já a ser preparada, sendo que é conhecido com segurança o ano de regresso de Isabel Luís a Aveiro, que poderá ter sucedido antes de 1525.

Posto isto, muito gostaríamos de indicar ano preciso e autor reconhecido, pelo menos, do Memorial, no qual há mais de meio milénio certamente tantos autores recolhem informações com objetivos biográficos, hagiográficos, pastorais, panegíricos, musicais, romancistas, poéticos, teatrais, políticos, panfletários, etc.. Ele constitui, na verdade, a base da informação joanina, não obstante dados incidentais das crónicas de seu pai e seu irmão e da documentação existente da própria Infanta ou sobre ela referente. Enquanto, porém, não existir um rigoroso exame aos pergaminhos utilizados no códice, a paleografia não se ocupar do conteúdo ali existente, e se não recompuser todo o edifício humano do Mosteiro de Jesus, não chegaremos – se isso é possível – a uma data e a um nome. Deixámos, no entanto, cremos nós, elementos suficientes para o que até hoje se estudou sobre os assuntos.

2. Da memória ao culto à Infanta em Aveiro

2.1 Pela comunidade do Mosteiro de Jesus e pela Ordem dos Pregadores

Poderemos dizer com propriedade que o culto à Infanta D.ª Joana começou imediatamente após a sua morte, sem ninguém da nobreza junto de si, mas naquela comunidade religiosa que ali se reuniu junto da moribunda. A presença de tão ilustre personalidade real, que causara o maior impacto na vila e entre as suas pares pelo exemplo de virtude, abnegação e bem-fazer, deixaria lastro durante muito tempo nos seus contemporâneos. Porém, foram muito claras as disposições da Infanta quanto ao

(32)

seu lugar de sepultamento, revelando, assim, expressiva ação de simplicidade após a sua morte. Ter-se-á dado um milagre à passagem do caixão da Infanta, em plena época primaveril: as flores e folhas dos marmeleiros do jardim conventual onde a senhora se recreava, tombaram sobre o ataúde. O prodígio ainda hoje é evocado. Em campa rasa ou Túmulo modesto estiveram os despojos mortais de D.ª Joana até inícios do século XVIII15, altura em que foi construído mausoléu.

O lastro do culto junto do corpo da Infanta, ora no leito de morte, ora nos vários locais funerários desde 12 de maio, constitui até hoje a prova insofismável da devoção que lhe é prestada, por pequenos e grandes, pobres e ricos16. Então era de luto e dor;

hoje é de memória agradecida e de culto piedoso17. Mas não só este sinal manifesta as primícias cultuais a D.ª Joana: à data do seu falecimento, celebrava-se na Corte o casamento do Príncipe-herdeiro D. Afonso e da filha dos Reis Católicos. D. João II mandou suspender as festividades, sobre a corte caiu pesado luto e as tapeçarias e demais panos de armar foram substituídos por simples panejamentos azuis, em clara alusão que o monarca quis deixar sobre a atual morada da irmã: no céu, azul e bem-aventurado.

Sendo certo que as Constituições da Ordem determinavam o registo de todas as irmãs no livro do convento, inscrevendo as datas mais importantes das suas vidas, com maior razão sentiu a comunidade não só a necessidade de o fazer de forma mais ampla em relação à Infanta e ao próprio espaço monacal. Assim terá nascido o Memorial de que já nos referimos. Ora, nesta época o registo escrito é raro e precioso, provando, do ponto de vista da produção, a existência de uma comunidade letrada e informada, e

editorialmente a clara intenção de perpetuar a memória de um Mosteiro, de uma

recolhida em particular e das benesses por ela concedidas18. As formas que o culto à

15

Refira-se que, entre os parentes mais nobres de Santa Joana, poucos são os familiares que não estão sepultados no Panteão real da Casa de Avis, na Batalha. Assim, ali jazem seus bisavós, seus tios-avós, seus avós, seus pais, seus irmãos e seu sobrinho encontram-se na Sala do Fundador e numa das Capelas imperfeitas.

16

Oração do Arcebispo-Bispo de Aveiro, D. João Evangelista de Lima Vidal, divulgada em estampas devocionais.

17

Ibidem n.º 1. P. 277.

18

Vd. sobre a atividade intelectual da comunidade, MOITEIRO, Gilberto Coralejo – As Dominicanas de

Aveiro (c. 1450-1525): Memória e Identidade de uma Comunidade Textual. Lisboa: Faculdade de

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Infanta Joana configurou são detetáveis no espaço e também na expressão. O Mosteiro é o lugar principal deste culto: a sala onde faleceu e o pequeno talho de terra onde o seu corpo foi depositado são os pontos mais depressa identificáveis com a passagem da Infanta por Aveiro. Sobre este tema, debruçou-se, cremos nós com felicidade, Gomes Madahil, ao escrever o opúsculo A Princesa Santa Joana – do senhorio temporal ao

padroado da Diocese de Aveiro19. Na verdade, logo após a sua morte, o Mosteiro e a Vila executaram uma transmutação da intercessão da Infanta: se em vida fora senhora de Aveiro mas também a mãe dos pobres e a protetora do convento, com maior razão na eternidade celeste concederia a sua bem-aventurança e beneficiaria quem a ela recorresse pela sua comunhão com Deus.

Ao longo dos anos, constituíram-se meios para que essa veneração se realizasse, dentro dos cânones devocionais próprios do Catolicismo, da Ordem dos Pregadores20 e de cada época. Mas não só, dentro do Mosteiro, religiosas doentes rezavam junto da sua sepultura, tomavam um pouco da sua terra, que dissolviam em água e bebiam, sentindo assim alívio para as suas maleitas. À semelhança do sucedido com o rico colar de ouro e pedrarias de sua 5.ª avó, a Rainha-Santa Isabel, também ao Mosteiro de Jesus acorriam as parturientes cuja hora de nascimento dos filhos se afigurava difícil. Concedida a correia que cingira o hábito de estamenha branca da Infanta, encontravam as mulheres alívio na hora do parto. A correia existe ainda hoje e foi deposta sobre as vestes simples da recolhida, mandada encerrar em caixa-relicário de prata; uma madeixa de cabelo cortada numa exumação – também ela em relicário de cristal e prata – são as duas relíquias expostas à veneração dos fiéis desde inícios do século XVIII. Já nos anos oitenta do século XX passaram a sair em procissão, a 12 de maio, imediatamente antes do pálio e defronte do Santo Lenho do Mosteiro. Mas, ainda mais notável do ponto de vista cultual e, de certo modo, em ato de coragem mas de profunda convicção na bem-aventurança da Infanta, no ano seguinte à morte de D.ª Joana não se celebrou, como era de norma, o ofício de defuntos, mas o formulário do Comum de Todos-os-Santos. Por

19

Cf. MADAHIL, António Gomes da Rocha, Separata do vol. XXXIII do Arquivo do Distrito de Aveiro. Coimbra Editora: Aveiro, 1966.

20

Vd. MARTÍNEZ, Felicíssimo – Espiritualidade dominicana: O carisma e a missão da ordem dos

(34)

outro lado, a tábua quinhentista21, deixou de ser peça artística a demonstrar beleza e porte da senhora Infanta para se tornar ícone devocional: a comunidade adornou o retrato, que foi exposto no altar, levantado junto da sepultura. Em seu redor os elementos próprios do culto: velas, flores e fumos de incensos.

Após a morte da Infanta, três vetores imprimem dinâmica ao Mosteiro de Jesus22. Primeiramente, a presença de uma figura real numa pequena povoação do litoral, atraiu para ali vocações de consagração de senhoras da alta nobreza, tornando, assim, o pequeno cenóbio em florescente foco de irradicação dominicana em Portugal. A consciência da importância de tal presença não terá sido, de todo, como se viu, indiferente, de todo, à obrigatoriedade do registo do Memorial. Além do fluxo de consagração, registem-se, entre os séculos XVI a XVIII23, o vigor que algumas Prioresas imprimiram à vida monacal, em particular com aumento e embelezamento da sua área física, e o inculco de novas práticas devocionais, além do luzimento das celebrações realizadas no Mosteiro. Depois, e não obstante a todo este conjunto, o conjunto de provimentos, tenças, doações, os rendimentos, enfim, permitiram e estimularam a prosperidade da comunidade, a sua riqueza patrimonial24 e o lugar destacado que ocupavam na vida social de Aveiro. Finalmente, e em paralelo com estas duas dinâmicas, cresce e diversifica-se a devoção à Infanta D.ª Joana.

Se a chegada a Aveiro de senhoras nobres para tomarem hábito dominicano podem ser já uma das demonstrações desse culto, a sua popularização imprimiu-lhe nítida expansão. Muitos acorriam às grades do Mosteiro para pedir um pouco dessa terra e a dissolver em água, para cura das suas maleitas ou poderem tocar sequer nos objetos que foram da Infanta. O que hoje consideramos relíquias – e vê-las-emos em pormenor adiante – também eram solicitadas. As Irmãs, na medida em que a sua vida e regra permitiam, correspondiam a estes desejos, a serem lidos e compreendidos, naturalmente à luz da época e das suas práticas religiosas.

Mas a Igreja compreendeu a força da presença da Infanta em Aveiro, do evidente culto que lhe era prestado, e, embora fechando os olhos ao que se passava no

21

Adiante se verão, mais em pormenor, estes objetos cultuais. Vd Pp 83-88 e 127-144

22

Vd, para o conjunto das centúrias, SANTOS, ob. cit. n.º 5. Pp. 185-194.

23

Vd, para o séc. XVIII, SANTOS, ob. cit n.º 5. Pp. 253-269

(35)

Mosteiro de Jesus, e inicia oficialmente as diligências para se iniciar um processo de beatificação.

Assim, em 1577 ocorreu nitidamente um primeiro fervor religioso pela cura milagrosa da prioresa Sóror Jerónima de Castro. Terá sido nos anos seguintes que se deu a primeira transladação do corpo da Infanta, da campa rasa para pequeno caixão, inculcando-se a referida devoção à terra da sepultura. Já em 1602 ocorreu segunda transladação para o coro de baixo, com presença do bispo D. Afonso de Castelo Branco, e vinte e dois anos depois realizou-se a terceira transladação para um caixão mais digno, com apoio de D. Filipe II.

Em 1625, efetivamente, oficializa-se o pedido para se dar início a processo de beatificação, pela Prioresa D.ª Mariana de Coutinho, intercedendo junto do Bispo-conde, apoiadas pelo Juiz, procurador e vereadores da Câmara de Aveiro. No ano seguinte dar-se-ia início às tramitações canónicas, abandonadas por falta de rigor.

Sendo certa que a devoção joanina continuou, impávida ante a contrariedade – realidade que iria acompanhá-la até aos nossos dias – sempre com foco na comunidade monástica reunida atrás das grades, apresentou-se ininterrupta a comunhão do povo de Aveiro e espalhando-se, na medida das comunicações da época, o exemplo de vida da Infanta D.ª Joana. Se em 1596 sairia do prelo a primeira biografia joanina, por Frei Nicolau Dias, na centúria seguinte não cessariam as publicações.

Embora façamos, mais à frente, uma tábua dos instrumentos normativos que informam o culto à Infanta D.ª Joana, valerá a pena sistematizar os processos canónicos, seus intervenientes e respetivas datações25.

Tipo de processo Duração Corrido em Matéria Juiz Ordinário 6/10/1626 a

28/10/1627

Coimbra e Aveiro Vida, morte, virtudes, milagres e fama de santidade da Infanta D. João Manuel, Bispo de Coimbra

Ordinário 13/10/1686 Coimbra Igual matéria à do D. João de Melo,

25

(36)

Baseado no processo anterior

anterior Bispo de Coimbra

Ordinário 11/3/1687 a 21/4/1687

Coimbra e Aveiro Culto, veneração e prodígios da Infanta

D. João de Melo, Bispo de Coimbra

Apostólico 4/4/1689 Lisboa Por virtude de letras remissoriais e compulsoriais da Sagrada

Congregação dos Ritos, que dava a faculdade de se venerarem

imagens da Infanta desde tempos antigos Apostólico 2/5/1689 Évora Igual matéria mas

dando faculdade para visitar, reconhecer e descrever imagens da Infanta

Apostólico 2/5/1689 Coimbra e Aveiro Por virtude de letras da Sagrada Congregação dos Ritos, tendo por objeto o culto da Infanta

Apostólico 1749 a 1752 Super virtibus et miraculis in specie. Não teve

conclusão

Finalmente, a 4 de abril de 1693, D.ª Joana de Portugal foi declarada bem-aventurada por Inocêncio XII (em beatificação equipolente, isto é, com reconhecido culto imediatamente após a sua morte e não através de beatificação solene, ou seja, por

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reconhecimento de um milagre), permitindo-se a sua celebração cultual a 12 de maio, em Aveiro, Portugal e na Ordem Dominicana. Os missais contemporâneos apresentam já oração coleta e as demais orações e ofícios remetem para a Comum das Virgens. Desde maio desse mesmo ano até aos nossos dias, Bispos, pregadores de renome, expressivos armadores de altares, capelas reais, religiosas e religiosos e sobretudo o povo em sucessivas gerações têm manifestado publicamente o culto a quem denominaram Santa Joana Princesa. A imagem esculpida depois da beatificação está no altar a ela dedicado, na Igreja de Jesus que, de certo modo, fixou a sua iconografia: a Infanta com um crucifixo na mão – relembrando o madeiro para onde fixou o olhar antes de morrer, as três coroas reais no chão – aludindo aos casamentos que, segundo a tradição, recusou ou conseguiu não contrair – e a coroação da fronte não por metal real, mas pela coroa de espinhos – divisa com a qual marcava a sua roupa. Desta época será também a confeção do primeiro pavilhão de paramentos para a festa de Santa Joana, em data e encomenda ainda não identificáveis.

A sua canonização nunca se concretizou. Porém, desde o pós-beatificação, que se inicia um natural período de expansão do culto à Infanta, passando pelas fases de vivo interesse da Coroa na canonização da sua antepassada – não obstante o prestígio político que daí proviria e representaria – e que se materializou no melhoramento dos espaços emblemáticos do Mosteiro (pinturas e azulejos com cenas reais e imaginárias da vida da Infanta na Igreja de Jesus e na sala do lavor, onde morreu) – mas também de esmorecimento ou ardor cultual, já na época contemporânea por todos os Bispos de Aveiro, como se verá.

Não haverá dúvida que o século XVIII, não obstante o processo pro-canonização abandonado neste lustro, ficará registado no culto joanino, talvez com proveito da talha dourada, em caracteres auríferos. A dinâmica plástica que se edifica no espaço; a divulgação crescente do exemplo da Bem-aventurada Infanta; a oratória sacra que à volta do seu culto se desenvolveu; tudo se alia ao esplendor litúrgico26. Referimos, em

26

(38)

particular, a Missa, de David Perez (1711-1778) e a Calenda de Santa Joana, do compositor José Joaquim dos Santos (1747-1801)27.

No séc. XIX, ainda, por petição das religiosas, a festa à Bem-aventurada D.ª Joana fora tomada como real28.

Hei por bem que a procissão que no dia da festividade da Princesa Santa Joana se costuma fazer na dita cidade [de Aveiro] seja considerada como real e que a ela assista e a acompanhe o senado da Câmara da mesma cidade, que nomeará as pessoas que deverão levar o pálio e insígnias principais, e determinará o giro regular e decente

27

Deveu-se o resgatar da poeira dos tempos a Calenda e a Missa de Santa Joana ao Professor Doutor Mário Trilha. No folheto distribuído na apresentação da obra escreveu-se: Durante o meu doutoramento,

que decorria, por assim dizer, na casa da Santa Joana, ocorreu-me uma ideia simples, talvez mesmo óbvia, mas que de tão óbvia e simples, ainda não tinha sido posta em prática por nenhum dos meus colegas músicos ou musicólogos: investigar se havia música setecentista dedicada directamente a Santa Joana de Aveiro. [Já em Julho de 1996, o Padre Arménio Costa realizara o Doutoramento em Música e

Artes do Espectáculo defendendo a tese Mosteiro de Jesus de Aveiro – Tesouros Musicais – Ofícios

rimados e sequências nos códices quatrocentristas, na Universidade de Aveiro]. Até então, quando se falava em música ligada a Santa Joana, a associação com o canto gregoriano era praticamente automática. Foi com grata surpresa, que encontrei na Biblioteca Nacional um razoável corpus setecentista de peças ligadas ao culto da princesa Aveirense. Estas peças formam um conjunto muito heterogéneo, e vão desde simples versos gregorianos com acompanhamento de órgão até uma missa completa a 5 vozes. Deste material, seleccionei, sem hesitar duas obras: A “Calenda de Santa Joana Princesa” e a “Missa de Santa Joana”, ambas as peças nunca tinham sido editadas e encontram-se apenas em cópias manuscritas do século XVIII, depositadas na Biblioteca Nacional. O primeiro problema que encontrei foi identificar os compositores destas obras. No caso da Calenda, não foi muito difícil desvendar a questão da autoria, pois na própria catalogação da Biblioteca Nacional, já havia uma atribuição ao compositor José Joaquim dos Santos, feita pelo musicólogo Rui Cabral, que foi confirmada, através do estudo da caligrafia e datação das marcas d’água do papel, pelo eminente especialista Professor João Pedro d’Alvarenga. Já descobrir o compositor da Missa de Santa Joana, foi realmente mais complexo. O manuscrito está catalogado como de autor anónimo e não há uma partitura geral, dado que só chegaram até nós as partes separadas de cada uma das cinco vozes e a linha do órgão (baixo-contínuo), o que transformava o trabalho de transcrição a uma actividade muito semelhante à de montar um puzzle de milhares de peças. Mais uma vez, o estudo da datação do papel situava o período da composição. Durante esta fase, contei com a inestimável ajuda do Professor d’Alvarenga. À medida que começava a “visualizar” a composição, e a sua grande qualidade intrínseca, comecei a considerar que se pudesse tratar de uma obra de David Perez, que foi um dos maiores compositores em actividade em Portugal na segunda metade do XVIII. Expus esta hipótese ao Prof. d’Alvarenga, que a considerou como muito provável e, na sequência, contactei o maior especialista mundial na obra sacra de David Perez, Prof. Maurício Dottori da Universidade Federal do Paraná Brasil, que após minucioso estudo, assegurou que a missa de Santa Joana é inquestionavelmente da autoria de Perez, e precisou que pelos elementos estilísticos nela encontrados, trata-se de uma composição da última década de vida deste compositor (1770). Nesta época, mais precisamente em 1774, ocorre a elevação de Aveiro a bispado que, como evento de grande importância para esta cidade, justifica a encomenda a um compositor célebre em toda a Europa, e que estava afecto ao serviço da rainha D. Maria I e muito estimado por esta soberana, de uma missa dedicada a Santa Joana. Este evento permite-nos compreender que a música também desempenhou um papel extremamente importante durante as comemorações da elevação de Aveiro a bispado, que ocorreram na onda das compensações pombalinas a Aveiro.

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da mesma procissão assim como costuma praticar nas procissões reais, assistindo também com as suas insígnias à Missa da festa do referido dia na dita igreja [do

Mosteiro de Jesus] no lugar que lhe competir com decência e decoro segundo as

minhas reais ordens.

Assim se determinaram em 1806 as ordens do Príncipe-regente D. João, cujo segmento municipal chegou, com as devidas adaptações e restrições ao regime político, até aos nossos dias, tomando em 1844 os gastos com as festividades.

Porém, não se quedaram nesses esplendores o culto joanino, por todas as camadas sociais, já que se anteviam algumas nuvens contrárias à prática religiosa, particularmente a monástica. Sobre o assunto se verá o sucedido quando abordarmos o fundamento para a criação da Irmandade da Padroeira de Aveiro.

Entrementes, em 1855, cholera-morbus ceifava todos os dias inúmeras vidas a

eito, na cidade e nos lugares vizinhos, tendo-se organizado em 24 de Setembro, uma procissão de penitência, com as imagens do Senhor Ecce-Homo e de Santa Joana

Princesa. No préstito, os religiosos entoavam o Miserere e a multidão ajoelhava, não

havendo olhos que não estivessem marejados de lágrimas. O cortejo religioso, que saiu da Igreja da Misericórdia, foi precedido de preces públicas nos dias 21, 22 e 23, celebradas na mesma igreja. A iniciativa obedeceu a uma deliberação da Mesa da Santa Casa, tomada em 14 de setembro, cujo secretário era então o Cónego José Joaquim de Carvalho e Góis29.

2.2 Pela Casa Ducal de Aveiro

O gérmen da Casa Ducal de Aveiro nascera no Mosteiro de Jesus, porquanto ali fora deixado aos cuidados da Infanta o filho ilegítimo de D. João II com D.ª Ana de Mendonça, D. Jorge de Lencastre, o qual receberia, pois, o apelido da trisavó. Esmerou-se em eloquente e piedosa educação do sobrinho a devota tia3031.

29

Cf. CHRISTO, António e João Gonçalves Gaspar – Calendário histórico de Aveiro: Aveiro, Câmara Municipal de Aveiro, 1985. P. 380.

30

Cf. RAMALHO, Américo da Costa – Cataldo, a Infanta D. Joana e a educação de D. Jorge. Humanitas. Vol. 41-42 (1990).

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