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Raciocínio visual na geometria euclidiana : o papel epistêmico e representacional dos diagramas

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Academic year: 2021

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INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

Tamires Dal Magro

RACIOCÍNIO VISUAL NA GEOMETRIA EUCLIDIANA:

O PAPEL EPISTÊMICO E REPRESENTACIONAL DOS DIAGRAMAS

CAMPINAS 2019

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RACIOCÍNIO VISUAL NA GEOMETRIA EUCLIDIANA:

O PAPEL EPISTÊMICO E REPRESENTACIONAL DOS DIAGRAMAS

Tese apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para obtenção do título de Doutora em Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio Caron Ruffino

Este trabalho corresponde à versão final da tese defendida pela aluna Tamires Dal Magro, e orientada pelo Prof. Dr. Marco Antonio Caron Ruffino

Campinas, 2019

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Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Cecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387

Dal Magro, Tamires,

D15r DalRaciocínio visual na geometria euclidiana : o papel epistêmico e

representacional dos diagramas / Tamires Dal Magro. – Campinas, SP : [s.n.], 2019.

DalOrientador: Marco Antonio Caron Ruffino.

DalTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

Dal1. Euclides - Elementos de Euclides. 2. Matemática - Filosofia. 3. Geometria - História. 4. Geometria euclidiana. 5. Visualização. I. Ruffino, Marco Antonio Caron, 1963-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Visual reasoning in Euclidean geometry : the epistemic and representational role of diagrams

Palavras-chave em inglês: Euclid - Euclid's Elements Mathematics - Philosophy Geometry - History

Euclidean geometry Visualization

Área de concentração: Filosofia Titulação: Doutora em Filosofia Banca examinadora:

Marco Antonio Caron Ruffino [Orientador] José Manuel Ferreirós Domínguez

María de Paz Amérigo Abel Lassalle Casanave Emiliano Boccardi

Data de defesa: 13-06-2019

Programa de Pós-Graduação: Filosofia

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a) - ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0001-7423-9223 - Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/6713452941575021

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A Comissão Julgadora do trabalho de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 13 de junho de 2019, considerou a candidata Tamires Dal Magro aprovada.

Prof. Dr. Marco Antonio Caron Ruffino Prof. Dr. José Manuel Ferreirós Domínguez Profa. Dra. María de Paz Amérigo

Prof. Dr. Abel Lassalle Casanave Prof. Dr. Emiliano Boccardi

A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertações/Teses e na Secretaria do Programa de Pós-Graduação em Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

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Quebrar o brinquedo é mais divertido As peças são outros jogos construiremos outro segredo. Os cacos são outros reais antes ocultos pela forma e o jogo estraçalhado se multiplica ao infinito Quebrar o brinquedo ainda é mais brincar.

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Aos professores Gisele Secco, María de Paz, Frank Thomas Sautter, Ronai Pires da Rocha, Robson Ramos dos Reis, Marcelo Coniglio e Silvio Chibeni pelas contribuições preciosas na minha formação.

Aos professores participantes do Colóquio CONESUL, pelas palestras instigantes e o papel fundamental na determinação do tema deste trabalho.

Al grupo de Filosofía de las Matemáticas de la Universidad de Sevilla por los comentarios y sugerencias que han beneficiado la investigación.

Aos amigos Edson, Bruninho, Emiliano, Inés e Vincenzo, por trazer leveza e alegria ao cotidiano, pela cumplicidade, injeções de entusiasmo e dedicação em discutir versões preliminares deste trabalho.

Ao Gilson e à Laura, pelas trocas, conversas patafísicas e insistência em manter meu riso. A los amigos Manu, Nacho, Isma, Reyes, Luis y Marga por hacer de Sevilla una segunda casa para mí.

Aos amici della Riveta, pelas recepções calorosas e finais de tarde de voz e violão. Aos amigos de Santa Maria, pelo companheirismo sincero e duradouro.

Aos colegas do seminário ‘chá das 5’, pelo ambiente amistoso e produtivo. Aos funcionários do departamento pela atenção e auxílio.

À minha mãe, artesã de primaveras, fonte de inspiração, força e coragem. Ao meu pai, engenhoso contador de histórias, por ensinar que se não se conhece os ciclos, eles é que nos vivem. Aos demais familiares, pelo amparo e carinho.

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) no âmbito do convênio CAPES/FAPESP pelo suporte financeiro para a realização do doutorado com processo nº 2014/23191-9 e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo pelo financiamento de um ano de pesquisa no exterior com processo nº 2016/20480-5.

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Et les géomètres? Crois-tu qu’il n’y ait pas chez eux une recherche singulière, et des exemples merveilleux de cette espèce rigoureuse de beauté?

Paul Valéry

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empregados em provas por reductio ad absurdum; (v) de que natureza é o tipo de representação diagramática que encontramos nos Elementos. O primeiro artigo que compõe a tese centra-se na análise do uso epistêmico de diagramas em diferentes práticas matemáticas, utilizando como caso de estudo os distintos usos de diagramas como ferramentas de raciocínio em duas práticas matemáticas da antiguidade, presentes na obra grega Elementos e nas obras chinesas Zhou Bi e Nove Capítulos dos Procedimentos Matemáticos. No segundo artigo, argumenta-se contra a afirmação de que o emprego de diagramas nos Elementos consistiria em lacunas das provas. Para tanto, esse artigo percorre os seguintes passos: (1) argumenta-se que é um erro avaliar os méritos da geometria presente nos Elementos a partir das lentes da reconstrução formal de Hilbert; (2) elucida-se as habilidades empregadas nas inferências baseadas em diagramas nos Elementos e mostramos que nesse contexto diagramas são ferramentas matemáticas legítimas; (3) por fim, revisam-se resultados de experimentos recentes que pretendem mostrar que, não somente a prática diagramática euclidiana é estritamente regimentada, mas também está enraizada em habilidades cognitivas que são universalmente compartilhadas. O terceiro artigo avança uma teoria sobre o papel representacional dos diagramas euclidianos, de acordo com a qual são amostras de aspectos

co-exatos (chamada de ‘teoria das amostras’). Essa teoria é contrastada com duas outras

concepções – a concepção instancial e a concepção icônica de Macbeth – com respeito a quão bem elas acomodam três características fundamentais do papel que diagramas desempenham na prática matemática euclidiana, a saber: são usados em provas cujos resultados são gerais; exibem características que a geômetra pode inferir diretamente deles; e são usados somente como recurso de um tipo específico (co-exato) de informação, o que esclarece como são empregados em provas por reductio. Defende-se que a teoria proposta se ajusta melhor que suas concorrentes a essas características. Por fim, ilustram-se as virtudes da teoria das amostras por meio de uma análise do quadrilátero de Saccheri. A seção final da tese relaciona os resultados obtidos nos três artigos e apresenta sugestões para investigação futura.

Palavras-chave: Práticas matemáticas. História da geometria. Raciocínio diagramático.

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The main purpose of this thesis is investigating the role of diagrams in the achievement of the solid and lasting results of Euclidean geometry. For that purpose, the work is structured in the form of three academic papers. Each paper assesses different questions surrounding the main topic: (i) which epistemic roles diagrams can have in distinct mathematical practices; (ii) which abilities are employed in the regimented use of diagrams in Euclidean geometry; (iii) how particular diagrams can be employed in the justification of general propositions; (iv) how diagrams can be employed in proofs by reductio ad absurdum; (v) what is the nature of the kind of diagrammatic representation present in the Elements. The first paper that composes the thesis focuses on the analysis of the epistemic role of diagrams in distinct mathematical practices, using as case study the uses of diagrams as reasoning tools in two mathematical practices from antiquity: in the Greek treatise Elements and in the Chinese works Zhou Bi and

Nine chapters of mathematical procedures. The second paper argues against the claim that the

employment of diagrams in Euclidean geometry gives rise to gaps in the proofs. For this purpose, the paper is structured around three main steps: (1) arguing that it is misleading to evaluate the merits of the geometry presented in the Elements through the lenses of Hilbert’s formal reconstruction; (2) elucidating the abilities employed in diagram-based inferences in the Elements and showing that, in this context, diagrams are mathematically reputable tools; (3) finally, reviewing recent experimental results purporting to show that, not only is the Euclidean diagram-based practice strictly regimented, it is rooted in cognitive abilities that are universally shared. The third paper is centered on a defense of a theory of the representational role of Euclidean diagrams according to which they are samples of co-exact properties (the ‘theory of samples’). This theory is contrasted with two other conceptions – the instantial conception and Macbeth’s iconic view – with respect to how well they accommodate three fundamental features of the role that diagrams play in the Euclidean mathematical practice: that they are used in proofs whose results are wholly general; that they exhibit the features that the geometer is allowed to infer from them; and that they are ever only used as a source of a specific type of (co-exact) information, something that clears up how they are employed in proofs by reductio. It is argued that the theory of samples is better suited to account for them in comparison with the two other competing views. The paper concludes with an illustration of the virtues of the theory of samples by means of an analysis of Saccheri’s quadrilateral. The final section of the thesis relates the results achieved in the three papers and presents suggestions for future investigations.

Keywords: Mathematical practices. History of geometry. Diagrammatic reasoning. Euclidean

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2.3. Práctica matemática y uso de diagramas en los Elementos...40

2.4. Práctica matemática em Zhou Bi y los Nueve capítulos...47

2.4.1 El uso de diagramas y el procedimiento gou gu...51

2.5. Análisis comparativo del uso de diagramas...58

2.6. Conclusiones...63

2.7. Referencias...64

3. Artigo 2: On Euclidean diagrams and geometrical knowledge...67

3.1. Introduction...67

3.2. The Elements and formal reconstructions...70

3.3. Diagrammatic reasoning in the Elements...75

3.4. Cognitive habilities in Euclidean geometry...81

3.5. Final considerations...86

3.6. References...88

4. Artigo 3: On the representational role of Euclidean diagrams: representing qua samples...92

4.1. Introduction...92

4.2. The instantial conception...96

4.3. Macbeth and the structural icons...100

4.4. Euclidean diagrams as samples...107

4.5. The case of Saccheri’s quadrilateral...114

4.6. Conclusion...121

4.7. References ...122

5. Discussão e considerações finais...125

5.1. Da base pré-teórica dos conceitos geométricos euclidianos: notas para investigação futura...129

6. Referências...137

Anexos...142

Anexo 1: Resenha de Lassalle Casanave, Por construção de conceitos: em torno da filosofia kantiana da matemática ...143

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1. INTRODUÇÃO

Esta tese está centrada na investigação do papel dos diagramas nas provas exibidas na geometria plana dos Elementos de Euclides. Nessa prática matemática, alguns passos das provas são justificados a partir das próprias figuras. A legitimidade desse procedimento na justificação matemática foi notoriamente questionada. No final do século XIX, uma concepção negativa sobre o emprego das figuras predominou: deveriam ser banidas pois seriam potencialmente enganosas, podendo levar a resultados falaciosos. Os Elementos não passaram ilesos, e Euclides foi declarado culpado:

The appeal to intuition [understanding as the appeal to visualization] though generally of psychological value, is also a source of danger to the geometer. He is tempted to make assumptions which are accidentally true of the particular figure he is taking as an illustration, but do not follow from his axioms. It has, indeed, been shown that Euclid himself was guilty of this, and consequently that the presence of the figure is essential to some of his proofs. (Ayer, 1971 [1936], p. 83)

Analisamos neste trabalho diferentes aspectos que se relacionam ao tópico central, no intuito de contribuir para uma reavaliação da atitude negativa com respeito ao raciocínio diagramático na matemática, especificamente no caso dos Elementos. Para isso, optamos por desenvolver a investigação em forma de três artigos, seguido de uma seção de discussão e conclusão acerca dos resultados obtidos – conforme o item 5.4 do MDT da UNICAMP. O primeiro artigo desta tese baseia-se em uma colaboração com Manuel Jesus García-Perez (Universidad de Sevilla), que foi aceito para publicação na revista Crítica: revista

Hispanoamericana de Filosofía (UNAM-México). O segundo artigo foi aceito para

publicação na revista Theoria: an International Journal for Theory, History and Foudantions

of Science (Universidad del País Vasco). O terceiro e último artigo que compõe esta tese foi

submetido e encontra-se sob avaliação na revista Logique et Analyse (Vrije Universiteit Brussel). Nesta introdução, apresentamos primeiramente quais as direções tomadas nos artigos e, em seguida, um breve histórico geral dos problemas investigados, situando-os dentro da corrente da Filosofia da Prática Matemática (seção 1.1). Por último, expomos alguns dos fatores relevantes dentro da história e filosofia da matemática que motivaram diversas críticas ao uso de diagramas em provas (seção 1.2).

O primeiro artigo, denominado “Un análisis comparativo del uso de diagramas en dos prácticas matemáticas de la antigüedad”, examina comparativamente o uso de diagramas nas obras chinesas Zhou Bi e Nove Capítulos dos procedimentos matemáticas – que formam parte do cânon da matemática na antiga civilização chinesa – e nos Elementos, de Euclides. Este estudo teve como propósito principal investigar as diferenças entre o uso de diagramas

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correção dos procedimentos apresentados para a solução de problemas matemáticos. Tal função está conectada com a estratégia heurística desenvolvida nessa prática, que consiste em unir problemas matemáticos semelhantes em categorias, formando assim classes de problemas, e apresentar procedimentos de resolução para cada uma das classes de problemas. Já a prática euclidiana, por sua vez, caracteriza-se por seu método dedutivo, no qual os diagramas desempenham um papel essencial na justificação de certos passos das provas. Um segundo propósito dessa análise comparativa foi apresentar indícios para uma reavaliação de afirmações – comuns entre historiadores e matemáticos – de que a matemática presente nas obras chinesas é de menor importância ou uma mera coleção de problemas práticos frente ao corpo teórico de conhecimento matemático desenvolvido na obra de Euclides. Nosso esforço nesse sentido foi salientar que a preocupação com a generalidade dos procedimentos e exatidão nos resultados na prática chinesa, entre outros aspectos, são fatores que devem ser levados em conta na ponderação do conhecimento matemático estabelecido nessa tradição.

No segundo artigo, “On Euclidean diagrams and mathematical knowledge” argumentamos contra a afirmação tradicional de que o uso de diagramas na prática euclidiana consiste em hiatos argumentativos. Mostramos que, no intuito de entender adequadamente essa prática, é necessário considerar as competências e habilidades envolvidas no uso de elementos diagramáticos como base de inferências. Defendemos que, nessa prática, diagramas são ferramentas confiáveis e seu uso é regimentado sendo, portanto, matematicamente legítimos. Na primeira parte do artigo analisamos a afirmação tradicional de que as reconstruções formais de Hilbert da geometria Euclideana são melhoramentos (no sentido de correção de hiatos) da última. A partir da comparação entre os principais aspectos da reconstrução formal de Hilbert e da geometria de Euclides, argumentamos que a primeira não captura aspectos da prática da última, e que trata-se de um mal-entendido avaliar os méritos da prática euclidiana por meio dos méritos de suas contrapartes formalizadas. Na segunda parte do artigo, argumentamos que o raciocínio diagramático na prática de Euclides é controlado e confiável. Por fim, na última parte no artigo, avaliamos alguns resultados recentes da ciência cognitiva sobre a natureza dos processos cognitivos envolvidos no raciocínio diagramático euclidiano e argumentamos que, não só o uso de diagramas é

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estritamente regimentado dentro dessa prática, como também está enraizado em habilidades cognitivas que são universalmente compartilhadas.

No terceiro artigo, “On the representational role of Euclidean diagrams: representing qua samples”, analisamos a natureza semiótica do tipo de representação diagramática encontrada nos Elementos e propomos que diagramas representam como

amostras. Essa proposta foi apresentada inicialmente por Lassalle Casanave (2013) e tem

inspiração goodmaniana (Goodman, 1968). Dito brevemente, uma amostra é um objeto usado para representar paradigmaticamente uma propriedade (ou conjunto de propriedades) que ele mesmo possui. Procuramos desenvolver essa noção conforme sua adequação a três características que julgamos fundamentais na explicação do papel representacional dos diagramas na geometria euclidiana. Os diagramas, embora sejam particulares, são usados na justificação de afirmações gerais. Além disso, exibem as propriedades que são extraídas diretamente deles – característica que, como aclaramos no artigo, não parece estar presente em outros diagramas como os de Euler e de Venn. E, por último, são usados na prática euclidiana somente para justificar um tipo específico de informações – caracterizadas como relações “co-exatas” –, as quais possuem um papel cooperativo com informações textuais no estabelecimento da prova. Essa última característica ilumina o uso de diagramas em provas por reductio. A noção de amostra, argumentamos, adequa-se melhor a essas características do que duas concepções concorrentes, a saber, a concepção instancial e a concepção icônica. Por último, ilustramos algumas virtudes da teoria das amostras com a análise do quadrilátero de Saccheri.

1.1 Formalistas, mavericks e a emergência da Filosofia da Prática Matemática

Ao final do século XIX e em boa parte do século XX, as investigações em Filosofia da Matemática se concentravam predominantemente em questões relacionadas aos compromissos ontológicos na matemática, a natureza dos objetos (supostamente) abstratos que a compõem e sobre os meios epistêmicos que teríamos para acessá-los (problema discutido em dois artigos clássicos de Benacerraf (1965, 1973) que foram muito influentes em sua época (ver Reck & Price, 2000). Estas questões foram a locomotiva principal desta área da filosofia por muitas décadas e guiam vários projetos de pesquisa e investigação

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a metáfora arquitetônica de Ferreirós & Gray (2006, Introdução), a concepção fundacionista caracteriza a matemática como um edifício acabado, cujas fundações e certezas são sólidas e sustentam, fazendo a função de alicerce, todo aquilo que é construído sobre elas. A tendência de grande parte das investigações foi, a partir do enfoque em lógica e teoria dos conjuntos, identificar as fundações de todo o edifício. Como bem resume Ferreirós,

Since twentieth-century philosophy of math was deeply impacted by foundational studies, the traditional way of conceiving the corpus was through different forms of logical reconstruction of mathematical theories, with a special emphasis on axiomatic theories and formal systems. A traditional approach to, e.g., set theory would focus on some axiomatic, formalized version of the theory – say the Zermelo-Fraenkel ZFC axiom system formulated in first-order logic – and ask a series of questions about its ontology and epistemology (e.g., how is it possible for us to come to know the axioms as true? What is the justification for the axioms? Or, to what extent is a certain conceptual account, e.g., the iterative conception of sets, successful in motivating the axiomatic system?). (2016, p. 23)

Não é nosso propósito aqui apresentar cada uma dessas abordagens3, mas sim dirigir nossa

atenção a uma consequência que é, em princípio, decorrente da restrição do foco a investigações sobre problemas fundacionais, a saber, pouca atenção foi direcionada às práticas matemáticas e ao seu papel no estudo filosófico da disciplina. Ferreirós salienta que muitos autores voltaram sua atenção para uma única teoria matemática que pudesse ser suficientemente ampla para abarcar todas as teorias matemáticas atuais. O sistema comumente aceito foi alguma forma da teoria de conjuntos axiomática baseada em lógica clássica.4

De acordo com Mancosu (2008, Introdução), essa ênfase em questões fundacionais engendrou uma concepção muito restrita da epistemologia da matemática. Uma abordagem ‘formalista’ (termo usado por Lakatos (1978)) tornou-se, em meados do século XX, a atitude filosófica predominante nos manuais clássicos e outros escritos em

1 Para abordagens estruturalistas, ver Shapiro (1997), Reskin (1997); para uma apresentação e discussão crítica do nominalismo, ver Burgess & Rosen (1997); sobre o argumento da indispensabilidade, ver, por exemplo, Colyvan (2001); para abordagens neo-logicistas, ver, por exemplo, Hale &Wright (2001); sobre ficcionalismo, ver Field (1981).

2 Para uma discussão das três principais correntes fundacionistas, ver Shapiro (2000); Linnebo (2017).

3 Sobre a chamada ‘crise dos fundamentos’ na matemática, ver Ferreirós (2008) e a Introdução de Ferreirós & Gray (2006). Ver também a primeira parte dessa obra (pp. 45-156) para uma série de ensaios que lançam uma nova luz a desenvolvimentos e reflexões sobre fundamentos da matemática.

4 Segundo Ferreirós, as raízes dessa tradição (para além dos resultados de desenvolvimentos fundacionais) vêm também de uma antiga visão de Matemática como uma Teoria Ideal, fixa e estática, possuindo fundamentos unificados (2016, p. 4).

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matemáticas.5 Nessa abordagem, a matemática é definida como uma ciência de provas

rigorosas, que, por sua vez, são definidas como uma sequência de fórmulas apresentadas em uma estrutura lógico-axiomática, tal que cada uma delas é ou um axioma ou se segue de fórmulas anteriores na sequência via regras de inferência. Em outras palavras, para os formalistas a matemática é a ciência das deduções formais, de axiomas a teoremas.6 Ter uma

estrutura dedutiva – de modo que um conjunto crescente de verdades imutáveis são deduzidas de axiomas e definições – é, portanto, tomado como uma das características fundamentais para uma certa atividade ser considerada matemática (o que Celucci, 2012, chama de ‘concepção dedutivista’ da matemática). Outra afirmação bastante frequente dentro dessa corrente é a de que o uso de figuras ou diagramas é inapropriado como ferramenta de raciocínio ou como base de inferências matemáticas (na seção 1.2 desta introdução trataremos desse tópico). Além disso, algumas questões sobre os componentes de um sistema formal são consideradas como pré-matemáticas e, portanto não interessantes dentro da Filosofia da Matemática. Alguns exemplos são: por que optar por usar uma dada definição e não outra? Porque aqueles axiomas e não outros?7

A investigação das estruturas lógico-formais subjacentes às teorias matemáticas, portanto, tornou-se em grande medida o único tópico de investigação, enquanto outros aspectos epistemológicos relevantes da matemática foram deixados em segundo plano. Dentre eles, questões sobre fecundidade, visualização, raciocínio diagramático, evidência, explicação e entendimento. Mancosu (2008) observa que,

[the philosophy of the natural sciences] has flourished under the combined influence of both general methodology and classical metaphysical questions (realism vs. antirealism, space, time, causation, etc.) interacting with detailed case studies in the special sciences (physics, biology, chemistry, etc.). Revealing case studies have been both historical (studies of Einstein’s relativity, Maxwell’s electromagnetic theory, statistical mechanics, etc.) and contemporary (examinations of the frontiers of quantum field theory, etc.). By contrast, with few exceptions, philosophy of mathematics has developed without the corresponding detailed case studies. (p. 2)

5 Alguns dos exemplos mais importantes do formalismo como estilo na exposição matemática foram os escritos do grupo conhecido como Bourbaki. Sob esse pseudônimo, uma série de textos básicos em Teoria dos Conjuntos, Álgebra e Análise Matemática foi produzida, que tiveram uma grande influência nos anos 1950 e 1960 (ver Bourbaki, 1949).

6 Ver Davis and Hersh (1980), cap. 7; Robinson, A. (1969); Curry (1958).

7 A segunda questão foi tema de investigação de Maddy (1990, 1997) em teoria dos conjuntos, a qual é considerada uma das pioneiras da Filosofia das práticas matemáticas. Seu trabalho se ocupa de questões concernentes a história e prática dessa área, considerando, por exemplo, as discussões de teóricos dos conjuntos sobre qual critério deveria ser usado para adotar ou não princípios tais como a Hipótese do Contínuo.

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reservas quanto à identificação da noção de demonstração matemática com sua capacidade de ser formalmente axiomatizável, afirmando que essa tradição “desliga a história da matemática da filosofia da matemática” (p. 13) e, em uma passagem famosa diz, remetendo-se a Kant, que “a história da matemática, à falta da orientação da filosofia, tornou-se cega, ao passo que a filosofia da matemática, voltando as costas aos fenômenos mais curiosos da história da matemática, tornou-se vazia” (pp. 14-15). Lakatos argumenta que o formalismo acaba deixando de explorar problemas referentes “à matemática não-formal (inhaltliche) e ao seu progresso, e todos os problemas relacionados à lógica situacional da solução de problemas matemáticos” (p. 13). Todo o esforço do autor no restante dessa obra (Provas e Refutações) consiste em ilustrar como esse diagnóstico poderia ser remediado, tratando de problemas relacionados à metodologia da matemática (‘metodologia’ aqui utilizada com um significado análogo à heurística ou lógica do descobrimento). O estudo de caso ao qual se volta o autor diz respeito ao desenvolvimento histórico da fórmula de Euler para poliedros (“V – A + F = 2”, “V” denotando o número de vértices, “A” o número de arestas e “F” o número de faces de um dado poliedro). Vários contraexemplos são apresentados para a fórmula inicial, levando à modificação da definição do próprio conceito de poliedro – já que a fórmula vale para alguns tipos de poliedros, mas não para todos. Desse estudo, Lakatos extrai a lição de que a metodologia da matemática é mais semelhante à das ciências naturais do que parece à primeira vista, e que um dos tópicos centrais que deveria ser discutido é quais os tipos de enunciados que poderiam ser considerados como potencialmente falsificadores de teorias axiomáticas. Lakatos chama essa concepção de “quasi-empirismo”, opondo-se ao dedutivismo em matemática e, afastando-se de uma abordagem apriorista, defende que a matemática se constrói a partir de conjecturas. A abordagem de Lakatos “focou na ‘dialética’ das conjecturas, tentativas de provas, contraexemplos, conceitos refinados, e novas provas” (Ferreirós & Gray, 2006, p. 17).

As considerações de Lakatos influenciaram um movimento dentro da filosofia da matemática com um espírito anti-fundacionista, cujos membros foram chamados, seguindo a

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terminologia de Kitcher, de mavericks (Aspray and Kitcher, 1988).8 Para os mavericks, a

lógica matemática, que havia sido essencial no desenvolvimento de programas fundacionistas, era ineficaz para lidar com questões relacionadas a dinâmicas de descoberta matemática e a história da disciplina. A tradição maverick reage fortemente à Filosofia da Matemática identificada estritamente com a fundação da matemática. O que os membros dessa segunda tradição reivindicam é que a análise da matemática deve ser mais fiel ao seu desenvolvimento histórico. Deve tratar, por exemplo, de questões sobre o crescimento do conhecimento matemático, o progresso e a explicação matemática. Sobre a filosofia da matemática que emerge dos programas fundacionais, Aspray & Kitcher afirmam:

Philosophy of mathematics appears to become a microcosm for the most general and central issues in philosophy—issues in epistemology, metaphysics, and philosophy of language—and the study of those parts of mathematics to which philosophers of mathematics most often attend (logic, set theory, arithmetic) seems designed to test the merits of large philosophical views about the existence of abstract entities or the tenability of a certain picture of human knowledge. There is surely nothing wrong with the pursuit of such investigations, irrelevant though they may be to the concerns of mathematicians and historians of mathematics. Yet it is pertinent to ask whether there are not also other tasks for the philosophy of mathematics, tasks that arise either from the current practice of mathematics or from the history of the subject. A small number of philosophers (including one of us) believe that the answer is yes. Despite large disagreements among the members of this group, proponents of the minority tradition share the view that philosophy of mathematics ought to concern itself with the kinds of issues that occupy those who study the other branches of human knowledge (most obviously the natural sciences). Philosophers should pose such questions as: How does mathematical knowledge grow? What is mathematical progress? What makes some mathematical ideas (or theories) better than others? What is mathematical explanation? (1988, p.17).9

Kitcher é considerado uma figura importante dentro da tradição maverick. Em

The Nature of Mathematical Knowledge (1984), o autor oferece uma abordagem historicista

do crescimento do conhecimento matemático, com estudos sobre a metodologia no desenvolvimento da matemática e dos padrões de mudança entre práticas matemáticas. Kitcher é um dos primeiros a introduzir uma noção de prática matemática, entendida como um quíntuplo composto por uma linguagem, um conjunto de proposições aceitas, um conjunto de formas de raciocínio aceitas, um conjunto de questões selecionadas como relevantes e um conjunto de visões metamatemáticas. Um dos objetivos-chave de Kitcher foi dar conta da racionalidade nas transições entre práticas matemáticas. De acordo com o autor, as mudanças

8 Obras posteriores a Lakatos onde se pode encontrar críticas a abordagens fundacionistas em Filosofia da Matemática são os ensaios presentes em New Directions in the Philosophy of Mathematics (Tymoczko – editor –, 1998 [1986]). No prefácio, Tymoczko escreve que uma das motivações dos contribuintes à obra é a de que eles “‘were frustrated by the inability of traditional philosophical formulations to articulate the actual experience of mathematicians” (p. ix).

9 Para perspectivas similares, provindas de matemáticos e historiadores, ver Davis and Hersh (1980) e Kline (1980).

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matemática foram centrais dentro da abordagem de Kitcher, a qual pretende oferecer uma reconstrução racional da matemática colocando o desenvolvimento histórico da disciplina no centro.10

Em linhas gerais, as principais características presentes na tradição maverick podem ser sintetizadas como: uma atitude anti-fundacionista, alegando que não há fundações certas para a matemática e que ela é falível; um anti-logicismo, ou seja, a ideia de que a lógica não pode fornecer as ferramentas adequadas para uma análise satisfatória da matemática e seu desenvolvimento; e, uma atenção à prática matemática, alegando que somente uma análise detalhada e reconstruções de grandes e significantes partes da prática matemática podem fornecer uma filosofia da matemática suficientemente abrangente (Mancosu, 2008, Introdução). Um traço importante, portanto, dentro das considerações e críticas levantadas por essa tradição, foi chamar atenção à elaboração de uma filosofia da matemática que fosse mais atenta ao desenvolvimento histórico da disciplina.

Nosso intuito até aqui foi destacar alguns pontos relevantes no quadro geral da Filosofia da Matemática que foram preliminares à emergência da Filosofia da Prática Matemática, apresentando alguns exemplos de defensores dentro da tradição principal – fundacionista – onde se situam logicismo, intuicionismo e formalismo com preocupações ontológicas e epistemológicas sobre entidades matemáticas – e dos mavericks, sendo tipicamente anti-fundacionistas e preocupados com questões sobre história, metodologia e padrões de mudança na matemática.11 Como veremos, a seguir, algumas considerações e

10 Em uma perspectiva similar a Lakatos e Kitcher, se situam as contribuições de Corfield (2003) sobre a filosofia do que ele chamou de ‘matemática real’', a qual deveria: “should concern itself with what leading mathematicians of their day have achieved, how their styles of reasoning evolve, how they justify the course along which they steer their programmes, what constitute obstacles to their programmes, how they come to view a domain as worthy of study and how their ideas shape and are shaped by the concerns of physicists and other scientists.” (2003, p. 10). O autor compartilha também da visão crítica acerca da tradição fundacionista em Filosofia da Matemática, pois esta descarta como irrelevantes problemas mais prementes para uma filosofia da matemática ‘real’.

11 Como atenta Ferreirós (2016), embora houve algumas abordagens mistas – o autor cita Cavaillès na França e Bernays na Alemanha nos anos 1930 –, elas permaneceram relativamente não influentes na época.

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reservas apresentadas pelos últimos levaram vários autores recentemente a voltar uma particular atenção para a história e prática das matemáticas.12

Com inspiração em Carter (2017), vamos chamar essa nova escola de

conciliatória, a qual segue, como um princípio geral, o de que “it is not only salutary, but

necessary, to avoid the excessive systematicity and reductionism that was characteristic of much philosophy of science and epistemology” (Ferreirós, 2016, p. 4). Embora grande parte de seus proponentes não compartilhem da forte rejeição a teorias fundacionistas, acreditam que a epistemologia da matemática precisa ser estendida para além da investigação das estruturas lógico-formais subjacentes às teorias matemáticas. Ressaltam que a consideração das práticas matemáticas e a história da disciplina podem prevenir que problemas pertinentes e frutíferos que possam emergir da análise dessas sejam desconsiderados. Como afirma Mancosu (2008), “having ignored them has drastically impoverished analytic philosophy of mathematics” (p. 18). A perspectiva tomada por grande parte dos autores nesse sentido está bem capturada na apresentação de Ferreirós & Gray (2006):

Today one may say that we are in a phase of transition. After a time in which foundationalist and anti-foundationalist understandings fought to fill the space, we have come to understand that the dichotomies too restrictive and ultimately misplaced: to go beyond foundational studies is by no means the same as to go

against them. At the same time, the issue of mathematical practice, which at some

point represented the main divide between alternative views, is now present in all philosophical agendas. (p. 5)

Entre as características centrais da tradição conciliatória, encontra-se um modo mais aberto e interdisciplinar de perguntar e responder questões. Os problemas tradicionais sobre a natureza dos objetos matemáticos e a epistemologia das matemáticas não são ignorados, mas sim combinados com um estudo de uma grande variedade de problemas sobre como a matemática é feita, avaliada e aplicada em conexão com a história da disciplina, os agentes (comunidades) que a desenvolvem e questões cognitivas. São consideradas relevantes as investigações sobre, por exemplo, a conectividade da matemática (em conceitos desenvolvidos em uma parte da matemática que se conectam com conceitos aparentemente não relacionados em outras áreas), a compreensão das provas realizadas por computadores13, o

papel da analogia e raciocínios não-dedutivos e o papel que imagens e diagramas possuem na atividade matemática. Inspirados em Lakatos e Kitcher, muitos pesquisadores passaram a usar

12 Ver, por exemplo, Gillies, 1992; Cellucci, 2002; Krieger, 2003; Ferreirós and Gray, 2006; Mancosu, 2008; van Bendgen, 2014; Ferreirós, 2016; Ferreirós e Lassalle Casanave (eds), 2016. Um levantamento sobre as motivações e os diferentes prospectos dentro da Filosofia da Prática Matemática encontra-se em Carter (2017). 13 Para análises de provas por computadores, especialmente do Teorema das Quatro Cores ver Tymoczko (1979), Secco (2016) e Secco & Pereira (2017).

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estabelecidas, bem como uma série de referências relevantes e exemplos paradigmáticos das análises que foram desenvolvidas nos últimos anos. Para nosso propósito, seguiremos a proposta de categorização de Carter, destacando os âmbitos nos quais os problemas que investigamos em cada um dos artigos se inserem. A autora identifica três tipos de abordagens, as quais muitas vezes se justapõem: histórica, baseada em agentes e epistemológica. Elas diferem com respeito a, por exemplo, “in what aspects of ‘practice’ they consider and so in which assumptions are built in, what the aims are for PMP [Philosophy of Mathematical Practice], and which methods are brought in to study the questions posed” (p. 6).14

Na vertente histórica, ‘prática matemática’ refere-se às várias maneiras que a atividade se desenvolve, seja em um determinado período, seja em relação a como esses resultados têm sido estabelecidos ao longo do tempo. Alguns autores discutem como concepções filosóficas podem moldar a matemática e como o desenvolvimento da matemática em certo período pode dar origem a questões filosóficas. Como um exemplo, Carter cita os trabalhos de Tappenden (2006) sobre as motivações históricas do logicismo de Frege, no qual o autor defende a tese de que essas eram mais filosóficas do que propriamente matemáticas e discute quais eram as exigências de um maior rigor nas últimas – conectando os estudos de Frege com os trabalhos de Riemann sobre geometria, análise e sua interrelação. Estudos de casos históricos podem estar baseados em questões que possuem inclinações filosóficas, tais como em compreender como a noção de generalidade ou simplicidade podem ser concebidas.

14 Ferreirós (2016), apresenta uma análise do conhecimento matemático que justapõe essas três categorias. O autor considera em sua abordagem que há vários níveis de conhecimentos e práticas matemáticas coexistentes historicamente, bem como suas interconexões e “destaca a origem do conhecimento matemático de tipos particulares de interconexões entre recursos cognitivos e práticas culturais, com os agentes no centro, tornando possíveis interações e desenvolvimentos de novas práticas” (p. 3). Com isso, enfatiza que uma análise epistemológica da matemática adequada deve levar em conta os seguintes aspectos: (1) o conhecimento matemático é produzido por comunidades tendo como bases suas habilidades biológicas e cognitivas (onde a última é mediada pela cultura); (2) deve considerar as raízes práticas das matemáticas (em práticas do dia-a-dia, práticas técnicas, práticas matemáticas elas mesmas e as práticas científicas); (3) deve analisar o desenvolvimento histórico da matemática. A partir da consideração do desenvolvimento histórico da disciplina e colocando o papel dos agentes ou comunidades matemáticas no centro da investigação, o autor busca responder a questões epistemológicas tradicionais, como a questão sobre a certeza na matemática. Sobre isso, em linhas muito gerais, a tese defendida pelo autor é a de que há um nível gradativo sobre a certeza na matemática, situando em níveis distintos as certezas básicas da aritmética – as quais são baseadas em atividades de contar – e as concepções (hipotéticas) da matemática avançada (ver sobre isso, 2016, caps. 6 e 7).

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Nesse sentido, pode-se perguntar como uma dada noção foi entendida dentro de uma prática e que lições gerais se pode extrair dos casos de estudo particulares:

A historian could be interested in documenting how a notion such as ‘simplicity’ or ‘generality’ is understood and perhaps used as a guideline for research in a particular period, community, or even by a single mathematician. The philosopher interested in capturing a particular notion could occupy herself with how it is understood in different contexts, with the intent of including possible understandings of it (Carter, 2017, p. 14).

Cremos que o primeiro artigo que compõe esta tese, “Un análisis comparativo del uso de diagramas en dos prácticas matemáticas de la antigüedad”, poderia se situar dentro dessa vertente. Nele, há uma tentativa de compreender:

(1) como duas práticas historicamente importantes fizeram uso de diagramas como ferramentas de raciocínio, seja com papel de justificação no caso euclidiano, seja com papel explicativo, no caso de Liu Hui e Zhao Shuang. Para isso, mapeamos as características gerais de cada uma das práticas seguindo os especialistas e ilustramos com a análise do Teorema de Pitágoras e Procedimento

Gou Gou.

(2) como a noção de generalidade foi concebida na prática chinesa e permeou o estabelecimento de resultados dentro de uma estrutura de organização centrada em categorizar problemas e buscar procedimentos de resolução de classes de problemas – metodologia que se afasta da concepção dedutivista tradicional da atividade matemática.

A partir desse estudo, extraímos algumas lições para a discussão mais geral sobre como a atividade matemática pode possuir estruturas de organização distintas no estabelecimento de resultados gerais e precisos, sugerindo a reavaliação de exigências da concepção dedutivista da atividade matemática – a qual tende a classificar práticas matemáticas que não apresentam uma organização dedutiva como meras curiosidades históricas.

Na segunda vertente, parte-se da premissa de que a investigação filosófica da matemática deve levar em conta os agentes ou matemáticos que desenvolvem a atividade. Embora duas abordagens são citadas nesse âmbito, uma de cunho sociológico e outra de cunho pragmatista, nosso trabalho toma direções mais relacionadas com a segunda. Na primeira abordagem situam-se trabalhos como o de Hersh (1979), no qual o autor defende a

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conhecimento matemático (Carter menciona o trabalho de Wilhelmus, 2007, onde há um estudo realizado a partir de questionários enviados a matemáticos com respeito ao que leva à aceitação da validade de um teorema e, a partir do qual, se mostra que fatores como a reputação do matemático ou a importância do teorema é influente nessa decisão).

Já uma análise pragmatista busca mostrar que, embora o conhecimento matemático seja produto de atividades humanas, não pode ser reduzido a convenções humanas, e rejeita que o conhecimento matemático possa ser estudado somente por métodos sociológicos. Argumenta-se que “at least parts of mathematics are non-arbitrary and that, although mathematics is sometimes based on conventions or hypotheses, mathematical knowledge is still objective” (Carter, 2017, p. 9). Essa vertente tem como um de seus fundadores Peirce que caracterizou a matemática como um raciocínio onde se pode extrair conclusões necessárias a partir de hipóteses formuladas. Nesse sentido também está direcionada a obra de Ferreirós (2016), onde o autor defende, em linhas gerais, que a objetividade matemática não consiste em assumir a existência de um universo de objetos independentes aos quais as teorias matemáticas se referem, e nos quais baseiam as verdades matemáticas, mas sim no fato de que as teorias matemáticas nos forçam a aceitar os resultados de um modo que não podemos evitar sem que tenhamos que revisar fortemente axiomas ou princípios lógicos empregados.15

Entre as contribuições centrais do autor para o tema, está a tese de que há um gradiente entre as certezas básicas da matemática elementar (como a aritmética) e a introdução de hipóteses na matemática avançada (ver nota 14). Sobre as primeiras, o autor

15 O autor chama atenção, por exemplo, para o fato de que alguns Teoremas (que dependem da aceitação do Postulado das Paralelas) são verdadeiros na geometria apresentada nos Elementos mas não em outras geometrias (como a geometria de Riemman, onde tal Postulado não é assumido), embora ambos Teoremas em conjunto não possam ser verdadeiros sobre o espaço. Alguém que aceita os princípios da prática euclidiana, incluído entre eles o postulado das paralelas, é forçado a aceitar as 48 proposições, entre elas, o Teorema I.29 (no qual Euclides prova que a reta que incide sobre retas paralelas forma dois ângulos alternos iguais entre si e o ângulo externo igual ao interno e oposto, e os ângulos internos do mesmo lado iguais a dois retos). Já em geometrias não-euclidianas, como a de Lobachevsky, que não aceitam tal postulado, essa proposição não é válida. Outro exemplo interessante que o autor menciona é o do Teorema da não-enumerabilidade do conjunto dos números reais de Cantor. Esse é um resultado objetivo no sentido defendido pelo autor, já que, aceitando o conjunto de números reais e naturais, somos forçados a aceitar esse resultado. No entanto, alguém poderia não aceitá-lo – como é o caso de Brouwer – através da rejeição de axiomas das matemáticas modernas e alguns de seus princípios lógicos.

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defende seu caráter não hipotético, mostrando que estão ligadas cognitivamente com outras práticas não matemáticas – como práticas técnicas de medir e contar:

The hypothetical conception does not entail that all of mathematics is of the same character. One could certainly argue that some parts of the theoretical body (say parts of elementary geometry) enjoy a special non-hypothetical status. A rather obvious candidate for certainty is the theory of natural numbers, as embodied in the first-order Peano–Dedekind axioms, when presented in a way that avoids commitment to actual infinity; one can argue then that the Peano–Dedekind axioms are true of counting numbers (see Chapter 7). This means that one can avoid apriorisms even here, adopting an argument in line with the cognitive, historical, pragmatist approach we are advocating. (p. 156)

Sobre as segundas, a certeza que se pode obter delas possui um caráter hipotético, elas formam parte constitutiva de sistemas matemáticos e são verdadeiras dentro desses sistemas – mas podem não ser fora deles (ver nota 15). No entanto, o autor defende, a partir do estudo de diversos casos históricos, que embora possa ocorrer a introdução, rejeição ou formulação de novas hipóteses matemáticas, não são feitas de maneira arbitrária, mas fortemente restringidas a partir de resultados matemáticos prévios e sua integração ou interconexão com outras práticas matemáticas. Entre os exemplos discutidos, está o do Axioma da Escolha em teoria dos conjuntos, em que o autor mostra que optar pela aceitação ou rejeição desse princípio traz consequências para outras áreas da matemática como, por exemplo, a Análise.

É comum, na vertente pragmatista, considerar estudos empíricos provindos das ciências cognitivas sobre como algumas características da cognição humana básica podem estar entre as raízes da formação de certos conceitos ou teorias matemáticas. Sobre esse tema, diversos ensaios podem ser encontrados na edição especial “From Basic Cognition to mathematical practice” da revista Theoria: an international journal of theory, history and

foundations of science (de Paz & Ferreirós, 2018). Nesse sentido, também pode-se citar como

exemplo os estudos de Giaquinto (2007) sobre o funcionamento do sistema visual humano e sua relação com a formação de conceitos sobre formas geométricas.

Cremos que o segundo artigo que compõe esta tese encontra seu lugar dentro da vertente de análise pragmatista baseada em agentes – embora também possua aspectos das outras duas vertentes. Na primeira parte de “On the Euclidean diagrams and the geometrical knowledge”, buscamos argumentar que os méritos da prática presente na geometria Euclidiana deve ser avaliada a partir dos objetivos e ferramentas de raciocínio desenvolvidos na mesma e colocamos, como centro de nossa análise, a investigação das habilidades dos agentes empregadas no uso controlado e regimentado dos diagramas. Entre elas, está a de saber construir diagramas adequadamente – a partir da correta aplicação dos postulados – e a de empregá-los como fonte de um tipo específico de informação nas provas – aspectos

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co-Por fim, a vertente epistemológica caracteriza-se principalmente pela busca de respostas para questões tradicionais dentro da Filosofia da Matemática, tais como sobre a natureza dos objetos matemáticos e como os conhecemos, mas colocando análise de práticas matemáticas e casos de estudo como parte central da metodologia empregada para responder tais questões. Além disso, uma extensão de tópicos é adicionada às questões tradicionais tais como a explicação matemática, representação diagramática, entendimento, fecundidade e o papel da visualização na justificação e descoberta matemática.

Cremos que o terceiro artigo que compõe esta tese, “On the representational role of Euclidean diagrams: representing qua samples’’, embora possua aspectos que podem ser situados nas três vertentes, pode ser encaixado como um estudo dentro da vertente epistemológica, já que apresenta uma discussão sobre a natureza da representação diagramática em Euclides e como essa ferramenta colabora para a obtenção do conhecimento geométrico. Embora no segundo artigo já buscávamos apresentar quais são os usos legítimos da informação diagramática nas provas, nesse artigo buscamos estender essa análise a uma investigação sobre como o diagrama enquanto signo representa tais informações. A prática euclidiana é situada ao centro de nossa análise, uma vez que a teoria que buscamos é motivada pela sua adequação a três características fundamentais do uso de diagramas nessa prática: a generalidade dos resultados, seu uso em provas por reductio e a de que os diagramas exibem as propriedades que são extraídas e empregadas na justificação de certos passos das provas.

Assim, ainda que em cada artigo são salientados aspectos distintos, a unidade de nosso estudo se dá por seu objeto principal, a saber, o raciocínio diagramático, especialmente como foi desenvolvido e empregado na prática euclidiana. Na próxima seção, apresentaremos alguns tópicos que consideramos relevantes dentro da discussão específica sobre os diagramas euclidianos.

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Ao final do século XIX o uso de diagramas na justificação matemática foi, de maneira geral, considerado não-rigoroso e alheio ao conceito de prova. Como mencionamos na seção anterior, o conceito de prova foi identificado com derivações em um sistema formal. Uma expressão dessa concepção é exemplificada nos escritos do notório grupo Bourbaki (1950): “every mathematical theory is a concatenation of propositions, each one derived from the preceding ones in conformity with the [formal] rules of a logical system” (p. 223). Isso envolve, afirma Dieudonné (um dos membros de Bourbaki) “abstaining from introducing any diagram in the book” (Dieudonné 1969, p. ix). Uma vez que diagramas desempenham um papel essencial nas provas euclidianas, a atitude desse grupo quanto à geometria dos

Elementos era fortemente crítica, expressa inclusive sob forma de um manifesto: “Euclid must

go!” (Dieudonné 1961, p. 35).

Outras afirmações emblemáticas dessa perspectiva podem ser encontradas em Russell (1901), que rejeita qualquer papel epistêmico relevante para diagramas na geometria: “formerly, it was held by philosophers and mathematicians alike that the proofs in Geometry depended on the figure; nowadays, this is known to be false. In the best books there are no figures at all. The reasoning proceeds by the strict rules of formal logic from a set of axioms laid down to begin with”(p. 93). Em Russel (1919, pp. 145-146) encontramos observações críticas sobre a concepção da matemática de Kant, dizendo que o último, por ver que os matemáticos de seu tempo não conseguiam provar teoremas sem apelo a figuras, inventou uma teoria de acordo com a qual a matemática sempre requer o apoio da intuição. O apelo à intuição, manifesta o autor, é um sinal de que a prova é defeituosa. Especificamente sobre a geometria euclidiana, sublinha:

It is perfectly true, for example, that anyone who attempts, without the use of the figure, to deduce Euclid’s seventh proposition from Euclid’s axioms, will find the task impossible; and there probably did not exist, in the eighteenth century, any single logically correct piece of mathematical reasoning, that is to say, any reasoning which correctly deduced its result from the explicit premisses laid down by the author. Since the correctness of the result seemed indubitable, it was natural to suppose that mathematical proof is something different from logical proof. But the fact is, that the whole difference lay in the fact that mathematical proofs were simply unsound. (1903, p. 457)

Diversos filósofos e matemáticos se posicionaram de modo semelhante – outras referências como Pasch, Dedekind, Hilbert, Tennant, Borrow, podem ser encontradas na Introdução do segundo artigo (seção 2.1) – dos quais destacamos também a posição de Klein, que chama atenção ao perigo das falácias diagramáticas, o qual discutiremos nessa seção com algum detalhe: “there is real danger that a pupil of Euclid may, because of a falsely drawn figure,

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de tais teorias formalizadas – com inspiração em Lassalle Casanave (2019), apresentamos uma discussão sobre a identificação do conceito de prova com prova formal, bem como um questionamento sobre a avaliação das demonstrações euclidianas pelas lentes dessa concepção na seção 3.2 do segundo artigo que compõe esta tese. A seguinte avaliação de Norman (2003) sobre esse ponto nos parece acertada: “The study of strictly formal derivation systems as representations of systems of proof in various bodies of mathematics led directly to a widespread emphasis on such formal derivations as paradigms of proofs. From this formalistic perspective, the suggestion that the diagram has epistemic value is akin to a category mistake.” (p. 83). As figuras poderiam ser vistas como psicologicamente úteis, com utilidade pedagógica ou mesmo charmosas, mas não como recurso de justificação. Em Visual

thinking in mathematics – uma das principais obras recentes sobre o raciocínio visual na

matemática –, Giaquinto resume a visão predominante sobre o uso de diagramas destacando esses pontos:

[…] a time-honoured view, still prevalent, is that the utility of visual thinking in mathematics is only psychological, not epistemological. Visual images or diagrams may illustrate cases of a definition, thereby giving us a more vivid grasp of its applications; they may help us understand the description of a mathematical situation or the steps in some reasoning given sentence by sentence; they may suggest a proposition for investigation or an idea for a proof. Thus visual representations have a facilitating role. But that is all, on the prevalent view. They cannot be a resource for discovery, justification, proof, or any other way of adding epistemic value to our mathematical capital—or so it is held.. (Giaquinto, 2007, p. 1)

Casos frequentemente citados dentro da literatura como razão para a suspeita do uso de diagramas pertencem à Análise. Um dos principais contraexemplos ao uso de intuições espaciais ou geométricas como confiáveis nesse ramo das matemáticas é o de funções contínuas não diferenciáveis em nenhum ponto. Como afirma Hahn (1933), “it was therefore a great surprise when Weierstrass announced the existence of a curve that lacked a precise slope or tangent at any point” (p. 82). Tais funções desafiam a possibilidade de representá-las graficamente. Como sugere Giaquinto (2011, p. 299), o caráter peculiar dessas curvas pode ser descrito intuitivamente da seguinte maneira: imagine uma curva gráfica com picos e vales bem definidos; agora imagine que, não obstante a aparência de que estes picos e

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vales são separados por áreas lisas da curva, ao fazer um zoom (magnificar, ampliar, ver por meio de uma lupa) nessas áreas aparentemente lisas, descobrimos que elas mesmas são constituídas por picos e vales ainda menores. Isto é, ao, observar uma área da curva aparentemente lisa mais de perto, descobrimos que, na verdade, ela é composta de picos e vales assim como a curva em sua dimensão original. Agora, imagine que este resultado se repita infinitamente, isto é, que todas as subsequentes aproximações mostrem que todas as áreas aparentemente lisas dessa curva sejam elas mesmas compostas de mais picos e vales. Assim deveria ser a curva gráfica que corretamente representasse uma função tal como a função de Weierstrass, que é contínua porém não diferenciável em nenhum ponto. Em outras palavras, a curva gráfica de tal função deveria consistir apenas de picos e vales sem nenhuma área lisa conectando-os. Tal curva é, como conclui Giaquinto, não-visualizável.16

Outro caso que reforçou a suspeita ao valor epistêmico dos diagramas foi o das curvas de preenchimento de espaço introduzidas por Peano. O autor mostrou que é possível definir uma curva que preenche completamente uma região bidimensional, onde uma curva é qualquer conjunto de pontos em que o intervalo unitário dos números reais [0,1] pode ser continuamente mapeado. Isso é contraintuitivo, pois uma curva com pontos finais pareceria ser uma figura com comprimento, mas não área. Tais curvas envolvem situações que parecem não ser representáveis visualmente. De fato, apesar de ser comum usar diagramas para dar uma ideia geral de como curvas de preenchimento de espaço são geradas, esses diagramas possuem apenas um papel pedagógico, auxiliando a entender o processo por meio do qual uma curva conseguiria – se o raciocínio se prolongasse infinitamente – preencher uma área bi-dimensional (ver Hahn, 1933 pp.85-88). Uma prova da existência dessas curvas, por outro lado, não pode depender de sua representabilidade gráfica. Assim como no caso das funções contínuas não diferenciáveis em nenhum ponto, curvas de preenchimento de espaço requerem menção ao infinito; nisso poderia residir a limitação do uso de diagramas. De qualquer maneira, esses dois casos específicos em Análise parecem mostrar que existem objetos matemáticos que não podem ser investigados por meio de raciocínio diagramático.

16 Sobre esse desafio à confiabilidade do pensamento visual, ver a análise de Giaquinto (2011). O autor apresenta uma defesa de inferências diagramáticas nos casos presentes na geometria euclidiana e uma rejeição de que o mesmo tipo de inferência poderia ser feita no caso das funções contínuas, avançando a tese de que, uma vez que o domínio de objetos tratados é muito distinto, é possível que em um domínio o diagrama seja suficientemente seguro como base de inferência e em outro domínio não. Um dos pontos ao qual o autor chama a atenção, é a homogeneidade e heterogeneidade dos domínios de generalização. Em geometria euclidiana, círculos que se cruzam um ao centro do outro formam uma classe muito homogênea em suas propriedades geométricas. Já as funções contínuas no intervalo dos reais são muito heterogêneas (algumas têm curvas simples visualizáveis, outras não e outras nem tem curvas. Sendo assim, generalizar de um diagrama de uma simples curva cruzando uma linha horizontal no último caso não é seguro. Na seção 5, “Discussão e considerações finais”, desta tese apresentamos algumas ideias para investigação futura sobre a natureza cognitiva dos objetos da geometria euclidiana que tomam, em certa medida, direções próximas às de Giaquinto.

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AB é igual a AC (Fig 1). A construção percorre os seguintes passos: deixe o bisector interno do ângulo A encontrar o bisector perpendicular de BC em O. Trace OD, OQ, OR perpendicular a BC, CA, AB, respectivamente. Seguiremos a exposição de Norman (2003) da demonstração: DO é igual a DO [por auto-identidade de DO], DB é igual a DC [pela bisecção de BC], o ângulo <ODB é igual ao ângulo <ODC [congruência lado-ângulo-lado], logo OB=OC. AO é igual a AO [auto-identidade de AO], o ângulo <RAO é igual ao ângulo <QAO [pela bisecção do ângulo BAC], o ângulo ARO é igual ao ângulo AQO [pois OR é perpendicular à AB, e OQ à AC]. Logo, o triângulo ARO é igual ao triângulo AQO, AR igual à AQ, OR igual à OQ. Então, nos triângulos OBR, OCQ, o ângulo ORB é igual ao ângulo OQC [pois OR é perpendicular à AB, OQ à AC], o triângulo ORB é equivalente ao triângulo OQC [pois são triângulos-retângulos com lados e hipotenusas iguais], RB é igual à QC. Finalmente, AB é igual à soma de AR e RB [por inspeção de AB no diagrama], AB é igual à soma de AQ e QC [se segue de AR ser igual à AQ, RB igual à QC e AB ser igual à soma de AQ e QC] e AB é igual a AC [se segue do passo anterior e inspeção de AC]. Logo, para todo triângulo, conclui-se que dois de seus lados são iguais e é, portanto, isósceles.

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Uma vez descrito um número de episódios que foram associados, ao menos em parte, à desconfiança do raciocínio diagramático em Euclides, façamos algumas considerações iniciais sobre os mesmos, começando pelo último. Algumas análises recentes mostram que o sucesso da falácia descrita depende de um fator crucial, a saber, tomar a configuração diagramática como construída na Fig 1 e deixar de analisar outras configurações compatíveis com a instrução textual da exposição da proposição. Isto é, na “prova” da falácia, geralmente é apresentada uma configuração onde o ponto O – intersecção do bisector do ângulo A e o bisector perpendicular de BC – cai dentro do triângulo ABC (Fig 1). Porém, configurações em que esse ponto cai em cima da linha BC ou em que ele cai fora do triângulo ABC são igualmente possíveis. Nessas últimas configurações (Fig. 2), o sucesso da falácia cai por terra: os passos ‘AB é igual à soma de AR e RB’ e ‘AB é igual a AC’ já não são assegurados (para mais detalhes da falácia e suas configurações distintas permitidas, das quais uma resulta na refutação da prova, ver Manders, 2008b, pp.94-96; Norman, 2003, pp.2-7).

Fig 2. Figura extraída de Norman (2003, p. 5)

O estudo minucioso de autores como Manders sobre o raciocínio diagramático na geometria euclidiana – o qual nos dedicamos a apresentar em diversos momentos ao longo dos três artigos –, nos ajuda a compreender tais falácias e reconsiderar seu impacto. Sua análise nos ensina que, uma vez que os requisitos para a manipulação cuidadosa dos diagramas em Euclides são conhecidos – em outros termos, as competências envolvidas são aprendidas –, não há razão para pensar que as figuras nos colocam em constante perigo de cometer falácias. Pelo nome de disciplina diagramática, o autor refere-se aos requisitos para o uso legítimo de diagramas, sendo um deles o de que, quando há provas cujas configurações diagramáticas poderiam possuir variantes, deve-se inspecionar o diagrama a partir da análise

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descrita acima não passariam despercebidas dentro da prática euclidiana. Nessa direção vão também seguintes observações de Norman (2003):

[...] it is wrong to infer from this clear and correctable misrepresentation that diagrams in Euclid are generally misleading. Although diagrams in Euclid may and do sometimes need careful handling, this objection in itself offers no reason to think either that they are misleading to a suitably competent practitioner, or that reasoning with diagrams of the kind(s) we find in Euclid is generally fallacious (p. 7).

Sobre os dois primeiros exemplos que apontamos, nos parece oportuna a seguinte pergunta: eles mostram que raciocínios diagramáticos não podem ser confiáveis em nenhuma circunstância, ou simplesmente atentam ao fato de que há limites na utilização desse tipo de raciocínio? Apesar dessas observações feitas no domínio de Análise serem corretas, são pertinentes as reservas feitas por Manders e Giaquinto sobre seu alcance. Como afirma o primeiro, “the mere existence of diagrammatically intractable geometricals, such as space-filling curves or general Riemannian geometries, fails to count against the justificational adequacy of traditional diagram-based reasoning that does not purport to deal with them” (p. 66). A existência de diferentes formas de raciocínio geométrico não implica na rejeição da adequação do uso de diagramas para todas elas (ver Giaquinto, 2011).

Coloquemos a questão de outra forma. Digamos que a rejeição ao uso de raciocínio visuoespacial, juntamente com a visão de que se trata constantemente de um raciocínio não rigoroso, seja correta. Nesse caso, outras questões interessantes devem ser respondidas, tais como: como pode ser que práticas matemáticas que possuem um uso pervasivo desse tipo de ferramenta de raciocínio não incorreram em erros? Como conhecimento foi obtido desse modo? Como poderíamos entender o fato de que o conhecimento matemático produzido em séculos passados são resultados estáveis, embora façam uso desse meio de raciocínio que não corresponde a requerimentos básicos de rigor impostos hoje em dia?

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