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Labirintos autobiográficos: Lygia Clark e Hélio Oiticica

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Academic year: 2021

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LABIRINTOS AUTOBIOGRÁFICOS: LYGIA CLARK E HÉLIO OITICICA

Dissertação apresentada ao Curso de Pós-graduação em Literatura, no Centro de Comunicação e Expressão, área de concentração em Teoria Literária, linha de pesquisa Teoria da Modernidade, da Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Literatura.

Orientador: Prof. Dr. Jorge Wolff.

Florianópolis 2015

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Para minha avó Marlene. in memoriam

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Ao querido professor e orientador, Joca Wolff, pela orientação, pela paciência, pelo acolhimento, pelas aulas e por caminhar junto durante todo esse processo de Mestrado.

Aos professores que participaram da Banca de Qualificação, Byron Vélez Escallón e Susana Scramim, agradeço muito pela troca, pelas conversas, pela generosidade e pela atenção com que leram o meu texto e por me apontarem novos caminhos e possibilidades para que eu pudesse me perder ainda mais nesses labirintos da leitura e da escrita. A cada um dos professores da Banca, por terem aceitado o convite. Ao Programa de Pós-Graduação em Literatura da UFSC, pela oportunidade de aulas inspiradoras. Ao CNPq, pelos dois anos de bolsa de pesquisa.

Agradeço especialmente à minha mãe, Márcia, por todo o apoio, a amizade, as palavras de carinho e conforto e por nunca ter deixado de acreditar. Ao meu irmão Roberto pela ajuda e pelos momentos de risadas e de descontração.

Aos amigos que conseguem se fazer presentes em todos os momentos: Luisa, Marcos, Paula e Patrícia.

Aos amigos de São Paulo, amizades felizes e inesperadas que também ajudaram a construir este texto: Cauê Cardoso e Ilda Trigo.

Ao queridíssimo amigo Gustavo Ramos, pela companhia sempre agradável nos labirintos da Universidade, pelo apoio, pelo companheirismo e pelas trocas constantes.

E, finalmente, ao meu grande amor, Ricardo, por ter me ensinado tanto, e por continuar sempre ao meu lado, fazendo com que seja possível a deliciosa experiência de viver junto.

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Os buracos do corpo (da palavra) viabilizam a saída dos excrementos que constituem o solo concreto da realização erótica. Do pênis saem o mijo e o esperma: eis também a condição ambígua da palavra viva: da boca saem as palavras e o cuspe que lubrifica; Excremento e palavra-social vivem do mesmo manancial corpóreo. O corpo é útil como a máquina não o é, porque ele é o lugar da Vida que renasce a cada minuto e da Palavra que a celebra. A palavra se cola à vida e à ação. A grafia porosa é a representação mais audaciosa de um corpo que é excremento, esperma e palavra, que é vida e celebração da vida que é busca e entrega sem limites. Drama e linguagem se casam [...] como ações identicas. Escrevivendo [...]. repousa no poro do corpo: merda e palavra. Uma grafia ficcional porosa que, pelo seu angustioso percurso [...] e pelo seu borbulhar anárquico-religioso, pode lembrar uma escrita surrealista.

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Com este trabalho de dissertação de Mestrado pretendemos mergulhar no imenso arquivo de cartas e escritos de artista de Hélio Oiticica e Lygia Clark, e também em trabalhos artísticos e proposições de vivências que ambos compuseram, inventaram e criaram entre 1950 e 1980. Para isso, buscamos criar modos de leitura desse arquivo que possam fazer aparecer os vestígios, as marcas e os rastros pulsionais que estes artistas deixaram em suas obras e, também, que suas obras deixaram nestes artistas. A amizade de Hélio e Lygia, devido à distância geográfica entre os dois, foi estabelecida principalmente por meio da correspondência epistolar, e poderia ser aqui definida tal qual um afeto como pensamento – pensamento no sentido que quer Deleuze, quando diz que pensar é sempre experimentar e não interpretar, “e a experimentação é sempre o atual, o nascente, o novo”; mas também no sentido de Jean-Luc Nancy, quando diz que “corpo e pensamento são um mútuo tocar-se”. Os corpos e pensamentos de Hélio e Lygia tocam-se por meio da linguagem, tocam-tocam-se, contaminam-tocam-se, mas não tocam-se confundem. Assim, seus corpos e seus pensamentos, entrelaçados, devoradores e devorados, não são mais que o toque de um no outro, o toque da distância de um em relação ao outro e de um no interior do outro. As escritas de Hélio e Lygia operavam uma espécie de justaposição de textos por técnicas de montagem e de multiplicação que nos revela as contaminações mútuas entre as criações, as teorias e as críticas, apontando para a escrita a partir da leitura; por isso, nessas escritas, podemos entreouvir múltiplas vozes que nelas ecoam. Suas escritas de si são vistas, então, como experiência, e suas vidas são aqui tratadas como vidas vividas pela experimentação. Desse modo, podemos encontrar, em suas escritas e vivências, singularidades que ligam-se umas às outras e que estão sempre produzindo diferenças. A busca desses vestígios no corpus de Hélio e Lygia se faz por um percurso não linear, sem lógica de entrada nem de saída, sem busca por origem, como em uma espécie de labirinto. Os labirintos autobiográficos de Lygia e Hélio seriam feitos de múltiplos, contínuos e descontínuos caminhos que estão sempre a se construir e se desconstruir. Seus escritos foram compostos por meio de tensões que operariam nas bordas e nos limites do corpo e da linguagem; sustentadas também no limite entre realidade e ficção. Suas práticas artísticas também operavam tensões ao se abrirem para o público participador e ao se deixarem ser atravessadas pelo que é exterior, por isso, suas vidas e suas obras estão fortemente permeadas pelas relações entre arte e experiência. Para percorrer esses labirintos,

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nos valemos do método otobiográfico que Derrida postula a partir de Nietzsche, com o objetivo de buscar a vida, seus rastros e vestígios nesse arquivo, e não de atribuir sentidos ou significados para suas vidas-obras. Hélio e Lygia, por meio das leituras-escrita e das escritas-leitura das cartas trocadas entre eles, se colocaram à escuta um do outro, mostrando-se sempre como um ser ainda por vir, em constante processo de construção de um si mesmo; e por isso nunca acabados, permanecendo como fragmentos caminhando no labirinto de um programa in progress.

Palavras-chave: Hélio Oiticica. Lygia Clark. Cartas. Otobiografia. Corpo. Labirinto.

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With this dissertation we intend to delve into the immense archive of letters and artist writings of Hélio Oiticica and Lygia Clark, and also artwork and proposals of experiences they both made up, invented and created between 1950 and 1980. To this end, we seek to create reading techniques for these files that can bring up the traces, marks and instinctual traces these artists left in their works and also that their works have left in them. The friendship of Hélio and Lygia, due to the geographical distance between the two of them was established mainly through written correspondence, and could be defined here as is an affection as thinking - thinking in the sense that Deleuze means when he says that thinking is always experimenting and not interpreting, “to think is to experiment, but experimentation is always that which is in the process of coming about.”; but also meaning what Jean-Luc Nancy says, that “body and mind are a mutual touching.” The bodies and thoughts of Hélio and Lygia touch each other through language, they touch, contaminate eather other, but they don't get mixed up. Thus, their bodies and their thoughts, entangled, devouring and devoured, are nothing more than one touching another, the touching of the distance relative to each other and of one inside the other. The writings of Hélio and Lygia operated a kind of juxtaposition of texts by assembly techniques and multiplying that reveals the mutual contamination between creations, theories and criticism, pointing to writing from reading; that is why in these writings we can overhear multiple voices echoing. His writings of himself are seen, then, as experience, and their lives are treated here as lives lived by experimentation. Thus, we can find in their writings and experiences, singularities that bind to each other and are always producing differences. The search for these traces on Hélio and Lygia’s corpus is made on a non-linear path without input or output logic, without a search for origin, as in some kind of a maze. The autobiographical mazes of Lygia and Hélio would be made of multiple continuous and discontinuous paths which are always building and deconstructing. Their writings were composed by impasses operating at the edges and boundaries of body and language; also held at the boundary between reality and fiction. Their artistic practices also operated tensions when they opened to the participanting public and when they let themselves be crossed by what is outside, that is why their lives and works are strongly permeated by the relations between art and experience. To cross these labyrinths, we make use of the otobiographical method that Derrida postulates from Nietzsche, in order

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to seek their life, tracks and traces in this work, and not to attribute meanings to their lives-works. Hélio and Lygia, through the reading-writing and reading-writing-reading of the letters exchanged between them, placed themselves listening to each other, showing themselves as a being yet to come, in a constant process of creating themselves; and therefore never finished, remaining as fragments caminhando in the labyrinth of a programa in progress.

Keywords: Hélio Oiticica. Lygia Clark. Letters. Otobiography.

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1 Travessias...27

2 Escritas-leituras de si, escritas-leituras do outro...83

3 Labirintos anti-auto-oto-biográficos...99

4 Corpos e corpus e(x)scritos...121

4.1 Lygia Clark: breviário sobre o(s) corpus...124

4.2 Hélio Oiticica: blocos experiência...143

4.3 Entre a violência e a intimidade; entre a identificação e a alteridade...163

5 À escuta ou diálogo de mãos...183

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Considerações Iniciais

A curiosidade acerca da vida dos artistas fora dos palcos, das exposições e de suas obras sempre esteve presente no imaginário de admiradores, embora algumas correntes literárias e críticas nem sempre tenham dado valor a esse espaço biográfico1 dos artistas, considerando-o um lugar “vaziconsiderando-o” para a análise. Dconsiderando-o mesmconsiderando-o mconsiderando-odconsiderando-o, dconsiderando-ocumentconsiderando-os ligados à vida artística, como correspondências, entrevistas, fotografias, diários íntimos e outros, escritos pelos próprios artistas foram, ao longo da história da arte e da literatura, considerados como documentos menores, também lugares vazios para a análise estética e literária. Mas isso não quer dizer que os chamados escritos de artistas não tenham sido produzidos desde o século XV, quando ocorreu a mudança semântica do título de artista, que passou de “pintor” a “artista” – assim como “artesanato” passou a ser “belas-artes” –, o que provocou tanto sua apreciação na esfera pública quanto sua crescente intelectualização,

1

A expressão espaço biográfico remete a Philippe Lejeune e seu conceito de

pacto autobiográfico (1980). Entretanto, a ideia de pacto não nos serve aqui por

diversos motivos que, esperamos, ficarão claros ao longo do trabaho. A ideia desse espaço que será levada em conta neste trabalho é a de Leonor Arfuch, desenvolvida no livro O espaço biográfico: Dilemas da subjetividade contemporânea, publicado em Buenos Aires em 2002 e, no Brasil, com tradução de Paloma Vidal, em 2010. Diz Arfuch na apresentação do livro: “Biografias, autobiografias, confissões, memórias, diários íntimos, correspondências dão conta, há pouco mais de dois séculos, dessa obsessão por deixar impressões, rastros, inscrições, dessa ênfase na singularidade que é ao mesmo tempo busca de transcendência. [...] Os métodos biográficos, os relatos de vida, as entrevistas em profundidade delineiam um território bem reconhecível, uma cartografia da trajetória individual sempre em busca de seus acentos coletivos (p. 15).” Para a autora, a multiplicidade de ocorrências desse método expressa uma tonalidade particular da subjetividade contemporânea. Em seu trabalho, Arfuch investiga o que constituiria a ordem do relato da vida e suas criações narrativas: a ideia de passar a limpo a própria história, que nunca cessa de se contar. “Privilegiei para isso a trama da intertextualidade [...]; a recorrência antes da singularidade; a heterogeneidade e a hibridização em vez da ‘pureza’ genérica; o deslocamento e a migrância em vez das fronteiras estritas; em última instância, a consideração de um espaço autobiográfico como horizonte de inteligibilidade e não como mera somatória de gêneros já conformados em outro lugar (p. 16).” Assim considerado, é a partir desse espaço biográfico que as leituras serão aqui propostas.

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criando, então, uma espécie de mito em volta da figura do artista2 e provocando a grande curiosidade do público sobre suas vidas privadas. Glória Ferreira (2009), na apresentação do livro Escritos de artistas: anos 60/70, mostra a importância que esses escritos teriam para a história da arte e diz que cada período histórico produz diferentes tipos de escrita de artista de acordo com a noção de arte historicamente determinada, o que seria revelador “tanto das condições socioculturais do artista quanto das transformações de linguagem, apresentando modos diversos da sua inscrição na história da arte.”3

No Brasil, nas primeiras décadas do século XX, os modernistas utilizaram principalmente a escritura de manifestos – provavelmente como um resultado da tomada coletiva de posição – como forma de estabelecer uma relação entre a teoria e a práxis, e através desses textos-manifestos pôde defender a autenticidade, isto é, afirmar os valores estéticos daquele momento artístico. São dessa época os Manifesto da Poesia Pau-Brasil (1924) e o Manifesto Antropófago (1928), de Oswald de Andrade, e também a Revista de Antropofagia, que, editada pelos próprios artistas participantes do movimento, dava espaço para textos teóricos que esclareciam as propostas do Modernismo. Nos anos 1950 e 1960, os manifestos, os jornais e as revistas literárias editadas pelos artistas e os textos teóricos acerca de suas produções também tiveram seu lugar nas vanguardas da poesia concreta – como, por exemplo, com o Plano-Piloto para Poesia Concreta (1958) e a revista Noigandres, de Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari –, e, posteriormente, no neoconcretismo – Teoria do Não-Objeto (1960), de Ferreira Gullar e Manifesto Neoconcreto (1959). Sobre os manifestos, que seriam responsáveis por formular os devires e as mudanças da arte, Glória Ferreira argumenta:

O texto-manifesto, na palavra de ordem construtivista ou na suposta negatividade dadaísta, se faz presente tanto na busca mais essencialista do que seria a arte quanto no compromisso direto com a produção. Torna-se, de certa maneira, um bastião teórico da vanguarda histórica de defesa em relação à incompreensão do público, assim como de resistência à interferência das instituições

2

Mito que, como veremos ao longo deste trabalho, Lygia Clark e Hélio Oiticica tentam desfazer ao desestetizar o domínio artístico, priorizando estetizar o espaço e a experiência cotidiana.

3

FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília (orgs.). “Apresentação.” In: Escritos

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culturais nos caminhos que a arte deveria trilhar e ao papel a que a sociedade pretendia reduzi-la.4 Nos anos 1960 e 1970, décadas em que Lygia Clark e Hélio Oiticica participaram ativamente das mudanças no mundo das artes no Brasil e no mundo, a tomada da palavra pelo artista torna-se cada vez mais uma reflexão teórica acerca de seus trabalhos e dos trabalhos de seus colegas. Assim, esses textos em primeira pessoa ingressam progressivamente no domínio discursivo que antes pertencia à crítica e à história da arte, o que caracterizaria uma tensão em relação à suposta autonomia da crítica por parte da obra e do artista, causando acirrados debates sobre a crítica de arte, seus critérios e suas relações com as produções artísticas contemporâneas. Com a fala sobre as produções artísticas na primeira pessoa e dirigindo-se ao público em geral, a autoridade sobre texto e obra proviria, então, do que o artista faz e não do valor definido pela crítica. Ainda segundo Glória Ferreira:

A reflexão teórica, em suas diversas formas, torna-se, a partir dos anos 60, um novo instrumento interdependente à gênese da obra, estabelecendo uma outra complexidade entre a produção artística, a crítica, a teoria e a história da arte. Diferentes dos manifestos, esses textos não mais visam estabelecer os princípios de um futuro utópico, mas focalizam os problemas correntes da própria produção [...] indicam uma mudança radical tanto pelo deslocamento da palavra para o interior da obra, tornando-se constitutiva e parte de sua materialidade, quanto, em alguns casos, apresentando-se enquanto obra. [...] A tomada da palavra pelo artista significa seu ingresso no terreno da crítica, desautorizando conceitos e criando novos, em franco embate com os diferentes agentes do circuito. [...] os textos de artistas tornam solidários a ideia de arte e o questionamento do conceito de arte.5

Lygia Clark e Hélio Oiticica participaram de forma ativa dessa tomada da palavra pelo artista escrevendo incessantemente sobre suas obras, ideias e projetos artísticos, estéticos, teóricos e até biográficos por meio de manifestos, de textos teóricos e entrevistas publicados em catálogos de exposições e em revistas e jornais de grande circulação. E, também, através de diários íntimos e de correspondências trocadas não

4

Ibidem, p. 14. 5

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só entre eles, mas também com críticos de arte, familiares e outros amigos e artistas. Lygia e Hélio elaboram teorias, pensam e conceituam suas própria obras; suas escritas passam a ser uma forma a mais de expressão artística, tanto que podemos dizer que, na produção de ambos, texto e obra caminham juntos a ponto de criar uma poética própria.

Por meio da teorização das próprias obras – e, também, por meio da aproximação com críticos de arte como Mário Pedrosa, Ferreira Gullar e Guy Brett –, eles adquirem uma espécie de controle sobre suas produções; assim, a valoração e a “legitimização” das obras não dependeria mais exclusivamente da crítica. Em carta para Lygia datada de 1974, Hélio diz que “a expressão verbal e escrita da coisa importa mais que nunca. Não basta o factual: isso e aquilo; as palavras e a escolha dos termos e a construção (como num poema) é que dão a dimensão ao relato da coisa”6. O artista mostra que havia grandes preocupações com a escolha das palavras do mesmo modo como havia com a escolha das cores para suas obras, visto que a expressão verbal era tão importante para a experiência artística quanto o fazer da obra – e mais ainda que a obra pronta. Lygia e Hélio, inclusive, nas cartas trocadas entre eles, deixam claras suas posições em relação à crítica. Diz Hélio:

Quem relata e quem critica ou é artista ou nada é, é inadmissível essa merda de crítico numa posição de espectador: volta tudo ao antigo e não há quem possa; principalmente quando se refere a experiências que têm que ver com o comportamento e a ação deste; esse pessoal todo ainda dava certo até o BICHO7, mas agora, quando você chega a essa dilatação aguda e impressionante de todos os começos (corpo, sensorialidade, etc.) e já está muito além do que se poderia pensar, essa gente falha; essa relação de cada participador com a força da baba8 é algo

6

OITICICA, Hélio. Carta a Lygia Clark de 11 de julho de 1974. In: FIGUEIREDO, Luciano (Org.). Lygia Clark - Hélio Oiticica: Cartas, 1964 –

1974, 1998, p. 225. (Devido ao grande número de citações deste livro, as

referências a ele serão feitas nas próximas notas apenas como Lygia Clark -

Hélio Oiticica: Cartas, 1964 – 1974, seguido do número da página).

7

Referência à série de obras denominada Bichos propostas por Lygia Clark em 1960.

8

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grande demais, não pode ser descrito factualmente [...]9

Em carta-resposta a Hélio, escrita de Paris e datada de seis de novembro de 1974, Lygia concorda com o amigo:

Quanto ao papel do crítico, estou com você: ou a criatividade tem pensamento e diz tudo ou nada é, por isso que o crítico só pode se expressar ainda através da cultura morta, onde há o objeto-arte, mas agora é impossível. No meu trabalho existem duas coisas importantes. Meu depoimento e, talvez mais ainda, o depoimento das pessoas que vivem a experiência e a suíte de toda uma maturação ou desbloqueio que às vezes consigo lhes dar.10

Nas proposições artísticas e estéticas de Lygia Clark e de Hélio Oiticica, fica clara a importância do lugar e da situação em que o artista experimenta suas práticas como uma forma de sublimação de seus próprios discursos. Ao criar uma obra aberta para um diálogo entre espectador e objeto, e, ainda, ao propor a participação dos sentidos do outro em suas obras, corpo e ato tornam-se indispensáveis para a concepção de arte. Suas proposições podem, então, assumir diferentes formas de acordo com as forças participadoras, o que torna ainda mais importante a situação em que seus trabalhos foram concebidos e propostos. Desse modo, o conjunto de concepções teóricas, as decisões dos artistas, seu desejo pelo outro, e os atos de participação são, agora, referências teóricas em relação a seus próprios trabalhos; e, ainda, são referências para o entendimento do estado da arte, tornando-se presentes em textos de críticos e historiadores. E, claro, são preponderantes para buscar as marcas, os vestígios autobiográficos deixados pelos artistas em suas obras e proposições.

Silviano Santiago, no ensaio “Suas cartas, nossas cartas”11

, discorre sobre a importância literária de um tipo específico de escrita de artista: as correspondências trocadas entre grandes escritores – mais especificamente, no ensaio, entre Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade. No texto, Silviano Santiago apresenta a leitura e o exame das cartas – assim como de diários íntimos e de entrevistas –

9

OITICICA, Hélio. Carta a Lygia Clark de 11 de julho de 1974. Lygia Clark -

Hélio Oiticica: Cartas, 1964 – 1974, 1998, p. 225.

10

Ibidem, p. 252. 11

SANTIAGO, Silviano. Suas cartas, nossas cartas. In: Ora (direis) puxar

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como um modo essencial de buscar uma nova teoria literária através da problematização e da desconstrução dos métodos analíticos de algumas correntes do século XX12. A análise das cartas é capaz de levar a um enriquecimento da compreensão da obra artística por meio do estabelecimento de “jogos intertextuais”, que também ajudariam “a melhor decodificar certos temas que ali estão dramatizados, ou expostos de maneira relativamente hermética”13

, assim como aprofundariam os conhecimentos que temos da história de determinados movimentos artísticos. É, também, pelo estabelecimento de jogos intertextuais entre as correspondências trocadas por Hélio Oiticica e Lygia Clark e suas proposições artísticas que pretendemos buscar suas marcas autobiográficas e, assim, tentar compreender os movimentos de criação desses artistas.

A construção dos discursos de Lygia Clark e Hélio Oiticica, em suas mais variadas formas, nos revela muito sobre as relações de seus trabalhos e seus discursos com os contextos sócio-histórico, estético e político, que são constituintes de seus espaços autobiográficos. As referências são encontradas por meio de citações, acontecimentos históricos narrados14, e até mesmo pela própria linguagem empregada, como o uso de gírias e de expressões inventadas. Os discursos linguísticos de Hélio e Lygia podem ser aqui compreendidos como um espaço em que se constituem ideias e práticas, possibilitando que os artistas se desdobrem sobre suas próprias obras, tornando-se um testemunho da construção de suas vidas-obras e dos esforços e deslocamentos feitos para realizá-las. Em muitas das cartas trocadas entre Hélio e Lygia é possível ver essa busca para que a vida artística torne-se um reflexo da verdade que era encontrada por eles em suas proposições e experiências estéticas.

12

“Estou me referindo a sucessivas metodologias de leitura: a “literariedade” dos formalistas russos, a “close reading” da nova crítica norte-americana, a leitura estilística dos espanhóis e germânicos, a análise estrutural francesa etc. Não se trata de pregar o retorno ao biografismo, apanágio como se sabe dos historiadores positivistas do século XIX, como Gustave Lanson, que liam os textos sem, na verdade, os ler.” Ibidem, p. 62

13

Ibidem, p. 62. 14

Como é o caso de Hélio Oiticica, que conta nas cartas enviadas à Lygia a situação do Brasil sendo tomado pela ditadura militar, o medo crescente entre os amigos artistas e outros episódios marcantes, como a participação dos

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Para este trabalho, que tem como objetivo buscar as marcas, os rastros que os corpos deixam nos textos, que os textos deixam nos corpos, que a arte deixa na vida e que a vida deixa na arte, é necessário então mergulhar nesses arquivos de cartas, documentos, textos, diários, artigos etc. e pensá-los não como objeto estático, um bloco fechado em si mesmo; mas pensar o arquivo como Hélio queria que pensássemos o trabalho artístico: sempre nas suas relações com o mundo. Mergulhar nos arquivos de Lygia Clark e Hélio Oiticica é estar sempre caminhando nesse programa in progress: um exercício de corpo a corpo com um arquivo vivo e em movimento; sempre em direção a, nunca um ponto de chegada. Procuraremos trabalhar “sem a relação velha de tempo cronológico, que é repressiva e cruel”15 como fala o próprio Hélio; esquecer os tempos cronológicos, perder-se no labirinto de citações, de multiplicidades e de singularidades, abraçar a ambivalência desses dois artistas, visto que seria impossível encaixá-los em alguma categoria. Deixar-se cegar por essa constelação para perceber uma simultaneidade de outros corpos, de artistas, de outros inventores construindo Hélio e Lygia.

Para trabalhar com esse arquivo animado, então, nos apropriaremos da estratégia de Flávia Cera em sua tese “Arte-Vida-Corpo-Mundo, segundo Hélio Oiticica”, quando nos explica o que quer dizer “segundo Hélio Oiticica” em seu trabalho – e o mesmo valerá, aqui, para “segundo Lygia Clark”:

Segundo Hélio Oiticica é um deslocamento, ou

melhor, é a devoração de um ponto de vista em uma relação intensiva com os seus textos. O

segundo de segundo Hélio Oiticica foi roubado de A Paixão segundo G.H. de Clarice Lispector e se

situa precisamente na relação entre G.H. e a barata: os textos nos olharam constantemente e a cada olhar revelaram um estranhamento, uma diferença. [...] Segundo Hélio Oiticica significa segundo as suas impressões, marcas e rastros pulsionais e pulsantes impressos pelo seu corpo

15

Programa Hélio Oiticica #0159/ 68 Disponível em

http://www.itaucultural.org.br/programaho/ (De aqui em diante, as referências aos documentos de Hélio Oiticica, digitalizados pelo Programa Hélio Oiticica, serão feitas com a abreviação PHO seguida do número de tombo registrado no Programa. Os documentos podem ser encontradas no site acima citado do Itaú Cultural.)

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nos textos, no nosso corpo e no nosso corpo do texto16.

Não se trata, portanto, de interpretar os arquivos buscando saber o que os artistas estavam querendo dizer. Mas, sim, encarar o arquivo em suas possibilidades infinitas de religar seus fios soltos, o arquivo como esse espaço cheio de frestas, fendas, fissuras, o arquivo como vir a ser, como ensina Derrida em Mal de arquivo: o arquivo é possuidor de vida própria, e sua memória é como um organismo vivo.

A discussão a respeito do arquivo é iniciada por Derrida por uma série de perguntas que podem também nos ajudar na tarefa ousada de encarar este imenso arquivo que é a vida-obra de Hélio e Lygia:

Não devemos começar distinguindo o arquivo daquilo a que o reduzimos frequentemente, em especial a experiência da memória e o retorno à

origem, mas também o arcaico e o arqueológico,

a lembrança ou a escavação, em suma, a busca do tempo perdido? Exterioridade de um lugar, operação topográfica de uma técnica de consignação, constituição de uma instância e de um lugar de autoridade (o arconte, o arkheion, isto é, frequentemente o Estado e até mesmo um Estado patriárquico ou fratriárquico), tal seria a condição do arquivo. Isto não se efetua nunca através de um ato de anamnese intuitiva que ressuscitaria, viva, inocente ou neutra, a originalidade de um acontecimento.17

Para Derrida, portanto, o arquivo não deveria ser reduzido à experiência de memórias, a um retorno à origem, ao trabalho de escavação, arqueológico, ou seja, ao trabalho de descrição de tal lugar de autoridade que condicionaria o arquivo. Para apontar esse lugar, Derrida começa justamente pela busca do arquivo da palavra “arquivo”: arkhê, que, ao mesmo tempo, designaria tanto a noção de tempo como a de comando. Isto é, há dois princípios dentro da mesma palavra; um princípio da natureza ou da história – físico, histórico e ontológico –, de onde as coisas começam, de um lugar de origem; e, também, um princípio da lei, princípio nomológico, um lugar onde se exerce a autoridade e a ordem social, onde homens e deuses comandam, um lugar a partir do qual uma ordem é dada. Entretanto, o sentido de arquivo como comando provém do arkheîon grego, que seria, inicialmente, a

16

CERA, Flávia. Arte-vida-corpo-mundo, segundo Hélio Oiticica, 2012, p. 7 17

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casa, a morada dos arcontes, os magistrados superiores que detinham o poder político, que tinham o direito de fazer ou representar a lei, ou seja, os magistrados gregos, guardiões dos documentos oficiais, eram os arcontes. O princípio arcôntico é, portanto, começo e comando, lugar e lei; por isso o arquivo remeteria sempre a um lugar ou a uma instância de autoridade. Assim, não podemos nunca nos esquecer desse caráter ambivalente18, pois, para Derrida, “todo arquivo é ao mesmo tempo instituidor e conservador. Revolucionário e tradicional.”19 Todo arquivo seria eco-nômico no seu duplo sentido: abriga, guarda, põe em reserva essa memória do nome arkhê, mas também se mantém ao abrigo dessa memória abrigada. Isto é, por não se reduzir à memória, o arquivo tem lugar no próprio desfalecimento da memória: é, pois, lugar de gestão da memória, mas também campo do esquecimento. É aí que entra o resgate da noção de pulsão de morte, de Freud, por Derrida, para reforçar suas afirmações de que criar o arquivo seria também destruir o arquivo; na própria tarefa de criação do arquivo, existe a pulsão de morte, que o destrói – e é este o mal de arquivo.

*

O crítico Raúl Antelo, no ensaio “O arquivo e o presente”, nos alerta para que a pulsão de morte do arquivo, a busca pela sua origem, pelo texto original, não crie o fantasma do que o autor chama de ilusão tautológica:

Ela consiste em julgar, simplesmente, que o texto conservado no arquivo diz o que diz e que nele vemos o que se vê. A ilusão tautológica é uma ilusão de sincronia. Ela poderia ser resumida com a fórmula de Didi-Huberman20: o que vemos não nos olha, o que lemos, não nos lê. Nada mais ilusório, portanto, do que a constatação meramente referencial, porque um texto achado

18

Segundo Paul de Man, a própria autobiografia é marcada por esse caráter ambivalente: “Um desses problemas [da teoria acerca da autobiografia] é a tentativa de definir e tratar a autobiografia como se ela fosse um gênero literário entre outros. Uma vez que o conceito de gênero designa uma função tanto estética quanto histórica, o que está em jogo é não somente a distância que protege o autor de autobiografia de sua experiência, mas a possível

convergência de estética e história. O investimento em tal convergência,

especialmente quando se trata de autobiografia, é considerável.” In: de Man, Paul. Autobiografia como des-figuração. Sopro n. 71. Tradução de Jorge Wolff. 19

DERRIDA, Jacques. Mal de Arquivo, 2001, p. 17. 20

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num arquivo sempre postula um para além da significação e um maior ou menor anacronismo, de tal forma que sua leitura propõe uma relação indiciária de contigüidade e causalidade entre o signo e seu objeto, isto é, uma relação, simultaneamente, das mais diretas, mas, também, das mais diferidas possíveis, entre essas duas instâncias.21

Ao mesmo tempo em que Antelo chama atenção para a ilusão referencial de acreditar que um arquivo diz o que diz, mostra o que mostra; o autor também nos apresenta uma outra possível leitura do arquivo que não seja sincrônica. O anacronismo, como também postula Didi-Huberman, nos permite esquecer o tempo cronólogico, atropelando o modelo da continuidade; a leitura anacrônica do arquivo possibilita a montagem de tempos diferentes, a produção de diferentes arquivos dentro de um arquivo. Assim, o trabalho arqueológico de escavação não busca mais somente uma origem determinada a ser descrita, mas agora se concentra em rastrear traços, vestígios, em percorrer caminhos novos para outras leituras possíveis, outros contatos com o texto. O anacronismo, diz Raúl Antelo, “nos obriga a ler em rede”22: “Poderíamos dizer, em resumo, que uma política do anacronismo, como é a que se ativa toda vez que arquivo e memória se justapõem, implica, ao mesmo tempo, a inequívoca singularidade do evento mas também a ambivalente pluralidade da rede.”23

Trabalhemos, então, com esse imenso arquivo – de cartas, escritos de artista, obras e proposições de Hélio e Lygia – tendo sempre em mente a “ambivalente pluralidade da rede”; a necessidade de trabalhar com a memória do arquivo, mas também com o seu esquecimento; a análise do arquivo a partir dos seus paradoxos, e não de suas coerências. Para Raúl Antelo “todo enunciado lido no arquivo é, literalmente, uma transposição, uma tradução, o vestígio de um corpo ausente que tocou essa matéria (uma página, a tela).”24 Nossa tarefa é, então, criar modos de leitura para esse arquivo que permitam fazer aparecer os vestígios de algo desaparecido que esteve ali. Mas sem cair na ilusão tautológica, admitir que “em toda operação de leitura, nos arquivos e acervos de escritores, há metamorfose e há transformação”25

21

ANTELO, Raúl. O arquivo e o presente, 2007, p. 44. 22

Ibidem, p. 52. 23

Ibidem, p. 56. Grifos do autor. 24

Ibidem, p. 44. Grifos do autor. 25

(25)

e que, por isso, cada entrada no arquivo é um movimento único e irreprodutível. A cada nova leitura, um novo contato produz diferentes e novas marcas, novos vestígios. Buscamos, então, analisar a linguagem de Lygia Clark e Hélio Oiticica como a “poeira da vida, com a qual se armam as ficções axiológicas”26

que procuramos em seus trabalhos. Ana Cristina César, no livro Literatura não é documento, ao tratar de literatura e cinema, procurou desfazer as ilusões referenciais a respeito do documentário, e também negou o papel do espectador do filme como sendo apenas aquele que comprovaria que a narração não desdiz a imagem.

Em vez de retratar, expor, explicar, naturalizar, poderá então subjetivar, metaforizar, silenciar, encenar, ignorar, ironizar ou intervir criticamente nos monumentos, documentos e outros traços do museu do autor; recusar erigir esse museu; assumir a parcialidade de toda leitura; buscar uma analogia com o processo fragmentário de produção do literário; mencionar o próprio filme, tornar consciente a intervenção, referir-se à feitura cinematográfica; desbiografizar, como que desfazendo a complementaridade sadia entre vida e obra: há tensões neste jogo, e tensões que não “limpam” a função documental, com todo o seu poder de registro verdadeiro, mas se fazem no seu interior.27

Mesmo que estejamos diante de um arquivo que contém imagens que revelam e vozes que confirmam, não faria sentido apenas retratar, expor, explicar esses documentos, nem erigir um museu para Hélio e Lygia. Além de ser uma leitura primária dos processos de realização da obra e da vida desses artistas, sem colocar em jogo as tensões que existem no texto não se pode proceder de maneira problematizadora. A abertura desse arquivo deve conjugar ética e estética. Não se pode ignorar em suas produções o contato com o outro. E, ainda, a implicação do outro em suas proposições, para que ele possa ter liberdade de movimentar seu corpo enquanto participa das obras.

Para buscar as “marcas e rastros pulsionais e pulsantes impressos pelo corpo no texto”, é preciso, então, “subjetivar, metaforizar, silenciar, encenar, ignorar, ironizar ou intervir criticamente nos monumentos, documentos e outros traços do museu do autor”, o trabalho foi dividido

26

Ibidem, p. 45. Grifos do autor. 27

(26)

em cinco capítulos. No primeiro, intitulado Travessias, buscamos fazer uma espécie de panorama, ainda que parcial, das trajetórias artísticas, estéticas, éticas e até políticas de Hélio e Lygia, que estavam inseridos em contextos de grandes modificações sociais e culturais no Brasil e no mundo, desde os anos 1950 até os anos 1970. Para tanto, buscamos fazer uma pequena investigação de quais seriam as características de uma estética que deixou de ser chamada de arte moderna para ser definida como arte contemporânea e quais as consequências dessas mudanças nas concepções artísticas de Lygia e Hélio – e, também, quais mudanças os trabalhos deles operaram no modo de fazer artístico da época. O segundo capítulo, Escritas-leituras de si, escritas-leituras do outro consiste na discussão acerca da escrita de si, por meio do texto de Foucault, “A escrita de si” e da troca de cartas entre Hélio e Lygia como uma espécie de hypomnemata a dois. Com Foucault e também com Barthes, ainda neste mesmo capítulo, buscamos compreender a escrita de Hélio e de Lygia como experimentação e suas vidas como experiência. O terceiro capítulo, Labirintos anti-auto-oto-biográficos, discute o conceito de otobiografia de Derrida, e, a partir de Nietzsche e de seus escritos autobiográficos, buscamos compreender a importância de conjugar autobiografia e pensamentos, ou seja, de conjugar o corpo e o corpus: os dois corpos do autor, segundo Derrida. No quarto capítulo, Corpos e corpus excritos, aprofundamos a questão do corpo na linguagem, por meio do conceito de excrita de Jean-Luc Nancy. Em dois subcapítulos, um dedicado a cada artista, trazemos uma discussão em separado da escrita de Lygia Clark e da escrita de Hélio Oiticica e das implicações dessas escritas de si em suas vidas-obras. E, ainda, em um terceiro subcapítulo intitulado “Entre a violência e a intimidade, entre a identificação e a alteridade”, procuramos diferenciar os modos de construção de si de cada um. O quinto e último capítulo À escuta ou diálogo de mãos busca dar uma dimensão de escuta ao diálogo entre Hélio e Lygia que foi feito principalmente por meio de cartas, procurando sempre transformar suas escritas de si em novas possibilidades de reler as imagens do passado para que, deslocadas para o presente, possam se potencializar em forma de desvios no caminho labiríntico que tentamos percorrer.

(27)

1 Travessias

Assim o corpo atravessa a história – tornando-se outro e lutando.

Nietzsche, Assim falava Zaratustra

A “evolução” de Hélio e Lygia

A proximidade entre os pensamentos de Lygia Clark e Hélio Oiticica torna-se evidente ao estudar a trajetória desses dois artistas. Entretanto, são dois pensamentos que se tocam, mas que não se confundem. O modo como se pensa suas obras passa por duas escritas que se interpelam, por dois textos que leem um ao outro. Um afeto que se partilha – se compartilha – como afirmação de si e do outro em relação de mútua admiração, mas, também, no debate artístico e filosófico que é permanente em suas trocas de cartas. Hélio e Lygia têm o outro como experiência. O desejo de se manterem próximos, e a abertura ao outro que não está presente, instalam uma espécie de falta, que se abre para o silêncio, para a solidão e para a singularidade, que seriam condições indispensáveis para a proximidade, para amizade, para o afeto e para a cumplicidade. O afastamento geográfico de Hélio e Lygia dá lugar a uma amizade como pensamento – pensamento no sentido que quer Deleuze, quando diz que “pensar é sempre experimentar, não interpretar, mas experimentar, e a experimentação é sempre o atual, o nascente, o novo28”; mas também no sentido de Jean-Luc Nancy, quando diz que “corpo e pensamento são um mútuo tocar-se29”. Os corpos e pensamentos de Hélio e Lygia tocam-se por meio da linguagem, tocam-se, contaminam-se, mas não se confundem, antes, se complementam, ou, ainda, se suplementam.

O artista plástico Cildo Meireles, em entrevista a Antony Gormley, contou que “uma vez, conversando com o Guy Brett, que os acompanhou, ele disse algo muito preciso: que os dois [Hélio e Lygia] eram complementares – Lygia operava do exterior para a pele e Hélio, da pele para o exterior, mais social30”. Claro que, por meio dessa fala,

28

Deleuze, Gilles. Conversações, 1992, p. 132. 29

NANCY, Jean-Luc. Corpus, 2000, p. 36. 30

Disponível em (http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,antony-gormley-encontra-cildo-meireles-e-exibe-obras-por-sao-paulo,870402)

(28)

não pretendemos simplificar o movimento artístico de Hélio e Lygia, como sendo um movimento de uma única via, o movimento de Lygia somente do exterior para a pele nem o de Hélio somente da pele para o exterior. Mas acredito que esses movimentos se confundem, não são lineares, vão e voltam, saem do corpo e retornam para ele, veem do exterior para o corpo mas também do corpo para o exterior. Não seria possível traçar suas trajetórias e seus movimentos artísticos como um caminho linear, mas antes aproximá-los da imagem do labirinto, com diversos caminhos possíveis. Pensemos na evolução desses artistas como a evolução de uma escola de samba na avenida, a evolução em um sentido coreográfico, como explica Teixeira Coelho:

Os valores estéticos só se percebem, em princípio, no contexto da evolução histórica de uma arte – e devo dizer que falo em evolução histórica de uma arte no sentido carnavalesco do termo, usado para descrever a passagem de uma escola de samba pela avenida (ainda que se trate da avenida artificial criada por Niemeyer): a escola de samba evoluciona pela avenida, quer dizer, vai daqui pra lá e de lá pra cá, dá um passo para o lado e depois um passo para o outro lado e para frente e para trás, num movimento de complexa figuração do qual são exemplos máximos a porta-bandeira e o mestre-sala. A escola de samba faz suas evoluções pela avenida mas de modo algum ela busca a cada metro de avenida ser melhor do que era um metro atrás ou diferente do que era há um metro atrás (a escola de samba deve mesmo ficar sempre igual a si mesma, mas essa é outra história). Só nesse sentido e apenas nesse sentido uso a palavra evolução quando me refiro à arte.31

Para compreender os valores estéticos de Lygia e Hélio, então, é preciso colocar seus discursos em constante movimento, movimento não linear, como o movimento da porta-bandeira e do mestre-sala. A escrita, assim, como se fosse um convite ao mergulho do corpo (para fazer referência a um Bólide de Hélio de 1966-67); isto é, mergulho do sujeito na linguagem, na proposição, na experiência artísitca. Entretanto, sem a pretensão de reencontrar-se no corpo, ou de encontrar a si mesmo; mas, antes, o objetivo seria perder-se, para que, nessa não coincidência entre

31

(29)

imagens, o sujeito possa se desencontrar e se reencontrar – se reinventar, em última análise – fora do corpo.

A concepção artística de Hélio Oiticica e Lygia Clark compreendia que o artista deveria, de algum modo, ir além da sua cultura e de verdades pré-estabelecidas e condicionadas pela sociedade vigente a fim de realizar sua arte, como escreve Lygia em carta a Hélio:

Você vê, até o realizar-se está vindo diretamente ligado à ação. Todos os mitos caíram por terra [...] e nós, os privilegiados, temos que propor na ação porque o momento, o agora é a única realidade tangível que ainda comunica algo. [...] Esses são

hoje os verdadeiros revolucionários. Para mim, na

medida em que revelamos um novo mundo somos ainda o resto de um mundo antigo, e se não fazemos mais a ‘obra’ somos de qualquer maneira o ‘personagem’ que expressa o pensamento ‘obra’. [...] Pela primeira vez o existir consiste

numa mudança radical do mundo em vez de ser somente uma interpretação do mesmo.32

Essa valorização da ação por meio da proposição, e, mais, agir na vida afirmando suas singularidades, ou seja, a partir de suas vivências, de uma ética própria e não mais pela sujeição a uma regra externa e geral, provocariam tanto o poder vigente do Estado quanto atacariam as hierarquias enraizadas na vida social dos anos sessenta e setenta.

Percebemos, então, que Hélio Oiticica e Lygia Clark têm uma relação singular com sua época: ao mesmo tempo em que coincidem com ela, também tomam distância para poder apreendê-la melhor e, a partir das suas próprias existências, operar uma “mudança radical no mundo”. Segundo o filósofo italiano Giorgio Agamben (2009), em O que é o contemporâneo, essa “relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo”33

é justamente o que caracterizaria a contemporaneidade. Agamben afirma:

Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse

32

Lygia Clark - Hélio Oiticica: Cartas, 1964 – 1974, p. 59. Grifos do autor. 33

(30)

anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo.34

A relação singular do artista com seu tempo também pode ser lida em textos de autoria de Hélio Oiticica, em que ele fala a respeito de sua proposta de antiarte, a qual seria “uma simples posição do homem nele mesmo e nas suas possibilidades criativas vitais”35

, dando a entender que, ao promover as condições para que os espectadores-participadores encontrassem suas possibilidades criativas, eles também poderiam tornar-se contemporâneos na concepção de Agamben. Em outro texto, intitulado “Esquema geral da nova objetividade”36

essa problematização fica mais clara quando Hélio Oiticica diz que o artista deve ser um “modificador também de consciências (no sentido amplo, coletivo), que colabore ele nessa evolução transformadora, longa e penosa, mas que algum dia terá atingido o seu fim – que o artista ‘participe’ enfim de sua época, de seu povo.”37

Assim, Hélio e Lygia fazem parte do que podemos chamar de “artistas contemporâneos”, visto que ainda hoje suas proposições continuam inovadoras e desestabilizam o lugar e a função do artista ao propor a obra como experimentação, como ação e mobilidade. Em suas concepções, a obra depende do gesto, do corpo do outro, ou seja, a obra só existe enquanto diálogo entre o participador e a obra; com essas proposições do espectador-participador como um elemento fundamental para a realização da obra, as noções de autoria são diluídas. Para esses artistas, o que importava não era a obra pronta a ser assinada e exposta em museus ou galerias, e sim o fazer da obra e todas as experiências que o ato de criar trariam e que possibilitariam que eles se recriassem através da arte – ou da antiarte. Ao escolher a construção de si mesmos pela experimentação, Hélio Lygia decidiram pela prática da liberdade e inseriram suas marcas autobiográficas na história por meio de suas experiências de vida.

***

Ora, se nos moldes de Agamben, Hélio e Lygia são “artistas contemporâneos”. Mas, resta perguntar-nos sobre a arte contemporânea.

34

Ibidem, p. 58-59. 35

OITICICA, Hélio. Apud ZILIO, Carlos. Artes Plásticas: Da Antropofagia à Tropicália. In: O Nacional e o Popular na Cultura Brasileira, 1982, p. 26. 36

OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto, 1986, p. 84. 37

(31)

Existiria uma arte que poderíamos denominar, especificamente, contemporânea? Seria possível definir um aspecto, seja estético, filosófico ou epistemológico, que inaugura um tempo completamente novo? Ou será que, nas concepções atuais, o contemporâneo teria substituído o conceito de moderno e se confundido com ele?

Procuraremos, aqui, brevemente, tentar identificar os sintomas da crise do regime do moderno que fizeram surgir a arte dita contemporânea. Não temos a pretensão, entretanto, de organizar uma cronologia nem uma genealogia da arte contemporânea; seu começo será buscado somente como estratégia para investigar os dados dispersos desse estado de arte.38 Nessa pequena análise, tentaremos nos introduzir nos problemas da contemporaneidade artística – sempre que possível, por meio dos dois artistas-objeto de estudo, Lygia Clark e Hélio Oiticica – em suas relações com a linguagem, as estratégias de comunicação e de transgressão, as técnicas e materiais empregados nos trabalhos, e, também, com os temas e problemas que marcam a contemporaneidade e sua história.

Muitos dos trabalhos39 de arte que se encaixariam na definição de “arte contemporânea” podem ser identificados por seu afastamento das linguagens tradicionais e, ainda, pela distância que tomam da arte de representação. São obras que se colocam além do sentido da visão e

38

Ou seja, nos afastemos da origem entendida como gênese e tenhamos em mente as importantes contribuições para o pensamento moderno feitas por Walter Benjamin em 1928, no livro A origem do drama barroco alemão: “A origem, apesar de ser uma categoria totalmente histórica, não tem nada a ver com a gênese. O termo origem não designa o vir-a-ser daquilo que se origina, e sim algo que emerge do vir-a-ser e da extinção. A origem se localiza no fluxo do vir-a-ser como um torvelinho, e arrasta em sua corrente o material produzido pela gênese. O originário não se encontra no mundo dos fatos brutos e manifestos, e seu ritmo só se revela a uma visão dupla, que o reconhece, por um lado, como restauração e

reprodução, e por outro lado, e por isso mesmo, como incompleto e inacabado.” (BENJAMIN, 1984, p. 68) A origem (Ursprung) não seria, portanto, algo dado, mas como algo que estaria no acontecimento de toda montagem da história, aparecendo a cada vez que é reclamada.

39

Cabe aqui usar o termo como no inglês “work of art”, pois, como veremos, muitos desses trabalhos são proposições, projetos, happenings, ações, acontecimentos, instalações, ou seja, não poderiam ser caracterizados como “obra” ou “objeto” de arte. Embora em um texto extenso seja quase impossível não usar “obra” como sinônimo para os trabalhos de arte, tenhamos em mente sempre essa dimensão do fazer, do trabalho por trás de tais obras.

(32)

incorporam outros meios, outros sentidos e outros materiais, mas que ainda assim se vinculam com as artes visuais. Para além do sentido da representação, sem se sujeitar a um tema ou a um problema como se fosse sua ilustração, essas obras podem ser exploradas a partir de inúmeras perspectivas e possibilidades; mas isso não quer dizer que não sejam essas imagens ou intervenções artísticas que assinalam suas próprias condições no mundo das representações. Ou seja, não se pode deduzir as obras de suas genealogias nem de seus contextos. Ora, ainda que atentos ao fantasma da ilusão referencial de que tratamos anteriormente, nos interessa saber as situações em que as obras foram formuladas, os dispositivos, as formas e os sentidos que elas administram; trata-se de compreender suas intervenções e o momento específico que elas inauguram.40

Mesmo que as formas de compreender a arte tenham mudado consideravelmente nas últimas décadas, ainda é comum fazer uma leitura evolutiva da história da arte, como se cada nova “escola”, cada inauguração de uma nova linguagem, viesse para negar a anterior ou, ainda, para resolver os problemas que ela teria deixado pendentes. Por outro lado, podemos pensar a arte concreta como inauguradora da possibilidade de fazer emerger uma nova realidade, pois ela formula objetos independentes e novos no mundo dos objetos de arte. Assim, este seria o momento em que a arte deixaria de evoluir – ao menos nesse sentido de sucessão. Andrea Giunta, no livro ¿Cuándo empieza el arte contemporáneo?, propõe que a história da arte moderna poderia interpretar a arte concreta como seu ponto de chegada:

Si partimos de esta comprensión del arte moderno, podemos aproximarnos a uno de los síntomas del arte contemporáneo – que sucede al moderno, como un nuevo momento. Es, en un sentido inicial, aquel en el que el arte deja de evolucionar. Es el después de la conquista de esa autonomía absoluta enunciada por el arte concreto. Es cuando el mundo real irrumpe en el mundo de la obra. La violenta penetración de los materiales de la vida misma, heterónomos respecto de la lógica autosuficiente del arte, establece un corte. Los objetos, los cuerpos reales, el sudor, los fluidos, la basura, los sonidos de la cotidianeidad, los restos de otros mundos bidimensionales (el diario, las

40

Nos situarmos no território mesmo da obra também faz parte da constituição de um arquivo.

(33)

fotografías, las imágenes reproducidas) ingresan en el formato de la obra y la exceden.41

Este corte de que fala Giunta teria sido causado pela crise da representação, que vinha sendo manifestada desde o cubismo, mas ganha mais força principalmente com o dadaísmo e com o surrealismo. Algumas técnicas do surrealismo, como a colagem, o bric-à-brac, o nonsense, são bastante caras ao trabalho – e aqui está incluída também a escrita – de Hélio Oiticica. O artista alemão Kurt Schwitters, em 1923, a partir dessas técnicas, inventa a arte Merz. Bilhetes de metrô, passagens de bonde, pedaços de madeira, restos de letras de cartazes, cacos de vidro, ferro-velho e mais “lixos urbanos” recolhidos pelo artista compõem a matéria prima de sua arte. Em texto de 1964, Hélio relaciona seus Parangolés ao merzbau de Schwitters:

A palavra aqui assume o mesmo caráter que para Schwitters, p.ex., assumiu a de Merz e seus derivados (Merzbau etc.), que para ele eram a definição de uma posição experimental específica, fundamental à compreensão teorética e vivencial de toda a sua obra. [...] Não quero aqui a apreensão objetiva transposta dos materiais de que se constitui a obra: p.ex., plásticos, panos, esteiras, telas, cordas etc., nem essa mesma relação a objetos aos quais se relacionam as obras: p.ex., tendas, estandartes etc.42

A justaposição dos materiais de diversos tipos, nos trabalhos de Hélio Oiticica e de Kurt Schwitters, tem como objetivo chamar a atenção para tudo o que era dado como inútil, como abjeto, como irrelevante. Os objetos, os corpos reais, os fluidos, os sons do cotidiano e os restos ingressam na obra de arte e a excedem, compondo assim trabalhos que podem ser vistos como sátira social. Podemos dizer que a tentativa de trazer a arte para o dia a dia e de tirá-la de uma esfera separada já aparecia no surrealismo, embora em outros termos, como por meio da valorização dos sonhos e do inconsciente para a arte de André Breton, por exemplo. Walter Benjamim considerou o surrealismo como o último instantâneo da inteligência europeia, e afirma que é

41

GIUNTA, Andrea. ¿Cuándo empieza el arte contemporáneo? / When Does Contemporary Art Begin?, 2014, p. 10.

42

(34)

justamente nos sonhos43 e nas imagens do inconsciente que estariam as possibilidades de surgirem “iluminações profanas” por meio das quais “todas as tensões revolucionárias se transformem em inervações do corpo coletivo, e todas as inervações do corpo coletivo se transformem em tensões revolucionárias.”44

Seria papel da arte, assim, desde e para o surrealismo, permitir a possibilidade de tranformação da realidade.

(Não estamos querendo, de forma alguma, declarar que Hélio e Lygia seriam artistas surrealistas, sobretudo no que diz respeito ao surrealismo bretoniano; mas sim perceber como algumas dessas técnicas de vanguarda acabam por retornar nos gestos dos artistas aqui estudados.)

A maioria das descobertas de André Breton por meio do surrealismo já haviam sido anunciadas anteriormente por Nietzsche ou por Mallarmé; mas ao surrealista francês coube o papel de fixar uma espécie de entre-lugar experimental, que já não seria o lugar da filosofia, da literatura ou da arte. Este recorte do domínio da experiência teria permitido a Breton, a partir desse entre-lugar recém-descoberto do escritor europeu, contestar, além de todas as obras literárias já existentes, a existência da literatura; ou seja, um lugar a partir do qual se poderia abrir à linguagem possíveis domínios, que até então eram silenciados ou marginalizados45. O que podemos dizer que retornaria – embora sempre diferente – em Hélio e Lygia é o estabelecimento de

43

Os sonhos, suas imagens e suas possíveis significações são material caríssimo para a arte de Lygia Clark, como veremos mais adiante, em capítulo dedicado a essa artista.

44

BENJAMIN, Walter. “O surrealismo: o ultimo instantâneo da inteligência européia”, 1997, p. 35.

45

A este respeito, diz Michel Foucault que “Estamos hoje em uma era em que a experiência – e o pensamento que é inseparável dela – se desenvolve com uma extraordinária riqueza, ao mesmo tempo em uma unidade e uma dispersão que apagam as fronteiras das províncias outrora estabelecidas. Toda a rede que percorre as obras de Breton, Bataille, Leiris e Blanchot, que percorre os domínios da etnologia, da história da arte, da história das religiões, da lingüística, da psicanálise, apaga infalivelmente as velhas rubricas nas quais nossa própria cultura se classificava e revela aos nossos olhos parentescos, vizinhanças, relações imprevistas. É muito provável que se devam essa dispersão e essa nova unidade de nossa cultura à pessoa e a obra de André Breton. Ele foi, simultaneamente, o dispersor e o aglutinador de toda essa agitação da experiência moderna”. Cfr. FOUCAULT, Michel. “Um nadador entre duas palavras”, 2009, p. 246.

(35)

relações imprevistas, a abertura para diálogos que só teriam sido possíveis devido ao apagamento das fronteiras entre filosofia, arte, literatura, vida, sonhos, realidade, alto, baixo, morte, vida etc.

***

A Segunda Guerra Mundial é certamente um marco para pensarmos o início da arte contemporânea, visto que essa barbárie levou a violência ao limite do indizível e causou grandes transformações nas formas de circulação de cultura. E foi no período pós-guerra, principalmente em finais dos anos cinquenta, que a crise da representação foi generalizada e aprofundada – lembremos que falar em crise da representação é, de certa forma, também tratar a modernidade como crise da linguagem e do tempo. Segundo Andrea Giunta, poderíamos determinar 1945 como uma data que demarca o começo da “arte contemporânea” devido a transformações na percepção de cultura, causadas pela guerra e pelo seu fim. E, também, da mudança de “centro” de onde provinham as chaves para as mudanças da arte moderna, que, antes da guerra, tinha como capital a cidade de Paris, mas, com o conflito se espalhando pela Europa, Nova York começava a se despontar como novo centro cultural. Entretanto, não é só o início da guerra que poderia marcar o começo de uma nova arte, ele poderia situar-se também nos anos cinquenta ou ainda nos anos sessenta, quando o experimentalismo opera grandes mudanças nas formas de fazer arte. Ainda segundo Giunta:

Es entonces cuando la vida ingresa en el mundo del arte con pocas mediaciones, cuando cambia el concepto de espectador, cuando empiezan a ser significativos términos como participación. El parámetro podría situarse también en el proceso de creciente radicalización política del arte de los años sesenta, cuando, al calor de la Revolución Cubana, se anticipaban otras, y el artista no dudaba en colocar sus obras bajo el mandato de la revolución, en pensarlas como armas capaces de provocarla. La lucha armada también involucró a los artistas.46

46

(36)

*

A vontade de futuro impulsionada pelo pós-guerra trouxe grandes incentivos para a arte do Brasil principalmente pela criação de diversas instituições culturais, como o Museu de Arte de São Paulo, em 1947; os Museus de Arte Moderna de São Paulo e do Rio de Janeiro, ambos em 1948; e também o início da Bienal de Arte de São Paulo, cuja primeira edição aconteceu em 1951. Um grande destaque da primeira Bienal de Arte realizada no Brasil foi a obra Unidade Tripartida do suíço Max Bill – já conhecido na Europa como um grande expoente da chamada arte concreta. A escultura, premiada na ocasião, era uma espécie de fita de Moebius47 feita em aço inoxidável.

Max Bill – Unidade Tripartida (1948/49)

47

O uso da fita de Moebius como figuração pode ser visto também nos estudos psicanalíticos de Lacan desde 1935. O estudo que relaciona as posições entre os sujeitos mediante um objeto também seria caro para o conceito de devir de Deleuze, do qual trataremos neste trabalho. No Brasil, serviria para o desenvolvimento do perspectivismo ameríndio de Eduardo Viveiros de Castro.

(37)

A estrutura na qual o dentro e o fora ocupam a mesma posição sugere uma abordagem matemática para a arte contemporânea. Mas, ao contrário da abordagem matemática do artista suíço, Lygia Clark faria uso da fita como forma de suspender o plano: passa-se por dentro e por fora deste (seja com o olhar, seja com as mãos) como se ele não existisse:“Se eu utilizo uma fita de Moebius é porque ela quebra os nossos hábitos espaciais: direita–esquerda, anverso-reverso etc. Ela nos faz viver a experiência de um tempo sem limite e de um espaço contínuo.”

No começo dos anos 1960, Lygia Clark trabalha intensamente com a ideia da fita de Moebius em obras como O dentro é o fora (1963-65); a série Bichos; os Trepantes (Obra-Mole) (1964) e a proposição Caminhando.

Manipulação da obra “O dentro é o fora”

Na experiência de O Dentro é o Fora, o que há? Uma superfície complemente elástica e deformável abarcando um vazio interior também elástico e que lhe dá aspectos estruturais inesperados. Vejo em O Dentro é o Fora tudo o que se disse ou se pensou também sobre os

Bichos. Tudo está expresso ali. Creio que sua

estrutura é o resultado da experiência do

Caminhando e do Bicho que o precedeu (o

primeiro, sem dobradiça). Daí me veio a idéia esquisita de o chamar O Antes e o Depois. Parecia o Caminhando o fim do que em mim era expressão individual. Mas quando percebi, estava tudo de novo em começo. O espaço de O Dentro é

o Fora é um espaço afetivo como o do “vazio”. É

(38)

um ser vivo. Os outros Bichos se definem linearmente, no espaço, como os nossos membros, quando se locomovem.48

A proposição que mais radicalizou essa experiência foi, a nosso ver, o Caminhando. A vivência da obra solicitava que o participante se sentasse sozinho em um espaço qualquer, munido de uma fita branca e de uma tesoura de metal. O ato proposto por Lygia consistia em cortar a fita ao meio, a partir de qualquer ponto, e depois juntar suas extremidades. Com esse último gesto, a fita sofre uma torção, e o olhar do expectador, tentando seguir o desenho da obra, não consegue distinguir onde terminaria o lado de dentro e começaria o lado de fora. A experiência com a fita de Moebius, assim, desestabiliza as noções de dentro e fora. E mais, as proposições de Lygia colocam em jogo uma questão pertinente para a arte das últimas décadas: onde terminaria o olhar para começar a obra? Caberia realmente uma divisão entre o papel do espectador e o trabalho artístico?

*

A II Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo, ocorrida entre dezembro de 1953 e janeiro de 1954 – organizada por Mário Pedrosa49 –, trouxe as últimas manifestações da arte abstrata europeia, com obras de Paul Klee, Alexander Calder, Piet Mondrian e a Guernica de Pablo Picasso. A I e a II Bienal viriam ativar um intenso debate no Brasil sobre realismo, abstração e subjetividade.

Paul Klee, no texto “Caminhos do estudo da natureza”, apresentado em forma de palestra em 1924, já fala de “um ponto de vista mais psicológico” para a contemplação dos objetos:

O objeto se amplia para além de sua aparência, por meio de nosso saber acerca de seu interior. Por sabermos que a coisa é mais do que aquilo que se reconhece em seu aspecto exterior. O homem disseca uma coisa e visualiza o seu interior, em camadas nas quais o caráter do objeto se ordena segundo o número e o tipo de cortes

48

Original por Lygia Clark,1965 (Doc.VI B5) 49

O importante crítico brasileiro retornou ao país no final dos anos 1940 após exílio imposto pela ditadura Vargas (1937-1945). Por ocasião da I Bienal, escreveu que “Portinari não faz falta à Bienal”, marcando a ruptura com a arte figurativa – e com o realismo social do modernismo – e mostrando que as ideias da arte abstrata e concretista já se consolidavam no Brasil.

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