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O Cristianismo Lírico de Gilberto Freyre

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O Cristianismo Lírico de Gilberto Freyre

Fátima Quintas'

A religião destacou-se, no Brasil dos tempos da bagaceira, como um duto expressivo na formação dos valores culturais. Em alguns povos, o lado místico provoca a delimitação de facções sectárias. O lidar com versões relacionadas a laços de finitude conduz a certos exageros que são compatíveis à dureza da

realidade enfocada. E da própria natureza humana a elaboração de atitudes fanáticas ao se tratar do sistema ideológico da transcendência. A ortodoxia do cristianismo jesuítico colonial, entretanto, deu lugar à heterodoxia do fetichismo, isto é, permitiu a fundamentação de um conjunto de idéias mais frouxo e, conseqüentemente, mais lasso. Na verdade, os encontros foram tantos que as acomodações afloraram. Ao invés de dividir, a religião uniu; ao invés de estimular proselitismos, propiciou pluralismos; ao invés de elidir crenças, ofertou altares para deuses no sentido de multiplicidade. Traduziu-se num poderoso cerco de equilíbrio, de harmonia e de compensações simbióticas.

O Brasil parece ter sido, e ainda é, o país das ambigüidades. Um país caracterizado por contrastes e, ao mesmo tempo, por unidades. Fortes interligações geradoras de um pensamento

comum circundam a vastidão territorial. Na religião, essas

ambigüidades engrenaram-se com muita percuciência. Não criaram idiossincrasias nem comportamentos irreversíveis. Fundiram mentalidades através da superposição de formas

1 Pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco

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sincréticas. Serviram para galvanizar e conjugar oposições: o negro, com o fetichismo pleno de variâncias; o índio, com o animismo atávico, não menos fetichista e garbosamente totêmico; o português, coma plasticidade susceptível a alternativas místicas. O catolicismo brasileiro vestiu-se de túnicas líricas. Resultou de encontros ecléticos, quase holísticos. Portugal, já por si, evidenciava um misticismo carregado de hiperestesias, talvez até

despersonalizado nas múltiplas raízes: romanas, mouras, judias, bárbaras, pagãs, cristãs. Do islamismo advieram inúmeras influências que amoleceram com destreza o quadro religioso em vigor. A seu jeito, esculpiu a mentalidade do português ou fê-la conviver com outras formas de conhecimento religioso, aumentando a percepção para além de si mesmo. Propenso que era à aceitação de novos modelos, o lusitano soube associar crenças, evitando setorializá-las em parâmetros separatistas.

O mundo português não se fechou num catolicismo intransigente. Permitiu achegas, variadas achegas, que viriam mais tarde a alargar-se com as predisposições indígenas e africanas. O colorido resultou em um degradé e realçou atitudes de simpatia, desaguando num surrealismo religioso. Sim, digo surrealismo religioso, porque acredito que as tonalidades dos pincéis atuaram eficazmente no misticismo brasileiro, de modo a torná-lo polivalente e multUdeolágico.

A plasticidade do português no saber acolher sábios influxos vem de longe. Com isso, a raça, indefinida nos critérios de ortodoxia étnica, desenvolveu suportes altamente facilitadores, que contribuíram para a excelente predisposição a novos contextos, deixando fluir dentro de si a face sincrética, tão valiosa no processo interacional. A influência moura e outras influências, inclusive a judaica, mas, principalmente a moura, foi fundamental para o afrouxamento de princípios valorativos, suscitando um fértil relativismo. Escapou, assim, ao absolutismo que outros povos apresentaram. Ao aceitar nichos simbólicos de raças diversas, relativizou a concepção de identidade, multiplicando-se numa versatilidade de comportamento. As tendências mouras derramaram-se sobre o ibérico a traçar um cosmopolitismo pródigo de heterodoxias. Cosmopolitismo que vai transparecer na

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personalidade do reinol receptivo à força de uma religião que não se arruinava em flagelos carnais. Arruinou-se muito mais em erotismo carnal. O português aplaudiu com entusiasmo a maleabilidade de um catolicismo arrevesado, quase inspirador de pecados. Pecados de luxúria, aqueles doces pecados que sempre o atraíram. Toques fesceninos a estimularem gozos sexuais tão do agrado do macho colonizador. Religião com cheiro de carne, sensualizada em atos clandestinos de prazer, todos capazes de auferirem níveis elevados de procriação. Religião com indulgências carnais para homens anestesiados de orgasmos. O cristianismo abrandou seus princípios para apaziguar a angústia civilizatória do povoamento. E apaziguou muito bem. Com esbanjadores acenos. Com artifícios meticulosos. Com focos exagerados de lubricidade. A rotina entremeou-se de apelos sexuais que animaram a festa da carne, religiosamente permitida, o que já lhe conferia ganhos adicionais. Regalos divinos. Abençoados pela liturgia da fé.

Devemos fixar [a] influência moura sobre a vida e o caráter português: a da moral maometana sobre a moral cristã. Nenhum cristianismo mais humano e mais lírico do que o português. Das religiões pagãs, mas também da de Maomé, conservou como nenhum outro cristianismo na Europa o gosto de carne. Cristianismo em que o menino Deus se identificou com o próprio Cupido e a Virgem Maria e os Santos com os interesses de procriação, de geração e de amor mais do que com os de castidade e de ascetismo. Neste ponto o cristianismo português pode-se dizer que excedeu ao próprio maometismo. Os azulejos, de desenhos assexuais entre os maometanos, animaram-se de formas quase afrodisíacas nos claustros dos conventos e nos rodapés das sacristias. De figuras nuas. De meninozinhos Deus em que as freiras adoravam muitas vezes o deus pagão do amor de preferência ao Nazareno triste e cheio de feridas que morreu na Cruz. Uma delas, Soror Violante do Céu, foi quem comparou o Menino Jesus:a Cupido:

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Pastorzillo divino que matas de amor Ay, tened no fecheis, No tereis, nó,

Que no caben más flechas En mi cora çon!

Mas tirad, y flechadme Matadme d'amor, que no quiro más vida Que morir por vós!

No culto ao Menino Jesus, à Virgem, aos Santos, reponta sempre no cristianismo português a nota idílica e até sensual. O amor ou o desejo humano. Influência do maometismo parece que favorecida pelo clima doce e corno que afrodisíaco de Portugal. E Nossa Senhora do O adorada na imagem de uma mulher prenhe. E São Gonçalo do Amarante só faltando tornar-se gente para emprenhar as mulheres estéreis que o aperreiam com promessas e fricções. E São João Batista festejado no seu dia como se fosse um rapaz bonito e namorador, solto entre moças casadouras, que até lhe dirigem pilhérias:

Donde vindes, S. João, que vindes tão molhadinho?

Ou

Donde vindes, ó Batista, que cheirais a alecrim?

E os rapazes ameaçam de pancadas o santo protetor de namoros e idílios:

As moças não me querendo

Dou pancadas no santinho (Freyre: 1966, p. 245-246).

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Santos de carne e com o mesmo sensualismo de homens desejosos de copular. A religião reacendeu a pulsão já bastante inflamada pela chama da libido portuguesa. Encorajado pela Igreja, o sexo tornou-se mais leve e solenemente mais legitimado por mãos que não eram humanas. Mãos sacrossantas com o poder de aplacar o maior de todos os defeitos. Machos e fêmeas puderam gozar o êxtase de uma sexualidade acariaciada por Deus. Que mais se poderia almejar para que o desejo se realizasse com a plena anuência dos pobres mortais? A carne fez-se enlouquecidamente cobiçada na tríade das etnias.

Brancos, negros, índios, pacificavam-se no mutirão da religião. O catolicismo simbolizou a peça de maior importância na obra colonizadora.

O

cimento da união. O lastro simbiótico de

fusão e de entrosamento. Só uma barreira se mostrava intransponível no Brasil colonial: a barreira da heresia. Essa era vista com repúdio, com desprezo e com rejeição. Tudo se aceitava, menos a mancha do ateu, a obliqüidade da heresia e sua frigidez estéril que leva almas à condenação. O Brasil precisava ser um Brasil de santos ou, pelo menos, de guardiões da fé. Assim foi. Exageradamente defensor dos valores cristãos e jesuíticos.

Mas tudo se permitiu neste país celestial sobrecarregado

de feitiços inacianos. Permitiu-se até demais... O que não se suportou foi a pecha do pecado original, para o qual se exigiu a bênção do batismo como limpeza de impurezas.

Repetiu-se na América, entre portugueses disseminados por um território vasto, o mesmo processo de unificação que na Península: cristãos contra infiéis. Nossas guerras contra os índios nunca foram guerras de branco contra peles-vermelhas, mas de cristãos contra bugres. Nossa hostilidade aos ingleses, franceses, holandeses teve sempre o mesmo caráter de profilaxia religiosa: católicos contra hereges. Os padres de Santos que em 1580 tratam com os ingleses da Minion, não manifestam contra eles nenhum duro rancor: tratam-nos até com alguma doçura. Seu ódio é profilático. Contra o pecado e não contra o pecador, diria um teólogo. E

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o pecado, a heresia, a infidelidade que não se deixa entrar na colônia e não o estrangeiro. E o infiel que se trata como inimigo no indígena, e não o indivíduo de raça diversa ou de cor diferente. (..) A nenhum inglês nem flamengo o fato, em si, da nacionalidade ou da raça, impediu que fosse admitido na sociedade colonial portuguesa da América no século XVI. O que era preciso é que fosse católico-romano ou aqui se desinfetasse com água benta da heresia pestífera. Que se batizasse. Que professasse a fé católica, apostólica, romana. (...) A igreja era uma espécie de desinfetório ao serviço da saúde moral da colônia; um lazareto onde as almas ficavam em

quarentena (Freyre: 1966, p. 213-221).

Católicos, sim. Hereges, nunca. A obra de cristianização referendou um processo seletivo vivenciado com bravura pelo Brasil de nossos antepassados. Que chegassem machos e fêmeas batizados. Desinfetados da peste da heresia. Higienizados, estariam prontos para a arte de governar, isto é, para a arte de governar os seus corpos em permanente erupção de desejo. A orgia da carne foi o grande banquete do patriarcalismo. A religião chegou a abençoar como sinal-da-cruz os devassos da moralidade

sexual. Pai-Nossos e Ave-Marias rezavam-se à sombra da cerimônia do amor e das fustigantes sandices da paixão.

De dogmas a casa-grande viveu: quer místicos, quer sociais, quer sexuais. A religião juntou os fragmentos das partituras. E procedeu através de uma fé ampla, templo de muitas e muitas crenças. De tudo coube nesta fé, contanto que a primazia recaísse no catolicismo. O batismo como a chave da salvação. A ele atrelados, permitiram-se inúmeros atores religiosos. Outros coadjuvantes, porém personagens vívidos. O que se queria e se conseguiu era a unidade no orago patriarcal. Aí a religião se consolidou e ganhou ares de Senhora, com poderes decisivos na vida dos séquitos. O engenho acomodou a religião como a tudo acomodou sem permitir deslizes de espécie alguma. A não ser os que ele próprio possibilitou e até mesmo incentivou. As regras pautaram-se numa rigidez unilinear. A devoção à paisagem da

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cana deu-se com tanta arrogância que substituiu a Igreja na obra centralizadora do misticismo. E interessante como o espaço privado atraiu, com imã de alta potência, a religião para dentro do doméstico, consubstanciando o átrio maior de polaridade. A

Igreja cedeu o espaço, muito mais à força do que espontaneamente, vencida pela superioridade do massapê, o suporte econômico atomizador dos mais variados princípios colonizadores.

A religião adentrou-se no interior do complexo da casa e ali se conservou sob a égide do senhor patriarca. O engenho venceu até mesmo as sagradas liturgias do catolicismo. Cooptou-as sem pedir licença. Sem a menor das cerimônias, arqueou a bandeira do triunfo. A dança do massapô agregava mais um triunfo no elenco das vitórias. A casa-grande inteira, na sua compleição de Senhora de todos os santos, tremulou vantagens humanas ou divinas, pouca diferença fizeram.

No Brasil, a catedral ou a igreja mais poderosa que o próprio rei seria substituída pela casa-grande de engenho. Nossa formação social, tanto quanto a portuguesa, fêz-se pela solidariedade de ideal ou de fé religiosa, que nos supriu a lassidão de nexo político ou de mística ou consciência de raça. Mas, a igreja que age na formação brasileira, articulando-a, não é a catedral com o seu bispo a que se vão queixar os desenganados da justiça secular; nem a igreja isolada e só, ou de mosteiro ou abadia, onde se vão acoitar criminosos e prover-se de pão e restos de comidas, mendigos e desamparados. E a capela de engenho. Não chega a haver clericalismo no Brasil. Esboçou-se o dos padres da Companhia para esvair-se logo, vencido pelo oligarquismo e pelo nepotismo dos grandes senhores de terras e escravos (Freyre: 1966, p. 215).

A oligarquia e o nepotismo da cana debelaram as insígnias da religião. O clericalismo diluiu-se. A catedral perdeu para a capela de engenho, essa tão pequena, simples e rusticamente construída, aquela erigida em alicerces e em dimensões arquitetônicas inigualáveis. Mas a sua soberania plástica não foi

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O Cristianismo Lírico de Gilberto Freyre suficiente para defrontar-se com o império dos oligopólios açucareiros. Perdeu sociologicamente o status de catedral, obtido

na configuração estética, enquanto a humilde capela de engenho - pobre em arquitetura - ao destroná-la, avantajou-se num gigantismo desproporcional à sua feição física. Assim, a capela excedeu-se em catedral, vetusta imagem do poder dos oligopólios. Os aposentos do engenho sediavam uma procissão permanente. Andava-se de rosários na mão, relicários, santinhos, águas bentas, um aparato quase bélico para agradar aos dois senhores. O da terra e o do céu. Rezava-se pela manhã; à hora das refeições; à noite. Conversava-se com os santos, como se eles fizessem parte da família, com presença corpórea definida a responderem e a trocarem idéias. Os santos passeavam dentro de casa lembrando íntimos convidados. Não pontificaram em tronos de luxo. De carne e osso, solidarizaram-se na alegria e na tristeza. Companheiros assíduos dos homens e das mulheres dos corredores dos passos frustrados.

Foi esse cristianismo doméstico, lírico e festivo, de santos compadres, de santas comadres dos homens, de Nossas Senhoras madrinhas dos meninos, que criou nos negros as primeiras ligações espirituais, morais e estéticas com a família e com a cultura brasileira. 'Os escravos tornados cristãos fazem mais progresso na civilização', observou Koster. 'Não se tem lançado mão de constrangimento para os fazer adotar os costumes dos senhores, mas insensivelmente lhes dirigem as idéias para este lado; os senhores ao mesmo tempo contraem alguns hábitos dos seus escravos e desta sorte o superior e o inferior se aproximam. Eu não duvido que o sistema de batizar negros importados tenha antes a sua origem na devoção dos portugueses do que em vistas políticas, mas tem produzido os melhores resultados'.

Não foi só "no sistema de batizar os negros" que se resumia a política de assimilação, ao mesmo tempo que de contemporização seguida no Brasil pelos senhores de escravos:

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consistiu principalmente em dar aos negros a oportunidade de conservarem, à sombra dos costumes europeus e dos ritos e doutrinas católicas, formas e acessórios da cultura e da mítica africana (Freyre:1966, p. 380).

Essa fusão de deidades, umas fetichistas, outras católicas, induziu a equalizacões desejáveis à medida que o negro encaixou a herança religiosa africana à realidade não menos religiosa européia. Emergiu um quadro de síntese, bem ao gosto dos atavismos de cada raça. A síntese proliferou verticalmente, penetrando no imaginário coletivo do povo brasileiro, que hoje defende suas ondulações místicas entre ortodoxias menos ortodoxas.

Uma vida de rezas, a dos nossos antepassados. Um quotidiano cheio de superstições e de crenças religiosas. Nas cadeiras de balanço, as nossas tataravós muito pediram ao Menino de Jesus: saúde para os netos, casamentos para as sinhás, prosperidade para a cana. Do santuário à cozinha, a presença marcante da fé. Porém, uma fé ecumênica, que não se restringia às normas exclusivas do cristianismo. Muito de fetiches, de atavismos, de misturas sadias que concorreram para o bem-estar familiar. A idéia de Deus corporificada. Santos carnais. Com sentimento e com cheiro de gente, o que lhes conferia ganhos através de fortes laços de cumplicidades. Um Deus presente e partícipe de uma vida nem sempre cativa de opulência. Um Deus que chora, que ama, que ri, que aplaude os bons e condena os maus. Um Deus imediatista num mundo secular, logo com sentenças bem definidas para a ruidosa desarmonia do universo. Dotado de sintomas humanos, esse Deus se avantaja em benefícios na batalha da fé. O catolicismo, eivado de divindades corpóreas, logra êxitos desmedidos. Sem separações, o sagrado e o profano coabitaram o mesmo teto numa intimidade mais que prosaica. Deus humanizado, portanto, Deus com muito mais valor, vitorioso na saga dos dogmas infalíveis.

Dessa intimidade entre o sagrado e o profano deriva a mescla humanizada, indecomponível que transforma nosso catolicismo numa crença sem mística especulativa e sem ascética, antes idílico e sensual.

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O Cristianismo Lírico de Gilberto Ereyre Se, como quer Péguy, 'te spirituel est lui-méme chamei', em latitude alguma tal axioma se demonstrou tão cristalinamente quanto em nossa religiosidade de casa-grande e senzala (Nougueira

Moutinho: 1985, p. 101).

Rezava-se a Santo Antônio para arrumar casamento; a Nossa

Senhora do Bom Parto para auxiliar a hora do nascimento; às Nossas Senhoras e aos Santos para colaborarem nas decisões mais complicadas do dia-a-dia. Uma relação amiga, com trocas de confiabilidade.

No século XVII e mesmo no XVIII não houve senhor branco, por mais indolente, que se furtasse ao sagrado esforço de rezar ajoelhado diante dos nichos: às vezes rezas quase sem fim tiradas por negros e mulatos. O terço, a coroa de Cristo, as ladainhas. Saltava-se das redes para rezar nos oratórios: era obrigação. Andava-se de rosário na mão, bentos relicários, patuás, Santo Antônios pendurados ao pescoço; todo o material necessário às devoções e as rezas. Maria Graham ainda alcançou o tempo das ladainhas cantadas ao anoitecer, nas ruas do Recife: brancos, negros, mulatos, todos rezando ao mesmo Deus e à mesma Nossa Senhora. Alguns senhores mais devotos acompanhavam o Santíssimo à casa dos moribundos. Dentro de casa rezava-se de manhã, à hora das refeições, ao meio-dia; e de noite, no quarto dos santos - os escravos acompanhavam os brancos no terço e na salve-rainha. Havendo capelão cantava-se Mater purissima, ora pro nobis(Freyre: 1966, p. 468).

Na ocasião da botada - primeiro dia da moagem da cana—, lá se postava o padre para assegurar o sucesso do eito. Nada se fazia sem sacralizar o profano. O mundo, se sabia, estava cheio de maus olhares. Com Deus como patrono, o trabalho firmava garantias preliminares ejá se prenunciavam ares de prosperidade. Sob a anuência da Igreja, a messe rebentaria em estatísticas assustadoras. O açúcar galgaria o mercado europeu com índices

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em alta. Debaixo do manto católico repousavam-se apetitosos sortilégios. Mais um contrato afiançado. Um bom presságio. Um começo abençoado com previsão de êxito. Afinal, santos e deuses abonavam o porvir. Jejuava-se, observavam-se os preceitos, adaptavam-se às exigências de um ritual programado e meticulosamente respeitado. Claro que os adequando ao trabalho agrícola e os acomodando ao regime alimentar dos escravos. Nada deveria fugir às regras da boa produção, que habilmente relacionavam o mundo secular ao mundo religioso - a transcedência com confetes racionais reclamados pela mundanidade. A trajetória sociológica equalizada dentro dos conformes. Dos grandes eventos ao quotidiano regular.

No dia da botada - primeiro dia de moagem das canas - nunca faltava o padre para benzer o engenho; o trabalho

iniciava-se sob a bênção da Igreja. O sacerdote primeiro dizia missa; depois dirigiam-se todos para o engenho, os brancos debaixo de chapéus de sol, lentos, solenes, senhoras gordas, de mantilha. Os negros contentes, já pensando em seus batuques à noite. Os muleques dando vivas e soltando foguetes. O padre traçava cruzes no ar com o hissope, aspergia as moendas com água benta - muitos escravos fazendo questão de ser também

salpicados pela água sagrada. Seguiam-se outros gestos lentos do padre. Frases em latim. As vezes discurso. Depois de todo esse cerimonial, é que se colocavam entre as moendas as primeiras canas maduras, atadas com laços de fita verde, encarnada ou azul. Só então o trabalho começava nos engenhos patriarcais. Foi assim desde o século XVI (Freyre: 1966, p. 471).

Rezas, muitas rezas. Um doméstico de rezas. Uma casa-grande inundada de misticismo. Não só rezavam mulheres brancas. As negras, sobretudo. Eram tão rezadoras, as negras, que passavam o dia cantarolando músicas sacras, recitando credos e

versos moralistas. Sílvio Romero afirma ter-se tornado religioso diante do exemplo de sua escrava Antônia, a mais devota mulher que conheceu. Passava o dia a rezar e a se benzer, rogando a Nosso Senhor permissão para tudo.

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Não pretendemos aqui considerar o grau de cristianização atingido pela massa escrava— assunto de que nos ocuparemos em estudo próximo; mas o certo é que, por contágio e pressão social, rapidamente se impregnou o escravo negro, no Brasil, da religião dominante. Aproximou-se por intermédio dela da cultura do senhor; dos seus padrões de moralidade. Alguns tornaram-se tão bons cristãos quanto os senhores; capazes de transmitir às crianças brancas um catolicismo tão puro quanto o que estas receberiam das próprias mães.

Sílvio Romero, recordando o seu tempo de menino num engenho do Norte, disse uma vez que nunca viu rezar tanto quanto a escrava Antônia, sua mãe negra. Ela é que o fizera religioso. 'Devo isso [a religião] à mucama de estimação a que foram, em casa de meus avós, encarregados os desvelos de minha meninice. Ainda hoje existe, nonagenária, no Lagarto, ao lado de minha mãe, essa adorada Antônia, a quem me acostumei a chamar também de mãe... Nunca vi criatura tão meiga, e nunca vi rezar tanto. Dormia comigo no mesmo quarto e, quando, por alta noite, eu acordava, lá estava ela de joelhos... rezando... Bem cedo aprendi as orações e

habituei-me tão intensamente a considerara religião como coisa séria, que ainda agora a tenho na conta de uma criação fundamental e indestrutível da humanidade. Desgraçadamente, ai de mim! não rezo mais, mas sinto que a religiosidade jaz dentro de meu sentir inteiriça e irredutível'. Outros brasileiros, da geração de Silvio, poderiam dizer o mesmo. O próprio Joaquim Nabuco terá porventura aprendido com a sua velha ama negra de Massangana o padre-nosso que, no fim da vida, voltou a rezar na Igreja do Oratório em Londres. Quando morreu-lhe a madrinha— 'cena de naufrágio' que evoca numa das páginas mais comovidas de

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Minha Formação - foi o seu grande consolo: a velha ama negra continuar a servi-lo como dantes. 'O menino está mais satisfeito', escrevia a seu pai o amigo que o devia levar à Corte, 'depois que eu lhe disse que a sua ama o acompanharia' (Freyre: 1966,

p. 378-379).

Interessante como a africana internalizou, a seu modo, os preceitos católicos, ela que vinha de um universo religioso—pautado em princípios quase opostos—,porém permissivo e aberto a novas lições, por isso mesmo, capaz de receber adicionais ensinamentos. O mistério de muitas fés incorporou-se ao seu idearium. O fim era

o mesmo. Pouco a arreliaram os caminhos. Todos levavam à mesma direção: Deus. Porque duvidar das inúmeras estradas que conduziam ao céu? Segui-ias no catolicismo, no politeísmo, no fetichismo, no animismo, apontava a única ordem sensata a ser cumprida. A negra aceitou a multiplicação dos caminhos, contanto que lograsse o porto almejado.

Oculto a Maria, Mãe de Jesus - volto a insistir nesse eixo de reflexão—, exerce e exerceu no Brasil expressão muito forte. Talvez para compensar a dose de autoritarismo do patriarca. A figura da mulher vem coroada de emblemas de suavidade e de generosidade, indispensáveis para neutralizarem o despotismo do homem, acobertados por inúmeros axiomas que o transformaram em miniaturas de deuses. A mulher, queriam-se outros ademandes, dóceis e passivos. O instinto materno, a vocação cultural de um comportamento apaziguador, a ação tranqüilizadora induziram o feminino a elevados níveis de mediação. Criou-se, dessa forma, uma divisão clara entre o macho e a fêmea. Do macho jorravam posições severas; da fêmea, posições amenas, acalentadas pela mansidão da iconolatria da mãe. Os estereótipos em torno da

grande mãe estenderam-se numa lógica projetiva ao culto de Maria. A Mãe de Jesus, santificada pela sua abnegação e desprendimento, serviu de contraponto à imagem do pai-patriarca, impetuoso, dotado de incontestável autoridade, ordinariamente resvalada para o autoritarismo.

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A extrema receptividade do brasileiro ao culto de Maria, Mãe de Deus, da Mãe dos Homens, de Nossa Senhora que, em nosso cristianismo mais popular e mais lírico, chega a soprepujar o culto de Deus Pai e de Cristo Nosso Senhor, talvez encontre sua explicação naquele maternalismo, moral e psiquicamente compensador dos excessos de patriarcalismo em nossa formação. Excessos identificados com o despotismo ou a tirania do homem sobre a mulher, do pai sobre o filho, do senhor sobre o escravo, do branco sobre o preto

(Freyre: 1981, p. XCV).

Maria, feminina, amenizou as incoerências do masculino. Deus, símbolo de homem, ajustar-se-ia às demandas da cultura machista. A figuração do sagrado reponta, com certeza, aos próprios critérios de dualidade de gênero. São ajustes que decorrem de processos culturais e que denotam paradigmas sociológicos definidos. A hierarquia do céu se modulando à semelhança da hierarquia da terra. Decodificações análogas que facilitam a compreensão dos contextos religiosos. Há que se renderem homenagens à formulação de mapas cognitivos altamente elaborados por inteligências privilegiadas. E o sofrimento neutraliza-se em imagens bifurcadas: frágeis femininas, fortes masculinas. As gentes comuns, através das manifestações populares, recorrem aos mecanismos compensatórios a fim de equacionarem os seus problemas a partir de modelos já conhecidos. Só se pode reproduzir o que é conhecido. O desconhecido é dogmatizado em escudo de fé; jamais gestado, de forma isolada, na mente humana. A habilidade do povo revela a sabedoria que nasce da inteligência silenciosamente criadora de novas adaptações. Imagens universais e representativas de um conhecimento empírico, quase sempre mais lógico que o teórico.

A leveza do Cristianismo lírico, dissolvido por entre ícones poéticos, acarretou enormes lucros sociológicos para a regulação familiar da casa-grande. Repita-se: não se construíram hiatos entre deuses e homens. Juntos conviveram para amanhar liricamente os desafetos do doméstico. E todo mundo sabe que os deuses têm

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maiores poderes que os homens. Até mesmo maiores poderes que os patriarcas. Nem o senhor de engenho duvidou dessa iconolatria.

Quando se perdia dedal, uma tesoura, uma moedinha, Santo Antônio que desse contado objeto perdido. Nunca deixou de haver no patriarcalismo brasileiro, ainda mais que no português, perfeita intimidade com os santos. O Menino Jesus só faltava engatinhar com os meninos da casa; lambuzar-se na geléia de araçá ou goiaba; brincar com os muleques. As freiras portuguesas, nos seus êxtases, sentiam-no muitas vezes no colo brincando com as costuras ou provando dos doces. (...) Impossível conceber-se um cristianismo português ou luso-brasileiro sem essa intimidade entre o devoto e o santo. Com Santo Antônio chega a haver sem-cerimônias obscenas. E com a imagem de São Gonçalo jogava-se peteca em festas de igreja dos tempos coloniais.

Em Portugal como no Brasil, enfeitavam-se de tetéias, de jóias, de braceletes, de brincos, de coroas de ouro e diamante as imagens das virgens queridas ou dos Meninos Deus como se fossem pessoas da família. Dão-se-lhes atributos humanos de rei, de rainha, de pai, de mãe, de filho, de namorado. Liga-se cada um deles a uma faLiga-se da vida doméstica e

íntima (Freyre: 1966, p. XXXVII, 246-247).

A hierarquia religiosa, comum ao cristianismo clássico, perdeu terreno no contato com a africariidade. Essa amaciou a religião, pluralizando-a em incontáveis dimensões ascéticas. Assim como fez com a linguagem e com a alimentação, tirou-lhe as espinhas, a dureza, o ar de punição, deixando-a mais leve, mais complacente e sobremaneira mais solidária. Aliás, o cristianismo doméstico, lírico, ainda se observa hoje no Nordeste brasileiro, mormente nas classes de baixa-renda. Em recente pesquisa, pude observar tal fenômeno entre as mulheres faveladas do Recife. Filiadas aos deuses, que são íntimos amigos do dia-a-dia, conseguem resgatar

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O Cristianismo Lírico de Gilberto Freyre

a dignidade perdida e suportar a fome, a miséria, a privação. Um lirismo prático, quase lúdico, domina o pensamento místico da pobreza. Catártico, ao mesmo tempo. Responsável pela descoberta de canais de sobrevivência que amenizam as tempestades do infernal quotidiano. Deus transmuda-se em feições humanas. Companheiro de todas as horas, a partilhar do sofrimento diário. Que vê, que notifica, que arquiva, que está próximo e, principalmente, atento aos desequilíbrios sociais e que certamente recompensará as vicissitudes de uma marginalidade econômica. E simpático registrar que a idéia de Deus ganha corpo palpável na medida da necessidade. Logo, esse Deus se molda ao tamanho da miséria. Coabita com os mortais, agregando mistérios que são eminentemente simplórios e comuns. Complexos postulados fogem à percepção da mulher pobre e não se equacionam na dinâmica do quotidiano. O que importa é vencer a batalha dos dias difíceis. Um Deus com rosto de gente. De gente como a gente. Estou segura de que essa concepção extrapola as classes faveladas do Brasil, embora não tenha dados qualitativos suficientes - com o rigor metodológico exigido - para comprovar minha tese em camadas médias e altas da sociedade. Como afirmei, a percepção de necessidade quer material, quer psicológica -reclama conceitos mais humanos de religião. E observa-se, no mundo contemporâneo, uma crescente recorrência a religiões mais terrenas, mais participativas, mais próximas dos problemas diários. As religiões assistencialistas afloram com propósitos direcionados às realidades econômica, emocional e afetiva dos grupos sociais. Registre-se que o final do século presencia uma enorme proliferação de religiões/seitas, grupos místicos, com firmes propósitos de socorrerem às turbulências de uma vida terrena calcinada por inqüidades as mais diversas. Assim, a dimensão de necessidade não recai somente nos aspectos de "privação econômica", mas também na esfera psicológica e emocional, dilatando os enésimos critérios apelativos. O Brasil desenvolveu-se sob a miragem benéfica do catolicismo plural e esbanjadoramente repositório de crenças alienígenas. A capacidade de aceitar e de conviver com o exógeno, com o que não pertenceu à Bíblia da religião lusitana, fez do catolicismo um leque de diversidade, um verdadeiro oráculo de todas as gêneses

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possíveis. Sem discriminações, aceitou as mais variadas místicas, unificando-se na pluralidade. Há que se realçar: a multiplicidade dos valores religiosos dignificou o catolicismo em degraus de superioridade, balizando-o em ângulos polissêmicos de modo a abraçar o ímpeto espiritual de cada povo.

Respondo sem hesitação que esse desenvolvimento se verificou sempre debaixo de uma constante: a religião. Não uma religião determinada [..], mas a religiosidade, esse misto de crendices em que sempre andou o povo brasileiro. Sem dúvida que o Catolicismo foi o elemento mais vigoroso nesse conjunto, mas ele mesmo é, sob certos aspectos, aqui no Brasil, 'superstição católica', na frase que não há muito assinalei em Mário de Andrade. O próprio Gilberto Freyre nos dá páginas esplêndidas sobre esse espírito religioso, que, se nunca nos abandonou, foi, sempre, em compensação, uma mescla de crenças ameríndias, africanas e ocidentais. Nesse particular, é de se acentuar que o Catolicismo, como religião culturalmente superior, sofreu, no entanto, em contato com o índio e com o negro, a influência das crenças destes últimos, conforme já está tão exaustivamente comprovado pelos estudiosos.

Ainda assim, não se nega ao Catolicismo ter sido, na expressão de Gilberto Freyre, o cimento da nacionalidade, pois ele nos é credor, quando menos, por esse sentido da unidade a que tanto devemos em nossa vida social e política. Sem dúvida, foi o espírito do Catolicismo que sempre nos ajudou a manter o Brasil absolutamente indiviso, sem sacrifício de suas peculiaridades regionais (Martins: 1985, p. 273).

Sensualidade não faltou ao Catolicismo colonial. A religião chegou a, se não apregoar, condescender com a liberalidade das relações genitais. Com muita astúcia, adequou-se à realidade e promulgou preceitos libidinosos. A produção e a reprodução

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O Cristianismo Lírico de Gilberto Freyre simbolizaram a máxima de um Brasil habitado por pouca gente, porém desejoso de corpos exóticos e atraentes. Os padres, a quem se imaginou a virtude do celibato, tenderam a essa luxúria. Tanto que, em nome da moral religiosa, houve iniciativas de afiançar, sem o sucesso esperado, a condição de abstinência sexual para sacerdotes, sugerindo-se a moradia do capelão fora da casa-grande. E, ainda: com escrava velha para servi-lo, dotada de poucos atributos físicos. Evitavam-se assim as tentações. Pelo menos, o clero deveria corresponder aos princípios louvados pela Igreja, entre os quais, o mais pudorosamente defendido, o da sublimação sexual. Que os laicos se afogassem no prazer orgástico. Os padres, não. Tudo leva a crer, contudo, que a libido superou o presbítero, estimulou o desejo e anulou os supremos dogmas católicos. Mas, tentativas ocorreram. Se não lograram os resultados ansiados, colaboraram para tranqüilizar a consciência dos mais austeros padres da Companhia de Jesus, esses, uns donzelões convictos.

Ao seu ver deviaocapelâo manter-se 'familiar de Deus, e não de outro homem'; morar sozinho, fora da casa-grande; e ter por criada escrava velha. Norma que parece ter sido seguida raramente pelos vigários e capelães dos tempos coloniais (Freyre: 1966, p. 216).

De rezas, a casa-grande envaideceu-se. Lábios balbuciando; mãos com terços a tirar dezenas; ave-marias repetidas com ardorosa fé; pais-nossos quase cantados a mendigarem pedidos e mais pedidos... Rezas não faltaram. Um verdadeiro "comércio", em que as trocas se davam: os da terra penitenciando-se; os do céu, atendendo aos apelos plangentes. Assim, o solar do engenho acobertou-se dos insumos celestiais. Com pagamentos de dívidas antecipadas, estabelecia-se um intercâmbio do menos poderoso com o mais poderoso. A vida transcorria em alicerces sólidos, uma vez relativizada pelo Deus absoluto. Houve esmero religioso. Afinal, era preciso que nada resvalasse para os desacertos mundanos. Santos e santas unidos na força de mitigar e acalentar os perigos dessa vida tão sodomitamente inclinada à prática da transgressão. O homem, mortal e pecador, sob o manto da divindade maior, receberia as indulgências de um Pai misericordioso.

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Uma reza pragmática, isto é, com formas utilitárias, a doméstica, impregnada de urgências corriqueiras. Prestes a lidar com a ritualidade da vida. Quase que agregada a coisas simplórias. A toda hora, solicitada como veículo amortecedor de problemas. Acionavam-se as cantorias, se assim desejassem. Em qualquer eventualidade, as vozes clamavam. Não lhes faltaram adeptos. A negra e as rezas combinaram-se em mútua invocação.

Quando trovejava forte, brancos e escravos reuniam-se na capela ou no quarto do santuário para cantar o bendito, rezar o magnificat, a oração de São Brás, de São Jerônimo, de Santa Bárbara. Acendiam-se velas; queimavam-se ramos bentos; recitava-se o credo-em-cruz. Certas doenças tratavam-se com orações e com óleo, como nos tempos apostólicos: a erisipela, por exemplo:

Pedro e Paula foi Roma e Jesus Cristo encontrou. Este lhe perguntou: - Então que há por lá? - Senhor, erisipela má. - Benze-a com azeite

e logo te sarará...

Pelas janelas eportas da casa grudavam-se papéis com orações para protegera família de ladrões, assassinos, raios, tempestades. Orações a Jesus, Maria e José. E nos velhos engenhos patriarcais, cantavam-se hinos à Sagrada Família (Freyre: 1966, p. 469).

A casa-grande, vestida com o rigor do Santíssimo Sacramento, adquiriu imunidades que foram usadas pelo patriarca, cioso das suas vantagens enquanto detentor de prósperas economias. O pecado desfilou livremente à guisa das supremas

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prerrogativas. Pecados sexuais que obtiveram larga benevolência da religião.

Companheira assídua dos meninos brancos, a africana rezadora incutiu-lhes a vontade de agradar ao Menino Jesus, de aprender a lição do dia, de revogar assuntos proibidos. Orientadora espiritual de muita sinhá, que encontrava na liberalidade da negra justificativa e apoio para os seus namoros quase sempre

platônicos, não pôde, entretanto, reverter a síndrome dos amores impossíveis. Amores que continuaram platônicos e místicos, porém, abençoados pelo véu permissivo da negra. Ao macho, o catolicismo abrandou a culpa, se não dos pecados corriqueiros, dos pecados da sexualidade. A negra recebeu os ensinamentos do céu e fertilizou-os com os pecados da terra. Assim, resolveu problemas inexoravelmente repudiados pelos dogmas inflexíveis de um cristianismo puro que não chegou a fixar-se no Brasil, já imbuído de uma lusitanidade pecaminosa. A mulher portuguesa sobejaram-lhe êxtases místicos muito bem fundamentados na sublimação de um sexo adiado. Fazia-se urgente lançar mecanismos compensatórios. Somente pelo eficaz instrumento das promessas celestiais, acomodar-se-iam os impulsos da libido feminina. As rezas substituíram os ímpetos pouco honrosos. Extases místicos elevariam a mulher a estágios condignos à sua imposta dimensão seráfica.

Para além da Natureza, [a mulher] busca por vezes uma realidade mais longínqua e mais deslumbrante ainda; está disposta a perder-se em êxtases místicos; nas épocas de fé, numerosas jovens almas femininas pediam a Deus que enchesse o vazio de seu ser. (..) Noutros tempos é a humanidade que aparece como fim supremo; então o impulso místico funde-se em projetos definidos (Beauvoir: s.d., p. 103).

Os êxtases místicos da africana manaram de outras necessidades que não as sublimações dos apelos do corpo. Necessidades da própria natureza humana em busca da transcendência. Filosoficamente mais existenciais, plenos de arpejos de continuísmo. Religosos, com honras de uma verticalidade na fé.

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Quem de nós não carrega na alma o toque animista da negra? Os seus mistérios, as suas mandingas, as suas feitiçarias? Do

mais ateu ao mais religioso, o brasileiro traz dentro de si uma colméia de fetiches e de superstições. As superstições integram em cheio o seu imaginário com uma gama vastíssima de lances mágicos. E ai do brasileiro que não respeite os seus babalorixás, o seu Deus, os seus santos protetores. Um tanto à mercê dos suspiros lendários.

Quermesses, festas de igreja, sorteios, rifas sincronizaram o caráter alegre e telúrico da secularização do cristianismo que se desenvolveu sob o crivo das oblações jesuíticas. Uma secularização que alfinetou a própria sexualidade, quando estabeleceu adereços eróticos na dinâmica patriarcal. Basta voltar a citar a ainda usual denominação dos doces, hoje populares, porém, anteriormente confeccionados em conventos, que se especializaram no chamariz de mistérios seráficos e não menos fesceninos: papos-de-anjo, sonhos, olhos-de-sogra, babas-de-moça, suspiros, beijos, manjares-dos-deuses, nuvens-de-coco...

Nomes sensuais outorgaram à ação degustativa fermentos instigantes e aliciadores da prática do amor. Um surto de fascínio alimentar e libidinal para tornar os recônditos da casa-grande apimentados nas coisas de sexo. A negra provou ser excelente nesse condimento. Exerceu uma função preponderante na exegese do cristianismo lírico.

A casa-grande vivenciou o encontro não somente das raças, mas também das religiões que, embora revestidas da autoridade cristã, acabaram por se fundir numa bela paisagem, onde a mistura dos conhecimentos enriqueceu a dimensão da fé. Uma mística que não se respaldou em preceitos exclusivamente religiosos, porém igualmente mudanos e profanos. Unindo o sagrado ao secular, sem estabelecer fronteiras rígidas entre a religião e a vida, a contextualização do cristianismo lírico subjaz às adaptações sincréticas do catolicismo português, do animismo atávico indígena e do fetichismo pluralista africano. Uma combinação babilônica com efeitos compiscuamente valiosos.

Do negro, todos nós aprendemos um pouco. Suas reminiscências religiosas estão presentes como insígnias culturais

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O Cristianismo Lírico de Gilberto Freyre que ultrapassarão o tempo, alongando-se na unidade brasileira, qual refrão de velhos contrastes coloniais.

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