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Discursos sobre a deficiência: enunciados e práticas de (in/ex)clusão

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Academic year: 2021

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Vivian Ferreira Dias

DISCURSOS SOBRE A DEFICIÊNCIA: ENUNCIADOS E PRÁTICAS DE (IN/EX)CLUSÃO

Tese apresentada ao Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito final para a obtenção do título de Doutora.

Área de Concentração: Condição Humana na Modernidade

Orientadora: Sandra Caponi Co-orientadora: Myriam Mitjavila

FLORIANÓPOLIS 2018

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Dias, Vivian Ferreira

Discursos sobre a deficiência : enunciados e práticas de (in/ex)clusão / Vivian Ferreira Dias ; orientadora, Sandra Caponi, coorientadora, Myriam Mitjavila, 2018.

338 p.

Tese (doutorado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas, Florianópolis, 2018.

Inclui referências.

1. Ciências Humanas. 2. Pessoa com deficiência. 3. Análise do discurso. 4. Inclusão. I. Caponi, Sandra. II. Mitjavila, Myriam. III. Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas. IV. Título.

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Discursos sobre a deficiência: enunciados e práticas de (in/ex)c1usão Esta tese foi submetida ao processo de avaliação pela Banca Examinadora para obtenção do título de Doutor(a) em Ciências Humanas e aprovada, em sua forma final, atendendo às normas da legislação vigente do Programa de Pós­ Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas/Doutorado.

Profa. Dra. Sandra N e Caponi(orientador/a)

C

.

7Ld

Profa. Dra. Carmen Rial

Coordenadora do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências

Humanas •

Banca Examinadora:

Profa. Dra. Sandra Noemi Cucurullo

Prof. Dr. Luis David Castiel (membro externo) - (Fundação Oswaldo Cruz) FIOCRUZ

Profa. Dra. M ..,;;;.;..:..:....:....::.:.:..~~...;....;;...;;.;;..~~~interno) - UFSC

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Ao meu pai, Norival Que lavrou a terra Para que eu pudesse colher palavras Cuja existência foi tão breve... Mas suficiente para florescer sempre em mim!

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente, à minha irmã Luciana, que foi minha mestra desde as primeiras letras, minha interlocutora nas teorias, alguém com quem sempre pude contar. Assim como no mestrado, você continua a mesma leitora atenta, a mesma parceira que constitui quem eu sou.

Aos meus amados filhos gêmeos, Helena e Heitor, propulsores das minhas lutas e conquistas. Obrigada por estarem ao meu lado sempre, me permitindo esboçar novos sentidos, independentemente dos quilômetros que possam nos separar em alguns momentos.

Ao meu amado esposo, Leandro. Do seu jeito, mesmo que distante da tese propriamente dita, sem sombra de dúvidas: seu apoio, seu incentivo e seu companheirismo, foram essenciais. Ter alguém com quem contar é sentir-se apta a escrever novas palavras.

À minha irmã Cintia, especialmente pelo período que antecede este trabalho. Tudo tem história, e foi uma longa história chegar até aqui. Todos os apoios que me deu, nos momentos de sufoco, permitiu que eu pudesse concretizar aquilo que idealizei há muito tempo.

Aos meus pais, Zuzu e José Carlos, duas pessoas incríveis, que generosamente me admiraram e me apoiaram ao longo da vida. E essa confiança depositada foi uma das condições de possibilidade para materializar novas sensibilidades e novos discursos.

Às minhas doces sobrinhas: Clara, Heloísa e Isadora. Suas surpreendentes ações, reações e descobertas, mostram-me que há sempre uma novidade em toda produção.

Às queridas amigas da Coordenadoria de Acessibilidade Educacional (CAE)/Secretaria de Ações Afirmativas e Diversidades (SAAD), da Universidade Federal de Santa Catarina, pela parceria e pelo apoio. Minha gratidão, também, às chefias que permitiram a realização das disciplinas, no início do processo, e meu afastamento, para a conclusão do trabalho. Agradeço, ainda, a todas as pessoas (servidores técnicos e docentes, estudantes, dentre outros) que possibilitaram o meu contato com a categoria “deficiência”, e que propiciaram, tranquila ou duramente, o redimensionamento dos meus discursos e das minhas práticas.

Aos queridos e maravilhosos companheiros do doutorado, especialmente a turma de 2015 (e seus agregados). A humanidade de vocês tornou o processo de delineamento da tese mais sensível e mais feliz. E produziu os melhores efeitos de sentidos possíveis.

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Aos integrantes do Núcleo de Estudos em Sociologia, Filosofia e História das Ciências da Saúde (NESFIS), coordenado pela professora Sandra Caponi, pelas produtivas discussões e contribuições, que inventaram novas trajetórias à minha produção.

Aos mestres, de toda a vida (de todo o meu percurso no ensino público paulista, da pré-escola ao mestrado) e os mais atuais, já em terras catarinenses (em especial, aos docentes do DICH). Agradeço à co-orientadora Myriam Mitjavila, e, especialmente, à minha co-orientadora, Sandra Caponi, cujo apoio sensível permitiu um discurso também sensível, e não outro. Manifesto, ainda, um “Viva!” ao admirável Selvino Assmann, cuja sabedoria embalou os meus estudos, cujo questionamento sobre a vida impulsionou minhas análises.

Agradeço, também, a todos os docentes envolvidos na avaliação do trabalho, tanto na qualificação, quanto na defesa. Afinal, ser julgada é aprender a se redefinir!

Enfim, meu muitíssimo obrigada a todos aqueles que tornaram a caminhada mais produtiva e mais leve!

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Quero assistir ao sol nascer Ver as águas dos rios correr Ouvir os pássaros cantar Eu quero nascer Quero viver Deixe-me ir Preciso andar Vou por aí a procurar Rir pra não chorar Se alguém por mim perguntar Diga que eu só vou voltar Depois que me encontrar (Preciso me encontrar – Cartola)

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RESUMO

Tomando a deficiência como uma categoria multifacetada, historicamente marginal e que, na atualidade, se constitui também pela inclusão/acessibilidade, o presente trabalho busca analisar os discursos sobre a deficiência: seus deslocamentos, suas dispersões e suas regularidades. Parte-se da tese de que a inclusão – a qual requer o acolhimento irrestrito de todas as pessoas, a despeito de suas particularidades, com equidade e respeito – ainda não está posta. E, sobretudo, não se faz apenas por procedimentos técnicos e equipamentos acessíveis. Os discursos, historicamente produzidos, as consequentes práticas sobre/na deficiência, bem como as relações de poder imbricadas nesse processo, (in)viabilizam a inclusão. Ou seja, inclusão e exclusão, são também discursivas. Nesse sentido, a tese se organiza em torno de domínios que constituem a formação discursiva da deficiência: o histórico (e seus atravessamentos), o médico, o corporal, o jurídico e o político, bem como algumas materializações discursivas que são representativas desses. As análises se dão na perspectiva foucaultiana (especialmente pela mobilização de conceitos trazidos em “Arqueologia do Saber” (1969/1997) e “A ordem do discurso” (1970/1996)). É possível atestar, pelas diferentes materialidades analisadas, que os sentidos sobre a deficiência se constituem em um regime de dispersão, mas têm, sobretudo, a normalidade e a exclusão como seus contrapontos. Percebem-se, ainda, novas dimensões que passaram a ser incorporadas ao discurso sobre a deficiência, estabelecendo-se novos contornos e novas articulações com outros domínios. Os enunciados acerca da deficiência trazem, de forma bastante regular, um fio tensivo entre visibilidade e invisibilidade, e que constitui a produção de sentidos e de modos de subjetivação. Foi possível perceber que, a depender dos discursos praticados, ora a deficiência é um castigo, ora uma missão, ora um problema, ora uma incapacidade (que precisa ser contornada), sendo em outros casos, uma variação, uma característica. A deficiência vive, sobretudo, uma tensão entre ser comum e ser extraordinária, entre estar no corpo e estar no contexto, entre ser uma anomalia e ser uma característica. Ainda que os enunciados tentem apagar a memória de exclusão, de anormalidade e de reabilitação, o discurso escorrega, e nessa dispersão, a visibilidade/inclusão ainda trazem uma aproximação com a normalidade (no sentido da ausência de lesão ou déficits) e com valores normativos (tais como: ser culto, produtivo, capaz, jovem) e que contraditoriamente instituem processos de exclusão no

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interior das próprias empreitadas inclusivas. Conclui-se que os enunciados praticados sobre a deficiência, e, por conseguinte sobre a pessoa com deficiência, criam sujeitos diversos. Mas parece ser o sujeito construído como “comum” aquele que trará inteligibilidade para a inclusão. Porque é nessa perspectiva que os papéis de herói e/ou coitado não encontram condições de emergência, passam a ser diluídos, uma vez que a posição-sujeito “comum” traz um caráter ordinário à deficiência. A imersão nos discursos sobre a deficiência, e seus efeitos, pode ser compreendida como uma prática profícua de delineamento da inclusão, uma vez que irá permitir que os sentidos históricos sejam redimensionados e que novos dizeres, saberes e práticas, rompam com o caráter extraordinário da deficiência.

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ABSTRACT

Taking in account disability as a multifaceted and historically marginal category that also constitutes itself, currently, by the means of inclusion/accessibility, this present work has a goal to analyze discourses concerned with disability in terms of its shiftings, dispersions as well its regularities. It is assumed that inclusion- that requires unrestricted host from everyone, despite its particularities, in an equity and respectful way- it has not set yet. Furthermore, inclusion mainly does not work only by the means of technical procedures and accessible equipments. Discourses historically produced, consequences practical on/in the disability, as well power relationships imbricated within these processes make inclusion quite impossible. In other words, inclusion and exclusion are also discursive practices. In this sense, this thesis is organized around domains that constitute disability discursive formation: historical, medical/ scientific, body expression, legal and political domains, as well some discursive representative materializations about these practices. Analyses are grounded on Michel Foucault’s methodology and theoretical approach, mainly based on mobilization of those concepts that emerges from Arqueologia do Saber” (1969/1997) and “A ordem do discurso” (1970/1996). It is possible to demonstrate on the basis of the analyses developed from different materialities that senses about disability constitute a scheme of dispersion, however these senses mainly have normality and exclusion acting as counterpoints. It has still noticed new dimensions that become incorporated to discourse about disability, so that new contours and joints with other domains are established. Statements about disability bring, in a regular way, a tensive thread between visibility and invisibility that constitutes sense production and modes of subjectivation. It is possible to notice that, depending on discourses produced, sometimes disability is a punishment, sometimes it is a mission, or a problem, sometimes it is an inability (that should be controlled), or, in another cases, a feature, a typical characteristic. Disability lives with a tension between being ordinary and extraordinary one, that is, between being placed at the body or with its surroundings, between being an anomaly or a feature. Although statements try to erase the memory of exclusion, abnormality and rehabilitation, the discourse slips, and within dispersion, the visibility / inclusion still brings an approximation with normality (in the sense of lack of lesions or deficits) and normative values (such as: being cultured, productive, capable, young) that

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contradictly institute exclusion processes within their own inclusive endeavors. It was concluded that the statements produced about disability, and therefore about the person with disability, create diverse subjects. However, it seems to be the constructed subject as "ordinary" one that will bring intelligibility to inclusion. Because from this point of view, roles of hero and / or poor person do not find emergency conditions, they become diluted, since the "common" subject position brings an ordinary character to the deficiency. Immersion in discourses about disability, and its effects, can be understood as a useful practice in outlining inclusion, as it will allow the historical senses to be redimensioned and new sayings, knowledge and practices to break with the extraordinary character of the disability.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...19

METODOLOGIA - GESTOS DE ANÁLISE - DISCURSOS EM CURSO...35

1 ROMPE-SE O SILÊNCIO: O DOMÍNIO HISTÓRICO...47

1.1. Um pouco de história e (des)continuidades...49

1.2. As palavras do Salvador...52

1.2.1 Os deslocamentos nas palavras do Salvador...58

1.3. Os sentidos objetivos sobre a deficiência...63

1.3.1 Os objetivos (in/ex)cludentes...68

1.4. As outras vozes ao longo da história...73

1.4.1. Deficiência e Loucura: os (des)encontros...73

1.4.2. Ecos e deslocamentos: Estudos sobre a deficiência...81

1.4.3 Transversalidades...86

1.4.4. Teoria Crip...93

2 NEM TOTALMENTE VIVO, NEM TOTALMENTE MORTO: OS DOMÍNIOS MÉDICO E CORPORAL...97

2.1. Biopoder e deficiência...98

2.2. A normalidade como um sentido e a medicalicalização da humanidade...101

2.3 A Liga Brasileira de Higiene Mental...105

2.3.1 A pessoa com deficiência para a Liga Brasileira de Higiene Mental...110

2.4 Os (des) encontros entre Medicina e Deficiência...114

2.5. Corpos estigmatizados x corpos naturalizados: a dimensão corporal...120

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2.5.1 O corpo que “vacila” ... 121

2.5.2. Corpos Abjetos ... 123

2.5.3 O corpo aniquilado? ... 124

2.5.3 O corpo sem órgãos: fuga à normalização? ... 126

2.6 Corpos, discursos e práticas...127

3 O DIREITO DE SER VISÍVEL E A ACESSIBILIDADE DECRETADA: O DOMÍNIO JURÍDICO...133

3.1. O macro da categoria...134

3.1.1. Leis do passado: constituições brasileiras e a representatividade da pessoa com deficiência ... 135

3.1.1.1. A Constituição de 1824 ... 135 3.1.1.2. A Constituição de 1891 ... 135 3.1.1.3 A Constituição de 1934 ... 136 3.1.1.4 A Constituição de 1937 ... 139 3.1.1.5. A Constituição de 1946 ... 141 3.1.1.6 A Constituição de 1967 ... 143 3.1.1.7 A Constituição de 1988 ... 145

3.2. Leis sobre a deficiência/acessibilidade...149

3.2.1. Os sentidos individuais: assistência ... 150

3.2.2. Os sentidos coletivos: o entorno ... 154

3.2.3. Os interlocutores: é preciso ser ouvido ... 158

3.3. A acessibilidade especificada: decretos...159

3.4. Os deslocamentos e as regularidades legais: A Lei 13.146...165

3.4.1. A “coisidade” da coisa e a “pessoalidade” da pessoa: o Estatuto da pessoa com deficiência. ... 169

3.4.2. A loucura e a deficiência se religam? ... 172

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4.1. Esses discursos e não outros - Movimento pelo direito das pessoas

com deficiência...182

4.2. Os vários sentidos do Movimento Político das pessoas com deficiência: nos livros, nos jornais e no cenário acadêmico...184

4.2.1. As primeiras rupturas ... 188

4.2.2. A série dos acontecimentos ... 193

4.2.3. Os acontecimentos da série ... 200

4.3. Palavras (e números) têm força de promover mudanças no real ...201

4.4. Mosaico de dizeres...205

5 ENUNCIADOS E PRÁTICAS DE (IN/EX)CLUSÃO: AS VOZES (IM)PRÓPRIAS...217

5.1 A representação do desvio...218

5.1.1 O corpo como espetáculo e a “monstruosidade” em tela ... 219

5.2 A rede de sentidos...227

5.2.1 Os discursos em rede ... 231

5.3 As microrrelações...242

CONSIDERAÇÕES FINAIS...251

REFERÊNCIAS...261

ANEXO A - SISTEMÁTICA DE ANÁLISE DO MOSAICO DE DIZERES DO CAPÍTULO 4...289

ANEXO B - RESUMO E BREVE ANÁLISE DOS LONGA-METRAGENS MENCIONADOS NO CAPÍTULO 5...315

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INTRODUÇÃO

Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou refletir. Michel Foucault – História da Sexualidade II

A rede discursiva na qual a pessoa com deficiência se inscreve está historicamente vinculada à falta. Por mais que o termo, atualmente em uso, para nomear quem tem deficiência seja “pessoa com deficiência” (ter surdez, ter tetraplegia, por exemplo), no limite, ser alguém com deficiência1 é para o senso comum – e ouso dizer que para a maioria das pessoas – ter perdido ou jamais tido alguma capacidade funcional ou parte do corpo. É uma identidade que, grosso modo, é constituída não pelo o que se tem ou se acredita ter, mas pelo o que falta.

Obviamente, falta ou presença é algo bem pouco objetivo. É necessário, pois, um parâmetro prévio, um modelo ideal que norteie essa atribuição. Assim sendo, a deficiência existe porque existe a “normalidade”, e precisamente com esse sentido de funcionamento ideal, ótimo – como se não houvesse variações. E, contraditoriamente, a deficiência é atribuída a alguém justamente quando a “normalidade” escapa2.

No entanto, é possível pensar sob outra perspectiva. Uma anomalia

1 Optei, ainda que ciente da repetição, por utilizar o termo “pessoa com

deficiência”, sem a substituição por qualquer outro referente ou sigla, durante todo o texto. Isso porque, esse é o termo (oficial) vigente no Brasil, escolhido pelas próprias pessoas com deficiência e nenhum outro me parece adequado na empreitada que pretendo seguir. Assim como quem não tem deficiência será nomeado como pessoa sem deficiência.

2 De acordo com Canguilhem (2009), o estado patológico ou anormal não é

consequência da ausência de qualquer norma. A doença é ainda uma norma da vida, mas uma norma inferior, no sentido que não tolera nenhum desvio das condições em que é válida, por ser incapaz de se transformar em outra norma. O ser vivo doente está normalizado em condições bem definidas, e perdeu a capacidade normativa, ou seja, a capacidade de instituir normas diferentes, sob condições diferentes, diversas. Não há distúrbio patológico em si, o anormal só pode ser apreciado em uma relação.

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não implica necessariamente uma patologia, ainda que o patológico possa ser visto como uma anormalidade. A anomalia pode ser uma categoria neutra. Portanto, para Canguilhem (2009), não se trata de diferenciar propriamente o estado normal do patológico, tampouco admitir a continuidade irrestrita de ambos ou mesmo determinar uma ordem de valoração, positiva ou negativa. As duas dimensões são inerentes à vida. Ademais, não é equívoco admitir que algo possa trazer reflexos de outro (admitindo a imbricação do normal e do patológico), sem negar suas próprias características. Em outras palavras, o patológico guarda relação com o normal sem, no entanto, deixar de apresentar particularidades que lhe definem como tal. E, sobretudo, como bem menciona Canguilhem, é preciso entender a doença como algo que afeta o organismo como um todo e não apenas de uma função ou órgão isolados. É toda uma rede concatenada e inter-relacionada que se afeta no estado patológico. Pensamento semelhante pode ser atribuído à deficiência.

O corpo com deficiência, historicamente, pode ser um organismo sem membros (ou sem capacidade de movimentação) ou sem visão, ou sem audição, ou com a combinação de vários aspectos, e outras especificidades. Entretanto, muito mais do que pensar no tipo de deficiência em si, me importa compreender, dentre outras coisas, o corpo que não pode ser circunscrito no modelo típico e normativo, para refletir acerca do lugar reservado a ele. Especificamente tomar a deficiência e, por conseguinte, a pessoa com deficiência como objetos de discursos. Discursos entendidos como uma série de práticas que formam os objetos de que falam (FOUCAULT, 1997) e que, sob determinadas condições, circunscreve, enuncia e produz aquilo que é o dizível e o legível, segundo Deleuze (2013), de uma determinada época.

Meu contato com a deficiência, de forma mais próxima, se deu ainda no período da graduação. Na verdade, tive mais envolvimento com dois tipos de deficiência em específico: a auditiva e o autismo3. A minha

3 Deficiência auditiva é compreendida como a diminuição da capacidade de ouvir,

mas, em termos legais (BRASIL, Lei 13.145, 2015), precisa haver um impacto significativo na funcionalidade para ser considerada deficiência. Na época da minha graduação, iniciada em 1997, a corrente vigente era a oralista, ou seja, não era abordada a língua de sinais e o foco era na oralização do surdo (uso da mesma língua do ouvinte e mesma via- auditivo-oral- na comunicação). O autismo, por sua vez, atualmente nomeado como Transtorno do Espectro do Autismo, é compreendido como uma alteração na conectividade cerebral, com impacto na comunicação/interação e com presença de padrão restrito de comportamentos

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formação em Fonoaudiologia, por sua filiação à área médica, não prezava muito pelo cuidado com os termos utilizados, e isso, ainda na época em que cursava a Graduação, me causava estranhamento. Inclusive, a pessoa com deficiência auditiva era denominada “DA” (deficiente auditivo), aliás, todos, como se compartilhassem de uma alcunha comum. A pessoa era reduzida à sigla DA.

Meu olhar de terapeuta rastreava também as potencialidades, mas era sobretudo sobre os sinais e sintomas que ele repousava. Eu estava sendo, de algum modo, treinada a detectar quais eram os indícios do diagnóstico. Minha mente armazenava centenas de nomes, características e possíveis manifestações que atravessavam cada uma das síndromes que eu estudava. O olhar da Fonoaudiologia, embora hoje tenha um alcance mais expressivo, na década de 90 era limitado (especialmente “pelo seu pouco tempo de vida”, haja vista que a profissão de fonoaudiólogo só foi reconhecida ao final de 1981). O recorte da pessoa com deficiência, no meu caso especialmente aquela com déficit na audição, era o resíduo auditivo, a produção oral e o treino da leitura labial (orofacial).

Durante algum tempo, ainda que com a melhor visada que os anos de experiência terapêutica puderam me proporcionar, eu continuava a não ter dimensão do que, de fato, era a deficiência – pelo menos não para além do consultório. Por sua vez, após a experiência clínica, me vi na posição de professora de uma pessoa com deficiência (durante um curto período de docência no ensino superior). Por mais surpreendente que possa parecer, foi apenas nesse momento que comecei a acompanhar os sentidos da deficiência que extrapolam os portões da clínica.

Ainda que Foucault (2004a) tenha se pautado em um tempo relativamente longínquo para abordar o nascimento da clínica, posso dizer que aquilo a que ele se refere acerca do olhar, ou melhor, da mudança do olhar (sobre o cadáver, ou seja, a morte instruindo a mão do clínico no corpo do doente vivo), foi necessário não só para que ela (clínica) nascesse, mas especialmente para que ela também saísse de cena, na minha experiência pessoal. O meu olhar, voltado para a lesão, precisou mudar o foco.

Imediatamente, após a vivência como docente, me vi como servidora da UFSC (função com a qual tenho vínculo até o presente (APA, 2014). Mas, na época da minha formação, se pautava na pouca interação, como se a pessoa com autismo vivesse literalmente em outro mundo, com pouca ou nenhuma consciência de si e do outro.

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momento), diante dos saberes e práticas que visam a garantir a acessibilidade aos estudantes com deficiência no ensino superior. A partir de então não me era requerido o olhar clínico-terapêutico, não eram solicitadas avaliações e hipóteses diagnósticas, tampouco planos terapêuticos.

Estava eu, anteriormente (na condição de fonoaudióloga clínica) presa ao corpo e às manifestações da existência com deficiência; passei, no entanto, já como fonoaudióloga educacional, a entender que o meio4 e as condições de produção precisam ser mobilizados para que qualquer corpo exista como ele é. Sem a violência curativa do viés normativo. Até porque passei a integrar um setor de acessibilidade5 que, pelos seus princípios de atuação, pautados no Modelo Social da Deficiência6, retira a carga individualizante que a deficiência pode ter.

Essa mudança foi crucial para que dois movimentos se operassem na minha experiência profissional: (1) ser fonoaudióloga sem procurar a cura, sem normalizar o corpo individual (2) compreender a deficiência como uma das possibilidades da condição humana e, por conseguinte, perceber que fica prioritariamente reservado ao contexto a (in)capacidade de acolher as diferentes corporeidades. O contato com a acessibilidade me mostrou que a deficiência, ainda que tenha uma relativa objetividade – de fato há um déficit, uma falta –, é produzida. Se à maneira de Foucault, o sujeito é fabricado, a pessoa com deficiência é moldada, com diferentes mãos, de um modo paralelo, de uma forma que comumente está atrelada ao

4 Utilizo os termos: meio, entorno, ambiente e contexto, na presente tese, como

sinônimos. Esses sintagmas são utilizados, nessa perspectiva descrita, para evitar a repetição de um único termo. No entanto, vale destacar que todos eles são usados para se referir à dimensão que extrapola o corpo/lesão.

5A acessibilidade é compreendida como a possibilidade e condição de alcance para utilização, com segurança e autonomia, de espaços, mobiliários, equipamentos urbanos, edificações, transportes, informação e comunicação, inclusive seus sistemas e tecnologias, bem como de outros serviços e instalações abertos ao público, de uso público ou privados de uso coletivo, tanto na zona urbana como na rural, por pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida; (Art. 3°, parágrafo I, Lei 13.146, 2015).

6 O Modelo Social compreende que o ambiente é determinante para a

funcionalidade da pessoa com deficiência. Em síntese, a ideia básica do Modelo mencionado é que a deficiência não deve ser entendida como um problema individual, mas uma questão da vida em sociedade (OLIVER, 1983, 1996; GESSER et al, 2012). O assunto será aprofundado no primeiro capítulo.

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estranhamento, à anormalidade.

Como fonoaudióloga, precisava descobrir minha contribuição à área da acessibilidade, especialmente ao conceber essa como dependente do entorno, já que as barreiras estão mais (ou completamente) vinculadas àquilo que está fora, que propriamente ao corpo com deficiência. A contribuição não poderia ser outra, por ser eu uma profissional da comunicação. É a linguagem que perpassa as relações, por conseguinte é na e pela linguagem que as pessoas são produzidas e subjetivadas. É prioritariamente por meio do discurso do outro que o sujeito se subjetiva e se constitui como objeto de uma prática.

Dito de outro modo, nomenclaturas e dizeres sobre a deficiência ecoam. E esses discursos, mais que os equipamentos de acessibilidade (dentre eles rampas, pisos táteis e livros em Braile), é que (im)possibilitam a inclusão. Parto do princípio de que a inclusão é discursiva – para falar de inclusão temos que nos voltar não apenas para as estratégias de acessibilidade, mas fundamentalmente para os discursos que se constroem em torno da deficiência. Isso porque creio que é por meio do que é efetivamente dito sobre a deficiência, por meio dos discursos e das interpretações sobre ela que vai sendo delineado o “ser com deficiência”. Esses discursos se repetem e criam uma imagem relativamente homogênea do que é a deficiência, e, por conseguinte, definem a pessoa com deficiência.

Essa inquietação partiu da minha prática na Coordenadoria de Acessibilidade Educacional SAAD/UFSC7. Um dos pilares da atuação do setor do qual faço parte é o assessoramento aos cursos de graduação e pós-graduação, com ênfase maior naqueles que têm alunos com deficiência matriculados. Além das informações incialmente fornecidas pelo próprio estudante, em uma reunião de acolhimento, são esclarecidas características

7A Coordenadoria de Acessibilidade Educacional (CAE) é um setor vinculado à

Secretaria de Ações Afirmativas e Diversidades (SAAD), da Universidade Federal de Santa Catarina. A CAE foi criada em agosto de 2013 e atua junto aos cursos de graduação e pós-graduação. Atende ao princípio da garantia dos direitos das pessoas com deficiência, mediante a equiparação de oportunidades, propiciando autonomia pessoal e acesso ao conhecimento. Um dos pilares de atuação da CAE é o assessoramento aos cursos, além do acolhimento das demandas dos estudantes com deficiência. O setor também concede apoio às demais dimensões relativas à acessibilidade, tais como: capacitações, suporte nos exames seletivos de estudantes e servidores e supervisão de estagiários acompanhantes, dentre outros (Disponível em: cae.ufsc.br, acesso em 24 mai. 2017).

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daquele aluno, suas demandas e os recursos que utiliza, além de alguns procedimentos que o professor deve adotar, de modo a minimizar as barreiras impostas ao estudante com deficiência. No entanto, ainda que todo o suporte seja oferecido, que as adequações de espaço e mobiliário ocorram, que as orientações sejam fornecidas, ecoam discursos, por parte de alguns professores, que moldam o aluno, muitas vezes antes mesmo do início do curso. O estudante não raro já é circunscrito em um lugar de descrédito, de incômodo, de alguém que pode interferir negativamente no andamento das aulas. Discursos como: “mas ele é quem precisa se adequar, afinal tenho mais 50 alunos . . .”, “ele vai ter que se esforçar para fazer o mesmo que os outros alunos, porque senão fica injusto . . .”, são alguns dos dizeres que mais se apresentam nesse momento.

Obviamente, poder-se-ia alegar que se trata de uma barreira atitudinal por parte do professor, de um claro exemplo de integração, no qual o estudante com deficiência passa a conviver no mesmo ambiente das pessoas sem deficiência, mediante um funcionamento próximo da normalidade, de tal modo que o meio não precise de modificações. Seria possível dizer ainda que o discurso do parágrafo anterior é um exemplo típico da supremacia do Modelo Médico, ou seja, aquele que se volta ao diagnóstico e, por conseguinte, deposita na pessoa com deficiência a tarefa de se adaptar, de minimizar os efeitos da lesão. Todos esses apontamentos são muito legítimos, mas meu interesse vai além e está para além do discurso veiculado pelos professores de estudantes com deficiência. E esses são trazidos porque é a experiência prática que tenho. E é justamente daí que partiram minhas inquietações.

Na verdade, acredito que a deficiência, e a pessoa com deficiência, por conseguinte, vão sendo delineadas e construídas por discursos dos mais diversos, que partem de diferentes lugares (domínios) e que constituem variados regimes de verdades. Acredito que as adequações dos ambientes, os recursos e os direcionamentos teóricos (de um modelo médico que se desloca para o social8) são todas dimensões que constituem práticas de

8 O Modelo Médico reconhece na lesão, na doença ou na limitação física, a causa

primeira da desigualdade social e das desvantagens vivenciadas pelas pessoas com deficiência. Daí todo o investimento para tratar e reabilitar a pessoa com deficiência para que essa tenha o funcionamento mais próximo do padrão normativo (normal, sem desvios). No entanto, ao considerar que o ambiente é determinante para a funcionalidade da pessoa com deficiência, passa a vigorar o Modelo Social, como alternativa ao modelo médico, descrito acima (DINIZ 2007; GESSER et al, 2012). Saliento que há publicações e estudos que utilizam o termo “Biomédico”, no lugar

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acessibilidade, mas creio que esta última está ainda mais dependente da forma como a pessoa com deficiência é falada e, por conseguinte, interpretada. É na e pela linguagem que a inclusão pode se (in) viabilizar. Portanto, é preciso voltar a atenção para os discursos que circulam, para que a inclusão, de fato, não seja um devir, mas se concretize. E acompanhar, sobretudo, não apenas as repetições, mas as dispersões, os deslocamentos desses discursos porque:

(...) os deslocamentos linguísticos materializam as rupturas discursivas que constituem a compreensão dos sujeitos e das sociedades. Nessas relações, inviabiliza-se um discurso universal e único sobre o corpo com deficiência, já que as práticas discursivas por meio das quais conhecemos esse sujeito se ressignificam ao longo do tempo, em cada sociedade, construindo diferentes regimes de verdade (p. 17, SILVA, 2016).

Um dos atravessamentos na categoria deficiência é a inclusão. A inclusão é um conceito complexo que na atualidade é discursivizado como uma solução para o problema social da exclusão. De acordo com Garcia (2004), o conceito foi profundamente abordado pelo sociólogo Talcott Parsons (1902-1979). A inclusão seria para esse autor como uma das etapas da “estrutura do sistema social”: os grupos que antes não eram percebidos no sistema social passam a se diferenciar. Para Parsons, citado por Garcia (2004), a partir dessa diferenciação é necessária a promoção da capacidade adaptativa e a generalização de valores – somente essa última fase é identificada com a inclusão, por meio da difusão de valores comuns e favoráveis ao desenvolvimento da sociedade. No entanto, as fases anteriores, quais sejam: seleção, diferenciação e adaptação (às normas sociais) não podem ser descuidadas, uma vez que são essenciais ao processo de inclusão. Esse viés normativo e que visa ao equilíbrio social e

de “Médico”, logo, “Modelo Médico” e “Modelo Biomédico” são considerados sinônimos. Porém, pelo fato de o termo “Modelo Médico” ainda ser enunciado de forma mais corrente, inclusive na minha experiência pessoal, optei por utilizá-lo. No entanto, apesar de o termo ser “Modelo Médico”, ressalto que o foco na lesão e no apagamento do déficit não fica restrito à Medicina, mas a várias outras áreas, especialmente aquelas que visam à reabilitação. E diz respeito, de forma mais ampla, a uma sensibilidade que identifica a deficiência com a lesão.

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minimização de conflitos, ainda de acordo com Garcia (2004), não parece coadunar com o atual conceito de inclusão que tem matizes de inovação, que busca solucionar a exclusão, como dito inicialmente.

Na perspectiva legal, o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015) preconiza, no seu artigo primeiro, que a inclusão da pessoa com deficiência é garantida por meio da promoção de condições de igualdade e do exercício dos direitos e das liberdades fundamentais. Para Sassaki (1997), o movimento de inclusão – que foi precedido por práticas de exclusão, atendimento segregado dentro de instituições e práticas de integração – tem por objetivo construir uma sociedade que seja para todos. Essa construção, para o mesmo estudioso, se assentaria na celebração da diferença, na valorização da diversidade, na solidariedade humana, na importância das minorias, no direito ao pertencimento e, especialmente, no exercício da cidadania com qualidade de vida.

Na perspectiva educacional, a Declaração de Salamanca, documento elaborado em 1994, na “Conferência Mundial sobre Necessidades Educativas Especiais: acesso e qualidade”, é considerado um dos principais mecanismos legais com vistas à inclusão social (e provavelmente o mais importante na perspectiva educacional). De acordo com Menezes e Santos (2018), a educação inclusiva pressupõe que todas as crianças estudem conjuntamente, e que seus ritmos e individualidades sejam respeitados, bem como todas as suas necessidades de apoio atendidas. Obviamente que as leis foram atualizadas e redimensionadas a partir da referida Declaração, mas ela foi um marco inicial para essas discussões. E a materialização desse Documento, e do viés inclusivo – da “educação para todos” que a permeia, são ações atribuídas aos movimentos de direitos humanos (MENEZES E SANTOS, 2001). No entanto, essa não é uma documentação sem impasses, uma vez que, de acordo com Michels e Garcia (1999), no próprio texto é trazida a vaga ponderação de que todas as crianças devem ser matriculadas em escola comum, a não ser que existam razões convincentes para o contrário. Entretanto, essas razões convincentes podem ser das mais diversas e excluir muitas pessoas.

Nessa perspectiva, e admitindo que o convívio entre pessoas com e sem deficiência ainda não é regra, que as leis ainda não atingem os dizeres e fazeres relativos à acessibilidade e que os ambientes, incluindo aí as atitudes, não estão isentos de barreiras, é que considero que a inclusão é ainda um processo, um devir, uma dimensão que não está posta.

Por outro lado, a deficiência é uma dimensão inerente à vida. E eu vivi o encontro com a deficiência na minha experiência pessoal. Logo após

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ingressar na UFSC, no setor de acessibilidade mencionado, fui diagnosticada com descolamento de retina. É uma condição relativa à visão, que pode culminar em cegueira irreversível. O tratamento foi longo, penoso (doloroso), e, a todo tempo, a possibilidade de entrar na lógica “da falta” estava presente. No entanto, mais que o receio de uma nova condição, ou seja, de passar a viver sem o recurso visual, aquilo que mais me mobilizou foi que, na essência, nada mudaria em mim.

Com exceção das barreiras impostas pelo mundo normativo e, óbvio, da ausência da experiência visual, eu continuaria a mesma. A minha individualidade seria provavelmente (aliás, já estava sendo) maior e mais potente que as características da deficiência. Fato que me chamou a atenção, mais que qualquer outro aspecto. Isso porque a deficiência é encarada, comumente, como uma essência estranha, quase “extraterrena”, ou mesmo como uma dimensão que traz certa hegemonia, como se todas as pessoas com determinada deficiência tivessem comportamentos muitos semelhantes. E era absolutamente o contrário que eu estava experimentando. Eu continuava a ser a mesma pessoa, com minhas qualidades e defeitos, com minhas características personalíssimas.

Obviamente que, semelhante à maioria das pessoas circunscritas na matriz normativa, também eu me agarrei com extrema vontade a esse terreno e entreguei a minha permanência nele aos saberes médicos. O meu empenho e dedicação às diferentes fases dos tratamentos eram proporcionais ao meu apego à “normalidade”, porque esse é o sentido que foi e continua sendo perseguido. É esse o terreno propagado como adequado. Logo, também eu estava a reproduzir, no meu próprio comportamento, a busca por um corpo “normal”. A proximidade da deficiência, ainda mais porque no meu caso o sentido envolvido é historicamente produzido como o mais primordial, a visão, mostrava-me cada vez mais a complexidade desse objeto e de suas múltiplas facetas.

Não seria, portanto, uma escolha teórica qualquer que conseguiria açambarcar todos os vieses da deficiência. O meu objeto, por seus múltiplos atravessamentos, demandaria um aporte teórico que considerasse as (des)continuidades do saber e do próprio sujeito. E não poderia ser abordado sob qualquer perspectiva; a interdisciplinaridade era requerida.

Aliás, necessária. Estamos vivendo um momento no qual a inclusão é a palavra de ordem. Isso significa que diferentemente de outros períodos históricos, a pessoa com deficiência, em tese, tem mais visibilidade. No entanto, as descontinuidades e dispersões de certas ordens, especialmente em meio a um processo historicamente excludente, não são

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feitas somente por meio de leis e cotas. Também se faz por meio dessas iniciativas, elas são o “pontapé inicial”, mas não apenas por elas.

Tampouco adequações estruturais e materiais são suficientemente potentes para permitir que a acessibilidade seja instituída. Porque a inclusão também se faz por meio de ações e práticas acessíveis: produção de conhecimentos/saberes e experiências exitosas de inclusão social. Mas, sobretudo, a pessoa com deficiência apenas será de fato incluída quando for considerada e compreendida. Não sob o viés da deformidade ou lesão que apresenta, mas na medida em que for entendida sob a história do déficit que a atravessa, quando forem compreendidos os discursos e as práticas que as subjetivam e quando não forem mais representadas, ou seja, quando falarem por si.

Compartilho das ideias de Foucault e Deleuze (1979) quando referem que o intelectual, mais que propor teorias e a aplicação delas, deve apresentar um instrumento, algo que sirva, que opere mudanças, que seja útil. E é esse o grande problema, no sentido literal, da inclusão. Ela é compreendida por muitos como uma verdadeira cilada, como algo com o qual não se sabe lidar: não há preparo, não há saída.

Acredito que compreender a forma como a pessoa com deficiência vem sendo subjetivada pelos discursos pode ser uma maneira profícua de compreender os processos de (ex/in)clusão. O conhecimento advindo de um trabalho como esse pode propiciar novas práticas, novos saberes e poderes, que apontem os caminhos possíveis para que a deficiência se desatrele desse espaço reservado ao estranhamento. De forma prática e aplicada, os sentidos relacionados à pessoa com deficiência irão fomentar as orientações: aos professores, aos empregadores, aos mais variados universos, enfim, e propiciarão os deslocamentos necessários para que a inclusão atinja um regime de verdade.

Diante do exposto, o objetivo do presente trabalho é analisar os discursos sobre a deficiência: seus deslocamentos e dispersões ao longo do tempo, assim como as regularidades discursivas que permanecem até hoje. Isso porque parto da tese de que a inclusão não se faz apenas por procedimentos técnicos e equipamentos acessíveis. Acredito que os discursos, historicamente produzidos, as consequentes práticas sobre/na deficiência, bem como as relações de poder imbricadas nesse processo, (in)viabilizam a inclusão. Para tanto, pretendo responder às seguintes perguntas:

(1) Quais discursos, atrelados a práticas e relações de poder, constituem a pessoa com deficiência?

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(2) Como os discursos oficiais (médicos e legais, por exemplo) são mobilizados nas microrrelações?

(3) Sob quais regimes de verdade se assentam os enunciados e as práticas de (in/ex)clusão?

Não se pretende com isso mostrar discursos equivocados ou corretos. Não serão realizadas críticas sobre esse ou aquele enunciado, mas sob quais regimes de verdade os discursos sobre a deficiência são produzidos e a quais formações discursivas eles podem ser remetidos9.

Como já adiantado, trabalhar em um setor que tem como princípio propiciar a acessibilidade e a inclusão dos estudantes com deficiência trouxe-me dados empíricos de que oferecer condições igualitárias de acesso ao conhecimento estava muito além dos equipamentos que disponibilizávamos e dos recursos de apoio que organizávamos. De que as orientações precisavam de um respaldo legal e técnico, porque o discurso das pessoas com deficiência, sobre suas demandas – pessoas que sabem, e sabem melhor do que ninguém – não eram suficientes. Muitos foram os dizeres que ouvi ao longo desses anos de prática: “Isso que ele está pedindo não vai dar certo!”, “Com certeza não vai conseguir se formar”, “Sou obrigada a fazer isso?”, “Cadê o laudo do médico?”, “Que lei diz que ele tem direito a isso?”, “Acho que ela deveria aprender Libras”. Porque, como bem disse Foucault (1979):

(...) existe um sistema de poder que barra, proíbe, invalida esse discurso e esse saber. Poder que não se encontra somente nas instâncias superiores da censura, mas que penetra muito profundamente, muito sutilmente em toda a trama da sociedade (p.71).

Pois bem, na tentativa de buscar pelas (des)continuidades da deficiência, cheguei ao texto “A ordem do discurso”. Foucault (1996), nesse texto, rejeita a noção de pensamento universal, de fundamento filosófico único, de sujeito fundante e de uma história contínua e linear, o

9 Na perspectiva foucaultiana, os enunciados compõem o discurso, sob

determinadas regras, por meio de práticas que se instituem em torno do objeto (JOANILHO e JOANILHO, 2011). Ainda que ciente de que “enunciado” e “discurso” não sejam exatamente sinônimos, ambos guardam forte relação, aliás, para Foucault (1997) o enunciado pode ser considerado um átomo do discurso. Assim sendo, durante as análises, serão utilizados os dois termos, para tornar a leitura mais fluida.

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que pareceu coadunar com elementos constitutivos de uma abordagem voltada a um cenário tão multifacetado como estava se desenhando o da deficiência.

Ao abalar as verdades universais e o “conforto” de uma historicidade marcada por acontecimentos contínuos, por fases que se iniciam e se encerram, Foucault permite o investimento em categorias das mais diversas, incluindo aí a deficiência. O viés discursivo apresentado por Foucault não fala da linguagem transparente, dos signos e de sua dupla face, significante/significado. Toca nesses últimos aspectos também, mas a genialidade de Foucault está em não considerar apenas eles. Os signos, com toda a arbitrariedade que lhes cabe, bem como o cunho social que lhes é inerente (é preciso usar os mesmos símbolos para que haja compreensão), não garantem, contudo, a unicidade da linguagem, uma vez que os pressupostos de Foucault (1996) abalam o sujeito cartesiano, põe em xeque o terreno sagrado do autor, do ineditismo, das verdades únicas, da reprodução.

A minha experiência com a categoria deficiência me mostrou que os discursos que a constituem estão ligados a diferentes formações discursivas, logo, não há uma verdade única. Ademais, de um silêncio absoluto, hoje as pessoas com deficiência começam a tomar a palavra, a falar por elas próprias (MIRANDA, 2004; LANNA JUNIOR, 2010).

Desse modo, alcançar o objetivo proposto é visitar múltiplas dimensões, porque me restringir apenas a algumas delas culminaria no empobrecimento da análise, já que eu perderia as dispersões de sentidos e de subjetividades. Assim sendo, elegi aqueles que se apresentam como os principais domínios que constituem a categoria, e, por conseguinte, a formação discursiva da deficiência: o histórico, o médico, o corporal, o jurídico e o político. E algumas representações de discursos que emergem desses domínios.

Embora toda categoria tenha história, na abordagem dos discursos sobre a deficiência, escolhi o viés histórico como um domínio, porque, segundo Silva (1986), a história da deficiência é tão antiga quanto a própria humanidade, e os sentidos sobre ela sofreram diversos deslocamentos, logo, abordar a formação discursiva da deficiência é revisitar a história do déficit, e os sentidos que se repetem e se dispersam. A religião, por exemplo, é uma dimensão que atravessa essa historicidade. De acordo com Bianchetti (2001), as grandes religiões são uma das fontes para compreender o ser/agir dos sujeitos no mundo, ou seja, os valores religiosos forjam o pensamento ocidental judaico-cristão. E, especialmente o Cristianismo, é fundamental

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para o reconhecimento da humanidade da pessoa com deficiência (PESSOTI, 1994). No entanto, ao lado dos sentidos de assistencialismo, de reconhecimento da pessoa com deficiência como filha de Deus, ainda insistem compreensões da deficiência como castigo (ROSA, 2007; CECCIM, 1997).

Também a Medicina10 compõe os sentidos da deficiência, no que diz respeito aos diagnósticos, à lesão, à materialidade individual e aos processos de reabilitação e apagamento do déficit (PACHECO e ALVES, 2007; LIMA e COSTA, 2014). Embora ela constitua a história da deficiência, merece esse lugar de destaque porque é um dos saberes e poderes mais arraigados à categoria deficiência. Também, os pressupostos atrelados à teoria da degenerescência, de mal transmitido, igualmente atravessam a formação discursiva da deficiência (WALBER e SILVA, 2006; PESSOTI, 1984). Por isso, o domínio médico é um importante pilar dos sentidos da deficiência.

Na perspectiva de um olhar individualizado, igualmente a materialidade corporal está imbricada na conceituação da deficiência. Conforme nos aponta Le Breton (2007), um dos principais sinais enviados pelo corpo, é o déficit, o desvio à norma. Portanto, os sentidos sobre a deficiência não se desatrelam dos sentidos sobre o corpo. Isso porque, conforme aponta Courtine (2013), ao longo do tempo, a depender dos saberes e poderes de cada momento histórico, o corpo é abordado, moldado, denominado e tratado. Assim sendo, o domínio corporal é um dos importantes atravessamentos da formação discursiva da deficiência.

O discurso jurídico, também se apresenta como um domínio que constitui os sentidos sobre a deficiência, uma vez que a legislação define quem é a pessoa com deficiência, os direitos e sanções atrelados a essa categoria e que refletem os valores da época, as concepções de um determinado momento histórico e as práticas de (in/ex)clusão (ROSENVALD, 2015; ROSENVALD, 2016).

Por fim, outro domínio que está fortemente ligado à formação discursiva da deficiência, especialmente quando essa é abordada por um

10 Semelhante à explicação disposta na nota de rodapé 7, tomo o termo “Medicina”

de forma mais ampla, abrangendo todas as sensibilidades que se voltam à lesão e à minimização de seus sinais, ou seja, à promoção de um funcionamento próximo à normalidade, como são as diversas áreas com viés reabilitador. Não significa que essas áreas não possam também se voltar ao contexto, mas comumente elas têm seus saberes e suas práticas atrelados ao corpo físico.

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viés foucaultiano, é o político. O movimento de luta por direitos, viabilizado pelo engajamento das pessoas com deficiência, foram propulsores das mudanças legais, do processo de visibilidade e de novos discursos sobre o déficit (LANNA JUNIOR, 2010). Ao tomarem a palavra, ao responderem e se posicionarem politicamente, os sentidos de assistencialismo foram cedendo lugar para novas tramas. Por isso, a questão política é um atravessamento crucial na abordagem da formação discursiva da deficiência.

Ou seja, minha estratégia de organização (método) foi abordar esses domínios e analisar de que modo se materializam, em cada um desses espaços, os discursos sobre a deficiência. Salienta-se que a sistemática de emergência dessas análises não ocorreu em um único capítulo. Condizente com os atravessamentos, os deslocamentos e as repetições que constituem os discursos, as análises desses campos estão distribuídas ao longo da tese.

Apresento, na sequência da presente introdução, a metodologia utilizada: os gestos de análise e os pressupostos discursivos trazidos por Foucault, especialmente aqueles que emergem dos textos – A Arqueologia do saber (1997) e A Ordem do Discurso (1996). Em conformidade com Foucault (1979), compreendo a história dos acontecimentos discursivos como relações de força, ruptura ou descontinuidades. Nenhuma abordagem acerca dos discursos sobre a deficiência me pareceria mais propícia, por isso esse aporte e não outro.

Saliento que a divisão em capítulos (e em domínios) é meramente didática e visa a respeitar o formato da tese, no entanto, os dados se misturam, ressoam, deslocam, insistem e se repetem, aliás, como são os sentidos que constituem os discursos sobre a deficiência, sem, contudo, deixar de situar a conjuntura histórica em que esses enunciados emergem.

Considerando justamente a historicidade que marca o discurso, inicialmente optei por abordar a história descontínua da deficiência. Para analisar aquilo que é dito, há de se conhecer aquilo que permite o discurso atual. Aquilo que ressoa, que se repete. O primeiro capítulo, “Rompe-se o silêncio: o domínio histórico”, traz a história da deficiência, mas sobretudo seus atravessamentos (com destaque para a religiosidade) e suas intersecções com outros domínios: os (des)encontros entre a deficiência e a loucura, as contribuições da teoria feminista e dos estudos de gênero.

O segundo capítulo, por sua vez, traz os indícios do investimento biopolítico ao corpo com deficiência, bem como as práticas racistas e eugenistas a ele associadas. Entender aquilo que se diz sobre a deficiência, é de algum modo traçar essa complexa trama: os investimentos corretivos, a

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visão que se tem do corpo com deficiência; dessa dimensão que é tão objetiva, tomando por base o corpo completo e funcional. Portanto, também o conceito de corpo é visitado, especialmente na perspectiva do “corpo que vacila” (em comparação com um modelo ideal), a normalização dos corpos, o papel da Medicina nesse processo e teorias que admitem os limites do corpo. “Nem totalmente vivo, nem totalmente morto”, traz, portanto, os domínios médico e corporal, também fortemente presentes na formação discursiva da deficiência.

Já o terceiro capítulo, “O direito de ser visível e a acessibilidade decretada” materializa a forma como a pessoa com deficiência é enunciada pelo discurso jurídico, ou seja, o modo como é oficialmente discursivizada em documentos e legislações. Para tanto, foram abordadas as leis e as formas pelas quais a deficiência era/é significada, uma vez que a dimensão legal não só define quem está ou não na categoria, como arbitra direitos e sanções. Portanto, no terceiro capítulo, o domínio abordado é o jurídico.

O quarto capítulo, “Entrando em movimento”, que está bastante imbricado com o terceiro, traz o movimento político das pessoas com deficiência, que foi o principal responsável pela grande maioria das conquistas legais ocorridas no Brasil. Além das conquistas, o movimento político emergiu como uma mobilização que tirou e ainda tira as pessoas com deficiência da invisibilidade e materializam, também, os sentidos sobre a deficiência, a pessoa com deficiência e o processo pretendido de inclusão. Portanto, o domínio aqui abordado é o político.

Essas costuras que alinhavaram o texto dão sustentação para o quinto e último capítulo, que se debruça nos enunciados e práticas de (in)exclusão, “As vozes (im)próprias”. Em suma, ele traz a forma pela qual todos os domínios apresentados, e que têm um caráter legitimado, seja histórico (sobretudo religioso), jurídico, político ou médico, bem como as transversalidades da categoria, vão sendo mobilizados e em que medida eles (im)possibilitam a inclusão.

Neste trabalho, são analisados: obras literárias, filmes, posts disponibilizados na internet, comentários, matérias jornalísticas, na medida em que essas materialidades fazem parte dessa rede de micropoderes cotidianos a partir das quais os discursos sobre a deficiência se materializam e produzem identidades. Acredito, ainda, que os sentidos que emergem dessas materialidades atingem as microrrelações, penetram nas fissuras, circulam, se espraiam, produzem saberes e mobilizam jogos de poder. Não se trata de um sentido particular e restrito. Esses lugares escolhidos para a análise têm grande circulação e alcance e vão

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constituindo um arcabouço de sentidos sobre a deficiência.

Os discursos, pois, produzem também “verdades” sobre os próprios sujeitos; eles entram nessa trama e passam a utilizar essas “verdades” quando descrevem suas próprias subjetividades. Mas há de se ressaltar que a linguagem não diz o que diz, ou não pelo menos apenas aquilo que está explícito. Há conteúdos não linguísticos que também significam. O sentido não está preso às palavras, apenas (FOUCAULT, 2010). Mas é especialmente sobre as palavras que meu foco está voltado. Porque os discursos mostram por meio de quais jogos de verdade a pessoa com deficiência se define e toma seu lugar no mundo (FOUCAULT, 1997).

Os comentários veiculados pela internet, os conteúdos das leis oficiais, os textos teóricos, as campanhas publicitárias e os diagnósticos médicos trazem indícios da forma como as pessoas com deficiência são interpretadas e produzidas e materializam a imbricação entre o micro e o macro poder. De acordo com os pressupostos foucaultianos, as relações discursivas têm forças para produzir mudanças no real.

Por fim, ainda que a função de autoria seja colocada em xeque por Foucault (1996), ainda que nada mais façamos que repetir (“O novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta” – p. 26), a sistemática de apresentação de cada capítulo contará com um breve ensaio/crônica, informal, assumidamente sem compromisso com o rigor científico, ou algo ainda sem nome porque não parece caber em nenhuma definição. A fim de que, ciente dos limites da autoria, a criatividade seja, nesse caso, uma novidade ao retomar o sentido da deficiência, ou seja, “dizer pela primeira vez aquilo que, entretanto, já havia sido dito e repetir incansavelmente aquilo que, no entanto, não havia jamais sido dito” (FOUCAULT, 1996, p. 25).

Enfim, rastrear os sentidos que constroem a pessoa com deficiência e o impacto deles no processo de in/ex clusão é a empreitada que assumo agora.

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METODOLOGIA - GESTOS DE ANÁLISE - DISCURSOS EM CURSO

(...) tentar definir esse espaço branco de onde falo, e que toma forma, lentamente, em um discurso que sinto como tão precário, tão incerto ainda.

Michel Foucault – Arqueologia do saber

Tomando o objetivo da presente tese, qual seja, analisar os discursos sobre a deficiência, assumindo que pelo menos em grande parte a inclusão se faz pelo viés enunciativo, vejo como necessário elucidar alguns conceitos e melhor explicitar os caminhos teóricos por mim assumidos. Mais uma vez ratifico que não se está desconsiderando outras essenciais frentes que devem ser abordadas, redefinidas, rediscutidas, para que haja condição de possibilidade para a inclusão. No entanto, neste trabalho, assumo a tarefa de investir nos discursos como dimensões que “formam” a deficiência, e, por conseguinte, a pessoa com deficiência. Até porque, assim como as coisas não preexistem aos discursos, também os sujeitos não se desatrelam dos enunciados praticados sobre eles.

O aporte teórico de escolha é a perspectiva foucaultiana porque ela traz a possibilidade de diferentes olhares, oferece o múltiplo e rompe com os fios da certeza. Além disso, o filósofo abordou, dentre outras coisas, a anormalidade; categoria essencial na empreitada que seguirei. Mas, sobretudo, a produção de Foucault permite também considerar a relação saber/poder nos discursos praticados e nos propõe uma Ontologia Crítica, ou seja, por meio da análise dos discursos que nos constituem, nos traz a possibilidade de pensar em outras formas de ser. Ademais, ele traz no bojo da sua produção o tripé indissociável: sujeito, língua e história – uma relação de anterioridade e também de exterioridade (GREGOLIN, 2016). E penso ser esse um movimento necessário, considerando que a inclusão se trata de um empreendimento ainda em curso e muito dependente das variadas formas de subjetivação.

Embora Foucault tenha comumente sua obra dividida em três fases, a saber: arqueológica, genealógica e ética; assumo uma interconexão e comunicabilidade entre elas, como nos apresenta Gregolin (2004) – saber, poder e subjetividade; ou, sujeito, discurso e verdade. Embora não necessariamente em simultâneo, entendo que essas categorias atravessam toda a produção de Foucault. Também eu tomarei essas categorias como

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norteadoras do presente trabalho, ou seja, entender como o sujeito com deficiência foi construído historicamente, sem prescindir da análise do poder nesse processo. E, ainda, ao também considerar os micropoderes engendrados nesse cenário, não abandono a faceta ética. Em suma, entender a construção histórica do sujeito, as relações de poder imbricadas, tanto nos edifícios sólidos, tais como a Medicina, a justiça, a religião, como também nas relações mais corriqueiras – as declarações das redes sociais, que se pretendem autorais, mas que mobilizam dizeres historicamente construídos – e pensar em outras formas de agenciamento, me parecem ser formas profícuas de se alcançar uma análise que seja representativa da in/exclusão enunciativa que pretendo apresentar.

Em relação ao aporte teórico que será aqui utilizado, na “Arqueologia do Saber” Foucault (1969/1997) traz uma série de conceitos bastante caros para a análise, muitos dos quais serão retomados no texto “A ordem do discurso” (1970/1996). É preciso pontuar incialmente que para Foucault a história mudou a posição que tinha em relação ao documento. Em vez de interpretá-lo como uma matéria inerte por meio da qual se tenta chegar ao que foi feito, mero instrumento de reconstituição, no próprio tecido documental é preciso buscar por unidades, conjuntos, séries e relações. Assim sendo, o documento significa e materializa a descontinuidade inerente à história.

Disso decorrem outras premissas de Foucault (1997). Uma delas é que não há evidência, mas apenas um campo complexo de discursos. Os conceitos que parecem trazer transparência e continuidade aos acontecimentos discursivos, como a tradição, a mentalidade e o espírito, também devem ser tratados como dispersos. Portanto, é preciso questionar a unidade – mesmo do livro, da obra. Isso porque as margens de um livro, e de um discurso, jamais são nítidas e determinadas. Elas remetem a um nó, a um sistema de remissão a outros livros, dizeres e frases. Uma tese como essa, por exemplo, tem explicitamente referência a outras obras, e é preciso que tenha. O conhecimento científico, se pauta, essencialmente, no retorno a outros textos, legitimados e comprovados. No entanto, mesmo nos momentos que tento/tentarei trazer algo que seja da minha elaboração, ainda assim, há uma série de outras vozes que falam por mim, mas eu ainda tenho a ilusão de ser fonte daquilo que eu digo11.

11 De acordo com Pêcheux (1990), o esquecimento número 2 diz respeito à ilusão

que o sujeito tem de que aquilo que diz tem apenas um significado, e, por extensão, a ilusão de que todo interlocutor captará suas intenções e suas mensagens. No

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Tampouco a obra tem seus limites transparentes. A opacidade da obra tem seu fulcro na consideração de que ela se constitui não apenas de teses aprofundadas, mas de materiais múltiplos, menos legitimados, rascunhos, rasuras, pontos em branco, textos deixados, inacabados. Aqui se justifica a aplicação desta metodologia ao meu trabalho e não outra. O regime de verdade da deficiência e o sentido que se atribui a ela, e, por conseguinte, ao sujeito com deficiência, não se faz apenas com uma obra canônica sobre o déficit. Não são os discursos oficiais que a constituem apenas. É nas lacunas, nas intersecções, nos discursos cotidianos, nos chistes das redes sociais, é, pois, nesse cenário multifacetado e indeterminado que também se inscreve o verdadeiro sobre a deficiência. E é justamente nesse ponto que quero chegar. Romper com a ideia de origem, de início marcado cronologicamente. Não é se abster do tempo, mas é compreender que as dispersões se dão também nos princípios.

Logo, ainda para a perspectiva foucaultiana, o discurso não deve ser remetido à origem, mas à sua irrupção de acontecimentos. É preciso se voltar sobre essa espessura que o condiciona, que o traz de volta, sob quais condições, quais dispersões e repetições o inscrevem. O já-dito e o jamais-dito que o constitui. Não há nada de novo, mas há um ineditismo nas condições que permitem seu reaparecimento. O que o legitima e o que o impossibilita em determinada conjuntura. Nas palavras de Foucault (1997),

A análise do campo discursivo é orientada de forma inteiramente diferente; trata-se de compreender o enunciado na estreiteza e singularidade de sua situação; de determinar as condições de sua existência, de fixar seus limites da forma mais justa, de estabelecer suas correlações com os outros enunciados a que pode estar ligado, de mostrar que outras formas de enunciação exclui (p.31).

O enunciado é, portanto, um acontecimento que nem a língua e nem o significado o esgotam. É preciso deixar em suspenso as unidades admitidas – essa superfície facilmente apreensível – e se voltar aos entanto, na seleção entre o dito e o não-dito, o sujeito não tem controle total sobre o seu dizer e deixa resvalar significados indesejados. O esquecimento de número 1 cria no sujeito a ilusão de que ele é uno, integral, dono e origem do seu dizer. No entanto, o sujeito se constitui na dispersão de outros sujeitos que constituem seu dizer, retomando, pois, sentidos preexistentes.

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interstícios, àquilo que não é explícito, mas que fala. É único como todo acontecimento, mas se relaciona aos enunciados que o seguem e que o precedem, por isso o sentido não está encerrado nele. Está atrelado à memória, e, inclusive aos sentidos dos quais não temos consciência. Logo, é preciso estabelecer jogos de relações entre enunciados, entre grupos de enunciados (ainda que de naturezas diferentes) e entre diferentes acontecimentos. Tornar visível o que está invisível.

Nessa perspectiva, discursos são violências que fazemos às coisas. Para Foucault (1997), os discursos são compreendidos como práticas que “formam sistematicamente o objeto de que falam” (p. 55). É preciso obviamente uma materialidade para que sejam praticados, são feitos de signos, mas, ao designar coisas, fazem mais que simplesmente utilizar esses signos. “É esse mais que os torna irredutíveis à língua e ao ato da fala. É esse ‘mais’ que é preciso fazer aparecer e que é preciso descrever” (p 55).

Ao tocar na formação discursiva, conceito chave na sua perspectiva, Foucault (1997) afirma que a doença mental é formada por tudo o que foi dito no grupo de enunciados que a nomeavam, definiam, explicavam, julgavam, ou seja, por todos os discursos remetidos a esse conceito. No entanto, a doença mental da época de Pinel e Esquirol não seria a mesma da segunda metade do século XX, por exemplo, é outra loucura, outro louco. E faço a mesma correlação com a deficiência e com a pessoa com deficiência – não é o mesmo sujeito. Porque os discursos foram produzidos sob novas posições. Isto posto, pode-se concluir que:

(...) definir um conjunto de enunciados no que ele tem de individual consistiria em descrever a dispersão desses objetos, apreender todos os interstícios que os separam, medir as distâncias que reinam entre eles – em outras palavras, formular sua lei de repartição. (FOUCAULT, 1997, p. 37)

Ou seja, é preciso, na perspectiva foucaultiana, atentar para o jogo dos aparecimentos e dispersões dos discursos, que permeia um de seus conceitos mais caros para a análise do discurso:

No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem,

Referências

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