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Discursos de/sobre trans nas redes sociais do Brasil

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA

JÉSSICA FORINI RAMON

DISCURSOS DE/SOBRE TRANS NAS REDES SOCIAIS DO BRASIL

Florianópolis. 2019.

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JÉSSICA FORINI RAMON

DISCURSOS DE/SOBRE TRANS NAS REDES SOCIAIS DO BRASIL

Dissertação de mestrado submetido ao Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina como requisito parcial para a obtenção do Grau de Mestra em Linguística, na Área de Linguística Aplicada, linha de Pesquisa Estudos do Campo Discursivo.

Orientador: Prof. Dr. Atilio Butturi Junior

Florianópolis. 2019.

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AGRADECIMENTOS

Às sete linhas da Sagrada Umbanda, por me fazer luz quando tudo era medo.

Ao Renato, por estar tanto por mim e comigo. À Lúcia, por me dar a ideia de que eu podia. Ao Ramon, por andar comigo em luz. Ao Atilio, por me fazer ser melhor. Ao Jair, pelos comentários tão atenciosos. À Banca por toda orientação.

Ao Cadu, Andrea, Ti, Maira, Lara, Ana, Sabrina e Terez, por estarem sempre ali.

Ao Marcus, Mira e Hélio, por serem minha família.

A Shiva, Aurora, Gatú, Pangacius, Bóris, Ulisses, Coala, Menino, Iracema, Gabriela, Pacato, Paolo, Bituca e Diadorim, por serem a minha paz.

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Let the children lose it Let the children use it Let all the children boogie

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RESUMO

Por meio das considerações teóricas sobre discurso e poderes de Foucault (1999, 2002, 2004, 2005, 2009, 2010, 2013), dispositivo de Agamben (2009) e gênero de Bento (2011, 2012), Butler (1997, 2003, 2006, 2009, 2015) e Preciado (2014, 2018), pretendemos analisar os discursos de/sobre trans que se materializam em redes sociais brasileira, como Twitter e Facebook, utilizando como critério de busca as palavras chaves “trans” e “travesti”, as quais nos levaram às postagens mais populares do Twitter e grupos do Facebook. Nosso objetivo é relacionar as tessituras agonísticas desses discursos em relação ao Dispositivo da Transexualidade e Biopolíticas de Gênero no Brasil.

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ABSTRACT

Through the theoretical considerations regarding speech and power of Foucault (1999, 2002, 2004, 2005, 2009, 2010, 2013), apparatus of Agamben (2009) and gender of Bento (2011, 2012), Butler (1997, 2003, 2006, 2009, 2015) and Preciado (2014, 2018), we intend to analyze the speeches of and about trans people that take place in Brazilian social media as Twitter e Facebook, using as search criteria the key words “trans” and “travesti”, which took us to the trending posts at Twitter and groups at Facebook. Our main goal is relating the speech resistance background towards the Transsexuality Apparatus and the Brazilian Gender Biopolitics.

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LISTA DE FIGURAS Imagem 1 - Post 1 ... 101 Imagem 2 - Post 2 ... 101 Imagem 3 - Post 3 ... 102 Imagem 4 - Post 4 ... 103 Imagem 5 - Post 5 ... 104 Imagem 6 - Post 6 ... 104 Imagem 7 - Post 7 ... 105 Imagem 8 - Post 8 ... 105 Imagem 9 - Post 9 ... 106 Imagem 10 - Post 10... 110 Imagem 11 - Post 11... 112 Imagem 12 - Post 12... 116 Imagem 13 - Post 13... 117 Imagem 14 - Post 14... 118 Imagem 15 - Post 15... 120 Imagem 16 - Post 16... 121 Imagem 17 - Post 17... 122 Imagem 18 - Post 18... 125 Imagem 19 - Post 19... 127 Imagem 20 - Post 20... 127 Imagem 21 - Post 21... 128 Imagem 22 - Post 22... 128 Imagem 23 - Post 23... 129 Imagem 24 - Post 24... 131 Imagem 25 - Post 25... 132 Imagem 26 - Post 26... 133 Imagem 27 - Post 27... 135 Imagem 28 - Post 28... 136 Imagem 29 - Post 29... 137 Imagem 30 - Post 30... 138 Imagem 31 - Post 31... 139

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Imagem 32 - Post 32 ... 143 Imagem 33 - Post 33 ... 143 Imagem 34 - Post 34 ... 144 Imagem 35 - Post 35 ... 144 Imagem 36 - Post 36 ... 145 Imagem 37 - Post 37 ... 145 Imagem 38 - Post 38 ... 146

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ... 19

2. PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS: A ARQUEOGENEALOGIA E OS DISCURSOS SOBRE O VIRTUAL ... 33

2.1 ARQUEOLOGIA, DISCURSO, ENUNCIADO ... 33

2.2 GENEALOGIA E DISPOSITIVO ... 36

2.3 CIBERCULTURA E REDES SOCIAIS ... 38

2.4 A(S) BIOLÍTICA(S) ... 42

2.5 O SUJEITO E OS ENQUADRAMENTOS BIOPOLÍTICOS ... 45

2.6 A CIFRA E O FARMACOPODER ... 49

3. ESTUDOS DE GÊNERO, TRANSFEMINISMO E PRECARIEDADE ... 59

3.1 O LUGAR DE FALA E A INTERSECCIONALIDADE ... 65

3.2 TRANSFEMINISTES ... 71

4. OS DISCURSOS OFICIAIS E A CISÃO BIOPOLÍTICA ... 77

4.1 OS MARCOS JURÍDICOS (?) ... 85

4.2 O PLANO NACIONAL LGBT ... 88

4.3 A “CULTURA LGBT” ... 93

4.4 MICROPOLÍTICAS: O APOIO MATRICIAL E OS DISCURSOS DE EXCEÇÃO ... 95

5. DISCURSOS TRANS NAS REDES SOCIAIS DO BRASIL: TECNOBIOPOLÍTICA, PASSABILIDADE E INJÚRIA ... 99

5.1 AUSÊNCIAS NO TWITTER ... 100

5.2 OS DISCURSOS NATURALIZANTES ... 108

5.3 OS DISCURSOS DA CIÊNCIA E O CUIDADO RELIGIOSO .. 125

5.4 O DISCURSO DA PASSABILIDADE ... 134

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS... 147

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1. INTRODUÇÃO

“In real life, you can’t get a job as an executive unless you have the educational background and the opportunity. Now the fact that you are not an executive is merely because of the social standing of life. It’s the pure thing, black people have a hard time going anywhere. And those that do are usually straight. In a ball room, you can be anything you want. You are not really an executive, but you really look like an executive. And therefore, you show to the straight world: ‘I can be an executive. If I had the opportunity, I can be one, because I can look like one.1 Dorian Corey.

(PARIS…, 1990)

Começo este projeto de pesquisa com o documentário Paris is Burning, lançado em 1990 – apesar de ter sido filmado de 1987 a 1988. Nele, nos tornamos espectadores de bailes (balls) organizados por casas (tais como LaBeija, Xtravaganza, Ninja, Princess, Saint Laurent, Chanel, Corey, Dupree, Field, Lawong, Omni, Overness, Pendavis, Adonis, Lamay), isto é, famílias que abrigavam, forneciam um nome e laços afetivos a pessoas gays e transgênero. Elas eram geralmente administradas por membros vencedores de muitos desfiles em bailes e autointitulados como mãe, havendo realmente uma situação de cuidado entre as matriarcas e os integrantes. Nos desfiles, havia categorias que envolviam gênero (Pretty Girl, Butch Queen up in Pumps, BQ Realness2) e funções

1 “Na vida real, você não consegue um emprego como executivo a não ser que tenha a base educacional e a oportunidade. Agora, o fato é que você não é um executivo simplesmente por causa dos posicionamentos sociais da vida. É a mais pura verdade, pessoas negras têm dificuldade de alcançar qualquer lugar. E geralmente os que chegam lá são hétero. Em um baile, você pode ser o que você quiser. Você não é realmente um executivo, mas você parece com um. Logo, você mostra ao mundo hétero: ‘Eu posso ser um executivo. Se eu tivesse a oportunidade, eu posso ser um executivo, porque eu pareço com um.” (Tradução nossa).

2 Sendo, respectivamente “Menina bonita”, “Butch Queen de salto alto” e “Meninos convincentes como hétero”.

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sociais (Best dressed men in the 80’s, Soldier, Going to school3), o que indica o exercício de “práticas subjetivo-corporais subversivas” diante dos “regimes de verdade” genérico-raciais (BUTTURI JUNIOR, 2018, p. 1-2): o espetáculo era um meio de exercer outras modalidades corporais, de gênero e de afetividade negadas pela heteronormatividade, como por exemplo, o de “pretty girl” por mulheres transgênero ou “going to school” por jovens que devido à identidade gay abandonam os estudos na tentativa de sustentar-se durante o exílio familiar.

Apesar de muitas “legendary children” 4

ou “children to become legendary” 5

afirmarem a sua intenção de atingir “realness” - “o fazer crer na transformação de gênero” (BUTTURI JUNIOR, 2018, p.13), ao assistir ao documentário é notável como se fomentava mais que adequação, mas desconstrução e questionamento por meio de performances que envolviam o(s) estereótipo(s) heteronormativo(s) da feminilidade e masculinidade, crossdressing, nudez e expressões do espetáculo gay e trans6.

Os balls de Paris is Burning receberam várias leituras no discurso queer. Para Preciado (2008), os bailes seriam a fabricação de drag spaces, espaços performativos ou ainda “teatros de subjetivação”, havendo não apenas o travestismo, mas a transformação de um espaço e o questionamento das regras que o normalizam. Já na análise de Butler (2006), o efeito de “realness” resulta da corporificação e reiteração de normas – de gênero, classe e raça, a qual gera um corpo que não é particular a ninguém, mas um ideal morfológico, o qual regula uma performance jamais plenamente alcançada – seja pelos corpos cis ou, de modo mais deflagrado, pelos trans. Isso, na prática dos bailes indicaria uma promessa de abrigo na heteronormatividade: em relação ao racismo, à homofobia e à pobreza. Assim, quando Vênus Xtravaganza manifesta o desejo de tornar-se uma “mulher de verdade” – casada com um homem (Cis? Branco?) e morando em um bairro tranquilo, esse sonho está marcado não apenas pela necessidade de realness que será profanada pelo corpo trans, mas também pelo que Hooks (1992) chama de Blond

3 Respectivamente: homens mais bem vestidos da década de 80 - vistos no documentário como executivos, soldado e indo à escola - ou seja, estudante. 4 Jovens lendários, famosos pela sua performance em bailes.

5 Jovens que se tornarão lendários.

6 Um bom exemplo é o estilo de dança “Vogue”, inspirado nas poses de modelos da revista homônima.

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Ambition7: a vivência da mulher branca de classe média, a qual deixa de ser problematizada pelo documentário.

É dessa perspectiva normativa que, no livro Black Looks, Hooks (1992) questiona o fato da corporificação do feminino em Paris is Burning estar estritamente ligada à branquitude, apesar de realizada por sujeitos majoritariamente não brancos. Na obra audiovisual, tal aspecto não é relacionado ao fato de algumas montagens para o baile serem provenientes do furto de roupas de elite ou da prostituição, o que contrapõe grupos racialmente marginalizados a uma cultura branca predominante almejada em muitas categorias.

É interessante notar que aspectos semelhantes aos observados por Hooks (1992) também foram deflagrados por Pelúcio (2011) na sua pesquisa de campo em Campinas. Ao frequentar a “Praça do Sucão”, que é rodeada por bares LGTB, ela observou na montagem de corpos trans

[...] esforços de branqueamento, a partir do uso de perucas longas e lisas, de cabelos tingidos de loiro ou tratados com químicas especiais para alisamento dos fios, do uso de roupas que remetem a moda consagrada em editorais de revistas especializadas, filmes e novelas, em um estilo de glamour associado uma estética branca. (PELÚCIO, 2011, p.120)

O problema de Pelúcio (2001) indica a necessidade de questionar as identidades construídas na branquitude e na heterossexualidade. Hooks, dessa perspectiva, já ressaltava o fato de Livingston (a diretora) não ser instigada em entrevistas a justificar o seu interesse pela negritude ou a posicionar-se enquanto mulher, lésbica, branca que olha “de fora” a cultura dos bailes - o que, na atualidade, chamaríamos de lugar de fala8.

Tomo as discussões teóricas e as narrativas de vida do elenco de Paris is Burning para, a partir delas, chegar aos sujeitos, aos corpos e aos discursos que serão objetos desta pesquisa: o dos e sobre os sujeitos trans. Desse objeto e ainda segundo as leituras de Paris..., é possível ainda colocar em foco como diversas modalidades de violência, segundo a ordem de uma normatização genérico-sexual, incidem estrategicamente sobre os corpos e os sujeitos da comunidade LGBT+. Em 1988, Venus Xtravaganza foi estrangulada, aos 23 anos, em um quarto de hotel. O

7 Hooks (1992) utiliza esse termo em referência ao tour de Madonna em 1990. No livro Black Looks, o uso da negritude feito pela artista também é problematizado. 8 O conceito de Lugar de Fala será trabalhado de forma mais detida no capítulo Estudos de Gênero, Transfeminismo d Precariedade.

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crime não foi solucionado. Anos depois, Dorian Corey aos 56 anos (1993), Angie Xtravaganza aos 29 anos (1993) e Willi Ninja aos 47 anos (2008), Octavia St. Laurent aos 45 anos (2009) foram vítimas de complicações fatais devido à AIDS – outra das principais causas de morte da população LGBT em seus vértices biopolíticos9 de produção e distribuição da violência simbólica e exceção10.

Além do “deixar morrer” ocasionado pelas práticas de saúde pública, não existem dados oficiais que indiquem o número de agressões e mortes geradas pela homofobia ou transfobia. É justamente a partir desse apagamento como acontecimento discursivo que gostaria de partir na

9 Esse conceito será abordado de forma mais detida no capítulo Pressupostos Teórico – Metodológicos: a Arqueogenealogia e os discursos sobre o virtual. 10 Não se trata de coincidência que as mesmas constantes também sejam marcantes nas práticas biopolíticas brasileiras. Na “Agenda Estratégica para Ampliação do Acesso e Cuidado Integral das Populações - Chave em HIV, Hepatites Virais e outras infecções sexualmente transmissíveis” apresentada pela Ministério da Saúde em 2018, a população LGTB+ ainda aparece como “População - Chave”, isto é, atingida desproporcional e desigualmente em comparação à população geral, tanto sob o ponto de vista epidemiológico quanto em relação ao acesso à saúde. É importante ressaltar que o termo “grupo de risco” foi substituído em virtude do estigma gerado à comunidade LGTB+, além de corroborar para a culpabilização do sujeito em situação de vulnerabilidade a infecções, sem considerar o acesso à saúde como estrutura social historicamente construída (MINISTÉRIO DA SAÚDE (BR), 2018). Dessa perspectiva biopolítica, Biehl (2007) contextualiza as políticas públicas brasileiras de combate a AIDS como biopolíticas com base mercadológica. De acordo com o pesquisador, o país conta com menos de 3% dos casos de AIDS / HIV do mundo, mas ainda assim, consome 15% do mercado de retrovirais, o que favorece a distribuição em grande escala da medicação, mas não direciona investimento em profilaxia e tratamento de doenças oportunistas. Já Miskolci e Pelúcio também denunciam que a biopolítica do combate a AIDS / HIV institucionaliza uma moralidade da saúde e do corpo: os grupos de risco são separados e isolados pela “hierarquia da respeitabilidade”, havendo o senso comum de que quanto mais “respeitável moralmente” fosse a prática sexual, menos risco haveria, o que automaticamente responsabiliza (culpabiliza?) o paciente pela doença, ignorando o papel higienizante das normas socialmente estabelecidas de combate e profilaxia. Assim, há a uma racionalização das práticas consideradas homossexuais (como o sexo anal) que não é delegada às relações hétero - as quais são interpretadas de forma pouco variada. Os autores questionam, inclusive, que se por um lado a homossexualidade passa a ser lida enquanto risco, o mesmo não ocorre com a heterossexualidade - mesmo que seja uma forma de sexo de risco para mulheres.

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presente pesquisa sobre os discursos sobre trans.

Diante desse silenciamento e das estratégias biopolíticas a que responde e que faz funcionar, fica a cargo de organizações não governamentais a análise de informações provenientes da mídia e grupos de apoio, de modo a produzir outros enunciados, que confirmem a necessidade de outras políticas públicas voltadas para a população LGBT+, justamente por sua fragilidade. De acordo com o relatório de 2017 Pessoas LGTB Mortas no Brasil organizado pelo GGB (Grupo Gay da Bahia) – principal organização do gênero no Brasil11 –, pelo menos 445 pessoas LGBT+ morreram no Brasil, sendo 387 assassinatos e 58 suicídios. Já em 2018, foram 420 vítimas LGBT: 320 homicídios (76%) e 100 suicídios (24%). Há uma pequena redução de 6% em relação a 2017, quando houve número recorde nos registros de 39 anos, desde que o Grupo Gay da Bahia iniciou o banco de dados. Ainda assim, é importante ressaltar que mesmo em 2018, a cada 20 horas, uma pessoa LGBT é morta de forma brutal ou se suicida. A instituição inclusive ressalta que se mata mais pessoas LGBT no Brasil do que em países que criminalizam com a pena de morte a homossexualidade ou transexualidade.

Os crimes geralmente ocorrem em caráter de extermínio, havendo múltiplos tiros ou facadas, além de traços de tortura e espancamento12. Como os dados se repetem desde que o Grupo Gay da Bahia iniciou tal pesquisa, em 1980, em termos absolutos predominaram as mortes de 191 Gays (45%), seguido de 164 Trans (39%), 52 Lésbicas (12%), 8 Bissexuais (2%) e 5 Heterossexuais (1%). A inclusão de pessoas hétero é justificada, pois foram marcados como LGBT devido a uma identificação cultural, comportamental ou estética no momento do crime. Em termos relativos, as pessoas trans representam a categoria mais vulnerável a mortes violentas, incluindo 81 travestis, 72 mulheres transexuais, 6 homens trans, 2 drag queens, 2 pessoas não-binárias e 1 transformista, os quais têm dezessete vezes mais chances de serem assassinados por crimes de ódio. No Relatório de 2018, o GGB estima, com base em indicadores diversos da Academia e Governamentais e na ausência de pesquisas formais do IBGE, que há no Brasil por volta de 20 milhões de gays (10% da população), 12 milhões de lésbicas (6%) e 1 milhão de trans (0,5%), dados que confirmam a vulnerabilidade social de vidas LGBT frente a

11 Outra ONG referência no país é a ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), a qual também produz relatórios anuais sobre as mortes da comunidade LGBT+.

12 De acordo com o relatório, há uso de arma de fogo em 30,9% dos casos e de arma branca em 24,8% dos casos.

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políticas públicas.

Ademais, de acordo com a organização internacional Transgender Europe (2016), mais da metade dos assassinatos com motivação transfóbica do mundo (52%) em 2017 ocorreram no Brasil, o que confirma que os dados recolhidos são alarmantes. É necessário ressaltar que os números podem ser maiores, já que a mídia não realiza um trabalho neutro ao divulgar informações sobre a população LGBT+ - havendo estigma e invisibilidade social e política; logo, nem todos os casos são apresentados. Sem contar que o acesso das ONGs a dados da polícia e necrotérios é limitado.

Aliado a esse cenário, o país não consta com delegacias especializadas no atendimento da população LGBT+, o que dificulta denúncias, a classificação de um crime como homofóbico13 ou transfóbico e o fornecimento de estatísticas oficiais. Cabe colocar que em fevereiro de 2019 o STF (Supremo Tribunal Federal) adiou a decisão a respeito da criminalização da homofobia e da transfobia, sem data para ser retomado. A reinvindicação havia sido protocolado pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transgêneros e Intersexos (ABGLT) em 2012 (sugestão popular SUG 05/2016) e pelo Partido Popular Socialista em 2013 (ADO 26 e MI 4733, respectivamente). De acordo com o ministro Celso de Mello, relator de uma das ações, enquanto o Congresso não edite uma lei sobre o tema, a homofobia e a transfobia deveriam ser enquadradas na Lei do Racismo (Lei 7.716/1989), sendo crime inafiançável. Uma vez que a omissão frente a esse tipo de discriminação é incoerente frente a postura de defesa de grupos vulneráveis. De acordo com o portal online da BBC, 23% dos Estados membros da ONU já possuem essa legislação específica, o que estimularia o Brasil a ampliar sanções civis, como multas e perdas de licenças, já aplicadas em Fortaleza e Recife14.

13 Devido ao estigma, a homofobia ou transfobia é naturalizada pelo uso de drogas, prostituição ou promiscuidade associada à sexualidade LGBT+ - sendo que apenas 4% dos crimes de 2017 foram cometidos por parceiros.

14 O portal da BBC também esclarece que o projeto de lei mais antigo sobre o tema foi apresentado na Câmara dos Deputados em 2001. O PL 5003 foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça e, após passar pelo plenário, foi enviado para ser apreciado pelo Senado em 2006, onde se transformou no PLC 122. Seu objetivo era alterar a lei de racismo, de 1989, que pune crimes de discriminação ou preconceito de "raça, cor, etnia, religião e procedência nacional". O projeto pedia a inclusão no texto a discriminação por "gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero". Mas, após tramitar por duas legislaturas seguidas, o projeto

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No movimento de luta pelos direitos e pelo enfrentamento da violência, porém, aparece uma iniciativa como o Pacto Nacional de combate à LGTBfobia: o compromisso estabelecido por cada governo estadual é criar uma estrutura de gestão nas secretarias para a promoção de políticas públicas para LGBTs, instrumentalizar os órgãos para atender adequadamente essa população, formar um comitê gestor em até 60 dias e, na sequência, elaborar um plano de ação regional para o enfrentamento à violência LGBTfóbica. Além disso, os governos deveriam estimular a criação de conselhos estaduais de combate à discriminação LGBT, ou fortalecer os já existentes. A intenção é que eles proponham, por exemplo, ações de prevenção, como projetos de educação voltados para a cultura do respeito e da não violência, campanhas de conscientização, e aprimorem a investigação das denúncias15.

Além do enfrentamento da violência física e dos regimes de exceção biopolíticos, a população LGBT+ está inserida numa rede de discursos e práticas simbólicas violentas. No que tange ao objeto deste trabalho, a população trans, os processos de transição de gênero e de assunção de identidades de gênero é, muitas vezes, repleto de problemas. A rede de estratégias heteronormativas, cujos efeitos se dão no campo das violências simbólicas e do que Bourdieu (2010) chama de “dominação simbólica”, para quem “a força de ordem masculina” se apresenta de forma neutra, um a priori natural, acaba se legitimando em sua reiteração:

foi automaticamente arquivado. Até o início de 2019, tramitavam outros dois projetos no Congresso Nacional. O PL 7582/14, de autoria da deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), define o que são crimes de ódio, entre eles os motivados por orientação sexual e identidade de gênero, e estabelece pena de um a seis anos de prisão de multa para quem "praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito". Mas, em janeiro, foi arquivado de acordo com regras do regimento interno da Casa. Já o PLS 134/18, proposto pela ex-senadora Marta Suplicy (SP), cria o Estatuto da Diversidade Sexual e de Gênero e, entre outras disposições, regulamenta o "crime de intolerância por orientação sexual ou identidade de gênero", o "crime de indução à violência" e discriminações no mercado de trabalho e nas relações de consumo, punidos com penas de prisão de um a cinco anos. O projeto está atualmente na Comissão de Transparência, Governança, Fiscalização e Controle e Defesa do Consumidor.

15 Já assinaram o pacto: Acre, Alagoas, Ceará, Goiás, Mato Grosso do Sul, Pará, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Rondônia e Tocantins, faltando Amapá, Amazonas, Roraima, Bahia, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Sergipe, Mato Grosso, Distrito Federal, Espírito Santo, Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Santa Catarina.

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pela distribuição restrita de atributos e atividades compatíveis a cada gênero, fazendo com que até mesmo a inteligibilidade dos sujeitos e suas possíveis críticas sejam pensadas a partir dessa lógica do senso comum da masculinidade, o que legitima esquemas cognitivos machistas, homofóbicos ou transfóbicos nas relações sociais.

Isso ocasiona tanto vigilância e controle (aqui, pensados com Foucault, como se verá na seção a seguir) quanto violência exercida contra aqueles que não apresentam linearidade dentro dicotomia sexo – gênero, gerando desde abuso verbal até impossibilidade de utilizar banheiros públicos, frequentar espaços de entretenimento e educação ou ingressar no mercado de trabalho, uma vez que a lógica da “força de ordem masculina” encontra-se institucionalizada em diversos setores da sociedade.

Tomemos as práticas e discursos que se constituem em torno da redesignação de gênero e do uso de nomes sociais por pessoas trans. No caso do segundo, para a sua formalização inicial, é necessário procurar o SUS e passar por atendimento psicológico, laudo psiquiátrico e relatório endocrinológico para inclui-lo na carteirinha. O que pode ser um entrave devido a diagnósticos patologizantes16. Já a sua inclusão em documentos oficiais como o RG, Carteira de Trabalho ou Título de Eleitor é mais burocrática, lenta e cara. É necessário apresentar os relatórios dos atendimentos de saúde, não estar com dívidas ativas (pendências financeiras no SERASA, SPC ou outras) e nem apresentar antecedentes criminais. Também é preciso fornecer original e cópia de documentos pessoais e certidões diversas; cartas escritas de próprio punho por pessoas que reconhecem o sujeito pelo nome que deseja, de preferência familiares e fotos em diferentes espaços e com outras pessoas, que mostrem a identidade de gênero reivindicada17, além de entrar com processo judicial – o qual, pela ausência de legislação específica, pode ser indeferido. Todo o processo ignora a vulnerabilidade da população trans em relação a acesso ao mercado de trabalho para poder arcar com custos diversos, exposição à criminalidade e violência familiar.

No caso da redesignação, existe o projeto de lei PLS 658/2011

16 Esse aspecto será abordado mais detidamente no capítulo “Estudos de Gênero, Transfeminismo e Precariedade”.

17 Para pessoas cis, processos burocráticos no Brasil já são desgastantes, pois sempre exigem nova documentação e muitas horas de idas e vindas a cartórios e outras instituições. Submeter uma pessoa trans que não possui reconhecimento social da sua identidade de gênero a esse processo é ainda mais cruel.

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(BRASIL, 2011) ainda em tramitação. Ele garante a mudança18 em registros e não apenas a inclusão do nome social, independente de qual seja o sexo biológico, anatômico, morfológico, hormonal, de atribuição - ou seja, não exige a cirurgia de redesignação de sexo.19 Contudo, ainda exige a apresentação de laudos de saúde e testemunhas, além de tratar a experiência trans como patologia20. No caso de Universidades Federais, via de exemplo a UFSC, o nome social pode ser solicitado na inscrição do vestibular ou por meio de processo administrativo, garantindo que o nome social e não de registro conste em chamadas, provas e atestados de matrícula. Ainda assim, de acordo com a Resolução Normativa 59/CUn/2015 da Federal de Santa Catarina21, no diploma haveria apenas o nome de registro, não havendo menção de inclusão de nome social, o que garante a inserção do formando trans apenas enquanto universitário, porém não no mercado de trabalho.

Desse modo, o uso de nome social no Brasil (seja sua inclusão ou mudança de registros oficiais) é uma conquista instável, pois apenas no mês de janeiro pôde ser vetada pelo governador de Santa Catarina Carlos Moisés da Silva (PSL) e posteriormente, em trinta e um de janeiro, aprovada a mudança de registro civil do nome e gênero de uma pessoa transgênero independente de cirurgia de alteração de sexo e laudo médico ou psicológico pela Quarta Câmara Civil do Tribunal de Justiça de Santa

18 Esse aspecto é importante, pois a Portaria Nº 1.820 emitida pelo Ministério da Saúde em 2009 garantia apenas a inclusão do nome social ao nome de registro. Ou seja, o constrangimento de apresentar o nome de registro não compatível a identidade de gênero ainda existe.

19 No dia 03 de Maio de 2018 foi aprovada a Carteira de Nome Social no Pará, já existente em outros seis estados brasileiros. A novidade é que o documento emitido no Pará é válido como RG, o que é exclusividade desse estado. A carteira de nome social tem, além do nome social, foto de identificação, o número do RG e órgão expedidor. Também estão inseridos data de nascimento, filiação, CPF e profissão. Para consegui-lo, é preciso solicitar uma Declaração de Identidade de Gênero à Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos (Sejudh). É necessário também apresentar certidão de nascimento original, duas fotos 3x4 recentes e comprovante de residência atual. Com todos os documentos reunidos, basta ir até o Posto Central de Identificação, na Delegacia Geral da Polícia Civil. O documento é emitido no mesmo dia.

20 Inclusive, o termo “Transexualismo” e seus discursos naturalizantes são uma constante em todo o documento.

21 A UFSC também conta com o website “Diversifica UFSC”, em que fornece informações sobre o processo para uso de nome social e orienta como acionar a universidade em casos de transfobia.

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Catarina (TJSC).

Outro agravante é que os centros de referência trans são localizados em hospitais de universidades federais ou capitais, o que dificulta o acesso a serviços básicos de saúde voltados a essa população, sem contar a cirurgia de mudança de sexo, que tem filas de anos para ser obtida pelo SUS e custa cerca de 20.000 reais em hospitais particulares.

Nessa rede de discursos de exclusão, sem dúvida as redes sociais também ocupam um papel importante na produção, manutenção e naturalização das cisões entre pessoas trans e pessoas cis, sobretudo agravando os enunciados de ódio. No artigo Discursos de ódio em redes sociais: jurisprudência brasileira, Borchardt (et al., 2011) apontam que apenas no ano de 2010, foram julgados 685 casos envolvendo crimes no espaço virtual. Os pesquisadores dividiram os casos em: discursos de ódio voltados a grupos sociais em função de uma característica partilhada por seus membros, violação à imagem e liberdade de um indivíduo em particular, publicação e divulgação de imagens de teor sexual e uma categoria genérica “outros” para resultados residuais que não se encaixassem na demarcação proposta. Nos dados encontrados, as três categorias principais partilhavam 50% dos casos, sendo que todos os processos caracterizados como “discurso de ódio” foram de iniciativa do Ministério Público. Tal pesquisa indica a presença relevante de discriminação no ambiente online e de sua resposta já presente no espaço jurídico.

Apesar de não existirem mapeamentos ou dados oficiais sobre discursos de ódio discriminatórios, houve uma proposta do Governo Federal para enfrentamento das violações aos direitos humanos que ocorrem online. O projeto Humaniza a Rede22, com base no artigo 5º do Decreto nº 8.162/2013 (BRASIL, 2013) e posteriormente, no Decreto Nº 9.122, de 2017 (BRASIL, 2017); recebe, examina e encaminha denúncias e reclamações sobre violações de Direitos Humanos – com foco em Violência contra Mulheres, Homofobia, Xenofobia, Intolerância Religiosa, Pornografia Infantil, Racismo, Neonazismo, Tráfico de Pessoas. A iniciativa conta com o apoio de empresas como o Facebook e Twitter, apesar de ser pouco divulgada.

Pensando nessa rede de discursos e práticas e na lacuna e nas relações entre, por um lado, os discursos das políticas públicas e a biopolítica (a serem discutidos adiante) e a produção dos sujeitos trans e

22 O projeto tornou-se órgão da Secretaria de Direitos Humanos, mas com o desmonte da instituição e mudança de ministérios em 2019, não há notícias de sua continuidade ou projetos relacionados.

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de suas identidades possíveis, no interior de dispositivos de violência em suas intersecções (de gênero, transfóbica, racial, econômica), o objeto de estudo desta pesquisa é composto pelos discursos trans veiculados nas redes sociais Facebook e Twitter, no Brasil. Os recortes analíticos, para tanto, foram capturados a partir da busca por duas palavras-chave, “travesti” e “trans”, cujas incidências se materializaram entre os meses de fevereiro de 2018 a abril de 2019. Devido à elevada quantidade de discursos nessas redes sociais, serão analisados os posts como performance-comentário dos acontecimentos e das lutas discursivas sobre o discurso trans no Brasil atual.

Na pesquisa, optei por investigar perfis23 do Twitter – já que todos eles são públicos – e grupos24 pelo Facebook, uma vez que nem todos os perfis dessa rede social são públicos ou possuem a plasticidade de compartilhar qualquer informação postada por um usuário, o que influencia na possibilidade de divulgação dos discursos. Atualmente, o Twitter conta com mais 300 milhões de usuários25 e apesar de não divulgar o montante correspondente ao mercado brasileiro, afirma que é uma fatia relevante. Já o Facebook possui mais de 500 milhões de usuários26, sendo cerca de 127 milhões de brasileiros.

Os perfis observados no Twitter pertencem ou fazem referência predominantemente a mulheres trans, como “Transexual Selena”, “Natalia Transexual”, “Natasha Di Tanaka”, “Penélope Chavosa”, “Trans Finíssima”, “Travesti Feminina”, “Genjutsu Ursal”, “Travesti Islâmico”, “Raquel Virgínia”, “Florzinha Travesti”, “Luisa Marilac Oficia”. Por outro lado, quando utilizei as palavras “trans”, “transexual” ou “travesti” para buscar posts em vez de perfis, deparei-me com maior quantidade de usuários com identidade masculina hetero, geralmente veiculando comentários transfóbicos relacionados a notícias sobre pessoas trans, como a transferência vetada ou permitida de mulheres trans ou travestis a presídios femininos. De maneira a tornar a análise mais eficiente, utilizei o website Trendsmap, que fornece informações relevantes dos usuários da

23 Os perfis selecionados no Twitter correspondem a sujeitos fictícios ou reais cuja identidade trans é aparente por palavras-chave presentes no nome escolhido ou descrição, como “transexual” ou “travesti”.

24 Os grupos do Facebook também foram selecionados por meio das palavras-chave “trans”, “transexual” ou “travesti’, havendo preferência por aqueles que representassem um lugar seguro para a comunidade LGBT+ compartilhar experiências.

25 Dados do site da Revista Exame (2018)

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rede social com base em palavras – chave. Por meio das hashtags “trans” e “travesti”, pude escanear quantas publicações foram feitas por dia, de quais estados, quais os horários de pico, a porcentagem de uso de links da mídia mainstream, quais publicações foram mais retwittadas e respondidas, além de quais perfis seriam formadores de opinião devido à sua influência ou número de seguidores.

Em relação aos grupos do Facebook, notei que a maior parte daqueles abertos voltados a mulheres trans têm como tema intervenções cirúrgicas, como o “Plástica Trans - Feminização/ Resultados FFS” ou de forma velada a prostituição, como o “Pensionatos Trans pelo Brasil”. Devido ao interesse desse trabalho, decidi deter minha análise sobre as mulheres trans no Facebook apenas no grupo “Fórum de Denúncias Trans”, o qual tem discussões mais amplas, desde as disputas no mercado de trabalho da prostituição, denúncia de agressores até dúvidas sobre relacionamentos amorosos. Há ainda grupos voltados especificamente a homens trans, como o “Homens Trans e Simpatizantes”, o qual debate o processo de hormonização e possibilidades de encontros amorosos entre os integrantes do grupo e também fará parte do corpus. Já com a proximidade das eleições, passamos a observar o grupo “LGBTQI+ Resistência pela Democracia!”, o qual faz colocações sobre a inserção LGBT na sociedade de direito.

Tendo essa rede de discursos em vista, o objetivo da pesquisa é observar de que maneira o discurso trans desenvolve-se nas redes sociais como acontecimento-comentário e de que modo as redes e sua complexidade de vozes e práticas oferecem espaços agonísticos de resistência e codificação. Interessa-me analisar quais categorias são mobilizadas pelos discursos tanto de resistência quanto transfóbicos em redes sociais, segundo a hipótese de que a transfobia é pautada em um conceito de gênero que tem a biologia como aspecto fundante, o que corrobora com a patologização e violência contra pessoas transgênero.

Do ponto de vista teórico-metodológico, a pesquisa será embasada nos estudos foucaultianos (FOUCAULT, 1999, 2002, 2004, 2005, 2009, 2010, 2013), na perspectiva das discussões do gênero e do transfeminismo (BENTO, 2011, 2012; BUTLER, 1997, 2003, 2006, 2009, 2015; CARNEIRO, 2005; PELÚCIO, 2004, 2009, 2011, 2016; PEREIRA, 2014; PRECIADO, 2014, 2018; NICHOLSON, 2000; RIBEIRO, 2017; SCOTT, 1991; STRYKER, 2008), apresentadas mais detidamente no capítulo Dispositivos da Sexualidade, Estudos de Gênero e Transfeminismo. Isso implica não apenas tomar como ponto de partida estudos que pretendem desnaturalizar os discursos de gênero e de sexualidade, mas de fazer notar que há tanto performances de gênero

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quanto discursos de violência materializados nas redes sociais. Essa relação entre poder e resistências, aqui, será lida como uma rede de enunciados marcados pela “polivalência tática dos discursos” que as redes sociais deixam entrever. Se os discursos são tomados em sua polivalência, entendo que nem há um discurso dominante e um discurso dominado, mas “[...] uma multiplicidade de elementos discursivos que podem entrar em estratégias diferentes [...]” podendo o discurso ser, “[...] ao mesmo tempo, instrumento e efeito de poder, e também obstáculo, escora, ponto de resistência e ponto de partida de uma estratégia oposta [...]” (FOUCAULT, 1999, p.109-110).

A fim de desenvolver a discussão, o texto se divide em quatro partes. No segundo capítulo, Pressupostos teórico-metodológicos: a arqueogenealogia e os discursos sobre o virtual, faço a exposição de conceitos fundamentais da arqueogenealogia foucaultiana que ampararão teórico-metodologicamente a pesquisa; além da apresentação a cibercultura de Levy (1999) e Han (2016). Já no terceiro capítulo, Estudos de Gênero, Transfeminismo e Precariedade, abordo o conceito de Gênero nas Teoria(s) Feminista(s) e Teoria Queer. No quarto capítulo, Os discursos das políticas públicas no Brasil, exploro a relação entre Política Pública e Identidade no movimento militante e acadêmico LGTB, visando políticas públicas sociais, culturais e da área da saúde. Finalmente, no quinto capítulo, farei a descrição e a análise do corpus, indicando quais os enunciados se relacionam a trans e investigando se as categorias presentes nos discursos podem ser lidas segundo um discurso de injúria e exclusão, no qual a transfobia aparece como constitutiva.

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2. PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS: A ARQUEOGENEALOGIA E OS DISCURSOS SOBRE O VIRTUAL Neste capítulo, pretendo descrever alguns dos conceitos que nortearão, teórico-metodologicamente, as análises que serão empreendidas. Assim, se me valho de conceitos como discurso, dispositivo e biopolítica, cabe aqui esclarecer em que sentidos eles serão pensados, bem como esses se relacionarão com um entendimento específico, que aqui traçarei, dos discursos virtuais e daqueles que circulam nas redes sociais.

2.1 ARQUEOLOGIA, DISCURSO, ENUNCIADO

De modo a compreender o que a análise foucaultiana entende como “discurso”, parto antes da noção de enunciado. Assim, no que diz respeito à diferença em relação à análise da língua, Foucault (2005) questiona em A Arqueologia do Saber: segundo que regras um enunciado foi construído e segundo quais regras outros semelhantes poderiam ser criados? Contudo, o enunciado no âmbito do discurso e da arqueologia, enquanto acontecimento ou prática, exige uma outra indagação: como apareceu determinado enunciado e não outro em seu lugar? (FOUCAULT, 2005). Logo, torna-se primordial estabelecer o enunciado em seus efeitos: ao que pode estar ligado e que outros enunciados ele exclui. Ele é um evento que nem a língua e nem o sentido esgotam completamente: está ligado à palavra, como também à memória, à materialidade sígnica, à repetição e à transformação - à prática discursiva.

Para Gregolin (2004), é possível discernir o extralinguístico quando se determina o que é da ordem do discurso ou do enunciado. O enunciado não pode ser submetido às provas de verdadeiro e falso como a proposição lógica; também não pode ser totalizado pelos atos de linguagem (speech acts), pois seus efeitos não são medidos pelo ato material da sua produção (quem fala ou escreve), intenção do locutor ou resultado obtido: no âmbito do discurso, não é o sujeito que possibilita práticas discursivas, mas práticas discursivas que estrategicamente fazem emergir sujeitos como uma posição - da sexualidade, da loucura, da delinquência.

Como multiplicidade (DELUZE, 2005), o enunciado não é estabelecido no seu isolamento, mas no seu jogo de relações. Além disso, a arqueologia foucaultiana não trata de restabelecer à superfície discursos implícitos, escondidos no interior daqueles manifestos, mas a análise da coexistência e determinações recíprocas de discursos. É no jogo próprio

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do discurso, que recusa a origem teleológica e a originalidade de um sujeito que os enunciados ganham sentido e produzem efeitos. Como multiplicidade, outro aspecto importante levantado pela Arqueologia é a noção de campo enunciativo, ou seja, o domínio de coexistência dos enunciados que formam o discurso: “[...] todos os enunciados já formulados em alguma outra parte e que são retomados em um discurso como verdade admitida e também os que são criticados, discutidos e julgados, assim como os que são rejeitados ou excluídos [...]” (FOUCAULT, 2005, p.32). Para identificar esse jogo de relações, também é preciso levar em consideração um referencial - que não é um objeto, mas um princípio de diferenciação e a materialidade do discurso, sendo não apenas o seu suporte, como também as suas possibilidades de uso ou de reutilização (em uma conversa, romance, etc..). Assim, “[...] pode-se dizer, de modo geral, que uma sequência de elementos linguísticos só é enunciado se estiver imersa em um campo enunciativo em que apareça como elemento singular” (FOUCAULT, 2005, p.37). Em síntese, para Gregolin (2004, p.33), o discurso é o “[...] conjunto de enunciados que se apoia em um mesmo sistema de formação [...]”, enquanto a formação discursiva caracteriza-se como “lei de série, princípio de dispersão e de repartição enunciados”.

Ao questionar os regimes de seriação, repetição e distribuição dos enunciados e dos discursos em regularidades, o arqueólogo vai definir o que chamará de sistema de dispersão, a partir de quatro variáveis: a formação de objetos, de status enunciativos, de conceitos e de estratégias. A primeira tática de Foucault (2005) para a análise desse feixe de relações foi observar de que maneira enunciados diferentes em sua forma e dispersos no tempo formariam um conjunto quando se referiam a um mesmo objeto. Contudo, à medida que o enunciado, enquanto prática discursiva, constrói um objeto, transforma-o, estabelecendo múltiplas singularidades. O francês ilustra esse aspecto ao comentar que a unidade dos discursos sobre a loucura não estaria fundada num objeto único e bem delimitado “loucura”, já que esse mesmo objeto não é alvo de uma evolução histórica determinada, mas justamente nos seus jogos de ruptura e transformação, isto é, a sua descontinuidade interna no que concebemos como história. Assim, importa mais a maneira pela qual os objetos são formados por práticas discursivas e não o objeto per se.

Para tanto, algumas considerações são importantes. O sujeito que produz o discurso é determinado por um status. Por exemplo, a fala médica não vem de qualquer um, mas daquele que tem o direito de articulá-la, sua existência não é dissociada de uma personagem. Assim, a posição de sujeito é determinada pela sua relação: i) com diversos

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domínios de poder-saber: como a vinculação médico e paciente, que gera controle e conhecimento; ii) e com objetos discursivos: uma vontade de verdade que legitima o “médico” enquanto sujeito inquestionável da “ciência médica”, vista como uniforme e regular diante da história.

Outro aspecto relevante se dá na formação de conceitos: a análise discursiva não ambiciona buscar a permanência de temas ou escrutinar pensamentos e opiniões de modo a chegar na sua verdade a priori, mas antes, determinar um campo de possibilidades estratégicas de sua produção e de sua circulação. Isso ocorre, pois na análise enunciativa, Foucault (2005) deparou-se com séries lacunares, substituições, transformações de conceitos que não formavam uma série ininterrupta e nem ao menos possuíam a mesma estrutura lógica ou regras de utilização, ora excluindo ora ignorando uns aos outros. Como, então, justificar a sua pertinência? O francês afirma que quando se é possível “[...] descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva” (FOUCAULT, 2005, p. 43).

Essas formações discursivas escapam da descrição de uma ciência dos discursos, constatando apenas um sistema de dispersão que não ambiciona a explanação ou congruência de uma teoria. Portanto, é do interesse das práticas discursivas descrever as suas regras de formação, isto é, as suas condições de coexistência, manutenção, modificação e desaparecimento. Apesar de haver regras para o seu agrupamento, a formação discursiva é lacunar justamente por ocupar espaços estratégicos de saber, o que significa que todo enunciado que organiza e produz saberes também é engendrado por campos de poder. Isso recoloca o questionamento do francês do porquê alguns enunciados são validados em a priori históricos e outros não: devido à sua posição estratégica em uma formação discursiva.

Isso direciona a análise discursiva não para a crítica da pertinência ou não de uma teoria, mas a partir de quais formações discursivas construtos teóricos podem aparecer. Veyne (2011) utiliza o aquário como metáfora das formações discursivas: é uma forma de fazer a crítica não de um a priori da verdade, mas da verdade de seu próprio tempo; já que os contemporâneos de uma época encontram-se encerrados em discursos com a mesma clareza de sua arbitrariedade e singularidade que peixes em um aquário, ignorando que há um aquário ou quais redomas são essas.

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Outro aspecto importante para a discussão arqueológica, que será retomado na genealogia, é a noção de positividade, isto é, de relações de produção e de criação de efeitos sobre as coisas, os sujeitos e a linguagem. Foucault afirma: “[...] a positividade desempenha o papel do que se poderia chamar um a priori histórico” (FOUCAULT, 2005, p.132). Dessa perspectiva de uma positividade, Chinola (2003) ressalta que elas também podem ser inscritas como o campo epistemológico ou a episteme que organiza as condições de domínio e aparecimento do discurso. Tais sistemas que colocam o discurso enquanto acontecimento e prática em um campo epistemológico – a priori histórico – geram o que Foucault caracteriza como arquivo, ou seja, como que um monumento marcado em sua dispersão e reiteração pelo tempo, não evolução. Assim, como gostaria Foucault (2005), a arqueologia descreve os discursos como práticas especificadas no elemento do arquivo.

Para Deleuze (1988), esse arquivo foucaultiano é constituído pelo enunciável (práticas discursivas) e pelo visível (práticas não discursivas), as quais demarcam um espaço de instituições, acontecimentos políticos e processos econômicos. Porém, Foucault não estabelece uma relação de verticalidade entre instituições e discursos, mas um corte diagonal, caracterizado por Deleuze (1988) como: “[...] horizonte determinado sem o qual tais objetos de enunciados não poderiam aparecer, nem tal lugar ser reservado dentro do enunciado [...]”, o que já indicaria um esboço da Filosofia Política em Foucault (2005).

A aparição do poder e do não discursivo é já apontada ema Ordem do Discurso (2009), em que Foucault (2009) determina o discurso não apenas como aquilo que manifesta ou oculta o desejo, mas enquanto objeto de desejo. Dessa forma, o discurso não traduz lutas políticas em enunciados, mas é por si só aquilo pelo que se luta, um poder a se dominar, não a mera expressão simbólica de poderes institucionais ou práticas políticas. Na visão de Machado (2003), os saberes discursivos, em sua colocação estratégica, aparecem como peças de relações de poder, as quais incluídas em um dispositivo político, dão origem ao que o francês chamará de genealogia. Por isso, Machado (2005) considera Vigiar e Punir e a Vontade de Saber como momentos de deslocamento genealógico e da “[...] introdução de análises históricas da questão do poder como um instrumento de análise capaz de explicar a produção dos saberes [...]” (MACHADO, 2005, p. 10).

2.2 GENEALOGIA E DISPOSITIVO

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genealogia, Kaminski (2018, p.28) coloca que a “[...] arqueologia descreve as regras presentes nas práticas discursivas do âmbito dos saberes em dada época, ao passo que a genealogia demonstra que a organização discursiva possui função de legitimar estratégias de poder existentes nas práticas não discursivas. [...]” O que faz com que o discurso reitere desde práticas disciplinares até tecnologias do governo, as quais dirigem-se, respectivamente, ao corpo individual do sujeito de modo a regular sua multiplicidade e como controle e regulamento de práticas populacionais. Para Machado (2005), tais poderes são exercidos cotidianamente e em níveis e pontos variados da rede social, colocando-se como micropoderes que agem em diferentes dispositivos.

O conceito de dispositivo é fundamental na genealogia foucaultiana, pois abarca de que maneira o linguístico e extralinguístico se articulam na produção de um “[...] conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, filantrópicas e morais” (FOUCAULT, 2005, p. 138), ou seja, o dispositivo produz discursos e práticas que se materializam em saberes e poderes, além de produzirem sujeitos e objetos. Contudo, em meio à dispersão e reiteração de enunciados, outro aspecto importante é ressaltado por Butturi Junior (2016, p. 3): “[...] a constituição dos dispositivos obedeceria a dois processos: um, de ‘sobredeterminação funcional’ em relação à dispersão de seus elementos e aos demais dispositivos; outro, de ‘preenchimento estratégico’, entendido como o mecanismo plástico de reutilização dos dispositivos a partir de novas urgências históricas [...]”, o que indica o caráter difuso dos micropoderes ao utilizar discursos ora como efeito de poder ora como resistência.

Em sua leitura do dispositivo foucualtiano, Agamben (2009) ressalta que na base de todo dispositivo há uma vontade de felicidade, a qual é capturada como forma de subjetivação por diversos micropoderes que agem no interior dos dispositivos, criando corpos dóceis, mas que se veem livres por assumirem uma identidade inteligível. O autor ainda acrescenta que no contexto do desenvolvimento capitalista, há a acumulação e proliferação de dispositivos, fazendo com a que a sua profanação, ou seja quebra do que foi ritualmente separado e organizado, seja também difusa e multiplicada. No caso do presente trabalho, o interesse se volta para corpo transgênero e para os dispositivos que produzem subjetivações de várias ordens (genéricas, sexuais, sociais, estéticas, biopolíticas).

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dispositivos geraria não uma nova subjetividade, mas uma dessubjetivação e uma infelicidade, pois o jogo de subjetivação nos dispositivos prevê tanto a falha de uma identidade quanto a impossibilidade de uso único e saturado: “[...] a todo dispositivo corresponde um processo de subjetivação (ou, neste caso, de dessubjetivação), é totalmente impossível que o sujeito do dispositivo o use de modo ‘correto’. (AGAMBEN, 2009, p.48)

Sob a égide dos dispositivos disciplinares descritos por Foucault, Machado (2003) descreve a disciplina como uma forma de organização do espaço – uma distribuição de forma individualizada, classificatória, combinada – e um controle do tempo. Seu objeto central o corpo. A disciplina fornece um registro contínuo de conhecimento ao mesmo tempo em que exerce poder; produz identidades e por isso, não se coloca apenas como coerção de uma subjetividade pré-existente, mas organização de uma subjetividade, apresentando, por isso, positividade.

No que tange ao objeto desta pesquisa, observamos o uso das redes sociais também como um dispositivo de disciplina e controle, nos moldes de Deleuze (1992): há a organização de um espaço virtual por meio de grupos, páginas e timelines regulados pelo “gostar”, distribuição de indivíduos em perfis que são combinados (amizades) e classificados (popularidade) entre si por vínculo social - também uma forma de preferência. No interior das redes da Cibercultura (LEVY, 1999), também não há uma finalidade, resultado específico, mas a manutenção do seu desenvolvimento ad infinitum por meio de novas preferências. Nas redes, ocorre a vigilância de um perfil a outro, fazendo com que o indivíduo que é visto comporte-se e construa-se justamente de maneira a ser observado – um confessionário digital produzido por vigilância, exame e escrita de si contínuos. É sobre esse dispositivo que a seção seguinte versará.

2.3 CIBERCULTURA E REDES SOCIAIS

Na obra clássica Cybercultura, Pierre Levy (1999) aborda como o uso de certas tecnologias condiciona o desenvolvimento de novas formas de comunicação e reprodução de saberes. Nas culturas orais, os valores eram transmitidos e memorizados dentro de seu contexto regional de geração a geração. Para acessá-los, é preciso participar de sua ritualização de modo que o conhecimento transmitido possa cumprir sua função totalizante – ou seja, fornecer sentido pleno a determinadas práticas sociais. Aplicado dessa forma, o saber cumpre a sua função em significar determinada coletividade, mas não ambiciona a partir disso criar um método acessível a toda humanidade em qualquer período de tempo.

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Esse aspecto muda com o surgimento da escrita. O texto escrito ambiciona ter seu sentido preservado por gerações longínquas em diferentes regiões. Nele, há a preocupação de coerência e clareza de modo a permitir acesso universal. Logo, sua significação está em reproduzir conhecimento válido da humanidade para a humanidade, não numa prática social específica. Por outro lado, também existe uma tentativa de fechamento semântico que pode ignorar pluralidades de contextos e prática culturais. Assim, a escrita possibilitaria um saber de acesso e conteúdo universal, mas totalizante - teoria fechada em si mesma. Isso implica que as religiões pautadas em grandes textos escritos possam assumir caráter universal (LEVY, 1999).

O acesso aos saberes fica ainda mais complexo com o surgimento da internet. (LEVY, 1999). O seu potencial de colocar pessoas em contato, além de armazenar e propagar um montante antes impensável de informação têm sido alvo de muitas críticas. Alguns valorizam a possibilidade democrática e educadora da cibercultura, enquanto outros temem uma possível tendência de acirrar ainda mais as desigualdades socioeconômicas do mundo não cibernético, falando até mesmo em uma possível substituição das relações humanas reais pelas virtuais (LEVY, 1999).

No Brasil, o Marco Civil da Internet (BRASIL, 2014) ressalta seu potencial de abertura e colaboração – ou seja, todos podem comunicar-se com todos (diferente da carta, telefone, rádio ou televisão) e por meio da interação com o virtual, gerar conteúdo. Por isso, estabelece como diretriz a preservação da sua natureza participativa e o direito de acesso. Tais aspectos estão altamente relacionados ao caráter universal, mas não totalizante da rede. Universal no sentido de conectar todos a todos como produtores e receptores de conhecimentos: o uso da internet exige um usuário ativo, que a interprete e construa concomitantemente. Sendo que devido ao seu imperativo de contato coletivo, já não há mais a possibilidade de fechamento semântico – o usuário é quem determina qual conteúdo deve ser selecionado em um mar de informação. Isso implica em mudanças fundamentais na forma com que lidamos com os saberes, a opinião pública, a democracia e a educação, conforme a defesa de Levy (1999).

Seguindo esse raciocínio materializado no documento brasileiro, antes da internet, os conhecimentos eram organizados de forma totalizante: para acessar uma área, existe um curso de formação que reúne as teorias consideradas relevantes para determinada cultura e competência, havendo a especialização de forma linear. Porém, na cibercultura, o saber-fazer não formalizado e o estudo autodidata atingem

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outra organização e legitimidade, fazendo com que o conhecimento seja adquirido de forma extra institucional pelo contato – acesso a tutoriais, artigos, livros e comentários compartilhados online (LEVY, 1999.) Logo, não é mais a instituição que necessariamente determina a metodologia de aprendizado, mas o interesse volúvel de bilhões de usuários27. Isso não anula a importância das escolas e universidades como referência nos estudos, mas com certeza introduz dois novos cenários: há mudança na orientação institucional em relação ao acesso a materiais, organização online das disciplinas e diálogo entre alunos e professores para solucionar dúvidas.

Na metáfora de Levy (1999), o Ciberespaço possui inúmeros centros em multiplicação, mas nenhuma circunferência - não existe objetivo totalizante. Portanto, há apenas o desenvolvimento de uma “[…] inteligência coletiva fractal, reprodutível em todas as escalas e diferente em toda parte, […] as fontes serão sempre mais heterogêneas, que os dispositivos mutagênicos e as linhas de fuga irão multiplicar-se.” (LEVY, 1999, p. 119). Isso faz com que prerrogativas estabelecidas pelo Marco Civil da Internet sejam muito desafiadoras quando pautadas apenas no que sabemos sobre as mídias tradicionais. Como preservar e promover a pluralidade e a diversidade; os direitos humanos, o desenvolvimento da personalidade e o exercício da cidadania em meios digitais; o acesso à informação, ao conhecimento e à participação na vida cultural e na condução dos assuntos públicos? Tais aspectos indicam que o uso da rede não visa a minimizar a complexidade das relações sociais, mas aumentá-la.

Dessa perspectiva, cabe pensar os discursos que circulam nas redes sociais na agonística entre a participação política e a educação na rede, por um lado, e os aspectos de controle e disciplina que deixam ler, por outro. É sobre os últimos que, no texto No Enxame: Reflexões Sobre o Digital, Byung-Chul Han (2016) afirma que as timelines e comentários em redes sociais não estabelecem narrativas coerentes ou diálogos universais, mas enumerações; o que possibilita o surgimento das shitstorms – uma sequência de opiniões depreciativas a respeito de determinado tópico. Para o autor, esse comportamento invalida o exercício de inteligência em massa, já que “[...] dada a sua volatilidade, não desenvolvem energias políticas. Do mesmo modo, também as shitstorms não são capazes de por em questão as relações de poder

27 De acordo com o relatório Digital in 2018, divulgado pelos serviços online Hootsuite e We Are Social, atingimos mais 4 bilhões de usuários da internet em 2018.

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dominantes [...]" (HAN, 2016, p. 24) Porém, antes mesmo de discutir a questão da Inteligência Coletiva, é necessário compreender o que o autor compreende por esse coletivo capaz de pensar politicamente. Para Han (2016), a massa era entendida como dotada de corpo e espírito, trabalhava em unidade política e social, enquanto a rede atual seria dotada apenas de indivíduos isolados, que perderiam a capacidade de intervenção.

Tal aspecto é contraposto no artigo Multidão e Princípio de Individuação. Paolo Virno (2002) coloca, inicialmente, que a definição de sujeito como indivíduo por si só já apresenta equívocos. O sujeito não reúne apenas o que é único, mas também o “pré-individual” – isto é, comportamentos que não dependem da sua decisão para ocorrer. Por exemplo, o comportamento sensorial (ver, tocar, ouvir) do homem é pré-individual, assim como sua capacidade de fala enquanto código coletivo: antes da criança poder dizer “eu falo”, é necessária a percepção de que “se fala”. Até mesmo a história também pode ter caráter pré-individual28, uma vez que as principais forças de produção do sistema capitalista baseiam-se em movimentos pré-individuais como a percepção, a linguagem, a memória coletiva e o pensamento objetivo que não depende, necessariamente, do assentimento de seres singulares. Logo, a formação do indivíduo parte do social e ainda preserva os seus resquícios.

O que Virno (2002) chama de multidão, o totalizante é uma premissa, não um objetivo. O sujeito parte do coletivo para o individual, fazendo com que a esfera pública seja outro espaço de redefinição do “pré-individual”: é na coletividade que a percepção passa a ser a minha subjetividade; a língua, o meu lugar de fala; o pensamento objetivo como cerne das minhas relações de poder, ou seja, a individuação coletiva que ressignifica o seu contexto. Aqui, não há a noção de povo que caminha em direção de um ideal, mas de cada um que “[...] personaliza (parcial e provisoriamente) sua própria componente impessoal através das vicissitudes características da experiência pública [...]” (VIRNO, 2002, p. 39) Assim, por não haver unificação por meio do Estado ou do “Popular”, a individuação coletiva é incompleta e está sempre em movimento não linear: ora em sentido da individuação coletiva ora da pré- individuação. Volto, porém, para a leitura mais pessimista de Han. Ainda sobre as shitstorms, Han (2016) destaca outro aspecto importante para esta pesquisa: o gerenciamento das emoções. O autor coloca que as redes sociais promovem um estado afetivo incapaz de desenvolver força de ação, isto é, uma distração generalizada. O que seria diferente da cólera

28 Virno ressalta que Marx já trabalhara esse conceito por meio do termo General Intellect, na obra Manuscritos Econômicos e Filosóficos.

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capaz de interromper o estado de coisas existentes e iniciar outra estabilidade. Antagonizar um estado afetivo generalizado à cólera que levaria à ação coloca em xeque a utilidade das emoções em processos políticos e coletivos. Seriam as sensações alheias à racionalidade, à argumentação? Como se deflagariam os discursos de ódio, também de uma perspectiva dos afetos?

Nesse viés, é fundamental comentar o discurso pedagógico das redes sociais. Levy (1999) alerta que, de fato, o discurso na Cibercultura está mais para a ordem da performance, do acontecimento que para a narrativa ou diálogo fechado em si mesmo. Para descobrir o virtual, é necessária a interação, “a implicação ativa do receptor, seu deslocamento em um espaço simbólico ou real, a participação consciente de sua memória na constituição da mensagem.” (LEVY, 1999, p. 155) Logo, tratamos da performance por ser os dizeres construídos e reconstruídos por todos na virtualidade, do acontecimento devido à fugacidade do Ciberespaço em si, que se expande e cria novos centros. Nem a escrita nem o saber encontram-se estáticos.

A próxima seção ocupa-se justamente da biopolítica, a fim de pensar, posteriormente, sua aparição nos discursos.

2.4 A(S) BIOLÍTICA(S)

O conceito de biopolítica tornou-se célebre a partir de Michel Foucault. Em O nascimento da medicina social, Foucault (2004) deslinda a normatização da medicina na Europa do século XVIII por meio de processos díspares. Na Alemanha, houve o surgimento de uma medicina estatal, por meio não apenas da observação de taxas de natalidade e morbidade, como também pelo registro de fenômenos epidêmicos e endêmicos notados por hospitais e médicos. Inclusive, a figura do médico foi a primeira a ser normalizada de modo individual, tendo sua formação à cargo de universidades e corporações, e sua prática regulada por um departamento específico do Estado. Cada médico poderia ser responsável por micro ou macro-regiões, posicionando-se também como administrador de saúde.

Já na França, a normalização dirigiu-se, a princípio, à indústria militar: “[...] a produção dos canhões e dos fuzis a fim de assegurar a utilização por qualquer soldado de qualquer tipo de fuzil, a reparação de qualquer canhão em qualquer oficina [...]” (FOUCAULT, 2004, p. 54). Posteriormente, há o controle da circulação: não dos indivíduos, mas das coisas ou dos elementos, essencialmente a água e o ar. “Como evitar que se aspire água de esgoto nas fontes onde se vai buscar água de beber; como

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