• Nenhum resultado encontrado

A busca de um novo modo de vida e trabalho: as mudanças no cotidiano dos novos-rurais

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "A busca de um novo modo de vida e trabalho: as mudanças no cotidiano dos novos-rurais"

Copied!
118
0
0

Texto

(1)

MESTRADO EM SOCIOLOGIA POLÍTICA

Priscilla Bitencourt Freitas

A busca de um novo modo de vida e trabalho:

As mudanças no cotidiano dos novos-rurais

Florianópolis 2005

(2)

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA POLÍTICA

MESTRADO EM SOCIOLOGIA POLÍTICA

Priscilla Bitencourt Freitas

A busca de um novo modo de vida e trabalho:

As mudanças no cotidiano dos novos-rurais

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito parcial à obtenção do Grau de Mestre em Sociologia Política.

Orientador: Prof. Dr. Fernando Ponte de Sousa

Florianópolis 2005

(3)
(4)

Agradecimentos

Agradeço aos meus pais pela paciência, compreensão e encorajamento desde sempre. A Marta, Marcos e Alessandra* pela confiança ao me narrarem sobre suas vidas.

Ao professor e mestre Fernando Ponte pelo acolhimento, orientação e respeito às minhas idéias.

À professora Janice Tirelli pelo apoio e atenção.

Aos meus irmãos de sangue e aos de coração pelo amor e amizade. Ao Éden por me ensinar que o amor está em cada detalhe.

À Alessandra Schmitt pelas trocas de idéias.

A Albertina, Fátima e Otto por todos os galhos quebrados e disposição em ajudar. A todos que enxergam com carinho as pequenas transformações da vida.

Essa pesquisa recebeu apoio financeiro da CAPES.

*Os nomes dos entrevistados, assim como de pessoas e instituições que aparecem nas entrevistas foram trocados por nomes fictícios, devido ao grau de pessoalidade dos relatos, por se tratarem de histórias de vida.

(5)

“Que tal começarmos a exercer o jamais proclamado direito de sonhar? Que tal delirarmos um pouquinho? Vamos fixar o olhar num ponto além da infâmia para adivinhar outro mundo possível: o ar estará livre do veneno que não vier dos medos humanos e das humanas paixões; nas ruas os automóveis serão esmagados pelos cães; as pessoas não serão dirigidas pelos automóveis, nem programadas pelo computador, nem compradas pelo supermercado, nem olhadas pelo televisor; a televisão deixará de ser o membro mais importante da família e será tratada como o ferro de passar e a máquina de lavar roupa; as pessoas trabalharão para viver, em vez de viver para trabalhar; será incorporado aos códigos penais o delito da estupidez, cometido por aqueles que vivem para ter e ganhar, em vez de viver apenas por viver.” (Eduardo Galeano) “[...] del abstracto impulso de lucro procede el afeamiento que la máquina y el trabajo mecánico han traído sobre el mundo. Capitalismo más mercancía maquinista han traído la destrucción de las viejas ciudades, de las bellas casas crecidas orgánicamente e de sus muebles, de la silueta tan llena de fantasia de todo lo construido orgánicamente.” (Ernst Bloch)

(6)

Resumo

Através do resgate de conceitos e de uma dimensão romântica do pensamento de Marx, buscou-se analisar os significados do modo de vida de homens e mulheres que trocaram seus cotidianos e trabalhos urbanos por uma vida no meio rural, praticando, dentre outras atividades, a agricultura. A partir de três narrativas de histórias de vida, procurou-se compreender as motivações dessa busca por uma experiência da Natureza, focando-se os processos de tomada de decisão dos sujeitos, para compreender as possibilidades concretas de reprodução dessa forma de vida e as expectativas dos sujeitos quanto ao futuro próprio e ao futuro da sociedade. Tendo como perspectiva teórica e metodológica a totalidade sócio-histórica enquanto processo aberto, desenvolvendo-se infinitamente, e realizando de maneira gradual e contínua as possibilidades imanentes à humanidade, encarou-se esses modos alternativos de vida em suas potencialidades mais do que em seus limites. Tal caráter otimista do olhar sobre o fenômeno social está relacionado a essa visão histórica aliada à idéia presente na obra do filósofo marxiano Ernst Bloch de que o sonho é o mais intenso elemento da realidade inacabada. Nesse sentido, tentou-se estabelecer uma ponte entre questionamentos colocados por uma redescoberta da Natureza (preocupações ecológicas) e o aparato teórico marxista - especialmente a ontologia marxista - ao ter como pressuposto que por trás da forte inquietação ecológica que impulsiona a escolha desses novos-rurais estão revelados aspectos das relações entre a Natureza, a tecnologia, os poderes econômicos e o poder político em nossa sociedade.

(7)

Abstract

It was the goal to analyse the meanings of the life styles of men and women – through rescuing the concepts, at a romantic dimension, of the thought of Marx – that had changed their daily lives and urban jobs into a country life, practicing, among other activities, agriculture. Starting out through the narratives of life stories, it was the aim to comprehend the motivations of this search for a Nature experience focusing, therefore, in the decision-making process of the subjects, in order to understand the concrete possibilities of reproducting this life form, as well as the expectations of the subjects towards their own and society`s future. Considering the social-historical totality as an open process ever developing phenomena, for the theoretical and methodological perspective, and realizing as a gradual and continuous event the possibilities that grow from humanity, these alternatives ways of life were seen in its potentialities more than in its limitations. This optimistic character on the look into the social phenomena is related to the historical vision that is allied to the idea of that in wich the dream is the most intense element of the non-finished reality, present in the work of the marxist philosopher Ernst Bloch. In that sense, it was the intent to establish a bridge between questions on the rediscovery of Nature (ecological matters) and the marxist theoretical apparatus – specially the ontological marxism – supposing that behind these ecological restlessness that inspire the choice of these new-countrymen are revealed aspects of the relation among Nature, technology, the economical and political powers in our society.

(8)

Sumário

1) INTRODUÇÃO ...10

1.1) Tema, objetIvos, problemas e conceitos ... 10

1.2) Trajetória de pesquisa...14

2) MARXISMO E ROMANTISMO ...19

2.1) Ontologia marxista e a complexa relação do ser social com o ser da natureza ...19

2.2) A centralidade do trabalho no mundo contemporâneo ...22

2.3) A negação da forma-valor: politicismo econômico-estatal e socialismo pequeno-burguês....28

2.4) Marxismo, romantismo revolucionário e a idéia de progresso ... 31

2.5) Passado, presente e futuro: utopias e esperança ... 36

3) O RURAL NA MODERNIDADE ... 41

3.1) Agricultura moderna ... 41

3.2) Desruralização no Brasil nos últimos 25 anos ... 45

3.3) Agricultura alternativa e opção pelo rural ... 46

3.4) Permacultura: contra a hegemonia de um saber ... 50

3.5) Técnica e modo-de-vida alternativos ... 55

4) METODOLOGIA ... 61

4.1) Ideologia, agir político e história ... 61

4.2) Escolha subjetiva e vida cotidiana ...63

4.3) Desenvolvimento da pesquisa ...65

5) HISTÓRIAS DE VIDA ... 68

5.1) “...tu não quer ser um agricultor...tu tá querendo saber se relacionar, auto-subsistente” 68 5.2) “Na cidade é quase que uma engrenagem, tem uma peça ali no meio, se não funciona no mesmo ritmo...”...76

5.3) “Se a gente não trabalhar numa outra direção, vai ser o que está sendo”... 90

5.4) Marcos, Marta e Alessandra...98

6) CONSIDERAÇÕES FINAIS ...104

(9)
(10)

1) Introdução

1.1) Tema, objetivos, problema e conceitos

Essa pesquisa discute os significados do modo de vida de sujeitos provenientes de grandes cidades, que escolheram o campo como espaço para viverem e praticarem a agricultura. Visto que no Brasil não há um estudo sistemático desse fenômeno - por vezes denominado “neo-ruralismo”1 em referência a alguma semelhança com o movimento surgido na França no final dos anos 60 - escolheu-se refletir sobre histórias de vida, em uma primeira aproximação qualitativa com o tema, apontando conceitos e idéias marxianos como aparato teórico para analisá-lo.

O modelo de vida adotado pela humanidade que, ao longo da história, rompeu progressivamente com seu entorno através da artificialização da Natureza2, gera graves problemas de relacionamento entre a atual civilização material e a Natureza. A produção, a vida social e o espaço não mais estão organizados na medida das forças, desejos e necessidades de cada grupo humano, senão mundialmente por uma lógica que guia os investimentos, a circulação das riquezas, a distribuição das mercadorias. O afastamento do homem da possibilidade de travar relações totais com o território no qual vive, a uniformização do modelo técnico e da força motora não anulam as relações locais, mas “se, ontem, o homem se comunicava com o seu pedaço da Natureza praticamente sem mediação, hoje, a própria definição do que é esse entorno, próximo ou distante, o local ou o mundo, é cheia de mistérios” (SANTOS, 1992, p.100).

O período específico da história humana que se caracteriza pela constante expansão do valor de troca, ao qual devem estar subordinadas não somente as atividades de produção, materiais e culturais, mas as próprias necessidades dos homens, caracteriza-se também pela redescoberta mágica da Natureza. O meio-ambiente como Natureza-espetáculo, veiculado pela mídia para criar o medo da

1

O conceito de neo-ruralismo surgiu para designar o movimento de pessoas que abandonaram suas profissões e vida na cidade, durante a década de 60 na França, para morarem no meio rural, praticando a agricultura e criação de animais, sob a forma tradicional da agricultura familiar naquele país. Ver Ratier (2002) e Giuliani (1990).

2

Neste trabalho o termo Natureza representado com incial maiúscula refere-se especificamente ao meio natural externo ao corpo humano – plantas, animais, minerais etc – ou seja, ao “corpo inorgânico” do ser humano, como entendido por Karl Marx (1989, p.164): “ A natureza é o corpo inorgânico do homem, isto é, a natureza na medida em que não é o próprio corpo humano. O homem vive da natureza, quer dizer: a natureza é seu corpo, com o qual tem de manter-se em permanente intercâmbio para não morrer”.

(11)

destruição dos ecossistemas, oculta ao máximo o significado histórico da Natureza. Porque anuncia o “apocalipse”, fechando nossos olhos para o fato de que

Bradamos contra certos efeitos da exploração selvagem da Natureza. Mas não falamos bastante da relação entre sua dominação tecnicamente fundada, as forças mundiais que insistem em manter o mesmo modelo de vida e o fato [...] de que a tecnicização está levando ao condicionamento anárquico do homem moderno. A racionalização da existência, tão dependente das relações atuais entre técnica e sociedade, é um dos seus pilares. Ontem, a técnica era submetida. Hoje, conduzida pelos grandes atores da economia e da política, é ela que submete. Onde está a Natureza servil? Na verdade, é o homem que se torna escravizado, num mundo em que os dominadores não querem dar conta de que suas ações podem ter objetivos, mas não têm sentido [...] Não só a Natureza é apresentada em frangalhos, mas também a moral, e, na ausência de um sentido comum, já dizia o Marx da Miséria da Filosofia, ‘é fácil inventar causas místicas’ (SANTOS, 1992, p.103).

A presente reflexão trata das possibilidades e impossibilidades da construção de um cotidiano fortemente inspirado por uma “essência utópica”: viver em intenso contato com o meio natural. Três histórias de vida de sujeitos que trocaram ou pretendem trocar o cotidiano e as profissões urbanas para viverem em sítios rurais, praticando a agricultura com o intuito de produzir parte de seu próprio alimento, contribuem para uma discussão ontológica sobre o trabalho enquanto atividade de reprodução da vida humana e sua condição na atualidade.

Entendendo-se que é preciso desmistificar a destruição ambiental como se apresenta hoje na mídia e no senso comum, não se pretende aqui negar a coerência da preocupação ecológica daqueles que adotam os modos de vida alternativos em questão. Ao contrário, quer-se buscar o que está efetivamente por trás deles e da destruição da Natureza que eles denunciam. E, para isso, parte-se de uma crítica do sistema sócio-econômico e cultural sob a perspectiva filosófica marxiana.

A radical transformação do cotidiano de trabalho dos entrevistados, assim como de seu modo de vida como um todo, não pode ser descartada a priori como uma fantasia sem cabimento, com data e hora para acabar. É óbvio que o tratamento de tais iniciativas não se mostra interessante para a sociologia como um movimento numericamente relevante de migração para o campo, tampouco como uma proposta de transformações de cunho sócio-econômico mais abrangente3, mas, qualitativamente,

3

No sentido de que não podemos esperar que muitos outros grupos encontrem na “saída para o campo” um caminho, ou seja, no sentido de que esse projeto corresponde a necessidades e aspirações específicas de uma certa experiência com o mundo. E também no sentido de que não há uma proposta de reprodução social não mais mediada pelas formas monetárias e mercantis.

(12)

essas histórias se mostram muito ricas quando percebemos que a forte inquietação ecológica que as impulsiona existe para muito além de determinismos de ordem prática. Essas pessoas trazem de suas trajetórias idéias, sensibilidades e modos de encarar o mundo no qual vivem, através dos quais se revelam aspectos das relações entre a Natureza, a tecnologia, os poderes econômicos e o poder político em nossa sociedade.

Certo é que essas pessoas negam dimensões da presente realidade, propondo-se uma experiência fundada na produção de valores de uso, tanto quanto lhes parece possível. A partir disso, podemos perguntar: a quais elementos (econômicos, culturais) de um passado pré-capitalista se recorre e como este “velho” remete a um futuro diverso da realidade presente?

Outras questões que se seguem a esta: quais possibilidades concretas de reprodução dessa forma de vida podem ser pensadas no sistema do capital, principalmente considerando-se que não se tratam de iniciativas organizadas coletivamente? Quais as expectativas dos sujeitos quanto aos seus futuros e ao futuro da sociedade? Esses questionamentos poderão nos guiar no conhecimento desses casos onde os sonhos humanos se confundem com as tentativas de realizá-los. Veremos como aqui as ações são fortemente alimentadas por ideais e como se resolvem, para os sujeitos, suas incoerências.

Segundo o filósofo Ernst Bloch - ao tratar do tema das utopias - os sonhos de uma vida e convivência melhores, ainda que desdobrados dos caprichos da imaginação de seus autores, se mostram muito conexos e determinados socialmente: “Cumplen un cometido social, una tendencia reprimida o germinal de un próximo estádio social” (BLOCH, 1979, p.41). O impulso utópico a uma nova etapa não reflete tão precisamente a tendência dada, nos lembra o filósofo, como o faz, por exemplo, a forma antecipadora do direito natural burguês. Porque as utopias sociais que falam da “melhor de todas as sociedades” se caracterizam justamente por negar a infâmia e o poder consagrado pelo costume.

La utopia social labora como una parte de la capacidad de asombrarse y de encontrar tan poco evidente lo dado, que solo su transformación parece entrar por los ojos. Como modificación hacia un tipo de sociedad que, como dice Marx, no solo pone fin al aislamiento de la comunidad política, sino también al aislamiento del ser humano. Los sueños sociales se han desarrollado con una gran cantidad de fantasia, pero también, como añade Engels, con una gran cantidad ‘de gérmenes de ideas y de ideas geniales, que

(13)

se ven surgir debajo de la cobertura fantástica’. Hasta que el proyecto del futuro es concretamente rectificado en Marx y llevado al itinerario realmente inteligido de una tendencia que espera su realización, de tal suerte que el proyecto no termina, sino que comienza con toda energia. El último sueño social no habría sido posible sin la creciente aglomeración de las anticipaciones, de los proyectos y programas todavía abstractos [...] (BLOCH,

1979, p.43).

A ingenuidade ou abstração romântica presente nas utopias sociais e políticas não deveriam deixar de ser incitantes para as situações presentes, se considerássemos a utopia como matéria fundamental a toda atividade humana. Para Bloch, não há realismo que mereça tal nome, se prescinde do sonho, o mais intenso elemento da realidade inacabada. Segundo ele, os erros dos conteúdos utópico-sociais de Owen, Fourier e Saint-Simon, por exemplo, deveriam ser encarados como instrutivos para situações do presente e, para tanto, remetidos ao que denomina essência utópica, frente a qual as utopias deveriam aperfeiçoar-se. Essa essência consiste, segundo Bloch (1979), na pretendida satisfação absoluta das necessidades - sem os desejos vazios que devem ser esquecidos - com os profundos desejos que ainda há que se desejar e cuja satisfação leva a uma felicidade nunca completamente satisfeita, mas sempre aspirando mais.

No presente trabalho está contida a consideração de que o legado de Karl Marx nos permite tratar temas como esse, que não devem ser abandonados pela análise marxista para serem tratados por outras correntes de pensamento que adotam o subterfúgio de que a sociedade não mais está legitimada pelo trabalho. Por trás de novas formas de vida e novas sociabilidades, encontramos as dificuldades criadas pela exploração cada vez mais intensa e ideológica da força de trabalho. Os modos de vida que interessam a esta pesquisa apontam a busca de formas de viver e se relacionar com o mundo e os outros homens e mulheres diferentes da forma constante em nossa sociedade, qual seja a extrema subordinação ao lucro, o domínio da economia e o espírito de competição e agressividade mútua de seus membros.

Por isso a recorrência à “corrente quente”4 do marxismo para entender como Marx fundamenta e corrige as antecipações das utopias por meio da economia, pelas

4

Löwy (1990) assinala que, em oposição ao stalinismo e ao produtivismo alienado da “ corrente fria” no marxismo, há também uma “corrente quente” inspirada na tradição anticapitalista romântica. “Este tipo de ‘marxismo romântico’ insiste na descontinuidade e na ruptura essencial entre utopia socialista – como uma forma qualitativamente diferente de vida e de trabalho – e a presente sociedade industrial, e olha com nostalgia para certas formas sociais ou culturais pré-capitalistas” (p.48).

(14)

transformações imanentes das formas de produção e intercâmbio, superando assim o dualismo coisificado entre ser e dever ser, entre experiência e utopia. Esse parece ser o melhor caminho para pensar sobre tentativas humanas de realizar sonhos de viver com maior autonomia, sem que a análise ceda por um lado a um empirismo raso e por outro a um utopismo vagaroso. Nesse sentido, esta discussão é também um resgate da dimensão romântica do pensamento de Marx, que, ao combater as nebulosidades idealistas de sua época, não estava proclamando um empirismo mecânico, uma diminuição esquemático-pragmatista da totalidade, uma diminuição da fantasia revolucionária. O que apareceu como um excessivo progresso do socialismo da utopia rumo à ciência, apagando “a tocha da utopia que ilumina o caminho” (expressão de Bloch), era na verdade a combinação do entusiasmo com a sobriedade, a consciência do objetivo com a análise do dado. É isso que nos mostra Ernst Bloch: o realismo de Marx está na unidade da esperança e conhecimento do processo, na concentração do pensamento no que é justo, enfim, em uma utopia concreta que ilumina as formas e conteúdos que já se desenvolveram no seio da sociedade atual.

Entende-se aqui que as iniciativas - que servirão como base para a discussão do significado desse “retorno à Natureza” na atualidade - representam tentativas de aproximar experiência e utopia. Através do resgate dessa dimensão utópica do pensamento de Marx, buscar-se-á refletir sobre a concretude ou inconcretude das utopias que inspiram os sujeitos urbanos a praticarem agricultura como forma de adquirir maior liberdade na condução de suas vidas.

Para isso, mais especificamente buscar-se-á identificar, nas trajetórias de vida dos sujeitos, as motivações para a mudança em questão, atentando para a concepção de trabalho e seu papel nas escolhas. Serão também analisadas comparativamente a presença das “velhas” (anteriores à ida para o campo) e “novas” relações de trabalho na sustentação das escolhas.

1.2) Trajetória da pesquisa

A partir da percepção de uma clara “tendência” em Florianópolis (afamada como capital que oferece ótima qualidade de vida para seus moradores, para onde convergem pessoas de todo o país) da efervescência de práticas e idéias naturalistas, dentre as quais a vontade manifesta em diversos círculos de abandonar por completo a

(15)

“urbe” e “viver no mato”, ou mais próximo da Natureza, contatou-se vários casos de casais ou amigos que se aventuraram a “comprar um pedacinho de terra” e para lá se mudar. A idéia predominante é a de desenvolver atividades diferentes daquelas que normalmente remuneram o trabalho e sustentam a vida na cidade, principalmente porque tais sujeitos, em geral, desempenham atividades intelectuais, são profissionais liberais, proprietários de pequenos negócios relacionados a esses círculos naturalistas, professores, bancários... Ainda que se dê continuidade à atividade que se desenvolvia na cidade, ela costuma se organizar de outras formas: assim, pôde-se perceber, por exemplo, terapeutas naturalistas construindo centros de vivência da espiritualidade e retiro, onde o isolamento em meio à Natureza se torna uma das peculiaridades da atividade.

Contudo, os casos que interessam a este estudo são aqueles em que há a intenção de se alcançar algum grau de subsistência com a prática da agricultura, ou o que os sujeitos costumam chamar “auto-sustentabilidade”, através do plantio de alguns gêneros alimentícios, da brusca queda no consumo e da reformulação de necessidades e prioridades. Ou seja, o intuito de uma vida simplificada em sua reprodução, aproximando-se, dentro das possibilidades encontradas, de um trabalho que produza mais diretamente seu sustento, seus produtos. Há, portanto, nessas iniciativas diferenças fundamentais em relação a uma contra-urbanização hegemônica que ocorre principalmente nas periferias de grandes cidades brasileiras, com a construção de condomínios de luxo5.

A partir desses casos, foram escolhidos três que pudessem ajudar a compor uma reflexão sobre trabalho e liberdade em nossa sociedade. Por meio de entrevistas narrativas, aborda-se as histórias de vida de Marcos, Marta e Alessandra para refletir sobre três diferentes processos de escolhas, com algumas convergências, que podem se apresentar reveladoras de aspectos sociais e culturais, acerca da insatisfação com a vida e trabalho urbanos e com as possibilidades e impossibilidades de transformá-los profundamente.

Ao contatar as pessoas, tornou-se claro que por trás de suas iniciativas havia a prática comum de técnicas da Permacultura, uma corrente de manejo agro-florestal que

5

Em telejornal da RBS (dia 11 de Setembro de 2004) fora noticiado sobre a recorrência de condomínios de luxo, inclusive com quadras de golfe, na região do município de Rancho Queimado, o que estaria gerando especulação imobiliária na região.

(16)

busca plantar, projetar e viver sustentavelmente cooperando com a Natureza. É um sistema de agricultura ecologicamente sustentável que extrapola para outras áreas, como o desenho e a composição paisagística, o projeto de casas ecológicas e estruturas arquitetônicas, o uso eficiente de água através da reciclagem e da coleta e armazenamento de água da chuva, o uso de banheiros com tecnologia de compostagem, a reciclagem de nutrientes em solos filtrantes e o “design” de produtos funcionais e ecologicamente sustentáveis. Segundo seu maior idealizador, o australiano Bill Mollison, a Permacultura seria “o único sistema organizado de design que já existiu”, ainda que esteja “inevitavelmente envolvida na teoria do caos desde o princípio”:

Observe, se você está lidando com um agrupamento de sistemas biológicos, você consegue aproximar os sistemas, mas não consegue conectá-los. Nós não temos o poder da criação. Nós temos somente o poder de agrupar coisas. Então você simplesmente para e assiste estes sistemas se conectando uns aos outros e fica maravilhado. Você começa fazendo algo certo, e assiste a coisa toda se tornando cada vez mais certa, aperfeiçoando-se a tal ponto que você não imaginava ser possível(MOLLISON, 1998, p.11).

Propondo observar e aprender com a Natureza, os permacultores buscam construir sistemas produtivos que tenham a biodiversidade, a estabilidade e a resistência de um ecossistema natural.

A agricultura ecológica trabalha sempre em direção a uma maior complexidade do ecossistema, de modo a se beneficiar da sinergia e necessitar cada vez menos de trabalho humano para manter a sua sustentabilidade; e reconhece que quanto menor for a diversificação, maior será a necessidade de trabalho, o que poderá ser a opção quando se desejar obter produção de alguns itens em larga escala (SCHMITT, 2003).

No caso de a opção ser, ao inverso, trabalhar menos e não produzir nenhum item em larga escala, mas apostar na diversidade com a intenção de auto-sustentabilidade, seria a Permacultura uma técnica e visão de mundo que estaria colocando no horizonte dos urbanos insatisfeitos com a vida nas cidades uma possibilidade palpável de realizar seus sonhos de “retorno à terra” ? Essa questão passou então a ser essencial para compreender o que muitos membros desse universo constituído pelos cursos e grupos de discussão e prática de Permacultura chamam “movimento de retorno ao campo”6.

6

“Retorno à terra”e “retorno ao campo” são expressões utilizadas não somente pelos sujeitos entrevistados, mas apareceram em diversos momentos e contextos da investigação. Elas parecem remeter a uma idéia de que o lugar dos homens e mulheres é próximo à Natureza, sem perder o contato

(17)

Aqui é preciso esclarecer o que está sendo entendido como campo ou rural para nossos fins. Quando se diz que foram escolhidos casos de pessoas que trocaram ou pretendem trocar a vida urbana por um cotidiano rural, a que se está referindo, territorialmente falando? O critério usado por José Eli da Veiga (2002) para distinguir entre o Brasil urbano e o Brasil rural parece bastante coerente e pode nos ajudar a pensar essa questão:

E para fazer este tipo de separação, o critério decisivo é a densidade demográfica. É ela que estará no âmago do chamado ‘índice de pressão antrópica’, quando ele vier a ser construído. Isto é, o indicador que melhor refletiria as modificações do meio natural que resultam de atividades humanas. Nada pode ser mais rural do que as escassas áreas de natureza intocada, e não existem ecossistemas mais alterados pela ação humana do que as manchas ocupadas por megalópoles. É por isso que se considera a ‘pressão antrópica’ como o melhor indicador do grau de artificialização dos ecossistemas e, portanto, do efetivo grau de urbanização dos territórios (VEIGA, 2002 , p.33).

A classificação rural/urbano nesse trabalho será entendida dentro de uma gradação que leve em conta a alteração do ecossistema pela ação humana. Considerando-se as escolhas de sair da cidade para sítios em áreas rurais ou terrenos em bairros com aspectos predominantemente rurais, ainda que dentro da área urbana, há um afastamento das paisagens onde predomina essa artificialização do meio. A descrição do cotidiano dos entrevistados revela opção por um cotidiano rural, mesmo no caso de um dos entrevistados que construiu seu sítio no interior da ilha de Florianópolis, em meio à mata, para o qual só se tem acesso por trilha e de onde ele sai com bem menos freqüência do que alguém que vive na cidade e de acordo com o ritmo urbano em geral.

Quanto à composição do trabalho escrito, a primeira parte dedica-se a uma

revisão bibliográfica sobre três aspectos principais:

1º) A ontologia marxista como fundamento teórico para a análise de uma situação da

realidade atual, na qual o papel do trabalho está sendo questionado e reformulado pelos sujeitos. Nesta transformação da vida, busca-se realizar o trabalho enquanto atividade de transformação da Natureza (em oposição à força-de-trabalho vendida em troca de salário), retornando a atividades manuais, à produção de valores de uso. Por isso, recorre-se ao tratamento da ontologia do ser social por autores na linha de Georg

com os ciclos naturais, o que estaria sendo impossibilitado pelo modo de vida urbano, cuja extrema artificialização do meio estaria levando as pessoas a se esquecerem de sua conexão com o todo, o espaço, as outras formas de vida. E parecem remeter também à idéia de origens, no sentido de um passado indeterminado no qual os seres humanos construíam relações mais orgânicas, de um modo geral.

(18)

Lukács, sem deixar de considerar o sistema do capital no contexto histórico atual. A partir disso, faz-se uma reflexão sobre a dimensão romântica do marxismo e o lugar das utopias nesse pensamento.

2º) A opção pelo rural inserida em um contexto histórico de desruralização no país,

devido à submissão da agricultura ao capital, num movimento de industrialização hegemônica que causa a insustentabilidade social e ecológica. Em conjunto com a destruição de florestas, poluição de terras e rios, inchaço das grandes cidades próprios àquela lógica, têm-se também uma revalorização da ruralidade enquanto tempo-espaço-cultura por indivíduos advindos de círculos urbanos.

3º) A Permacultura enquanto técnica e conceito, já que essa corrente da agricultura

ecológica que vem ganhando espaço no sul do país e já conta com uma certa “popularidade” em Florianópolis (considerável recorrência de cursos e oficinas ministrados) aparece como prática e visão de mundo propiciadora das mudanças de vida em questão.

Em um segundo momento, fez-se um aprofundamento sobre a metodologia escolhida, que tem estreitas relações com a concepção de história, sujeito histórico e agir político que permearão toda a discussão teórica e a abordagem dos casos.

A partir daí, partiu-se para a análise das entrevistas, primeiramente uma análise individual de cada entrevista, destacando delas reflexões que contribuam com a discussão do significado desse “retorno à Natureza”. Em segundo lugar, abordou-se em conjunto os casos, através de categorias construídas a partir das narrativas para uma discussão sobre essas escolhas, levando em conta os fins e condições das iniciativas de transformação da vida cotidiana. Nas considerações finais, as reflexões teóricas desenvolvidas na revisão bibliográfica foram retomadas à luz das narrativas.

(19)

2) Marxismo e Romantismo

2.1) Ontologia marxista e a complexa relação do ser social com o ser da natureza

A centralidade da categoria trabalho enquanto formador de valores-de-uso, enquanto trabalho útil, e pois, enquanto necessidade natural eterna com função de mediatizar o intercâmbio orgânico entre o homem e a Natureza é condição de existência do homem, independente de todas as formas de sociedade. Uma descrição ontológica do ser social sobre bases materialistas se torna possível, com Marx, justamente a partir do entendimento das categorias econômicas como categorias da produção e da reprodução da vida humana.

Comer, beber e vestir-se são prioridades ontológicas, o que não quer dizer que o mundo das formas de consciência e seus conteúdos sejam vistos como produto direto da estrutura econômica, mas da totalidade do ser social. Lukács (1979) afirma não haver uma direta relação causal entre ideologia e economia; no ser social, o econômico e o extra-econômico convertem-se continuamente um no outro, em uma relação da qual deriva uma orgânica unidade do ser social e na qual as leis econômicas têm apenas a função de momento predominante.

A problemática central em toda ontologia, segundo Sergio Lessa (1993), se condensa no tratamento dado à substancialidade. “Os traços da substancialidade são os responsáveis pela ancoragem das respostas alcançadas, que devem ser de tal modo resolutivas a não exigirem um outro ‘porquê’” (p.25). Esse autor nos diz que o ponto de partida de Lukács teria sido a interpretação marxista de uma nova concepção da substancialidade do mundo dos homens: este mundo seria absolutamente histórico e social. Ou seja, resultado exclusivo da ação e pensamento dos homens, enquanto indivíduos e enquanto gênero humano. A essência da substancialidade histórica é exatamente o consubstanciar-se ao longo do seu processo de desenvolvimento concreto:

A essência, neste sentido, é o complexo de determinações que permanece ao longo de seu desdobramento categorial. Em outras palavras, a essencialidade da substância são os traços ontológicos mais profundos que constituem seus elementos de continuidade (LESSA, 1993, p.25).

(20)

social e individual, os seres humanos são reconhecidos como parte da natureza, que devem satisfazer suas necessidades básicas através do intercâmbio constante com a Natureza, mas não podem sobreviver com base em um intercâmbio “imediato” com ela, como o fazem os animais. Segundo Lukács, o homem resta ineliminavelmente um ser biológico; todavia, o ser social “tem um desenvolvimento no qual essas categorias naturais, mesmo sem jamais desaparecerem, recuam de modo cada vez mais nítido, deixando o lugar de destaque para categorias que não têm na natureza sequer um correspondente analógico” (LUKÁCS, 1979, p.54). Daí o reconhecimento da complexa relação do homem com o mundo natural e o entendimento do ser social como distinto da Natureza. Fugindo de uma simplista continuidade entre Natureza e ser social, de um lado, e da completa dissociação entre eles, de outro, é que Lukács reconhece o caráter puramente sócio-humano do ser social sem postular o desaparecimento da natureza.

O ser social - em seu conjunto e em suas singularidades - pressupõe o ser da natureza inorgânica e orgânica7. Não se pode considerar o ser social como independente do ser da natureza, como o faz a filosofia burguesa ao tratar dos “domínios do espírito”, alerta Lukács. Mas essa transposição não pode ser pensada em termos simplistas como aconteceu, por exemplo, com o Darwinismo Social. Não há possibilidade de buscar na natureza uma essência fixa para se pensar a sociabilidade capitalista, pois as formas de objetividade do ser social se desenvolvem à medida que surge e se explicita a práxis social, a partir do ser natural, tornando-se cada vez mais claramente sociais. E esse é um processo dialético que começa com um salto, com o pôr teleológico do trabalho, não podendo ter nenhuma analogia com a natureza.

A presença de um agir interessado como componente ontológico essencial - esse “pôr teleológico do trabalho” - consiste na ruptura (ontológica) entre a reprodução social e a processualidade natural: é a possibilidade de um ser-para-si no mundo dos homens, a partir da transformação, da deformação dos fatos, que é impossível para a natureza.

As ações intencionais, para Engels, diferenciam o homem dos animais, pois

7

O ser da natureza não se basta na materialidade do corpo orgânico e inorgânico do humano. Nos “Manuscritos Econômicos-filsóficos”, Marx coloca a natureza inorgânica como a base física da vida do homem e do animal (alimentos, calor, vestuário, habitação), assim como parte da consciência humana, isto é, enquanto objetos da ciência natural e da arte. As plantas, os animais, os minerais, o ar, a luz etc, formam, então, o substrato que alimenta também o intelecto humano, constituindo, pois,o que ele chama “natureza inorgânica espiritual do homem” (1989, p.164).

(21)

somente o homem pode imprimir na Natureza a marca de sua vontade. Enquanto os animais utilizam a Natureza e modificam-na pelo mero fato de sua presença, o homem, ao contrário, modifica-a e a obriga a servir-lhe, domina-a. Contudo, segundo ele, a Natureza se vinga do homem, mostrando-nos “[...] que nós, por nossa carne, nosso sangue e nosso cérebro, pertencemos à natureza, encontramo-nos em seu seio e todo domínio sobre ela consiste em que, diferentemente dos demais seres, somos capazes de conhecer suas leis e aplicá-las de maneira adequada” (ENGELS, 1977, p.71-2). Conhecer as leis naturais e aplicá-las adequadamente, a partir dos grandes progressos das ciências naturais do século XIX, poderia fazer os homens sentirem e compreenderem sua unidade com a natureza, ainda segundo Engels, o que tornaria inconcebível a “absurda e anti-natural idéia da antítese entre o espírito e a matéria, o homem e a natureza, a alma e o corpo” (ENGELS, 1997, p.73), idéia que adquiriu seu máximo desenvolvimento no cristianismo. Mas logo em seguida, ele atenta que esse controle só poderia ser levado a termo com uma revolução que transformasse por completo o modo de produção existente até então e, com ele, a ordem social vigente.

Entre o ser-em-si e o ser-para-si, há o processo histórico, no qual “[...] toda práxis social, mesmo a mais cotidiana, é precedida por um ato consciente de julgar, teleológico, por uma finalidade. Porém, não se sabe exatamente as conseqüências da práxis humana [...]” (LUKÁCS, 1979). Na ontologia lukácsiana pode-se encontrar uma explicação para o desdobramento do processo de sociabilização em um complexo processo de generalização, que insere cada objeto num mundo de relações e determinações que compõe a particularidade de cada momento histórico. O entendimento da construção sócio-histórica da materialidade (e a relação dessa construção com os valores que são objetiva e subjetivamente construídos nesse processo), como especificidade ontológica do mundo dos homens frente a natureza, pressupõe o mundo objetivo distinto da subjetividade que intencionalmente o transformou. Aquilo que o homem cria passa a ter uma história própria distinta da história daquele que o criou. Esta distinção se produz no ato de reprodução da vida, no interior da estrutura do trabalho e funda a complexidade das determinações reflexivas presentes na relação sujeito-objeto, entre mundo material e consciência, entre a totalidade social e as individualidades.

(22)

importância da individualidade para a construção do gênero humano” (LESSA, 1993, p.28). A emancipação humana requer o desenvolvimento das individualidades, contudo, um desenvolvimento completo, para além da simples manutenção da esfera da particularidade.

O indivíduo contém tanto a particularidade quanto o humano-genérico, sendo comum a toda individualidade a escolha relativamente autônoma dos elementos genéricos e particulares. Considerando-se que o homem singular não é pura e simplesmente indivíduo, sob as condições da manipulação social e da alienação, mas se fragmenta cada vez mais em seus papéis, o desenvolvimento do indivíduo é também função de sua liberdade fática ou de suas possibilidades de liberdade. Segundo Agnes Heller:

A explicitação dessas possibilidades de liberdade origina, em maior ou menor medida, a unidade do indivíduo, a ‘aliança’ de particularidade e genericidade para produzir uma individualidade unitária. Quanto mais unitária for essa individualidade (pois essa unidade, naturalmente, é apenas uma tendência, mais ou menos forte, mais ou menos consciente), tanto mais rapidamente deixa de ser aquela muda união vital do genérico e do particular a forma característica da inteira vida. A condição ontológico-social desse resultado é um relaxamento da relação entre a comunidade portadora do humano-genérico e o próprio indivíduo, o qual - já enquanto indivíduo - dispõe de um certo âmbito de movimento no qual pode escolher sua própria comunidade e seu próprio modo de vida no interior das possibilidades dadas. A conseqüência disso é uma certa distância, graças à qual o homem pode construir uma relação com sua própria comunidade, bem como uma relação com sua própria particularidade vivida enquanto ‘dado’ relativo (HELLER, 1989,

p.22).

2.2) A centralidade do trabalho no mundo contemporâneo

A construção de subjetividades autênticas é, portanto, uma questão pertinente na discussão marxiana, estando ligada ao processo de trabalho. É preciso ter clareza que o trabalho como protoforma da práxis social está no centro do processo de humanização do homem. Seu sentido originário - de base da existência das ações interativas, de momento fundante dos níveis mais avançados de vínculos de sociabilidade - entretanto, não permite que as características específicas do trabalho sejam transpostas de modo direto para todos os atos sociais.

O complexo processo que tem na atividade do trabalho o momento essencial de generalização subjetiva e objetiva envolve esferas para além dessa atividade, que só se relacionam mediadamente com o trabalho.

(23)

[...] no interior da ontologia lukácsiana, é impossível a identidade entre os atos de trabalho e todos os atos sociais. Entre a esfera do trabalho e a construção da generidade humana se desdobra uma relação de identidade da identidade e da não-identidade: o trabalho dá origem a novas necessidades e a novas possibilidades para o desenvolvimento humano que não mais se identificam a ele. Do mesmo modo, a continuidade dos atos de trabalho requer que sejam atendidas necessidades sociais que não mais se referem diretamente ao trabalho enquanto tal. Pensemos em complexos sociais como a ideologia, a política, a filosofia, a estética, a ética, etc. os quais, a partir de um dado patamar de desenvolvimento da sociabilidade, se tornam imprescindíveis para a organização e execução do trabalho, ainda que com este se relacionem por meio de mediações mais ou menos numerosas (LESSA, 1993, p.28).

Mas o importante é não separar a categoria social da reprodução do mundo produtivo e sim reconhecer as dialéticas imbricações que aí atuam. Como exemplo, Ricardo Antunes aponta que a ciência e a teoria, por mais complexificadas e avançadas,

[...] preservam vínculos com a busca das necessidades do gênero humano (que são, como vimos, determinadas pelo sistema de metabolismo societal dominante). Estrutura-se uma relação de vinculação e autonomia com sua base originária. Por meio do trabalho erige-se uma relação autêntica entre teleologia e causalidade, onde a primeira altera a configuração da segunda e vice-versa (ANTUNES, 2003, p.141).

O trabalho, portanto, enquanto forma fundamental desse complexo que é a sociedade, tem a especificidade de transformar o metabolismo com a Natureza, enquanto outras formas mais complexificadas da práxis social apresentam-se como um prolongamento, um avanço das posições teleológicas primárias e não como esferas inteiramente autônomas. Essas esferas têm como pré-condição a reprodução humana em sociedade e é nelas - posições consideradas secundárias somente no sentido originário do trabalho como fundamento ontológico-genético - que a subjetividade adquire novo sentido, para além da consciência enquanto apenas epifenômeno biológico de controle da natureza e dos instintos. “Dá-se uma nova forma de inter-relação entre subjetividade e objetividade, entre teleologia e causalidade, no interior do modo humano e societal de preenchimento das necessidades” (ANTUNES, 2003, p.141). A consciência humana se constitui em momento ativo da vida cotidiana porque, através do trabalho, ocorre uma transformação da natureza e do próprio ser que trabalha. Nessa autotransformação está a própria gênese ontológica da liberdade como “decisão concreta entre diferentes possibilidades concretas” ou, “em última instância, um desejo de alterar a realidade” (ANTUNES, 2003, p.144). Naturalmente, o conteúdo da liberdade distingue-se nas formas mais avançadas e complexas, quando se trata

(24)

não mais da relação metabólica entre homem e Natureza, e sim da práxis interativa no interior dos próprios seres sociais.

Diante da ‘segunda natureza’, as distâncias que separam essas estruturas de interação e aquelas que remetem diretamente ao trabalho são por certo grandes. Mas seus embriões já estavam presentes nas suas manifestações sociais mais simples [...] Isso porque, pelo trabalho, o ser social produz-se a si mesmo como gênero humano; pelo processo de auto-atividade e auto-controle, o ser social salta da sua origem natural baseada nos instintos para uma produção e reprodução de si como gênero humano, dotado de auto-controle consciente, caminho imprescindível para a realização da liberdade

(ANTUNES, 2003, p.145).

As complexas mediações existentes entre a transformação da Natureza através do trabalho e as demais esferas da vida social não operam, necessariamente, uma oposição entre o atendimento das necessidades humanas e o “reino da liberdade”. O que há é uma oposição entre o atendimento de necessidades humanas e necessidades particulares, engendrada historicamente com a perda total da autodeterminação dos indivíduos em sua relação com a Natureza e com os seres sociais.

Quanto mais aumentam a competição e a concorrência inter-capitais, mais nefastas são suas conseqüências, das quais duas são particularmente graves: a destruição e/ou precarização, sem paralelos em toda a era moderna, da força humana que trabalha e a degradação crescente do meio-ambiente, na relação metabólica entre homem, tecnologia e natureza, conduzida pela lógica societal subordinada aos parâmetros do capital e do sistema produtor de mercadorias (ANTUNES, 2003, p.26).

Portanto, para pensarmos a categoria trabalho na atualidade, é preciso compreendê-la sob o sistema do capital. Marx percebeu a força-de-trabalho como mercadoria sui generis, cujo valor-de-uso possui a característica peculiar de criar valor. Trabalho e valor aparecem como pontos focais em uma síntese ontológico-histórica do ser social, que percorre a história de toda a realidade econômica em uma síntese abstrata e genérica que a reduz a um momento decisivo e, por outro lado, ilumina o caráter social da produção. No ser social, o econômico e o extra-econômico misturam-se, convertem-se um no outro, o que transparece na gênese histórica da acumulação primitiva: uma cadeia secular de atos de violência extra-econômicos que criaram as condições que fizeram da força-de-trabalho a mercadoria específica que constitui a base das leis teóricas do capitalismo (LUKÁCS, 1979).

O trabalho, enquanto atividade que reproduz a vida, implica em objetivação na forma do produto desse trabalho. Nesse sentido, o momento da alienação já está aí

(25)

presente, consubstanciando o objeto construído pelo trabalho em um ente ontologicamente distinto do sujeito e da consciência do sujeito que o criou. Contudo, quando quem se apropria do trabalho do homem é outro homem, há uma perda da realidade de sua atividade por parte do trabalhador, realidade esta obscurecida sob a forma do salário, cujo valor varia de acordo com as condições histórico-sociais. Sob a forma da produção capitalista, a produção da vida afastou-se do seu sentido primordial, que é o engendramento da especificidade do ser histórico.

István Mészáros (2002, p.102-4) afirma que “o capital se transforma no mais dinâmico e competente extrator do trabalho excedente em toda a história” ao se constituir em modo de controle sociometabólico, inaugurando um novo relacionamento entre produção material e controle, no qual, através da circulação, as unidades econômicas não necessitam nem são capazes de auto-suficiência (tudo isso, devemos ressaltar, com alto custo ambiental). Mistificações em torno da noção de “trabalho livre contratual” - como acontece com a internalização da “escravidão assalariada” pelos sujeitos trabalhadores - demonstram a forma inteiramente reificada com que o sistema do capital obscurece seu real modo de funcionamento e distorce o problema da escassez e abundância. Some-se a isso a inegável melhoria da produtividade advinda do processo de liberação das restrições de uma “economia doméstica”. Sinal dessa reificação é o fato de que a independência adquirida pela relação entre produção e consumo acarreta um “excesso de consumo” de um lado e a negação do elementar de outro.

Ricardo Antunes (2003) fala da necessidade de uma noção ampliada de trabalho para a compreensão do significado de algumas tendências operadas pelo capital em fase de reestruturação produtiva. Por exemplo, a incapacidade do capital de eliminar o trabalho vivo do processo de criação de valores - ainda que hoje se torne evidente a redução do trabalho vivo e a ampliação do trabalho morto - suscita o entendimento das várias manifestações da força constituinte do trabalho vivo. Por isso, existem tendências, como a expansão do trabalho de maior dimensão intelectual, que devem nos levar a reconhecer também a crescente imbricação entre trabalho material e imaterial, na medida que tal expansão se dá como incremento do trabalho produtivo, especialmente nos setores de ponta.

(26)

separação binária e dualista entre “sistema” e “mundo da vida” parte da concepção da

[...] forma contemporânea do trabalho como expressão do trabalho social, que é mais complexificado, socialmente combinado e ainda mais intensificado nos seus ritmos e processos [...] a sociedade do capital e sua lei do valor necessitam cada vez menos do trabalho estável e cada vez mais das diversificadas formas de trabalho parcial ou part-time, terceirizado, que são, em escala crescente, parte constitutiva do processo de produção capitalista

(ANTUNES, 2003, p.119).

Ao considerar as conexões existentes entre o trabalho e as novas exigências da lei do valor, Ricardo Antunes reconhece que o capital aumenta a utilização e a produtividade do trabalho de modo a intensificar as formas de extração do sobretrabalho em tempo cada vez mais reduzido, através da redução do trabalho manual direto, articulado com a ampliação do trabalho qualificado, multifuncional, mais intelectual. Isso quer dizer que a redução do trabalho vivo e a ampliação do trabalho morto não desembocam na extinção do trabalho vivo, mas em novas formas de explorar o trabalho abstrato, seja intelectual, seja manual. Basta considerar as formas precarizadas e intensificadas de exploração do trabalho que se desenvolvem ao mesmo tempo em que uma maior qualificação, com exigências intelectuais, torna-se imprescindível na concorrência por um emprego nas atividades industriais mais informatizadas, no setor de serviços ou nas comunicações, entre muitas outras. Imaginar que eliminando o trabalho vivo o capital possa continuar se reproduzindo passa pela errônea abstração do consumo sem assalariados.

A articulação entre trabalho vivo e trabalho morto é condição para que o sistema produtivo do capital se mantenha. A tese da eliminação do trabalho abstrato, considerado dispêndio de energia física e intelectual para a produção de mercadorias não encontra respaldo teórico e empírico para a sua sustentação nos países capitalistas avançados, como os EUA, o Japão, a Alemanha, e muito menos nos países do chamado Terceiro Mundo

(ANTUNES, 2003, p.120).

Fantasiar a respeito da chegada do processo de produção totalmente automatizado e sem trabalhadores significa ignorar imaginariamente o problema de que, para o capital, o “fator material de produção” não pode deixar de ser o sujeito real da produção porque a base do sistema do capital é a alienação do controle dos produtores. Ironicamente, a separação radical entre produção e controle cria um modo de controle sem sujeito, cujos imperativos necessitam de personificações para se transformarem em ordens conscientemente exeqüíveis pelo sujeito real (MÉSZÁROS, 2002, p.126).

(27)

Enfim, o sistema do capital não permite um desenvolvimento tecnológico que dispense o homem do trabalho abstrato. Por isso, converter a ciência em principal força produtiva supõe desconsiderar que o trabalho vivo constitui, em conjunção com a ciência e a tecnologia, uma complexa e contraditória unidade sob o capitalismo, pois as limitações do capital necessitam “manter o já criado valor como valor, visando restringir a produção dentro da base limitada do capital” (MÉSZÁROS, 1989, p. 135-6 apud ANTUNES, 2003, p.122). No sistema sócio-metabólico do capital, a ciência está impossibilitada de instaurar uma forma societal que produza coisas úteis com base no tempo disponível, restando-lhe adequar-se ao tempo necessário para produzir valores de troca.

Não se trata de dizer que a teoria do valor-trabalho não reconhece o papel crescente da ciência, mas que a ciência encontra-se tolhida em seu desenvolvimento pela base material das relações entre capital e trabalho, a qual ela não pode superar. E é por essa restrição estrutural, que libera e mesmo impele a sua expansão para o incremento da produção de valores de troca mas impede o salto qualitativo societal para uma sociedade produtora de bens úteis segundo a lógica do tempo disponível, que a ciência não pode se converter na principal força produtiva. Prisioneira dessa base material, menos do que uma cientificização da tecnologia há, conforme sugere Mészáros, um processo de tecnologização da ciência. Profundamente vinculadas aos condicionantes sociais do sistema de capital, a ciência e a tecnologia não têm lógica autônoma e nem um curso independente, mas têm vínculos sólidos com o seu movimento reprodutivo (ANTUNES, 2003, p. 122).

A interação do saber científico com o saber laborativo sob a relação, hoje dominante, de subordinação da produção de valores de uso ao seu valor de troca, impõe ao capital a necessidade de encontrar uma força de trabalho ainda mais complexa, multifuncional, que deve ser mais intensamente explorada e, no caso dos ramos produtivos mais dotados de incremento tecnológico, de maneira mais sofisticada. O caso da ampliação das formas de trabalho imaterial, dentro da tendência do alargamento da atividade laborativa, nos remete às formas contemporâneas do estranhamento, às fetichizações que permeiam o mundo do trabalho, “com repercussões enormes na vida fora do trabalho, na esfera da reprodução societal, onde o consumo de mercadorias, materiais ou imateriais, também está em enorme medida estruturado pelo capital” (ANTUNES, 2003, p.131).

A uma noção ampliada do trabalho, segue-se também a necessidade de uma noção contemporânea de classe trabalhadora, que incorpore a totalidade dos trabalhadores assalariados. Além dos trabalhadores produtivos (que participam

(28)

diretamente do processo de valorização do capital), manuais ou não, a “classe-que-vive-do-trabalho” (expressão de Ricardo Antunes) engloba também os trabalhadores improdutivos. Serviços que não produzem diretamente mais-valia, sendo consumidos como valor de uso, formam um segmento assalariado em expansão no capitalismo contemporâneo, cuja existência é vital para a manutenção do sistema.

Michel Löwy considera proletariado como o conjunto daqueles que vivem da venda de sua força de trabalho, incluindo aí não somente a classe operária industrial, como uma série de camadas que tradicionalmente eram de origem pequeno-burguesa (classe média), mas que vêm passando por um processo de proletarização. Cada vez mais o trabalhador intelectual vende sua força de trabalho por um salário, “[...] ele trabalha em uma instituição, em uma empresa, privada ou pública, que determina o horário, o conteúdo de seu trabalho” (LÖWY, 1985, p.106). Para demonstrar que o critério do trabalho produtivo não é adequado para a definição do proletariado, esse autor aponta a existência de todo um setor proletário que não é produtor de mais-valia: “Ninguém vai poder argumentar que aquele trabalhador que recolhe o lixo seja pequeno-burguês, porque ele não produz mais-valia. Para mim, o critério é a venda da força de trabalho em troca de salário” (LÖWY, 1985, P. 106).

2.3) A negação da forma-valor: politicismo econômico-estatal e socialismo

pequeno-burguês

O problema da formulação de propostas de formas de existência e reprodução sócio-econômica que não somente neguem abstratamente o capital, mas se afirmem perante a forma dominante de sociabilização, encontrou historicamente dois pólos excludentes que se mostraram incapazes de apontar um futuro concretizável de emancipação social. O foco na questão do poder, tratada sob uma orientação politicista e estatal, levou o antigo marxismo do movimento operário a ignorar a vontade histórica concreta, as mediações, as reais necessidades das pessoas. Na outra extremidade, os movimentos alternativos e a Nova Esquerda européia teriam alimentado o cultivo da pequena propriedade “trabalhada e adquirida por suas próprias mãos”, do “retorno à vida no campo”, abandonando qualquer perspectiva de conjunto social.

Ambos os movimentos parecem tropeçar, nada mais nada menos, que no problema da possibilidade de uma autêntica autodeterminação do sujeito somada a

(29)

uma verdadeira emancipação do gênero humano, ou seja, uma combinação entre a construção de uma individualidade plena e a emancipação social. A demonstração teórica da necessidade de se buscar um rumo racionalmente sustentável na reprodução social não basta. Ela deve ser complementada pela articulação material de sua coerência, seja pelo esforço da realidade para aproximar-se do pensamento, seja pela assimilação da teoria pelas massas, considerando-se que “[...] a teoria pode ser realizada num povo apenas na medida em que seja a realização das necessidades desse povo” (MARX, apud MÉSZÁROS, 2002, p.218).

A tomada política do poder e as conseguintes intervenções estatais “de cima para baixo”, através de um novo aparato estatal, permanecem, segundo Robert Kurz (1997), igualmente restritas à esfera (política) da sociabilização burguesa, à forma burguesa de reprodução das relações mercantis e monetárias. Não há uma organização anticapitalista quanto à reprodução e à vida cotidiana. O papel das forças produtivas não é pensado no que se refere à superação do sistema produtor de mercadorias, mas tão somente quanto ao seu desenvolvimento histórico rumo às crises. A “eficiência econômica” do modo extrator de trabalho excedente do capital não só não fora contestada por muitos que se diziam socialistas, como converteu-se em privilégio do Estado na União Soviética, através da socialização forçada da produção.

Por outro lado, a negação do produtivismo ou a rejeição do industrialismo, que caracterizaram movimentos alternativos de finais da década de 70 e início dos 80, não legaram idéia legítima de reprodução não-mercantil extensível à sociedade mais ampla. Contudo, trouxeram à tona importantes discussões - como a da estrutura das necessidades e a dos modos de vida - que se tornaram amargas ao marxismo reducionista, incompetente para pensar as forças produtivas, os fatores do trabalho, para além do aspecto industrial e da esfera de produção. Nesse vácuo teórico, Fernando Ponte de Sousa (1993) afirma que outras correntes de pensamento enfocam as questões concernentes aos “modos de vida”, o que é perfeitamente compreensível frente às transformações geradas na sociedade industrial atual, com novos elementos de sociabilidade, profundas mudanças no conceito de sociedade civil, inovações técnicas e econômicas afetando a população trabalhadora, assim como as representações e ações intersubjetivas. O problema emerge quando esse enfoque parte de uma dicotomização entre “modo de produção” e “modos de vida”, dissolvendo magicamente os laços que relacionam o desenvolvimento das forças produtivas com a

(30)

emancipação humana.

Em suma, tais manifestações [da atual sociabilidade] colocariam em exposição a crise da sociedade do trabalho, passando a exigir uma revisão na sua teoria sociológica, mas no âmbito da sociedade ainda legitimada, não mais pelo trabalho, mas pelas ‘coisas que fazem a felicidade das pessoas: autonomia, auto-estima, felicidade familiar, lazer livre de tensões, amizades’. Noutras palavras, na ausência das categorias e conceitos relativos às relações de produção, a sociedade apresenta-se com um alto grau de indeterminação em vastas regiões sociais a serem mapeadas e explicadas por outros conceitos (SOUSA, 1993, p.11).

Da mesma maneira que o antigo marxismo contornou o problema das mediações sociais para além da produção de mercadorias, essas manifestações que “tendem em favor de um ‘mundo da vida cotidiana’, delegando o conservadorismo aos cientistas sociais que ainda defendem modelos sociais e critérios de racionalidade referidos no trabalho e na renda” (SOUSA, 1993, p.10), fecham os olhos para as velhas contradições do sistema do capital que permanecem (muitas vezes em novas formas), não obstante as transformações da atualidade.

A importância da dimensão cotidiana da vida não pode ser confundida com a sua valorização à parte do processo produtivo, mas está relacionada justamente - enquanto esfera mais espontânea da vida - à sua qualidade de lugar onde se encontram a simples reprodução da existência física com as formas mais altas de genericidade, isto é, lugar da mediação da genericidade em-si, biológica, com a genericidade para-si, autêntica, da livre criação.

A desconsideração dessa “decisiva esfera ontológica presente no interior da vida cotidiana” (ANTUNES, 2003, p.170) - como o fez o marxismo vulgar - perde tanto quanto uma apologia fenomênica da vida cotidiana enquanto dimensão que esgotaria em si mesma as possibilidades do gênero humano. O fato é que qualquer movimento que pretenda ir além da negação da ordem vigente, pensando mais concretamente sua superação, não pode ignorar as complexas mediações da cotidianidade. Por outro lado, bastar-se nela é querer desvincular a questão da emancipação social da superação do trabalho abstrato.

Um estudo sobre modos de vida inspirados por um romantismo antiindustrialista não deve abandonar a perspectiva marxiana, mas buscar em suas raízes os elementos que permitam a um só tempo compreender tais iniciativas e criticá-las. A inegável dimensão romântica da obra de Marx por si só não diz nada sobre isso. É justamente a

(31)

superação de uma simples fusão entre a crítica social romântica e o utilitarismo iluminista que permite buscarmos em Marx elementos para pensarmos, hoje, a crítica do presente fundada em uma nostalgia do retorno a uma vida em contato com a Natureza e seus ciclos, produzindo valores de uso. A diretriz dialética que leva Marx a reconhecer as relações criadas pela revolução industrial capitalista como simultaneamente opressoras e libertadoras é a mesma que deve guiar uma análise de tais iniciativas e suas contradições e ambiguidades. Contudo, considerar as luzes e as sombras, o lado positivo e o lado negativo das categorias em análise, não basta. É necessário olhar para as contradições e perceber se delas nasce algo novo ou se elas são abrandadas em prol de uma vida harmônica, sem conflitos.

2.4) Marxismo, romantismo revolucionário e a idéia de progresso

Ainda que a nostalgia das sociedades pré-capitalistas seja a “matriz comum” que define o romantismo (enquanto movimento e enquanto visão de mundo), existem diferenças entre correntes de pensamento retrógradas, correntes conservadoras, o romantismo desencantado e o que Michel Löwy chama romantismo revolucionário (e/ou utópico) que

[...] recusa, ao mesmo tempo, a ilusão de retorno às comunidades do passado e à reconciliação com o presente capitalista, procurando uma saída na esperança do futuro. Nessa corrente - na qual se encontram muitos pensadores socialistas, de Fourier a Gustav Landauer e Ernst Bloch - a nostalgia do passado não desaparece, mas se transmuda em tensão voltada para o futuro pós-capitalista. O romantismo revolucionário se distingue também das outras correntes românticas pelo tipo de sociedade que lhe serve de referência: não se trata do sistema feudal e de suas instituições (nobreza, monarquia, Igreja etc.). A idade de ouro pré-capitalista varia segundo o autor, mas ela não é aquela que invocam os românticos passadistas ou conservadores: é um ‘estado de natureza’, mais ou menos típico em Rousseau ou em Fourier, o antigo judaísmo de Moses Hess, A Grécia Antiga em Hölderlin, no jovem Lukács e em muitos outros, o ‘comunismo inca’ no marxista peruano José Carlos Mariátegui, as comunidades rurais tradicionais nos populistas russos e Gustav Landauer etc. (LÖWY, 1990, p.16).

É com esse romantismo que Löwy identifica o marxismo, sem contudo deixar de ressaltar a seleção que Marx e Engels faziam em suas leituras de autores românticos. Eles reconheciam a crítica social, feita pelos românticos, às contradições inerentes às condições modernas da produção e a demonstração dos

[...] efeitos destruidores do maquinismo e da divisão do trabalho, a concentração do capital e da propriedade fundiária, a superprodução, as crises,

(32)

o desaparecimento fatal dos pequenos burgueses e dos pequenos camponeses, a miséria do proletariado, a anarquia da produção, as desproporções gritantes na distribuição da riqueza etc. (MARX; ENGELS apud

LÖWY, 1990, p.20).

Apesar disso, Marx e Engels refutavam as soluções propostas pelos românticos, as ilusões passadistas, para projetarem no futuro uma sociedade emancipada que deveria retomar aspectos, qualidades humanas, sociais e culturais presentes nas comunidades pré-capitalistas. A revalorização do passado nesses autores foi estimulada, segundo Löwy, pela descoberta de uma “formação pré-capitalista exemplar: a comunidade primitiva”, diferente do sistema feudal, através da leitura das obras de G. Maurer (historiador das antigas comunidades germânicas) e de Morgan. A dissolução da “época primitiva de cada povo” pela propriedade privada, ainda que inevitável, constituía aos olhos de Marx e Engels numa degradação da liberdade, da igualdade e da moralidade da antiga sociedade gentílica (LÖWY, 1990).

Entretanto, o papel progressista do capitalismo industrial é o que cria, em Marx, condições para uma transformação socialista da economia e a fundação de uma sociedade sem classes. Não é possível retroceder na história, mas a possibilidade é de superar o presente através de uma união rejuvenescida entre o passado pré-capitalista e o futuro socialista. Essa percepção originada no pensamento materialista histórico e dialético não se identifica com um “progressismo” linear que faz a apologia da sociedade burguesa, supostamente superior às formas sociais anteriores, tampouco ignora que, em alguns aspectos, a civilização industrial/capitalista representa um recuo em relação às comunidades do passado.

Aparentemente, Marx nada tem a ver com o romantismo. Ele rejeita como ‘reacionários’ quaisquer sonhos de retorno ao artesanato ou qualquer outro modo pré-capitalista de produção. Exalta o papel historicamente progressista do capitalismo industrial, não apenas por desenvolver uma força produtiva gigantesca e sem precedente, mas também por criar a universalidade, a unidade da economia mundial - uma precondição essencial para a futura humanidade socialista. Ele saúda também o capitalismo por esfacelar os véus que ocultam a exploração nas sociedades pré-capitalistas, mas esse tipo de aplauso tem um conteúdo irônico: pela introdução de uma forma mais brutal, aberta e cínica de exploração, o modo capitalista de produção favorece o desenvolvimento da consciência de classe e da luta das classes oprimidas. O anticapitalismo de Marx não é a negação abstrata da moderna civilização industrial (burguesa), mas é Aufhebung, isto é, ao mesmo tempo, a sua abolição e a conservação de suas maiores conquistas, em um movimento na direção de um modo de produção mais elevado (socialismo)

Referências

Documentos relacionados

No código abaixo, foi atribuída a string “power” à variável do tipo string my_probe, que será usada como sonda para busca na string atribuída à variável my_string.. O

Neste estudo foram estipulados os seguintes objec- tivos: (a) identifi car as dimensões do desenvolvimento vocacional (convicção vocacional, cooperação vocacio- nal,

Como parte de uma composição musi- cal integral, o recorte pode ser feito de modo a ser reconheci- do como parte da composição (por exemplo, quando a trilha apresenta um intérprete

O relatório encontra-se dividido em 4 secções: a introdução, onde são explicitados os objetivos gerais; o corpo de trabalho, que consiste numa descrição sumária das

Os principais resultados obtidos pelo modelo numérico foram que a implementação da metodologia baseada no risco (Cenário C) resultou numa descida média por disjuntor, de 38% no

Afinal de contas, tanto uma quanto a outra são ferramentas essenciais para a compreensão da realidade, além de ser o principal motivo da re- pulsa pela matemática, uma vez que é

libras ou pedagogia com especialização e proficiência em libras 40h 3 Imediato 0821FLET03 FLET Curso de Letras - Língua e Literatura Portuguesa. Estudos literários

Dessa forma, a partir da perspectiva teórica do sociólogo francês Pierre Bourdieu, o presente trabalho busca compreender como a lógica produtivista introduzida no campo