UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
A comissão julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado
composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão publica
realizada em 16/10/2015, considerou o candidato Frederic Mario Caires Pouget
aprovado.
ProfªDrª Aline Vieira de Carvalho
Prof. Dr. José Alvez de Freitas Neto
ProfªDrª Marcia Maria Arcuri Suñer
ProfªDrª Loredana Marisa Ricardo Ribeiro
Prof.Dr. Ricardo Cavalcanti-Schiel
A ata de Defesa, assinada pelos membros da Comussão Examinadora, consta
no processo de vida acadêmica do aluno.
Agradecimentos
Ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidadede Campinas (Unicamp).
Aos funcionários do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE – USP) e a sua excelente
biblioteca.
À FAPESP pela bolsa de doutorado concedida desde o início desta pesquisa (processo:
2010/19374-0).
Novamente, à FAPESP e à segunda bolsa de estágio e pesquisa no exterior
(BEPE-2013/05443-8), aos professores Gustavo Politis e Mariano Bonomo, que me receberam no Museo
de Historia Natural de La Plata (Argentina) e às professoras Patricia Arenas e
Alejandra Korstanje que me receberam na Universidad Nacional de Tucumán.
Às professoras Monica Beron e Myrian Tarragó, do Museo Etnográfico Juan Bautista
Ambrosetti em Buenos Aires.
Ao Núcleo de História Indígena e Indigianismo (NHII) da USP e seus integrantes, pelo
estimulante debate e intercâmbio de ideias de suas reuniões e seminários.
Às professoras do departamento de antropologia da USP: Dominique Gallois, Beatriz
Perrone Moisés e Marta Amoroso.
À Profª Drª Fabiola Andrea Silva do MAE-USP, que desde o estágio e a orientação de
Mestrado me ensinou a tomar gosto pelas questões etnoarqueológicas.
Às comunidades Indígenas de Quilmes e Aimacha del Valle e sua excepcional luta pela
visibilidade indígena e pelo diálogo. Eles, que nos mostraram uma pequena parte da sua riqueza
material e imaterial, receberam-nos e apoiaram a nossa pesquisa, são os verdadeiros co-autores
desta dissertação.
Aos demais colegas do programa de pós-graduação.
Aos professores da Unicamp, John Monteiro (in memoriam), José Alves Freitas Neto e
Pedro Paulo Funari pela leitura atenta, críticas e sugestões, que possibilitaram um impagável
crescimento acadêmico e, em especial, a minha orientadora Aline Vieira de Carvalho.
Aos colegas da UFPel e, em especial, os professores Rafael Milheira e Loredana Ribeiro.
A minha auxiliar de campo, Guadalupe Diaz.
Não poderia deixar de mencionar os agradecimentos aos colegas argentinos que me
incentivaram desde o início desta pesquisa: Ramiro F. Unsain, Sandra Tolosa e Diego Leiton.
Aos amigos de graduação, companheiros da vida acadêmica e da vida em geral: Mi,
Bruno, Bruna, Lê, Danilo, Déia, Dea, Ana Bi, Jú, Carol, Gustavo, André, Augusto e Ricardo.
Aos amigos de Rio Claro: Armando Sferra, Mônica, Oswaldo e Andressa.
Aos membros da banca: José Alves Freitas Neto, Marcia Acuri Suner, Ricardo
Cavalcanti-Schiel, Loredana Ribeiro.
E tantos outros que foram importantes nessa trajetória!
A minha Família, pelo amor e apoio sentimental (e material).
Epígrafe:
“Suponhamos, por exemplo, que nós
reagrupemos os elementos contemporâneos ao
longo de uma espiral e não mais de uma linha.
Certamente temos um futuro e um passado, mas
o futuro se parece com um círculo em expansão
em todas as direções, e o passado não se encontra
ultrapassado,
mas
retomado,
repetido,
envolvido,
protegido,
recombinado,
reinterpretado e refeito”
RESUMO
A história dos índios Quilmes, situados no noroeste argentino, representa um caso
paradigmático no campo da arqueologia contemporânea, já que nos permite analisar as
permanências materiais e culturais de um grupo étnico desde o momento do contato colonial até
a atualidade. Toda essa trajetória pode ser lida na Ciudad Sagrada de los Quilmes; sítio
arqueológico localizado na província de Tucumán, noroeste argentino
1. Neste local, não só se
encontram os vestígios arqueológicos monumentais dessa antiga cultura andina, mas, também,
vestígios arqueológicos contemporâneos que refletem aspectos de dominação e resistência por
eles vivenciados ao longo de séculos de ocupação colonial. Neste contexto, analisamos tanto as
construções das narrativas acadêmicas ao longo do século XIX, XX e XXI sobre os índios
Quilmes, como a percepção êmica de história e sua articulação com a cultura material. Para isso,
além de análises de fontes narrativas históricas, partimos para uma pesquisa de campo de cunho
histórico antropológico para realizar a análise das fontes orais e escritas. Isso ressalta o caráter
de agentes históricos das populações nativas e revela como elas atuam frente a “verdades”
históricas (acadêmicas ou não) exteriormente construídas e de como elas elaboram o seu sentido
de etnicidade. Neste sentido que se encontra a importância da pesquisa apresentada, de ressaltar
os aspectos polivocais no âmbito de uma pesquisa acadêmica e as contribuições teóricas
decorrente de tais aspectos.
Palavras-Chave: Arqueologia; Etnicidade; Quilmes; Memoria Cultural; Noroeste Argentino
1Mais especificamente o sítio se encontra no Km 4292 da Ruta Nacional Nº40. Entre os municípios de Aimacha
ABSTRACT
The history of the Quilmes Indians, located in northwestern Argentina, is a paradigmatic
case in the field of contemporary archeology, since it allows us to analyze the material and
cultural permanencies of an ethnic group from the time of colonial contact to the present day. All
this history it´s told in the ‘Ciudad Sagrada de los Quilmes’; archaeological site placed in the
province of Tucumán, Argentine Northwest
2. In this place not only are found the monuments
archaeological vestiges of this ancient Andean culture but also contemporary archaeological
remains which reflect aspects of domination and resistance experienced by this people over
centuries of occupation colony. In this context, we analyze the constructions of academic
narratives about the Quilmes Indians throughout the XIX, XX and XXI centuries, and also the
emic perception of history and its relationship with material culture. Therefore, in addition to
assessments of historical narrative sources, we leave for a historical nature of anthropological
field research to perform the analysis of oral and written sources. This underscores the character
of historical agents of the native populations and reveals how they act against historical
(academic or not) "truths" constructed from outside of the original culture and how they develop
their sense of ethnicity. In that sense that the importance of this research is presented, to highlight
the amplitude of views in the ambit of academic research and the theoretical contributions
resulting from these aspects.
Keywords: Archaeology; Ethnicity; Quilmes; Cultural Memory; Argentine Northwest
2More specifically, the site is in the 4292 Km of the Ruta Nacional 40. Between the towns of Aimacha del Valle
Siglas Utilizadas:
CIQ- Comunidade Indígena Quilmes
NOA- Noroeste Argentino
Sumário
Introdução ... 14
Evidência, proposição e denominação do problema. ... 14
Ponto de Partida e reflexibilidade ... 21
CAPÍTULO 1. ... 24
A) Primeira Parte - Agentes de sua história. ... 24
Agency e interação científica-cultural junto ao contexto Arqueológico (século XIX – XX). ... 26
Contexto etnográfico e dinâmicas patrimoniais frente à província de Tucumán: visões do passado... 38
B) Segunda Parte – Eixos Historiográficos e apropriação nativa... 49
Interpretação historiográfica sobre a questão indígena. ... 49
Eixo heroico. ... 55
Eixo formativo nacional. ... 61
CAPÍTULO 2. ... 67
A) Primeira Parte – A lógica da temporalidade Quilmes e a compreensão sobre uma demanda histórica
cultural... 67
Identidade e tempo Histórico. ... 71
Reversibilidade das pesquisas acadêmicas na lógica temporal Quilmes. ... 74
Materialidade e Memória. ... 78
Problemáticas reflexivas. ... 80
Problemáticas da historiografia arqueológica argentina. ... 83
Historiografia Argentina dos valles cachaquíes e as problemáticas de nomenclatura. ... 85
B) Segunda Parte - O passado como instrumento étnico e ontológico. ... 89
Guerras Calchaquíes – Etnohistória e memória étnica. A Comunidad Índia Quilmes e o falso Inca Pedro
Bohorquez. ... 90
Notas preliminares: As Guerras Calchaquíes em uma bibliografia histórica tradicional. ... 90
Espaços de negociações etnohistóricas: entre os conflitos coloniais e as comunidades nativas. ... 93
E assim se faz Inca... ... 101
Êxodo: a redução indígena de Santa Cruz de los Quilmes e a cacica Isabel Pallomay. ... 106
As discursividades territoriais frente ao marco simbólico de uma Cédula Real (1716). ... 116
O Passado e etnicidade. ... 119
CAPÍTULO 3- As diferenças dos embates sobre o passado: Lógica patrimonial, memória histórica e
memória cultural. ... 123
Morteiros Coletivos ou Morteiros Interpretativos? ... 124
Percepção Quilmes sobre os morteiros. ... 129
CAPÍTULO 4- Uma Argentina pluriétnica? ... 138
Imagens indígenas. ... 138
Imagens indígenas em Quilmes... 141
Identidade histórica em contraste com os deslocamentos de poder. ... 143
Constituição de espaços patrimoniais públicos e atuação politica indígena. ... 144
O difícil realocar de uma visão multiétnica... 147
CONSIDERAÇÕES FINAIS: ... 149
Os “saberes”, possuir a história entre cacos e viventes. ... 149
Território, etnicidade e a questão arqueológica. ... 150
Contextos associativos de coletivos políticos e materiais. ... 153
BIBLIOGRAFIA ... 158
ANEXO 1- Folheto turístico produzido pela CIQ... 173
ANEXO 2- Reunião Política sobre a criação de um museu comunitário junto ao sítio arqueológico
Quilmes. Reunião composta por membros da comunidade e arqueólogos da universidade de Tucumán e
funcionários da secretaria de turismo da província de Tucumán e arquitetos idealizadores do projeto.171
ANEXO3 -Reunião política para a definição do centro cultural e assuntos gerais da CIQ Reunião com a
secretária de turismo da província de Tucumán. (casa comunal quilmes, sitio arqueológico quilmes
província de Tucumán)... 202
ANEXO 4-Reunião política para a definição do centro cultural e assuntos gerais da CIQ Reunião com a
secretária de turismo da província de Tucumán. (casa comunal quilmes, sitio arqueológico quilmes
província de Tucumán)... 218
ANEXO 5-Entrevista com um dos moradores da comunidade El Pichao, (comunidade que compõe a base
comunal da CIQ), Nome trocado do entrevistado para proteger o seu anonimato ... 225
ANEXO 6-Entrevista com um dos moradores da comunidade El Pichao, (comunidade que compõe a base
comunal da CIQ), Nome trocado do entrevistado para proteger o seu anonimato ... 230
ANEXO 7-Entrevista com um dos moradores da comunidade El Pichao, (comunidade que compõe a base
comunal da CIQ), Nome trocado do entrevistado para proteger o seu anonimato ... 235
ANEXO 8-Entrevistas com os guias turísticos junto ao sítio arqueológico Quilmes (província de
Tucuman); a Rodolfo Javier González(30) y Darío Mamaní (20), ... 238
ANEXO 9-Entrevistas com os guias turísticos junto ao sítio arqueológico Quilmes (província de
Tucuman) ... 242
ANEXO 10-Entrevista com um dos delegados da CIQ, nome modificado para manter o anonimato .. 249
ANEXO 11 Entrevista vicepresidente del Ente Tucumán Turismo: Sebastián Giobellina ... 254
13
Figura 1: Mapa Cartográfico Geral - Fonte: Google Maps (data de acesso: 10/01/2015)
14
Introdução
Evidência, proposição e denominação do problema.
São as comunidades locais, onde vestígios arqueológicos remetem à sua ancestralidade,
que se interessam cada vez mais pelo conhecimento arqueológico e histórico, não só para uma
interpretação própria de seu passado, mas também como instrumento político de
reconhecimento a sua existência. É importante remarcar que o discurso de etnicidade, portanto,
possui na arqueologia uma importância cada vez maior no que se refere às intersecções de
processos culturais de identidade e alteridades. (PAYNTER e McGUIRE, 1991; LAYTON,
1994; SIAN JONES, 1997; FUNARI et al., 2005; POUGET, 2010)
Nesse sentido, a ‘Ciudad Sagrada de los Quilmes’ não é somente um espaço de estudo
arqueológico, mas também um espaço de agência histórica para a resistência dos grupos
oprimidos por um determinado processo de (des)territorialização (CARRASCO, 2000),
colocado em ação por um Estado nacional. A Comunidad India Quilmes está envolta nesse
processo, não apenas pela sua trajetória histórica e relação visceral com o sítio arqueológico,
mas também por uma série de discursividades acadêmicas envolvidas na sua auto-imagem ética.
Em um ponto de vista etnohistórico, o senso interpretativo acadêmico caracteriza etnias
indígenas associadas a culturas arqueológicas (VALKO, 2008), assim os Quilmes são
associados a macro-etnia Diaguita. No que tange ao processo de resistência/opressão, creio que
seja importande evidenciar a dualidade em si. Ela nos serve para uma compreensão inicial da
problemática sobre os conflitos e lógicas discursivas existente, porém, creio que o tema é muito
mais complexo para ser abordado em lógicas duais, pois ele implica processos de etnicidades e
subjetividades específicas vis-à-vis à “cultura material” que vão além de dualidades comumente
utilizadas na bibliográfia tradicional.
15
Figura 2: Foto ilustrativa – Vista Geral do Conjunto arqueológico reconstruído em 1978 – Foto: Frederic Pouget, 2012.
16
Figura 3: Foto ilustrativa – Vista geral do conjunto arqueológico reconstruído em 1978 – detalhe para espacialidade do conjunto arqueológico em um assentamento típico de um pukará (Fortaleza). Foto: Frederic Pouget, 2012.
17
Figura 4: Foto ilustrativa – Vista Geral da estrutura turística criada quando o sítio arqueológico foi privatizado em 1990. Foto: Frederic Pouget, 2012.
A Comunidad India Quilmes (CIQ), localizada no noroeste da Argentina (província de
Tucumán) nos belíssimos Vales Calchaquis, realiza desde 2008 a gestão do sítio arqueológico
que remete, segundo a comunidade, diretamente aos seus ancestrais imemoriais (fig: 2;3;4).
Desde do século XVII os diversos grupos indígenas do noroeste argentino nos vales andinos
foram referidos por cronistas como Diaguitas, tal categoria é apropriada por arqueólogos e
antropólogos nos primeiros estudos acadêmicos e sistemáticos na região. Como veremos, ao
longo das últimas décadas, os grupos nativos atuais têm refletido, assim, não só no significado
étnico do sítio, mas também nas interpretações arqueológicas e históricas que foram feitas sobre
esses espaços de pesquisa científica. É possível, que a visibilidade recente de tal processo
organizativo político das comunidades possa ser historicamente traçado pelas lógicas do
discurso peronista, especialmente da década de 1970, de incentivo de organização sindical com
18
claros reflexos a organização política indigenista local, como bem aponta Maria Vitoria
Pierini
3:
“Cuentan los quilmes que en la década de 1960 algunas familias empezaron a tener conflictos con los terratenientes por negarse a pagar las obligaciones, lo que resultó – en algunos casos - en su desalojo. Sin embargo, es recién en los primeros años de la década de 1970 que comienzan a organizarse en torno a los reclamos territoriales y sociales” (PIERINI, 2011, p. 199)4
Todo esse jogo de apropriações discursivas sobre o passado e o presente Quilmes,
praticado dentro e fora da comunidade, ainda que pautados na questão territorial, relaciona-se
diretamente com a ideia de “cultura material”. A cultura material enquanto abordagem
acadêmica funciona no plano ocidental enquanto categoria conceitual por vezes cartesiana e
encerrada em si mesma, ou seja, uma abordagem de analise que responde mais as nossas
próprias lógicas culturais de produzir ciência do que uma reflexão sobre um modo de pensar do
outro. O processo conceitual da “cultura material” entre os Quilmes (e entre diversos outros
exemplos etnoarqueológicos) ocorre ao através de uma abordagem que abrange não só a
historicização do espaço próprio e alheio, mas também da noção de subjetividade da
materialidade das “coisas”, como uma forma de entender os diversos temas pelos quais as
noções de pertencimento ao mundo são construídas desde uma perspectiva indígena, para, em
seguida, retornar à arena política ocidental com uma reivindicação própria (LAYTON, 1994;
THOMAS e COLLEY, 2001). E, ao mesmo tempo, tal exercício mental exerce o impulso
constitutivo de uma abordagem ontológica relacional, deveras acionada a primeira vista pelo
binômio (que merece ser complexado) sujeito/objeto. Explico: tal agencialidade (agency) das
“coisas”
5marca, no caso Quilmes, a sua dinâmica reflexiva (do entendimento de ser e estar) e
a sua formação étnica contemporânea pautada em um movimento interacional. Este processo
3 Apenas para contextualizar melhor com o plano das organizações políticas indígenas na Argentina vale a pena
continuarmos a leitura da passagem seguinte de Pierini: “En estrecha relación con los acontecimientos políticos por los que atravesaba el país en esta época, entre 1970 y 1975 se desarrollan cuatro grandes Federaciones Indígenas regionales y una multitud de organizaciones aborígenes locales (Serbin, 1981:407) (…) Cabe aclarar, sin embargo, que estas organizaciones y federaciones indígenas no constituyeron un movimiento homogéneo. Desde el comienzo, las organizaciones presentan una gran heterogeneidad étnica e ideológica, tanto entre ellas como al interior de cada una. Estas diferencias se fueron acentuando en los primeros años de la década de 70, en consonancia con el clima político general.” (PIERINI, 2011, p. 200)
4 Em tempo, ao longo da tese optei por manter na língua de origem as citações utilizadas no texto. Enventuais
traduações devem ser feitas quando na preparação de artigos e materiais de divulgação de pesquisa.
5 A troca do termo aqui de “objeto” para “coisa” me parece mais apropriado, seguindo a crítica feita por Ingold
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em um panorama acadêmico é o desdobramento daquilo que John Monteiro (2001, p. 05)
6qualificou como movimento de direitos indígenas para – direitos históricos nas análises
etno-históricas, no qual poderíamos marcar uma clara confluência com a arqueologia. Especialmente
no trato da “cultura material”, não apenas como fonte histórica, mas também como dotada de
uma agencialidade política e sentidos de memória étnica constantemente atualizadas e
refletidas. Um senso de arqueologia que atua não apenas no passado, mas também no presente
e no futuro.
É importante marcar, em especial, que tal situação política vivenciada pela CIQ gera
conflitos de extrema importância para o próprio grupo, pois, não só no âmbito jurídico – de
reconhecimento territorial – ou da exploração comercial turística de um sítio arqueológico,
como também colocam em cheque as políticas públicas relacionadas aos povos indígenas na
Argentina e à participação da universidade junto a esses povos. (TARRAGO, 1995).
Portanto, o pano de fundo que se apresenta nas observações acima e que poderíamos
considerar como a denominação da tese central da pesquisa aqui apresentada seria um duplo
movimento entre: analisar como a história e arqueologia narraram o grupo indígena Quilmes
obedecendo a estruturas específicas de poder; e como explicar a tomada de consciência
histórica de uma etnia frente à ‘cultura material’
7. Ou seja, como se estruturaria as formulações
discursivas acadêmicas, lógicas de invenção e legitimação dos Quilmes em relação a sua
herança, ao seu patrimônio arqueológico. O empoderamento
8indígena frente a sua cultura
6 “A reconfiguração da noção dos direitos indígenas enquanto direitos históricos – sobretudo territoriais, estimulou
importantes estudos que buscavam nos documentos coloniais os fundamentos históricos e jurídicos das demandas atuais dos índios ou, pelo menos, dos seus defensores. De fato, figuram com certa proeminência, entre os primeiros exemplos deste renovado interesse pela história dos índios, alguns dossiês e laudos antropológicos que buscavam dar substância às reivindicações de grupos, tais como os Potiguara da Baía da Traição, os Xocó de Sergipe e os Pataxós do sul da Bahia, entre outros. Neste sentido, o desenvolvimento de pesquisa nesta área reproduzia um processo similar desencadeado algumas décadas antes nos Estados Unidos, sobretudo, a partir da promulgação do
Indian Claims Act em 1946, quando muitos antropólogos começaram a subsidiar reivindicações territoriais de
grupos indígenas através de minuciosos levantamentos documentais (Faubion, 1993, p. 42-43). Cabe lembrar, ainda, que estes esforços se desdobraram na fundação da revista Ethnohistory que, desde os anos 1950, divulga o lado acadêmico dessa produção” (MONTEIRO, 2001, p. 05-06)
7Veremos no decorrer da pesquisa que essas são deveras perguntas simplistas, dada a complexidade da
problemática. Tanto que não respondo a elas diretamente, mas procuro elaborar uma reflexão pormenorizada de uma possível resposta reflexiva que envolve um olhar arqueológico junto a uma problemática antropológica-histórica.
8 O termo de origem inglesa “Empowerment” é sobretudo usado nos EUA para se referir às tomadas de consciência
política de uma determinada comunidade que orienta ações e discursos – com claros conflitos com o poder dominante ou governamental. Entre esses estudos, talvez o principal seja Empowerment: uma política de desenvolvimento alternativo, de John Friedmann (1996).
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material e vice-versa. Para tal análise, é importante resgatar alguns aspectos teóricos da
arqueologia que dialoga com a própria formação disciplinar, como aquele que Ana Maria
Rocchietti em ‘Visibilidad arqueológica: escena Argentina para la arqueología como ciencia
de la sociedad’, chama de “Política da imagem”:
“La arqueología prehistórica, entonces, configura su objeto como constructo científico de carácter presuntamente neutral pero en lo profundo su objeto es de naturaleza tanto científica como política. Esta situación es su determinante más conspicuo. En ella tensan tres tradiciones semióticas (tres tradiciones de producción de sentido y de selección de significantes) diferentes: la de las ciencias naturales, la de las ciencias sociales y la de la historia”. (ROCCHIETTI, 1997, p. 16)
O cerne, portanto, transdisciplinar da pesquisa apresentada tem um duplo movimento, o
próprio caso de estudo apresentado que diáloga com as três áreas acadêmicas (antropologia,
arqueologia e história) e o jogo da “política de imagem” que configura a formação da
arqueologia na argentina (e também alhures). É transdisciplinar
9, pois não basta um olhar sobre
as interações das diversas disciplinas acadêmicas (no caso, arqueologia, antropologia e
história), mas uma abordagem integradora entre essas epistemes, o que fica mais evidente se
observamos a lógica indígena – que como creio – possui uma abordagem “transdisciplinar” que
perpassa inclusive a cultura material e a adiciona como variável na equação,
complexeficando-a.
107Segundo B. Nicolescu, a denominação transdisciplinar foi dada por Jean Piaget em um colóquio de 1970 quando
este proclamou: “...enfim, no estágio das relações interdisciplinares, podemos esperar o aparecimento de um estágio superior que seria 'transdisciplinar', que não se contentaria em atingir as interações ou reciprocidades entre pesquisas especializadas, mas situaria essas ligações no interior de um sistema total sem fraturas estáveis entre as disciplinas”. (Apud. WEIL, 1993, p. 30)
9 Segundo B. Nicolescu, a denominação transdisciplinar foi dada por Jean Piaget em um colóquio de 1970
quando este proclamou: “...enfim, no estágio das relações interdisciplinares, podemos esperar o aparecimento
de um estágio superior que seria 'transdisciplinar', que não se contentaria em atingir as interações ou reciprocidades entre pesquisas especializadas, mas situaria essas ligações no interior de um sistema total sem fraturas estáveis entre as disciplinas”. (Apud. WEIL, 1993, p. 30)
10 A “cultura material”, mais do que uma expressão de uma cultura é “boa para pensar”, para retormarmos a célebre
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Ponto de Partida e reflexibilidade
O ponto de partida escolhido para esta pesquisa se refere à “cultura material”, entendida
no sentido amplo de uma reflexão sobre o sítio arqueológico Quilmes enquanto unidade
analítica. Levando em consideração a relação entre o pesquisador e comunidade local, deixo de
me referir ao sítio arqueológico como “ruínas de los Quilmes” para chamá-la de “Ciudad
Sagrada de los Quilmes”, denominação proposta pela própria comunidade. Esse quadro de
novas nomenclaturas é um dos aspectos da tensão que existe entre a literatura acadêmica e a
comunidade local, tensão nem tanto no sentido de conflitos gerados, mas sim nas problemáticas
levantadas. Os questionamentos da arqueologia junto às comunidades tradicionais envolvem,
também, aspectos de política, patrimônio, poder e memória. (LAYTON, 1994a, 1994b; BOND,
1994; WATKINS, 2000; TORRENCE e CLARK, 2000; SMITH e WOBST, 2005; FUNARI et
al. 2005). Para tanto, é importante ter em conta os aspectos e desdobramentos do olhar local
sobre uma certa ‘cultura material’.
Tal relação transdisciplinar da “cultura material” vai ao encontro com a Carta de Veneza
da UNESCO de 1986 no trato de ciência e as fronteiras de conhecimento:
O conhecimento científico, devido a seu próprio movimento interno, chegou aos limites em que pode começar o diálogo com outras formas de conhecimento. Neste sentido, reconhecendo as diferenças fundamentais entre a ciência e a tradição, constatamos não sua oposição, mas sua complementaridade. O encontro inesperado e enriquecedor entre a ciência e as diferentes tradições do mundo permite pensar no aparecimento de uma nova visão da humanidade, até mesmo num novo racionalismo, que poderia levar a uma nova perspectiva metafísica.
Recusando qualquer projeto globalizante, qualquer sistema fechado de pensamento, qualquer nova utopia, reconhecemos ao mesmo tempo a urgência de uma procura verdadeiramente transdisciplinar, de uma troca dinâmica entre as ciências "exatas, as ciências "humanas", a arte e a tradição. Pode-se dizer que este enfoque transdisciplinar está inscrito em nosso próprio cérebro, pela interação dinâmica entre seus dois hemisférios. O estudo conjunto da natureza e do imaginário, do universo e do homem, poderia assim nos aproximar mais do real e nos permitir enfrentar melhor os diferentes desafios de nossa época. (UNESCO, 1986, p. 01)
A reflexão da abordagem histórica nesse sentido transdisciplinar decorre do primeiro
momento da percepção ontológica de grupos de interesses diversos (stakeholders –
CASTAÑEDA e MATTHEWS, 2008; MCGUIRE, 1995) em torno da ‘cultura material’.
Especialmente o caso Quilmes nos oferece uma rica trajetória desses stakeholders e uma
22
profunda reflexão sobre cultura e “cultura” (CARNEIRO DA CUNHA, 2009) e a dinâmica
histórica contemporânea.
Mais especificamente, a “cultura material” é o reflexo de uma cultura trazida pela
interpretação subjetiva da “cultura material” (seja ela mítica, identitária ou científica) que
embute uma percepção de história nessa própria cultura – basta lembrar a longa crítica pelos
sentidos de histórias e vieses interpretativos embutidos em documentos (
JENKINS, 2005).
Além
disso, as dinâmicas próprias de memória e acontecimento social que influenciam essa cultura
são refletidas na discursividade local acerca do seu momento histórico, da sua seleção de
memória histórica (KOSELLECK, 2006).
Os recortes históricos que compõem esta tese, embora tratem de momentos históricos
muito díspares em sua totalidade, fazem parte do quadro de memória étnica da CIQ como um
todo (os recortes selecionados abrangem momentos históricos que vão desde as guerras
calchaquíes, no séculos XVI e XVII; a diáspora à província de Buenos Aires, em 1666; a cédula
real, no século XVIII; até a memória recente de conflitos territoriais e da ocupação e gestão do
sítio arqueológico), tal aspecto de temporalidade está mais explicitado no Capítulo 2.A.
É claro que tal seleção de memória histórica implica no meu próprio recorte analítico
de história recente, em confluência com a percepção Quilmes. Lagrou (2007) resume bem essa
ideia na seguinte passagem:
A característica da História do Tempo Presente consistiria naquilo que se pode chamar de unidade temporal do sujeito e do objeto, daquele que estuda e o que ele estuda. O historiador é contemporâneo dos acontecimentos que ele estuda em um sentido distinto daquele da coabitação física com as testemunhas. O período estudado não está fechado: não há esse elemento de alienação, de alteridade, que é próprio do estudo de períodos mais afastados. (LAGROU, 2007, p. 36)
Isso tem como consequência o deslocamento de uma história de ideologia para uma
história de identidades, que contrasta a própria identidade do historiador (e a sua ontologia
pressuposta em uma pesquisa acadêmica). Essa passagem fica mais clara se levarmos o texto
“De L'histoire Du Temps Présent À L'histoire Des Autres” (LAGROU, 2013) em consideração
especialmente nos usos das fontes orais nas análises do tempo presente – tal consideração tem
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uma importância mister na pesquisa apresentada já que se baseia em uma série de relatos orais
como dado etnográfico:
“Son ambition (dos estudos do tempo presente) était bel et bien d’offrir, par la discipline historique, une analyse critique de la société contemporaine, collant au plus près au présent, contournant les délais de communicabilité des archives par le recours aux sources orales, engageant un débat de société.” (LAGROU, 2013, p. 109)11
Nesse sentido, tive como cuidado epistemológico o trabalho etnográfico para poder
compreender os momentos históricos mais sensíveis dessa comunidade, ou seja, acompanhar a
interação (e seleção proposital) da comunidade Quilmes dos seus recortes históricos presentes
nos relatos orais e, assim, estabelecer uma via de diálogo com a comunidade. Por exemplo,
como uma das atividades da abordagem etnográfica, acompanhei sistematicamente os guias
turísticos indígenas que, através da sua mediação com o público visitante, elencavam os
momentos históricos mais importantes para sua comunidade – tais relatos tinham como
contraste não apenas as pressuposições acadêmicas sobre sua própria história, como também
embutiam uma crítica sobre visibilidade indígena. E, assim, em cada roda de conversa com o
grupo dos guias se estabelecia o diálogo etnográfico.
Portanto, o exercício de “reflexibilidade” está também em atualizar a reflexão
acadêmica sobre os grandes momentos históricos que compõem a historiografia identitária
Quilmes. Isso significa superar as grandes dicotomias que compõem o quadro historiográfico
no trato da questão indígena, tais como civilização/barbárie e herói/vítima (PASSETTI, 2012)
e acompanhar, tanto nos textos históricos como na abordagem da história recente, os Quilmes
como agentes da sua própria história (e narradores da sua história). Cabe ressaltar que existe
uma pluralidade de histórias observáveis na comunidade e que elas não são homogêneas, no
entanto, em termos antropológicos é possível traçar as suas linhas gerais em uma análise que
marca a interação étnica com a sua “cultura material”. Essa sendo a chave escolhida de acesso
11“Sua ambição <dos estudos de tempo presente> era de estabelecer e oferecer, através da disciplina histórica, uma análise crítica da sociedade contemporânea, mantendo o mais próximo do atual, e contornando assim a defasagem da comunicação dos arquivos através do uso de fontes orais na incitação de um debate com a sociedade”. (Tradução nossa)
24
às ontologias locais e narrativas históricas, pondo em contraste a bibliografia acadêmica
referente.
CAPÍTULO 1.
A) Primeira Parte - Agentes de sua história.
O conceito de “agency” em arqueologia tem sido usado sem consensos sobre seus
significados e, em alguns casos, sem uma compreensão de seus possíveis sentidos. O termo fora
usado inicialmente em contextos processuais no vacum teórico das explicações de modelos
sistêmicas de alto nível.
12Já no contexto pós-processual, as preocupações teóricas se voltam
para questões relativas às ações e relações desenvolvidas entre sujeitos/objetos que constituem
a si mesmos. Tais abordagens, por vezes apoiadas em aspectos teóricos derivados de Bourdieu,
Giddens, Foucault e e até mesmo Latour
13, trazem mais problemas interpretativos do que
soluções. Isso ocorre pelo pouco tratamento explicativo que é dado ao conceito, como se ele
fosse uma solução em si mesmo, o que gera uma ampla abordagem do que “agency” significa
e claro da reeificação do binômio sujeito/objeto e/ou natureza/cultura.
12 Os termos processual e pós-processual se referem a duas linhas de pensamento na arqueologia, ou duas escolas
acadêmicas, que têm suas influências ora marcada em desenvolvimentos metodológicos inspirados em abordagens naturalistas ou sistêmicas (processual), ora apoiada em referentes humanistas de cunho filosófico (pós-processual).
13 Um exemplo de uma má interpretação de Bruno Latour em arqueologia no que tange a “agência” pode ser
encontrado no artigo: "Agents in inter-action: Bruno Latour and Agency." Journal of Archaeological Method and
Theory 12.4, de Andrew Martin (2005, p. 283-311); especialmente no que tange a reeficação de pressupostos de
25
Dorbres & Robb (2000) fazem uma excelente retrospectiva histórica do uso de ‘agency’
e o relaciona aos aspectos teóricos da arqueologia. Todavia o conceito não é obviamente
exclusivo da arqueologia, os desenvolvimentos iniciais do conceito no âmbito sociológico do
funcionalismo americano (Escola Parsoniana dos anos 1960) permitem os paralelos traçados
com a ecologia cultural e neoevolucionismo da arqueologia do mesmo período. Os
desenvolvimentos posteriores do conceito, já no âmbito da antropologia (de uma
“etnometodologia”, segundo Garfinkel, 1984), com claras repercussões nas teorias
arqueológicas, dentro do contexto da escola americana, podem ser traçados nos usos teóricos
elaborados por Giddens (1979; 1984) e Bourdieu (1977), especialmente, no foco da relação
dialética entre agente/ação e prática/práxis de claras influências marxistas.
Na história do pensamento arqueológico podemos observar os diversos momentos desta
influência do desenvolvimento teórico de ‘agency’ que vai desde a ‘new archaeology’ até os
pós-processuais. As variedades de definições e abordagens do conceito de ‘agency’, mapeado
por Dobres & Robb, no desenvolvimento da arqueologia nos leva ao questionamento do seu
uso e potencial teórico dentro de uma disciplina que visa construir uma “autoimagem” constante
de ciência. Esta indagação é o ponto que me parece interessante para o propósito deste trabalho,
se seguirmos a citação seguinte podemos observar até em termos de uma etnografia da ciência
os passos de elaboração de uma autoimagem em arqueologia:
“Rather than being content to borrow concepts of agency wholesale, we need to address how contemporary agency theory should be modified to fit archaeological research interests, archaeological scale, of inquiry, and the unique qualities of archaeological data”( Dobres & Robb, 2000, p. 14)14
Tal constatação de constructo de um “fazer arqueológico” tem como consequência um
primeiro pressuposto sobre a base forte da arqueologia: a cultura material e a sua reflexividade.
Portanto, dado a transdisciplinariedade deste trabalho, os aspectos sociais de “agency” fazem
parte da reflexão pretendida, em especial, creio que a vertente proposta por Alfred Gell (1998)
pode parecer se encaixar na abordagem indivíduo/objeto/contexto social em relação a uma
14 Ao invés de se satisfazer com o empréstimo de conceito de agência no atacado, nós devemos abordar como a
teoria de agência contemporânea deve ser modificada para atender interesses arqueológicos de investigação, escala arqueológica de pesquisa, e as qualidades únicas de dados arqueológicos.
26
dinâmica de agente/paciente – ‘ The concepto f agency i employhere is exclusively relacional:
for any agente there is a patient, and conversely, for any patient, there is an agente” (GELL,
1998, p. 22)
No entanto, a crítica feita por Ingold (2012) a essa perspectiva complexifica a noção de
agência e, apesar de ele defender o abandono do termo (ou no mínimo o extremo cuidado
epistemológico na sua utilização
15), creio que é possível expandir o aspecto relacional
16da
agência para contextos que inclusive envolvem as dimensões do patrimônio e comunidades
tradicionais em contextos contemporâneos, justamente por articular percepções científicas e
discursivas de cunho epistemológico. Em especial, a problemática do Quilmes parece ser bem
elucidativa neste aspecto, já que as articulações propostas pela comunidade possuem uma
agência sobre as representações e discursos acadêmicos acerca do patrimônio arqueológico
local e as considerações históricas feitas sobre ele. O que enriquece e complexifica pressupostos
acadêmicos sobre patrimônio e até mesmo põe em consideração a autoimagem trazida por um
fazer científico arqueológico e a sua interação tanto com a “cultura material” como a
comunidade local.
Agency e interação científica-cultural junto ao contexto Arqueológico (século XIX – XX).
O grupo indígena Quilmes sofreu, durante o período colonial (século XVII), um quase
extermínio (ou total, se verificarmos o senso comum argentino que, até hoje, considera os índios como
extintos), sendo as poucas famílias restantes obrigadas a se mudarem da sua cidade sagrada nos vales
15 “É aqui que chegamos – e, espero, enterremos para sempre – o chamado ‘problema da agência’ (GELL, 1998,
p. 16). Muito já foi escrito sobre as relações entre pessoas e objetos com base na ideia de que a diferença entre eles é longe de ser absoluta. Se as pessoas podem agir sobre os objetos que as circundam, então, argumenta-se, os objetos “agem de volta” e fazem com que elas façam, ou permitem que elas alcancem, aquilo que elas de outro modo não conseguiriam (ver, por exemplo, Gosden, 2005; Henare; Holbraad; Wastell, 2007; Knappett, 2005; Latour, 2005; Malafouris; Knappett, 2008; Miller, 2005; Tilley, 2004). Não obstante, no primeiro movimento teórico que toma as coisas para enfocá-las em sua qualidade de objeto (objectness), elas são retiradas dos fluxos que as trazem à vida.
[...]
A ideia de que objetos têm agência é, na melhor das hipóteses, uma figura de linguagem, imposta a nós (anglófonos, ao menos) pela estrutura de uma linguagem que exige de todo verbo de ação um sujeito nominal. Na pior, ela tem levado grandes mentes a se enganar de um modo que não gostaríamos de repetir. Com efeito, tomar a vida de coisas pela agência de objetos é realizar uma dupla redução: de coisas a objetos, e de vida a agência. A fonte dessa lógica redutivista é, acredito, o modelo hilemórfico”. (INGOLD pg 33- 34)
16 Por vezes me utilizo do termo “interação” para me referir a esse aspecto de relacional especialmente no que se
27
andinos para uma futura vila próxima ao porto de Buenos Aires, a aproximadamente 20 km de distância
(
LORANDI e BOIXADOS, 1988; SARASOLA, 2010
) em uma redução indígena denominada
Santa Cruz de los Quilmes. Hoje, o município de Quilmes é uma cidade industrial que faz parte
da Grand Buenos Aires e empresta o seu nome à cerveja mais popular da Argentina – Quilmes. O
sítio arqueológico aqui analisado ‘Ciudad Sagrada Quilmes’ – ou até então como era
denominada ‘Ruinas de los Quilmes’
17– localiza-se a oeste na província de Tucumán, em um
território montanhoso (pré-andino), chamado de vale de Yokavil (ou Valles Calchaquies ou Vale de Santa
Maria). Esta paisagem
geográfica e cultural
18é compartilhada pelas províncias argentinas de Salta, Tucumán
e
Catamarca (figura 1). Nela, encontra-se também a famosa estrada turística
“
Ruta 40” que corta
o país do Norte até o extremo meridional Patagônio pelos vales andinos. O
assim denominado
Pucará
de Quilmes (figura 2) é um dos exemplos das cidades fortalezas do período pré-colonial
da Argentina. Sua população se desenvolveu deste o século X, alcançando uma enorme
“complexidade cultural”
19, com manejo agrícola e hidráulico, relações de intercâmbio político
e econômico com a cultura incaica e sendo uma das principais frentes de resistência regional
perante colonizador espanhol. Todavia, ao serem derrotados militarmente, em 1666 (durante a
terceira
guerra calchaquí), foram compelidos a um êxodo forçado, os 1000 indivíduos restantes (segundo cronistas,
como D. Juan de Ceballos) foram instalados próximos a Buenos Aires (SOSA, 2007;
LORANDI e
BOIXADOS, 1988
).
Os primeiros estudos arqueológicos no NOA (noroeste argentino) tiveram como raiz
uma visão exploratória e descritiva. Desde as primeiras décadas do século XX, o impulso
científico foi pautado no reconhecimento dos assentamentos pré-coloniais e formulações de
características gerais, tais quais os formulados por Juan Ambrossetti (1897), por exemplo, que
analisa o conjunto arqueológico de Quilmes: as analogias etnográficas no período eram feitas
em tom exploratório baseado em costumes folclóricos, sem um controle epistemológicos o que
fica evidenciado em expressões como: ‘siguiendo la misma costumbre hoy usada’
(AMBROSSETTI, 1897, p. 9); ‘como las que todavía se usan en estos valles’
17 POUGET, F. M. C.; 'Aqui não é Ruínas Quilmes, é a Cidade Sagrada Quilmes' - Disputas Patrimoniais em torno
de um sítio arqueológico no noroeste argentino, 12/2012, Arqueologia Pública (UNICAMP), Vol.6, p.54-67, Campinas, SP, Brasil, 2012.
18Name, Leo. O conceito de paisagem na Geografia e sua relação com o conceito de
cultura. GeoTextos, Vol.6, n.2, dez. 2010, p. 163-186.
19O uso de aspas aqui é proposital, justamente para se questionar o pressuposto por muito tempo usado na
arqueologia do movimento entre sociedades simples para sociedades complexas. Bases de um princípio evolucionista nos próprios primórdios da fundação da arqueologia e antropologia enquanto disciplina científica.
28
(AMBROSSETTI, 1897, p. 11); ‘como las que todavía se usan entre los araucanos’
(AMBROSSETTI, 1897, p. 10).
A influência do folclorismo ensaístico também é observada em obras de Adam Quiroga,
em especial seu “Calchaqui” de 1897, que mescla as descrições arqueológicas com
interpretações históricas selvagens (sem o apoio de fontes ou sem suas referências) em uma
narrativa ensaística, característica da época especialmente para a publicação nos jornais voltado
a um público leigo. Um exemplo de passagem deste estilo pode ser verificado na sua descrição
sobre os Quilmes:
“Los quilmes, habitadores de la ciudad de su mismo nombre, fueron una raza emigrada de allende los Andes. Cuando la gran invasión del Cuzco, donde el Inca venía a la cabeza de trescientos mil hombres, si hemos creer a la tradición, sus flechas volaban por el aire, clavándose en el corazón de los pueblos que a su paso encontraban aquella marejada de guerreros. Los Quilmes, como las demás razas aborígenes batallaron hasta el último momento, sin poder contrarrestar, no tanto la fuerza del número, como el poder de la civilización cuzqueña que refluía en el arte de la guerra, y, convencidos los quilmes, que toda resistencia era imposible e infructuosa, se decidieron un día a dejar la tierra natal, antes que sufrir el jugo.” (QUIROGA,
1897)
20A narrativa no decorrer do livro “Calchaqui” continua enaltecendo a resistência quilmes
frente à dominação incaica, se contextualizarmos o ambiente intelectual da época, podemos
verificar um alinhamento da perspectiva de uma glória de resistência nativa frente a um grupo
exterior (uma história nacionalista arqueológica), em especial em relação às disputas de
“ficções-diretrizes” na formulação de uma nação (SHUMWAY, 2008). Ainda mais se levarmos
em consideração a carta escrita por Adán Quiroga, para o General Bartolomé Mitre – um dos
principais articuladores de uma história “oficial” argentina. Junto à carta é enviada uma cópia
do seu livro, lembrando que nesse momento Quiroga fazia parte da elite política e intelectual
do NOA.
20Os Quilmes, habitantes da cidade de mesmo nome, foram uma raça emigrada do além dos Andes. Na época da grande invasão de Cuzco, onde o rei Inca vinha à frente de trezentos mil homens, se nós acreditamos na tradição contada, suas flechas voavam pelo ar, cravando no coração dos povos que em seu caminho chocavam com esta onda de guerreiros. Os Quilmes, como as outras raças indígenas, lutaram até o último momento, mas, incapazes de contrariar, não somente pela força dos números, como também pelo poder da civilização de Cuzco, que refluía na arte da guerra, e convencidos de que a resistência era impossível e infrutífera, decidiram um dia para deixar a terra natal, em vez de sofrer o jugo.
29
Tucumán, 21 deciembre de 1897
Teniente General Bartolomé Mitre
Ilustre General:
Me permito remitirle mi “calchaquí”, o sea la tradición histórica de nuestro Norte.
Se después de revisada la obra su opinión autorizada me fuese favorable continuaría
publicando otro volumen sobre la arqueología del Norte que tengo en preparación
Con el respecto de siempre, saludo al distinguido estadista.
Adán Quiroga
(Archivo del Museo Mitre, apud Rodolfo A. Raffino. 1992.)
No entanto, apesar dos vieses ideológicos (que veremos mais profundamente no
Capítulo 1.B), os aspectos folcloristas são os primeiros passos para uma abordagem
antropológica de consideração da voz nativa. Porém, os impulsos de modernização e
institucionalização da Ciência Arqueológica e seus enquadramentos, enquanto disciplina
científica (STENGER, 2002), levam os estudos flocrorísticos a um segundo plano, o que gera
processos de invisibilidades indígenas e um discurso sobre “verdade” científica, como bem
aponta Sandra Tolosa (2014), na sua leitura sobre Juan Ambrosetti
21, já em uma leitura reflexiva
sobre os efeitos na comunidade local:
“En términos epistémicos, esto produjo una ruptura en el sistema de relaciones vitales de los habitantes nativos, universo del que los ancestros formaban parte activa. En contraste, la explicación científica se erigió como verdad única sobre el pasado, invisibilizando los conocimientos locales, que de allí en más fueron caracterizados como supersticiones o leyendas” 22 (AMBROSETTI, 2014, p. 10)
21 Ambrosetti, Juan B. Supersticiones y leyendas: región misionera; valles calchaquíes; las pampas, Buenos Aires,
La Cultura Argentina, 1917; “Las supersticiones de la región misionera; materiales para un folklore argentino, región misionera o del Noroeste”, en Revista de Filosofía, año 3, n°4. Buenos Aires: 11-12. Quiroga, Adán. La cruz en América, Buenos Aires, Castañeda, 1977.
22 “Em termos epistêmicos, isso produziu uma ruptura No sistema de relações vitais nos habitantes nativos, no
universo no qual os ancestrais formavam uma parte ativa. Em contraste, a explicação cientifica se ergueu como verdade única sobre o passado, invizibilizando os conhecimentos locais, que dali adiante foram caracterizados como superstições ou lendas” (trad).
30
Voltando ao nosso contexto arqueológico, se considerarmos uma perspectiva cultural
de longa duração ou “áreas culturais”, segundo a terminação clássica arqueológica (RENFREW
e
BAHN, 1991),
podemos traçar a parcialidade do sítio arqueológico do Pukara
23de Quilmes
como parte de um complexo regional que ocupou as encostas da cordilheira calchaquíes e os
vales adjacentes como Cajon e Yocavil – os “Desarrollos Regionales” como Santa Maria e
Bélen (fig 5).
Figura 5: Mapa do noroeste argentino com as áreas tradicionalmente designadas como 'desarrollos regionales' - Belén e Santa Maria. (apud MARCHEGIANI et al. 2009)
Antes de partimos para uma visão crítica destas formulações arqueológicas
disciplinares, creio que seja importante retomarmos a argumentação arqueológica e seu
enquadramento etnográfico.
31
O mosaico étnico nos valles calchaquíes tinha como base comum a língua kakan,
24as
diversas parcialidades foram incorporadas pelo império incaico até a primeira metade do século
XV – diversas estruturas características a esse momento ainda podem ser encontrados em
diversas localidades da região – concomitantemente a língua Quechua também é introduzida
no vale junto com os processos de assentamento conhecido como mimaqkuna, que introduz
uma elite incaica e técnicas de cultivo (QUIROGA, 1897; RAFFINO, 1993).
Dentro do contexto administrativo incaico, a região da “ciudad sagrada” (já confluindo
com as nova nomenclatura étnico-arqueológica alocada pela comunidade local) se encontra
dentro do Collasuyu, mais especificamente os vestígios de estruturas incaicas se manifestam na
paisagem em postos administrativos (Tambos), junto à rede de estradas que conectava diversas
parcialidades vinculadas ao império.
25No entanto, o período formativo da “Ciudad Sagrada de los Quilmes” é associado às
culturas regionais anteriores ao império incaico – os desarollos regionales – como podemos
observar na tabela abaixo:
24 “Até o seculo XV o vale esteve habitado por povos nativos que pertenciam ao grande tronco étnico Diaguita da língua kakana (esta de maior dispersão pelo noroeste argentino), divididos em uma multiplicidade de chefaturas de distintas amplitudes territoriais e demográficas” (LORANDI, 1997, p. 234).
25Terence N. D’Altroy et al., “Inka Rule in the Northern Calchaquí Valley, Argentina”, Journal of Field
32
Figura 6: Tabela de horizontes arqueológicos na Argentina (NOA); Riveiro (et al., 2007), note-se a sequencia de denomincações das áreas culturais associado às estratigrafias arqueológicas.
Um dos estilos regionais marcadores de horizonte arqueológico é aquele encontrado na
cerâmica como, por exemplo, Belém-Quilmes, datado entre o início do século XIV e meados
do século XVI. Essa variação de estilo serve como marcador para áreas de influências regionais,
por isso, tal horizonte arqueológico além de ser denominado ‘Periodo Tardio’
26também é
chamado como ‘Desarrollos Regionales’. Muitos outros estilos foram produzidos ao longo do
período “Tardio”, alguns deles chegando a perdurar até mesmo durante o período Incaico e
Hispano-Indígena. Assim, seguindo o mapa do desenvolvimento regional arqueológico,
podemos verificar que área de Quilmes se encontra dentro da denominação de Santa Maria.
Outros estilos cerâmicos encontrados na região são os Ordinario Marleado, Santa María
Bicolor, Belén-Quilmes, Inca Provincial, Ordinario Gris e Ordinario Rojo Liso.
Na tabela seguinte, podemos encontrar as variações estilísticas regionais das cerâmicas
ao longo das séries de horizontes arqueológicos, que contextualizam a nossa paisagem
26 Nem sempre as classificações do horizonte arqueológico do NOA seguem a padronização nos estudos
arqueológicos andinos dos países vizinhos, o Perido Tardío ou Desarrollos Regionales, (séculos X – XV), são equivalentes ao Intermedio Tardio nos escritos arqueológicos do Peru, Chile e Bolívia.
33
arqueológica, relacionada ao valles calchaquíes e ao Pukára de Quilmes. Apesar de faltar
especificamente o sítio arqueológico de Quilmes nesta tabela, podemos inferir a sua
contextualização arqueológica, junto aos dados recentes levantados por Palamarczuk e Greco
(2012):
34
35
Figura 7: Tabela de variações estilísticas associadas ao 'Desarrollos regionales', de Palamarczuk e Greco (2012).
Assim, sobre esses horizontes arqueológicos (e a profusão de dados estilísticos) como
mostrado na tabela acima é necessário fazer a seguinte consideração historiográfica: as
interpretações arqueológicas em torno da ideia de complexidade social tiveram grandes
influências da antropologia neoevolutiva, desde a década de 1960 na Argentina (e outras partes
do mundo). Em especial, as culturas arqueológicas associadas ao ‘Desarrollos Regionais’ do
NOA, como vimos anteriormente, observaram as classificações desta corrente teórica, que foi
baseada em etapas evolutivas gerais (GNECCO & Langebaek 2006.NIELSEN, 1997; 2004) e
generalizações etnográficas que desconsideravam processos sociais dinâmicos, especialmente
por focarem no binômio complexo/simples.
De forma geral, a principal característica associada a esse período foi o funcionamento
de diversos centros populacionais na região. Tais conglomerados possuíam estruturas
defensivas e se localizavam nos topos de morro, onde se exercia um controle territorial. Os,
assim, chamados pukaras tinham como estrutura social uma intricada rede de alianças regionais
e aspectos políticos relacionados à centralização de poder; em especial, estas relações eram
desenvolvidas em torno dos aspectos comerciais das caravanas de lhamas que percorriam todo
os andes meridionais (NIELSEN, 2004). Várias técnicas agrícolas e estruturas hidráulicas
foram desenvolvidas nesse período, tendo como principais cultivos o milho, a abóbora, batatas,
quinoa, amendoim e outras variedades andinas. Especificamente, na região, há a algarroba,
cujos bosques podem ter sido alvo de disputa entre as culturas locais (TARRAGÓ, 2000).
Nos estudos arqueológicos associados à New Archaeology podemos verificar como foi
dito os pressupostos teóricos nas classificações sobre hierarquização política. O modelo de
chefaturas, cacicados, senhorios associados ao binômio simples/complexo, da organização
social, é um dos programas teóricos mais utilizados nos estudos arqueológicos (CARNEIRO,
1981). Especialmente, no trato das mudanças sociais e sociedades hierarquizadas que integram
um grande número de pessoas. Assim, o período de “Desarrollos Regionais” foram associados
com sociedades do tipo de chefaturas, fundamentadas arqueologicamente nas relações
hierárquicas, nos assentamentos (classificadas e associadas segundo seu tamanho e disposição
espacial) e tendo como premissa os registros funerários como indicadores de desigualdade
36
social. Além de referências etnohistóricas, como os relatos coloniais sobre os “curacas”, que
exerciam uma autoridade política e religiosa sobre várias comunidades.
Tal perspectiva tem sido questionada na literatura andina arqueológica desenvolvida nos
últimos anos (BENGTSSON et al. 2001; SALAZAR, 2007). A visão de relações corporativas
nas sociedades andinas faz uma leitura crítica do modelo de chefaturas, especialmente, ao
constatar que tal abordagem se baseava na formulação etnohistórica polinésia, sem uma leitura
de outras formulações etnográficas, tal qual ocorreu na África, Ásia e nas Américas, onde é
possível verificar o registro de sociedades segmentadas, que permitiam integrar uma massa
populacional mediante instituições complexas, porém, descentralizadas (SALAZAR, 2007). A
formulação ocidentalizada das estruturas de liderança encontrada nos Andes faz clara analogia
feudal à imagem dos “curacas” ou lideranças étnicas registradas nos documentos coloniais; é
similar aos senhorios medievais europeus e, por isso, se faz a alusão à formação de andina de
“senhorios” (SALAZAR, 2007).
A literatura etnohistórica andina
27, porém, indica que essas sociedades tinham uma
marcação institucional que regulavam o exercício do poder político e restringiam a acumulação
econômica individual, tal complexo social pode ser formulado como “comunal”, segundo o
aporte de McGuire (1997), mas, creio que, para além desse aporte e para os propósitos desse
trabalho, é importante ter em consideração a ideia de “sociedade” como uma maneira de
organizar experiências (LEACH, 1961, p. 304-05 apud STRATHERN 2014, p. 232). As bases
sociais de organização da experiência de “estar no mundo” podem ser traçadas na formulação
do ayllu, que administravam as áreas de cultivo e pastoreio comunitariamente (NIELSEN,
2006), tais grupos de pessoas que se concebiam como parentes por descenderem de uma
entidade mítica ou real – se seguimos o aporte antropológico desde um ponto de equidade de
estatutos interpretativos do mundo (STRATHERN, 2014).
Um outro ponto a se considerar, que como veremos tem um sensível impacto nas
estruturas de formulação étnica junto ao registro arqueológico (Capítulo 2.B e Capítulo 3), são
27Estela Noli and María M. Arana, “Los Pichao: Aportes desde la ethnohistoria,” in Investigations at Pichao:
Introduction to Studies in the Santa María Valley, North-Western Argentina, Ed. Bengtsson, Cornell, Johansson & Sjödin (British archaeological reports. International series, 978), Oxford, J. and E. Hedges, 2001.
37
as questões relativas às áreas culturais arqueológicas assim denominadas “calchaquis”
28, tal
percepção da dinâmica de formulações acadêmicas é assim sinteticamente elaborada por
Tolosa:
“La denominación genérica “calchaquí”, tanto para la región como para las diferentes parcialidades indígenas que habitaban allí, surgió del apellido del líder Juan Calchaquí, quien se enfrentó con los españoles en su intento de ocupación, durante las llamadas “Guerras Calchaquíes”. El uso fue aplicado luego a las producciones culturales locales por estudiosos de la época como, entre otros, Adán Quiroga, Samuel Lafone Quevedo y Juan B. Ambrosetti, quien no sólo estudió el problema de su origen y vinculaciones con otros pueblos americanos, sino que utilizó la denominación para definir la arqueología de la zona”. (TOLOSA, 2014, p. 12)
As definições arqueológicas e delimitações culturais, assim elaboradas, são
reproduzidas ao longo do tempo por acadêmicos, instituições nacionais e pelos próprios grupos
nativos da região. E, dessa maneira, as nomenclaturas são inseridas em uma matriz cultural
étnica, que produzem sentidos de pertencimento cultural além de componentes ativação de
memórias (efeito mnemônico). O caráter etnográfico interessante deste processo é o tom que é
dado às coisas (Ingold, 2012), mais especificamente a “coisa” arqueológica, se considerarmos
o sítio (ciudad sagrada) e seus nódulos discursivos que são ativados – ativação dada não apenas
pelo grupo étnico, mas também pelos stakeholders (grupos de interesses) diversos
29.
29Como, por exemplo, a Secretaria de Turismo de Tucumán, mídia impressa, universidades, agências de turismo,
38
Contexto etnográfico e dinâmicas patrimoniais frente à província de Tucumán: visões
do passado.
Figura 8: Conjunto de placas, onde se encontram os embates discursivos entre o legado ancestral da CIQ e os movimentos colonialistas do Estado Argentino. Fotos: Frederic Pouget, 2012.
39
As placas acima se encontram junto ao sítio arqueológico e refletem dois momentos
históricos diferentes e bastante recentes. Os dois momentos estão inclusive demarcados pelo
contexto estilístico dos conjuntos de placas (as azuis e brancas). As placas azuis foram
colocadas durante o processo de privatização do sítio, justamente quando foi construído o hotel
com piscina, que serviria também como confeitaria e descanso para os turistas, no início dos
anos 1990. Vale lembrar que o sítio se encontra ao longo da Ruta 40, estrada turística que corta
os vales andinos de norte ao sul do país. É interessante fazer o contra-ponto com as placas
brancas que possuem alguns aspectos simbólicos da comunidade (como figuras estilizadas de
emas e cobras) e foram implantadas durante o processo de ocupação e gestão turística pela CIQ,
em 2007. Apesar de os dois conjuntos tratarem da resistência Quilmes, é a placa branca (feita
pela comunidade) que dá ênfase no aspecto do êxodo forçado sofrido pelos Quilmes, e este
conjunto visibiliza a comunidade, ao contrário do que fazem as placas azuis. Durante o
acompanhamento dos guias turísticos, era possível perceber o mesmo contraste sugerido pelos
conjuntos de placas, ou seja, era comum ouvir (ou se fazer notar) as articulações dos eventos
contemporâneos – exploração cultural trazida pela privatização, e a ocupação territorial pela
comunidade – com a história “oficial” do lugar: as afirmações de áreas arqueológicas, as guerras
Calchaquís, o êxodo da comunidade, etc.
Em janeiro de 2012, tive a oportunidade de acompanhar uma das reuniões políticas da CIQ
com os representantes da secretaria de turismos da província de Tucumán, arqueólogos da
Universidade Nacional de Tucumán, que trabalhavam a convite da comunidade no mapeamento das
ruínas. Essa reunião teve como pauta a apresentação da possibilidade de instalação de um futuro
museu junto às ruínas arqueológicas, o que gerou algumas divergências, não só entre a comunidade,
mas também na própria concepção do projeto de museu, que articulava uma visão de passado.
Comecemos por esse ponto: sobre as visões de passado que articulam percepções patrimoniais e
agencialidade da “cultura material”.
40
Figura 9: Imagem ilustrativa dos momentos etnográficos junto a CIQ. Momentos de diálogos entre agentes governamentais e acadêmicos. Fotos: Frederic Pouget, 2012/2013