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Leituras de poemas num curso de letramento para adultos : olhares dos educandos, olhares da educadora

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Academic year: 2021

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JÚLIA SANT'ANA SCAVASSA

LEITURAS DE POEMAS NUM CURSO DE

LETRAMENTO PARA ADULTOS: OLHARES DOS

EDUCANDOS, OLHARES DA EDUCADORA

Dissertação apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Lingüística Aplicada.

Orientadora: Profa. Dra. Sylvia Bueno Terzi.

CAMPINAS

2009

(2)

F

ICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA

B

IBLIOTECA DO

IEL

-

U

NICAMP

Scavassa, Júlia Sant’Ana.

Leituras de poemas num curso de letramento para adultos: olhares dos educandos, olhares da educadora / Júlia Sant’Ana Scavassa. -- Campinas, SP : [s.n.], 2009.

Orientador : Sylvia Bueno Terzi.

Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem.

1. Letramento. 2. Pesquisa - Ação. 3. Alfabetização de adultos. 4. Literatura – Estudo e ensino. I. Terzi, Sylvia Bueno. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Título.

tjj/iel Título em inglês: Reading of poems in a literacy course for adults: views of learners, views of tutor.

Palavras-chaves em inglês (Keywords): Literacy; Action research; Adult education; Teaching of literature.

Área de concentração: Língua Materna. Titulação: Mestre em Lingüística Aplicada.

Banca examinadora: Profa. Dra. Sylvia Bueno Terzi (orientadora), Profa. Dra. Inês Signorini, Profa. Dra. Ana Lúcia Guedes Pinto, Profa. Dra. Maria Angélica Lauretti Carneiro (suplente), Profa. Dra. Terezinha de Jesus Machado Maher (suplente).

Data da defesa: 16/02/2009.

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Dedico este trabalho a meu avô, Miguel Scavassa, que não sabia ler e escrever,

e me contou suas histórias, e me deu abraços tão apertados. A meus pais, que abriram este caminho para mim com tanta dedicação. Ao Felipe, à Maria Clara

e ao João Miguel, amor que me nutre a vida toda. A tanta gente esquecida por esse mundo

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“É igual você prantá uma pranta, você perto de uma horta, aí você senta lá, fica percebendo: da terra vem isso, da terra vem isso, vem aquilo, vem mais aquilo... Depois você vai escrevê, vai sair um poema do que você tá vendo a terra, lá... é. (...) Ela (Cora Coralina) foi oiando a terra e tirando da terra e ponhando no livro.” (Marta)

A poesia está nas ruas, assim como nas coisas. (...) Na parede das cozinhas. Nos anéis da seiva, no tenteio dos filhotes, nas asas que latejam. Nos resíduos dos amantes, misturados com as estrelas. A poesia está nos restos dos dias. Nos silêncios. (...) a poesia está em tudo. No entanto, um paradoxo: a poesia é raríssima. Dificílima. Poucas, raras vezes a poesia emerge da natureza das palavras e transforma-se em poema. (...) A poesia não é um estar-em-nuvens, sem tocar a terra e o agora, não é isenta dos sinais da vida (...). Severino Antônio

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A

GRADECIMENTOS

(M

UITOS

...)

À FAPESP, pelo auxílio financeiro.

Aos educandos que participaram da pesquisa e me ensinaram tanto. Muita gratidão. À Profa. Dra. Sylvia Terzi, por ter sempre se preocupado sobretudo com a educação de adultos não alfabetizados de nosso país e com a minha formação enquanto educadora ou alguém que possa trazer contribuições para o trabalho de outros educadores.

Ao pessoal da empresa e da chácara: Eliane, Afonsinho, Jorge, Lígia, Sérgio e Ivanete, que possibilitaram a realização dos encontros e sempre nos apoiaram.

Aos trabalhadores do Programa Alfabetização Solidária da UNICAMP: Jane, Maíra, Carina, Sílvia, Renata, e quem não está mais por aqui: Daniela, Cloris, Tiago e Maria Angélica, memórias marcantes de um grande empenho no letramento de adultos.

Às professoras Inês Signorini e Márcia Abreu, pelas considerações construtivas no exame de qualificação, que reorientaram o trabalho. Algumas verdades libertadoras.

À professora Raquel Fiad, pelo carinho e pela compreensão.

Aos funcionários do IEL, pessoal da biblioteca, da secretaria, da limpeza e Dona Sebastiana, pela gentileza.

Às professoras Jocimar, Missilei, Luzia e Niraildes, pela solicitude na primeira fase do projeto de pesquisa que foi necessário interromper.

À vovó Laura e vovô Rubens, vovó Ana e vovô Manoel. À minha cunhada Joana Luíza, carinho e ajuda nas horas difíceis. À minha sogra, Ana Maria, que transcreveu inúmeras páginas infelizmente não utilizadas na pesquisa, junto da prima Catiana. Obrigada a todos os meus familiares, que se uniram para que eu conseguisse escrever a dissertação. À minha mãe, pela ajuda com as traduções e apresentação.

À D. Zenilde, D. Onilda, Zizélia e todas as “titias” e “vovós” que cuidaram de meus filhos, pelo amor e cuidado que tiveram por eles. À querida Erika e seu clown Genuína, que brincavam com Maria Clara pelo IEL enquanto eu assistia às aulas.

À D. Laura, Olívia, Luciana e Claudinha, pela amizade. À amiga Daniele pelo encorajamento. À D. Célia e D. Eliana, pela acolhida amorosa.

Aos meus pais e irmão, por acreditarem em mim sempre.

Ao Felipe, por tantas coisas que nem tenho como dizer. Obrigada, de coração. À Maria Clara, ternura e encanto de nossas almas, e ao João Miguel, que trouxe mais amor ainda.

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R

ESUMO

Este trabalho investiga os desencontros entre as interpretações de adultos não escolarizados e as de sua professora em aulas de leitura de poemas num curso de letramento oferecido entre 2006 e 2008. Sendo a professora também a pesquisadora, trata-se de uma pesquisa-ação que utiliza alguns instrumentos da etnografia escolar (Ericksson, 1984, 1986) realizada junto a produtores rurais não alfabetizados de um município próximo de Campinas. A prática pedagógica e a análise dos dados se fundamentaram nas teorias propostas pelos Novos Estudos do Letramento (Street, 1984, 1993, 2003; Gee, 1996/2001), além das teorias do letramento situado (Barton, 1994; Barton e Hamilton, 1998) e do letramento crítico (Fehring e Green, 2001). Os dados foram coletados por meio de gravações em áudio das aulas, entrevista aberta e anotações da pesquisadora.

A partir da observação dos momentos das aulas em que as interpretações entre professora e alunos divergiam, buscou-se mapear os prováveis fatores que os ocasionaram, assim como as mudanças que advieram destas situações na aprendizagem dos educandos e na prática da educadora. Notou-se, então, que as diferentes visões acerca dos poemas podiam ser explicadas pelas diferenças entre as histórias de letramento apresentadas pelos alunos e pela professora, alguns aspectos de suas concepções de poesia e de suas perspectivas sócio-culturais, bem como o conhecimento insuficiente da educadora a respeito do letramento dos educandos no início do trabalho, ou as associações mentais que embasavam as interpretações dos participantes.

Houve, então, um processo em que os alunos foram se adaptando à nova prática de letramento que conheceram, enquanto a professora também se adaptou às possibilidades interpretativas dos alunos. Dessa forma, ao final do curso, os educandos já percebiam que algumas interpretações não eram justificadas pelo texto, e vivenciavam experiências significativas de leitura poética; enquanto a educadora havia percebido a necessidade de uma adequação temática dos textos selecionados para que tal experiência fosse possível e já não exigia interpretações ideais, mas aceitava as visões dos alunos, buscando mostrar os limites estabelecidos pelas palavras presentes no poema. A análise dos dados também foi subsidiada pela teoria transacional da leitura e da escrita (Rosenblatt, 1938/1995, 1978/1994 e 1994). Palavras-chaves: Letramento; pesquisa-ação; alfabetização de adultos; ensino de literatura.

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A

BSTRACT

This paper investigates the discrepancies that occurred between the interpretations of non-educated adult students and those of their teacher in poetry reading classes during a literacy course taught from 2006 through 2008. As the teacher was also the researcher, this is an action research project developed among illiterate agricultural workers in a town near Campinas. Pedagogical practice and analyses were based on the theoretical foundations suggested by the New Studies on Literacy (Street, 1984, 1993, 2003; Gee, 1996/2001) as well as the situated literacytheories (Barton, 1994; Barton e Hamilton, 1998) and critical literacy (Fehring e Green, 2001). Data were collected by means of audio recording of classes, open interviews and notes taken by the researcher.

By observing the incidents in class when the interpretations of teacher and students diverged, this paper seeks to outline the probable factors that provoked the discrepancies as well as the modifications that resulted from these situations in the students’ learning process and in the teacher’s practice. Accordingly, it was observed that different views of the poems could be explained by differences in literacy backgrounds, the notions about poetry and socio-cultural perspectives introduced by the students and the teacher, as well as the teacher’s insufficient familiarity with the students’ literacy backgrounds at the outset of the project, or the mental associations that formed the basis of the participants’ interpretations.

During this process, therefore, the students gradually adapted themselves to the new literacy practices with which they were becoming familiar, while the teacher also became accustomed to the interpretative capabilities of the students. Thus, towards the end of the course, the students began to perceive that some interpretations were not supported by the text, and they had meaningful experiences of reading poetry; while at the same time the teacher realized the need to adapt the themes of the selected texts to enable such experiences, and no longer expected “ideal” interpretations but accepted the students’ own views seeking to illustrate the limitations set by the words in the poem. The analyses were also based on the transactional theory of reading and writing (Rosenblatt, 1938/1995, 1978/1994 e 1994).

(9)

S

UMÁRIO

INTRODUÇÃO...10

CAPÍTULO I:METODOLOGIA ...12

1. Considerações sobre o percurso que levou à geração dos objetivos da pesquisa ... 12

2. A construção do objetivo de pesquisa ... 17

3. A natureza da pesquisa e a geração dos dados ... 21

4. Os encontros e os participantes... 25

5. O conhecimento de poesia dos educandos ... 28

6. A escolha dos poemas ... 33

CAPÍTULO II:ANÁLISE DOS DADOS ...38

1. Construção das interpretações dos alunos baseada prioritariamente em suas próprias experiências pessoais ... 39

2. Construção das interpretações a partir de diferentes perspectivas sócio-culturais e visões de mundo ... 48

3. Construção das interpretações a partir de concepções de poema divergentes ... 53

4. Associações intertextuais a partir de repertórios diferentes ... 57

5. Construção das interpretações embasada em histórias de letramento diversas ... 58

6. Compreensão acerca das interpretações dos alunos baseada num conhecimento insuficiente do seu letramento ... 63

CAPÍTULO III:CONSIDERAÇÕES FINAIS ...69

REFERÊNCIAS ...79

ANEXOS Poemas apresentados aos alunos antes de se iniciar a coleta dos dados...83

Poemas apresentados aos alunos em aulas gravadas em áudio ...85

Poemas que fizeram parte do livro produzido pelos alunos ... 88

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I

NTRODUÇÃO

Este trabalho aborda o processo de aproximação de adultos alfabetizandos de textos literários escritos conduzido por mim, professora e pesquisadora em estágio inicial de minha formação. O interesse em descobrir como se dá a recepção de alguns poemas por estas pessoas levou à necessidade de observar concomitantemente meu processo de construção de uma práxis específica para a leitura de poemas (constantemente reelaborada, de acordo com as reações apresentadas pelos alunos e reflexões sobre meu posicionamento nas aulas), dado que ambas as experiências estão imbricadas: os alunos amadurecem enquanto a professora-pesquisadora também amadurece e há uma influência mútua exercida por todos os atores.

Assim, ainda que meu foco inicial recaísse sobre os processos vivenciados pelos alunos enquanto se introduzem na cultura letrada – ou talvez devêssemos dizer: enquanto buscam uma inserção mais participativa nesta, pois já não existe algo como uma marginalidade completa ao mundo letrado – meu olhar de alguém que se colocava tanto no papel de observadora (pesquisadora) como de agente (professora) e, portanto, participante, influenciava de forma tão intensa tudo o que sucedia com os alunos que não poderia prescindir de uma análise que se misturasse àquela inicialmente planejada.

Todo o trabalho, portanto, teórico e prático – instâncias estas consideradas como “elementos diferentes (que) são inseparáveis constitutivos do todo”1 – é marcado pela

complexidade: diversos fios de inúmeras cores e texturas teceram juntos uma só peça. Peça que é o produto do trabalho realizado ao longo de todos os encontros com os alunos, incluindo os diversos aprendizados que lhes subsidiaram. Fios das concepções de educação, da relação aluno-professor, de poesia, do fazer pesquisa; de princípios teóricos acerca do letramento e da literatura; da relação construída entre os participantes; da afetividade; dos sonhos, expectativas, incoerências e frustrações de cada uma destas pessoas, entre tantos outros que nem sempre nos saltam aos olhos, mas que, se extraídos desta peça, poderiam descosturá-la por completo.

A urdidura do trabalho pedagógico realizado pela professora junto dos alunos e a trama da reflexão teórica e da busca por uma maneira de narrar e analisar o vivido sob a forma de dissertação acadêmica realizadas pela pesquisadora.

O que faço aqui, portanto, é descrever como essa peça foi tecida e trazer considerações

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sobre o trabalho das várias mãos que a teceram, como quem pretende fotografar em palavras um objeto e, assim, usa os termos que conhece, evoca as imagens que naquele momento lhe ocorrem e os gestos particulares que pode fazer, num tempo e espaço específicos, sabendo que não poderá trazer o objeto em si para as pessoas a quem fala, mas apenas notícias de sua existência e realidade. Assim, sem a ilusão de ser possível fornecer aos leitores uma fotografia perfeita ou uma descrição neutra e objetiva, convido-os a compartilharem, da forma possível, da experiência que vivenciei enquanto realizava esse trabalho de tecelã aprendiz.

A dissertação está organizada em três capítulos. O primeiro é destinado à apresentação do percurso prático e teórico que vivenciei desde minha graduação, e que fundamentou o trabalho analisado nesta dissertação, bem como alguns esclarecimentos a respeito dos objetivos de pesquisa e o interesse no tema focalizado. Há ainda uma apresentação dos participantes e das práticas de leitura de poemas que conheciam, e alguns comentários sobre os poemas selecionados para os encontros nos quais os dados foram coletados.

O segundo capítulo é a análise dos dados propriamente dita, em que são discutidos os fatores que provavelmente ocasionaram os momentos de desencontros entre as minhas interpretações e as dos alunos, buscando explicitar tanto as minhas reações como as deles nestas ocasiões e os seus efeitos no processo de ensino e aprendizagem vivido por todos nós, participantes da pesquisa. Os conceitos teóricos que embasaram a análise serão acionados quando se fizerem necessários ao longo da discussão.

(12)

C

APÍTULO

I

M

ETODOLOGIA

1. Considerações sobre o percurso que levou à geração dos objetivos da pesquisa

Tanto o trabalho pedagógico realizado na comunidade pesquisada como a convicção de que os textos poéticos poderiam ter um papel muito importante no processo de letramento de adultos e o conseqüente interesse em investigar a recepção de poemas por estas pessoas se originaram da minha experiência prévia como alfabetizadora e membro da equipe da UNICAMP que coordenava o Programa Alfabetização Solidária (doravante AlfaSol)2 em Alagoas e posteriormente nos arredores de Campinas. Portanto, julgo necessário apresentar um breve panorama do AlfaSol e de minhas experiências com o letramento de adultos para que fique claro para o leitor o percurso que levou à geração dos objetivos da pesquisa.

Durante minha graduação, tive a oportunidade de assumir funções diversas no AlfaSol, desde contribuir com a coleta e organização de textos, como me responsabilizar por algumas das aulas do curso de formação, especialmente aquelas relacionadas a poemas, ou participar enquanto alfabetizadora (por um ano e meio) ou membro da equipe local de coordenação, na ocasião em que tivemos turmas funcionando também em Campinas. Ao longo desse período, também pude realizar uma pesquisa de iniciação científica (durante dois anos e meio) explorando as concepções de escrita dos alunos de Alagoas, seus mitos de letramento e suas expectativas, necessidades e sonhos em relação à escrita.

A idéia de trabalhar poemas com adultos alfabetizandos surgiu, então, nesse período, quando principiou meu envolvimento com o trabalho de formação de alfabetizadores realizado pelo AlfaSol. Na época, recebíamos semestralmente cerca de 25 pessoas vindas de dois pequenos municípios do interior de Alagoas que haviam sido previamente selecionadas3 para participar da formação no Instituto de Estudos da Linguagem com o objetivo de conduzirem o curso de letramento para turmas de jovens e adultos em seus bairros. Esta

2 Trato, neste trabalho, apenas das realizações do Programa Alfabetização Solidária na UNICAMP. O Programa é coordenado por inúmeras equipes em instituições de Ensino Superior do país que não serão discutidas nesta dissertação.

3 A seleção desses alfabetizadores era feita nos municípios em visita da coordenadora geral do AlfaSol por meio de testes escritos, entrevistas e análise de currículos, priorizando-se o domínio da escrita dos candidatos e, apesar das limitações do processo de seleção, o interesse em engajar-se num trabalho que buscasse melhoras sociais

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formação inicial intensiva era seguida da formação continuada, realizada nas próprias comunidades, em reuniões quinzenais com coordenadores locais e mensalmente com visitas de membros da equipe da UNICAMP.

É importante salientar que os alfabetizadores tinham escolarização precária e contato restrito com a escrita, dado que em suas comunidades eram expostos a poucas práticas letradas, as quais se intensificaram propositadamente com a ação do AlfaSol para ampliar as formas locais de uso da escrita. Desse modo, buscava-se letrar a comunidade, os alfabetizadores e os alfabetizandos concomitantemente. (Terzi, 2001a, 2001b, 2003.)4

Assim, os cursos de formação em processo de imersão tinham o objetivo de agir como um detonador do desenvolvimento do letramento do alfabetizador, envolvendo-o em diversas práticas letradas, e também de prepará-lo para futuramente letrar seus alunos. Ao longo dos vinte dias que passavam na Universidade, tinham aulas com docentes, graduandos e pós-graduandos do Instituto, em que eram abordadas noções de letramento e alfabetização, diversos tipos de textos e formas de trabalhá-los com os alfabetizandos (artigos de jornais e revistas, ofícios, cartas diversas, rótulos, folhetos e cartazes informativos, contos, crônicas, poemas etc.), sendo que os alfabetizadores eram também solicitados a fazer anotações, responder a questionários, escrever relatórios, redigir textos sobre suas impressões a respeito do curso, entre outras produções. Também participavam de atividades culturais típicas de um grande centro urbano (ida ao teatro, cinema, parques ecológicos etc.) e de uma universidade com conhecimento e tecnologia de ponta (visita ao centro de informática, audição de palestras...) e eram sempre estimulados a falarem sobre aspectos de sua cultura local ou mostrarem manifestações artísticas.

Nessa época, tive contato com os conceitos teóricos de letramento que guiaram o trabalho que ora exponho. Eis algumas concepções norteadoras: 1) o letramento de acordo com a visão de Street, ou seja, como “práticas sociais e concepções de leitura e escrita” (1984:1) definidas em cada sociedade de acordo com o tempo, o espaço, e os contextos em que se inserem; compreendido, portanto, enquanto um fenômeno plural (1984, 1993, 2003). 2) o letramento situado socialmente e integrado ao seu contexto, de acordo com a perspectiva

4 Por exemplo: inicialmente, a comunicação com a população se fazia apenas por meio do carro de som. Com o início das aulas, começaram a circular também cartazes, produzidos pelos alfabetizadores junto dos alunos. Depois, fez-se um jornal-mural na praça, em que eram expostas notícias de interesse da comunidade, as quais alimentavam conversas entre os alunos e professores e se expandiam para outros círculos de contato, e estimulavam a leitura de jornais diários regionais, que então passaram a estar presentes, ainda que em pequena quantidade nos municípios.

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ecológica de Barton, 1994; redefinido por Barton e Hamilton, 1998, como “um conjunto de práticas sociais que podem ser inferidas a partir de eventos que são mediados por textos escritos” (1998:7), observável em grupos e comunidades, na interação entre as pessoas. 3) a concepção de letramento elaborada por Terzi, que melhor corresponde à realidade dos participantes da pesquisa, pois considera o letramento como

“a relação que as pessoas estabelecem com a escrita (Terzi, 2003) seja ela uma relação de uso, de conhecimento, de valorização ou de crença sobre a escrita. A relação de conhecimento não envolve somente o conhecimento lingüístico; ela é muito mais ampla abrangendo a compreensão das práticas sócio-culturais que se realizam através dos textos escritos, a função dessas práticas, e conseqüentemente, a função dos textos e as formas lingüísticas apropriadas para tais atividades sociais dentro do contexto cultural em que se concretizam. Este conhecimento potencializa a valorização da apropriação das práticas de letramento, que, por sua vez, faz surgir a necessidade de maior conhecimento.” (Terzi e Scavassa, 2005.)5

Considero o último conceito mais apropriado para o nosso trabalho por não focalizar o

uso da escrita, abrangendo, assim, pessoas que não necessariamente a utilizam (lendo ou escrevendo de fato), mas se relacionam com ela de alguma forma. Podem valorizá-la mesmo sem conhecê-la muito bem, mas tendo noções do que as pessoas fazem com ela, ou acreditando em seus poderes (nem sempre reais), ou ainda sonhando com tudo o que poderiam ser e fazer caso fossem alfabetizadas (ver Terzi e Scavassa, 2005), atitudes muito mais comuns entre os não escolarizados do que têm levado em consideração as pesquisas acadêmicas atuais.

Outro conceito que norteou tanto as ações do AlfaSol como a minha prática junto aos participantes foi o de “modelo ideológico” de letramento, uma alternativa ao “modelo autônomo” (Street, 1984, 1993, 2003). Tais modelos foram elaborados para melhor descrever as perspectivas segundo as quais a escrita tem sido tratada por diversos teóricos, distinguindo as teorias tradicionais da alfabetização, ainda hoje predominantes nas políticas públicas

5 É o que indica o fato de que 58% de pessoas não alfabetizadas possuam Bíblias e livros religiosos em casa e

34% delas tenham também dicionários, além de livros didáticos (32%) e infantis (36%). Ou o fato de 15% destes adultos ajudarem seus filhos nas tarefas escolares, a despeito de suas dificuldades em relação ao código escrito e 31 % afirmar que lê o jornal de vez em quando. (Todos os dados foram retirados de Ribeiro, 2003, como resultados da pesquisa Retratos da leitura no Brasil.) Os fenômenos que estão por trás dessas respostas ainda não foram suficientemente investigados, mas certamente mostram que estas pessoas, embora não consigam usar efetivamente a escrita, estabelecem com ela uma relação que não podemos, enquanto pesquisadores brasileiros, ignorar, já que um fenômeno como este dificilmente ocorreria em países como Estados Unidos , Inglaterra e Austrália (em que as pesquisas sobre letramento foram e são abundantes), já

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educacionais e nos contextos escolares, dos “Novos Estudos do Letramento”, ou teorias a estes relacionadas.

Assim, o primeiro modelo, “autônomo”, defende que “o letramento, em si mesmo – autonomamente – terá efeitos em outras práticas sociais e cognitivas” (2003:77), isto é, sua aquisição por pessoas iletradas, ou um desenvolvimento ainda maior do letramento daquelas que já são letradas, terá como conseqüências o desenvolvimento das habilidades cognitivas, o progresso econômico e a cidadania (idem).

Trata-se, segundo o autor, de um discurso que “disfarça as suposições culturais e ideológicas sobre as quais se baseia” (Street, 2003:77), nunca apresentadas de forma explícita na literatura. Tais suposições colocam o letramento como uma mera habilidade técnica e neutra, uniforme e universal, cujas qualidades e poderes intrínsecos possibilitam a redenção cognitiva/intelectual, política, econômica e social dos indivíduos e das sociedades – afirmações que endossam os “mitos do letramento”6 (Graff, apud Street, 1984 e Gee, 1996), justificando a preocupação com a diminuição dos índices de analfabetismo, sempre correlacionados com índices gerais negativos de desenvolvimento.

Acredita-se, portanto, na existência de um letramento único, sempre em posse das classes dominantes, que deveria ser disseminado - principalmente pela instituição escolar - universalmente em sua comunidade lingüística. A não distribuição igualitária do letramento, como entendido aqui, é tida como responsável pelos problemas sociais dos países pobres que, afinal, não têm taxas tão altas de letramento quanto os países ricos, ou, se as têm, estas seriam baseadas em avaliações menos rigorosas que aquelas.

Já o modelo “ideológico” de letramento oferece uma visão culturalmente mais sensível das práticas de letramento, considerando suas variações de um contexto para outro e propondo também que tais práticas “são aspectos não apenas da ‘cultura’, mas também das estruturas de poder da sociedade” (1993:7). Assim, as visões teóricas que “compreendem o letramento em termos de práticas sociais concretas e o teorizam em termos de ideologias

6 A respeito dos mitos de letramento, ver Signorini, 1994:21: “ O 'mito do letramento' é constituído por um conjunto de crenças e representações de natureza ideológico-cultural inerentes ao processo de letramento do tipo valorizado na escola e reproduzidas pelas instituições de prestígio na sociedade burocrática (...) Trata-se, em última análiTrata-se, de uma fé nos poderes, ou 'capacidades' do letramento como tecnologia fundamentalmente neutra – conhecimento das letras – e disponível, tanto ao desejo individual de sucesso na esfera pública quanto ao desejo coletivo de progresso e desenvolvimento. Tais poderes são tidos como emancipatórios, na medida em que transformam o sujeito – cognitivo e social – através da revelação da(s) verdade(s) subjacente(s) à opacidade criptográfica do mundo: 'esclarecer o ignorante', no sentido da tradição racionalista das luzes, pelo acesso ao conhecimento verdadeiro, ou 'correto', notadamente o conhecimento de base técnica e científica.”

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pelas quais os diferentes letramentos são perpassados” (1984:95), em vez de o tomarem apenas como uma habilidade técnica e neutra, são reunidas pelo autor para a elaboração deste modelo teórico.

Critica-se, portanto, o apagamento das “visões particulares de mundo” nas quais as “versões específicas” sobre ele - bem como suas práticas e significados - estão fundamentadas (2003:78), isto é, critica-se a não explicitação dos aspectos ideológicos que subjazem à concepção, às práticas e à “distribuição” do letramento, e o conseqüente apagamento também das questões de poder que as permeiam. A própria denominação escolhida pelo autor demonstra a preocupação em focalizar esse caráter ideológico do letramento como uma qualidade intrínseca.

O objetivo do AlfaSol, veiculado nos cursos de formação, estava baseado no modelo ideológico do letramento, incluindo, portanto, a alfabetização – ensino da tecnologia da escrita – mas a transcendia, buscando o letramento dos alunos, ou seja, a ampliação e o aprofundamento da relação de cada um deles com a escrita, por meio da participação de práticas letradas reproduzidas em sala de aula, abrangendo textos diversos.

A intenção era que a escrita servisse a esses alunos como mais um instrumento que lhes permitiria a participação social, pois, como postulam Fehring e Green (2001), se a escrita não garante o poder ou a inclusão social, a falta da mesma determina a exclusão. Com Terzi, propunha-se que a alfabetização fosse “um componente do letramento crítico, fazendo parte do mesmo processo, e não o desenvolvimento de uma habilidade individual que o antecede e tem um fim em si mesma”(2003:239).

Desse modo, os educadores eram orientados a realizar o trabalho com a materialidade da escrita a partir da discussão de um texto selecionado previamente com o auxílio ou supervisão dos coordenadores locais ou gerais, e lido (quantas vezes fosse necessário) para os alunos no momento da aula.

Um educador levava para sua turma, por exemplo, um texto que tratava da transposição do Rio São Francisco, e após ler e conduzir uma discussão a seu respeito de acordo com perguntas orientadoras planejadas antes da aula (sem que houvesse, porém, a obrigação de seguir à risca este plano), escolhia junto dos alunos ou lhes propunha uma palavra ou frase, relacionada aos comentários feitos. Estas eram escritas na lousa e no caderno, tal como “rio”, ou “Essa transposição não vai ajudar a gente” e trabalhava-se a relação som-símbolo a partir desta palavra ou de alguma das palavras da frase, com exercícios

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específicos.

Ao longo da discussão do texto, buscava-se explicitar aos alunos como determinados tipos de textos eram lidos e estruturados, como era a linguagem usada em cada um deles, quais eram as suas funções, com o objetivo de eles mesmos pudessem identificar tais aspectos, o que ampliava seu conhecimento sobre o universo letrado. (Por exemplo, um artigo de jornal que contava uma notícia privilegiava uma linguagem mais objetiva, em que podiam aparecer declarações de outras pessoas para comprovar os fatos, sendo que tais falas apareceriam entre aspas para mostrar uma voz diferente daquela que trazia as informações, as mais precisas possíveis, a respeito do ocorrido etc.) Se os educandos apenas aprendessem a escrever palavras ou se usassem o texto apenas para dele retirar palavras a serem escritas, não poderíamos falar em letramento crítico, mas apenas em alfabetização.

Mantive essa estratégia de abordagem do texto e de trabalho com a tecnologia da escrita nas aulas para o grupo pesquisado, bem como os princípios teóricos norteadores do trabalho em sala de aula com os quais tive contato no AlfaSol.

2. A construção do objetivo de pesquisa

Vê-se, portanto, que o trabalho do AlfaSol, bem como de outros cursos fundamentados nas noções de letramento ideológico (Street 1984, 1993, 2003), letramento crítico (Green, 2001) ou na perspectiva ecológica do letramento (Barton, 1994, 1998), acredita que aos adultos alfabetizandos não cabe apenas aprender a decodificar as letras para depois ler textos completos, pois um currículo estruturado dessa maneira não contribuiria para a formação de um cidadão letrado, já que enfocaria apenas a aquisição da habilidade de ler e escrever. Tal habilidade, em si mesma, não traria qualquer mudança na condição de marginalização dessas pessoas, como aprendemos com Freire (1975), quando deixou claro que a escrita poderia ser tanto um instrumento de libertação como de opressão. Portanto, o trabalho do AlfaSol considerava que, apesar de o ensino do código, bem como a leitura de textos utilitários, serem imprescindíveis para a formação desses educandos, não bastavam para que se formassem novos leitores.

Assim, se o texto literário encoraja a participação dos alunos adultos nas aulas, incentivando-os a romperem seu silêncio, como mostra o trabalho de Borges da Silva (1999,

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2000), é também fundamental para a formação do leitor proficiente. Leitor, este, que sabe que os diversos tipos de textos têm diversas funções e por isso são lidos de formas diferentes, e que o conhecimento de mundo e as experiências prévias do leitor são essenciais para a construção de sentidos, o que ocasiona interpretações diversas feitas por leitores diferentes e em momentos diferentes, nos quais os objetivos da leitura também divergem. Como diz Rosenblatt (1994), o leitor experiente sabe posicionar-se diante de cada tipo de texto, percebendo que atitude este lhe “pede” ou escolhendo conscientemente uma perspectiva de leitura de acordo com seus interesses naquele instante.

Minhas experiências práticas com alfabetizandos e também as experiências de outros alfabetizadores, das quais tive notícia ao longo do percurso que descrevi, mostraram que a leitura de textos poéticos permite também que os saberes dos educandos sejam postos em ação – e portanto valorizados – no processo de interpretação e na perspectiva estética de leitura, que descreveremos adiante, o que torna o aprendizado da escrita menos penoso, dado que esta geralmente está presente em universos que lhes são estrangeiros e que os marginalizam.

Dessa forma, a leitura de textos poéticos possibilita ao aluno sentir-se menos distante do autor, que, embora seja capaz de manipular a escrita de forma tão complexa e às vezes nunca imaginada pelos leitores em formação, propõe imagens, sons, sensações etc. partilhadas pelos educandos durante o ato de leitura (escuta) do poema, que retomam suas próprias experiências e mobilizam seus conhecimentos, numa atividade de envolvimento maior com o texto. Tal envolvimento propicia a prazerosa experiência da leitura literária, dado que “mobiliza mais intensa e inteiramente a consciência do leitor, sem obrigá-lo a manter-se nas amarras do cotidiano”, fornecendo “um campo de plena liberdade para o leitor, o que não ocorre em outros textos” (1993:15).

Essa liberdade é explicada pelo fato de que “a atividade do leitor de literatura se exprime pela reconstrução, a partir da linguagem, de todo o universo simbólico que as palavras encerram e pela concretização desse universo com base nas vivências pessoais do sujeito” (1993:15), o que evidencia ser impossível separar a história, as experiências e as visões de mundo do leitor, da leitura que ele realiza de um poema. Esta impossibilidade de dissociação daquilo que o aluno é em relação ao que lê, bem como a necessidade de uma postura ativa diante do texto, dado que ele precisa construir sentidos para os signos lingüísticos, são fatores que acrescentam valor à leitura literária em grupos de alfabetizandos

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adultos.

A experiência literária torna-se, então, não só fecunda do ponto de vista da aquisição do código ou do desenvolvimento do letramento, mas prazerosa, tanto para alfabetizados como para alfabetizandos, não porque seja “um passatempo, um mecanismo de evasão do mundo real e do eu real”, ou porque seja “um meio de conseguir conhecimentos.” (Embora, pessoalmente, eu considere ambos os movimentos legítimos e prazerosos também.)

“No primeiro caso, a leitura não nos afeta dado que transcorre num espaço-tempo separado: no ócio ou no instante que precede o sono, ou no mundo da imaginação”, ou seja, espaços-tempos distanciados daqueles em que o sujeito comanda sua vida real, entendida modernamente como “o mundo sensato e diurno do trabalho e de toda a vida social. (...) No segundo caso, a leitura tampouco nos afeta dado que aquilo que sabemos se mantém exterior a nós (...), nada nos modificou. E isso não tem a ver com o conhecimento, senão pelo modo pelo qual o definimos. O conhecimento moderno – da ciência e da tecnologia – caracteriza-se justamente pela sua separação do sujeito cognoscente.” (Larrosa, 1996:134).

A meu ver, o prazer de vivenciar uma leitura literária se atribui, portanto, de forma mais profunda, à atividade formativa que, de acordo com Larrosa, encerra, “como algo que tem a ver com aquilo que nos faz ser o que somos” ou “como chegamos a ser o que somos” (idem). Ainda que nem sempre uma leitura chegue a afetar tão intensamente o leitor, quando isto ocorre, o contato entre ele e o texto, incluindo todas as sensações, os saberes, as memórias, as reflexões e os sentimentos mobilizados durante o ato de leitura, promovem um vôo além das fronteiras das definições do eu real/presente, da vida real e da compreensão do conhecimento moderno. Um vôo que, este sim, nos transforma, e o saber-se sendo transformado torna-se objeto de prazer, talvez pelo gesto de esperança que move no interior daquele que se sentiu a voar.

Assim, ao longo do meu trabalho como professora, procurei formas de facilitar esse "vôo" aos alunos, uma busca que eu acreditava ser importante não só para mim e para eles, mas também para todos aqueles que estivessem vivenciando os mesmos papéis que nós. Desse modo, as questões das quais esta pesquisa trata também estão relacionadas ao meu desejo de contribuir para o trabalho de professores de Educação de Jovens e Adultos (EJA), geralmente muito pouco amparados pelos estudos teóricos sobre leitura e ainda menos pelas pesquisas em teoria literária. Desamparo este, devido à falta de estudos sobre a leitura no ensino fundamental de EJA que sejam acessíveis aos educadores, que nem sempre são profissionais da área, e ainda que o fossem, talvez continuassem distantes dos estudos

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realizados, geralmente circunscritos ao ambiente universitário.

Assim, no início do trabalho, como professora e pesquisadora em papéis totalmente fundidos, tinha a convicção, de acordo com minhas experiências anteriores, de que poemas eram textos muito apropriados para um processo de inserção dos adultos na cultura letrada que respeitasse sua cultura original, sem imposições ou apagamentos de valores e modos de ver o mundo. Tinha também como indagação inicial uma questão muito abrangente: como se daria a recepção de textos poéticos por adultos em fase inicial do processo de letramento? Perguntava-me também: o que tais textos significariam para eles? O que moveriam no seu imaginário? Que relações eles construiriam com os poemas?

Deparando-me, então, com uma enorme quantidade de registros após o período de coleta de dados e a profunda complexidade dos mesmos, sendo que os objetivos da professora também se fundiam aos da pesquisadora e seria impossível abordá-los todos, decidi ater-me aos momentos em que a forma de interpretar dos alunos divergia da minha.

Sabe-se que as interpretações dos textos literários dificilmente são idênticas, pois sempre dialogam com um leitor particular, que, pondo em ação todos os seus saberes, experiências, valores e visões de mundo, estabelece uma relação particular com o texto, sendo que a leitura é sempre individual (Lajolo, 1982b). Nas palavras de Rosenblatt “um romance, poema ou peça teatral permanece como meras marcas de tinta no papel até que um leitor as transforme num conjunto de símbolos significativos” (1938:24).

Entretanto, em nosso trabalho, notou-se que as diferenças interpretativas foram, em grande parte, imprevistas, e eram fundamentadas em aspectos que ensinavam a respeito dos alunos, permitindo-me conhecê-los melhor e repensar/redirecionar minha prática. Por isso, decidi estudar, aqui, esses aspectos, inferidos a partir da observação dos momentos em que ocorriam os desencontros entre as leituras dos alunos e a minha.

Momentos esses, fundamentais, já que revelavam modos de ler o mundo e os textos que eu nunca imaginara, mostrando-me novas faces do grupo de alunos; obrigavam-me a refletir sobre minhas próprias interpretações e minha prática, sobre as representações que eu tinha dos alunos e de suas formas de ler, entre outros aspectos; e redirecionavam minha forma de trabalhar os textos em sala de aula.

Na prática, lidar com essas divergências não era algo tranqüilo: desconstruíam-se meus planejamentos de aula, minhas imagens de leitura de poema, da leitura dos alunos, do papel do professor, do aluno em si; minhas incoerências eram deflagradas; a forma de

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compreender dos alunos era desconsertada, suas imagens de poema, de professora, de escolarização e de aprendizagem da leitura eram também abaladas. No entanto, todos esses desconsertos levaram-nos a ler de forma mais profunda tanto os poemas como o próprio ato de ler e de aprender e ensinar a ler.

Portanto, o objetivo geral da pesquisa foi investigar quais as conseqüências/ influências dos momentos de divergências interpretativas na minha prática enquanto professora e na leitura de poemas dos alunos durante o curso. Para tal efeito, foram observados:

1. Quais os momentos em que houve divergências interpretativas ao longo do curso? 2. O que provavelmente os ocasionou?

3. Que mudanças esses momentos foram gerando nas práticas da profa.? 4. Que mudanças foram gerando na interpretação de poemas dos alunos?

3. A natureza da pesquisa e a geração dos dados

Os dados da pesquisa foram gerados durante um curso de letramento para adultos não alfabetizados, criado voluntariamente por mim, no papel de professora, em novembro de 2006. Não tinha, na ocasião em que se iniciaram os encontros, qualquer pretensão de realizar um trabalho acadêmico, idéia que surgiu em abril de 2007. O objetivo inicial era atender agricultores que, em sua maioria, vendem seus produtos para uma empresa exportadora que cedeu o espaço para os encontros e apoiou o trabalho, disponibilizando jornais e pagamento de cópias de textos. Os encontros foram interrompidos em março de 2008.

O fato de todos os participantes, incluindo a pesquisadora, residirem no mesmo bairro e participarem de um grupo comum, formado pelos funcionários e famílias dos funcionários da empresa, colaborou para que se estabelecessem entre os alunos e mim relações mais próximas e de maior confiança. Foram relações fortes que me afetaram e transformaram, como prevê Erickson (1984: 61) que ocorra quando o pesquisador está em campo, preceitos básicos para um pesquisador que tem o intuito de compreender a realidade observada a partir das visões e concepções dos próprios atores envolvidos, ou seja, os significados que eles mesmos atribuem às coisas e aos acontecimentos, ainda que sejam observados e narrados por mim e, por isto, estejam impregnados do meu ponto de vista e visão de mundo que tento

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explicitar, sem qualquer ilusão de que seja possível alcançar a neutralidade (idem, p. 60). Estes são alguns dos fundamentos da pesquisa social aplicada, como se pode caracterizar nosso trabalho, que utilizou alguns instrumentos da etnografia, como as notas da pesquisadora, as gravações em áudio e a entrevista aberta (Erickson, 1984, 1986; Moita Lopes e Cavalcanti, 1991; Cançado, 1994; Lüdke e André, 1986).

Alguns aspectos teóricos mencionados por Bogdan e Biklen (apud Lüdke e André, 1986) nos permitem denominar qualitativa esta pesquisa: 1. o fato de que os dados foram coletados em um “ambiente natural” pelo próprio pesquisador (p.11); 2. estes dados são “predominantemente descritivos”, pois o observador busca expor da forma menos fragmentada possível a realidade observada (p.12); 3. a “preocupação com o processo muito maior que com o produto” (idem), não havendo um desenho fixo prévio para a análise; 4. o observador busca “capturar a perspectiva dos participantes” (ibidem); 5. o processo de análise de dados é indutivo, já que o pesquisador não precisa mostrar evidências para hipóteses anteriormente definidas, pois as questões vão se tornando mais específicas à medida em que seu contato com o problema observado se intensifica.

Como é esperado numa pesquisa interpretativista que busca descrever “um sistema de significados culturais de um determinado grupo” (Spradley, 1979, apud Lüdke e André, 1986:14), o desenho da investigação era flexível, tendo sido feitas alterações inclusive nas perguntas de pesquisa. Embora eu tenha partido a campo com certas convicções teóricas e metodológicas, foi necessário buscar outras visões deste caráter para realizar a análise e mesmo para dar prosseguimento ao trabalho. As questões básicas da etnografia escolar colocadas por Erickson (1984, 1986) estiveram presentes em meu percurso de investigação: “O que está acontecendo aqui? O que isto significa para os atores envolvidos? Que interpretação pode ser construída?”. Porém, é claro que tais questionamentos só podiam ser feitos posteriormente à prática, quando a pesquisadora se esforçava por separar-se um pouco da professora, exercício muito enriquecedor para ambos os papéis.

Assim, fazendo parte do universo pesquisado e sendo uma das participantes do grupo focalizado, classifico o trabalho como uma pesquisa-ação em que o esforço por “estranhar o familiar” (idem) me obrigava a estranhar não só as posturas de meus alunos, com as quais de certa forma já havia me acostumado, mas também estranhar a mim mesma, questionar minhas próprias ações. Isto às vezes era muito fácil, simplesmente pelo fato de me colocar na posição de quem estava fora do ambiente observado, apenas escutando uma gravação, por exemplo,

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sem envolver-me com os problemas que precisavam ser resolvidos no momento da aula e que me levavam a agir de determinada maneira, porém, às vezes era penoso, pois vinham à tona pressupostos e concepções que contradiziam as convicções teóricas que eu afirmava embasarem minha prática. Tais contradições, contudo, são esperadas, dado que tanto alunos como professor estão em constante processo de formação, e acredito que trazê-las para a análise (apesar de não poder focalizar longamente o tema, que seria objeto de outra pesquisa) é útil para outras pessoas que também estejam vivenciando esse mesmo processo.

O fato de ter desenvolvido o trabalho sob a forma de uma pesquisa-ação, apesar das contribuições que pôde trazer, ocasionou também algumas restrições, por exemplo: inicialmente meu interesse recaía sobre as concepções de poesia dos alunos, o que me conduzia a conhecer como e quais eram as práticas de leitura/escuta de textos literários que já lhes eram familiares antes das aulas. Tal investigação, porém, me parecia um tanto inadequada no contexto da relação que havia sido construída entre pesquisadora e participantes, que, dada a necessidade do grupo de letrar-se/alfabetizar-se, constituía-se como uma relação professora-alunos. Saliento, ainda, que os alunos tinham grande urgência em aprender aquilo que desejavam, e um tempo muito restrito para sua empreitada.

Assim, eu sentia que não seria bem-vinda uma investigação que lhes pedisse que descrevessem detalhadamente e mostrassem suas práticas e manifestações artístico-culturais ligadas à poesia, com o intuito de compreender quais eram suas concepções de poema sem expô-los às minhas próprias concepções, como poderia fazer um pesquisador que se envolvesse de outra forma com o grupo, pois isto teria de ser feito durante as aulas. Sentia, ao contrário, que eles esperavam que eu lhes mostrasse novas práticas letradas, já que assumira o papel de auxiliá-los a introduzirem-se na cultura letrada.

Esse anseio dos alunos também se justificava por uma expectativa de escolarização frustrada durante a infância ou adolescência que agora tinham a esperança de realizar, infundindo à professora uma responsabilidade não só profissional, mas afetiva. Eu lidava com os sonhos destas pessoas, tão humilhadas em sua condição de não alfabetizadas e agora esperançosas e ansiosas, ainda que com certas inseguranças. Estes sonhos tinham também ligação com sua representação de escola, de professora, de alfabetização. Eu não podia quebrar todas as suas imagens abruptamente. Eles mesmos começaram a chamar, carinhosamente, nossos encontros e espaço físico de “escolinha”, e embora eu não quisesse reproduzir os modelos escolares (ao menos não os tradicionais, que mantêm e propagam o

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modelo autônomo de letramento), sabia que eles também esperavam finalmente ter uma escola e uma professora que os acolhesse.7

A coleta de dados contou com os seguintes instrumentos: 1. Gravação em áudio e transcrição de cinco aulas em que foram apresentados poemas aos alunos, sendo que nem sempre todos estavam presentes nos encontros, já que a freqüência em aulas de EJA não é tão linear quanto em outros âmbitos educacionais, devido aos entraves com que eles têm de lidar, como a necessidade de trabalhar em horários não planejados. (O preparo e a seleção do texto para cada aula eram feitos após a análise da aula gravada anteriormente. Além das cinco aulas gravadas, os alunos tiveram experiências anteriores com poemas, que serão discutidas num próximo item deste capítulo, sobre as quais fiz anotações posteriormente.) 2. Outras notas (notas de campo, notas mentais, memorandos etc.) deste caráter, a partir de eventos observados nas aulas e de conversas informais, visto que a intensa convivência com os participantes proporcionou um maior conhecimento de suas histórias de vida e de letramento. Sempre que eles falavam sobre algum episódio de suas vidas, presente ou passada, ou quando expunham opiniões particulares a respeito dos textos que líamos ou dos assuntos comentados, eu fazia anotações logo após as aulas ou outros momentos em que nos víamos (como festas, encontros imprevistos, ou visitas às casas vizinhas), ou notas mais breves no momento mesmo do encontro, registrando, quando possível, também algumas falas dos alunos. 3. Uma entrevista coletiva com o intuito de saber mais a respeito do conhecimento que os alunos apresentavam sobre poemas antes de terem contato com aqueles levados para as aulas. Produzimos, nas aulas, um pequeno livro escrito pelos alunos constituído por poemas que eles conheceram na infância, ou os textos poéticos de que mais gostavam, a ser consultado no apêndice.

7 Lembrei-me, então, da ocasião em que, pela primeira vez, dei aulas para uma turma de adultos alfabetizandos que me pediu “cópias” escritas na lousa para poderem “encher o caderno” e eu neguei, explicando a nova forma de alfabetizar que seguia, mais eficiente que a antiga, que eles conheciam. Mais tarde, cheguei à conclusão de que não seria prejudicial ter atendido ao seu pedido, pois isto não significava que eu deixaria de lutar por seu letramento, já que lidava com representações de escola dos alunos, nas quais as “cópias” talvez fossem necessárias para fazê-los perceberem que estavam sendo alfabetizados.

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4. Os encontros e os participantes

As aulas aconteciam três vezes por semana e tinham duração de duas horas, havendo um momento inicial (20 minutos) para confraternização e um lanche, trazido pelos próprios alunos e pela professora, de acordo com suas possibilidades e com um combinado prévio. Este horário foi estabelecido porque os alunos chegavam freqüentemente muito cansados, às vezes atrasados, nem sempre conseguiam jantar antes de ir à aula, e mostravam muito interesse em conversar uns com os outros e também com a professora. Estes momentos foram fundamentais para aproximar as pessoas do grupo que ainda não se conheciam e também para que a pesquisadora pudesse ir aos poucos entendendo melhor a visão de mundo dos alunos e os aspectos culturais que influenciavam o processo de conhecimento da cultura escrita e dos novos poemas, às vezes muito diversos dos que eles conheciam.

Busquei apresentar com freqüência diversos textos e materiais escritos aos alunos, como jornais, crônicas, revistas, livros, propagandas, documentos pessoais etc., disponibilizando-lhes cópias de textos extraídos principalmente de jornais. Os textos foram trabalhados da forma como o fazia no AlfaSol, explicitada anteriormente. Também foram elaborados exercícios de código e outros foram usados, retirados de livros didáticos específicos para alfabetização de adultos ou de cartilhas modernas.

Os participantes da pesquisa, com exceção da professora, com 26 anos, têm idades entre 48 e 65 anos, sendo quatro homens e cinco mulheres, dos quais três mulheres e um homem evadiram. Com exceção de Dona Lúcia8 e Dona Angélica, que residem no bairro vizinho e pararam de freqüentar as aulas por não terem como pagar os passes de ônibus (problema que não pudemos solucionar, nem mesmo junto à secretaria de educação do município), todos os outros participantes residem no mesmo bairro. A maioria deles cultiva seus pomares, vendendo os frutos colhidos para a empresa que mencionamos anteriormente, que os exporta para a Europa e Canadá. Os homens são meeiros dos proprietários das terras, sendo um deles pai de um dos donos da exportadora. Duas das mulheres trabalham em casa e ajudam seus maridos na roça, também fruticultores, meeiros de outros proprietários de terras da região.

Seu Laerte, o mais velho da turma, nasceu em uma cidade do estado de São Paulo próxima de Minas Gerais, tendo-se mudado para este estado com 14 anos, onde morou por 6

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anos e formou sua família. Migrou para São Paulo com 21 anos e trabalhou em diversos lugares da região onde mora até hoje, sempre como agricultor. Nunca foi à escola. Seu apelido é “espertinho” provavelmente porque sabe fazer contas mentalmente muito rapidamente e porque, apesar do jeito ingênuo, é perspicaz. No início do trabalho, era difícil entender o que dizia, talvez porque, como ele conta, em sua infância “era tudo quieto”9, no

entanto, ao longo das aulas, pudemos perceber que ele passou a participar cada vez mais e se sentia, ao final do curso, cada vez mais encorajado a dizer o que pensava. Seu Laerte tem sempre uma atitude amigável e gentil para com todos do grupo.

Seu Josias, o mais novo da turma, é genro de Laerte. Mostra uma tristeza muito grande por não ter estudado quando era criança, um arrependimento que compartilha com o irmão mais velho, Mário, pois ambos deixavam de ir à escola para nadar no rio e fazer travessuras na cidade mineira onde nasceram. Eles contam que mais tarde, quando quiseram estudar, já não era mais possível, pois já eram adolescentes e estavam trabalhando. Migraram para São Paulo com 8 e 9 anos, respectivamente. Casaram-se, tiveram filhos. Seu Mário ficou viúvo há quase oito anos. Os primeiros meses dos nossos encontros foram muito difíceis para ele, que, como Seu Laerte, não conhecia as letras do alfabeto, sabendo apenas “desenhar” o próprio nome. Seu Mário tinha muita dificuldade em acreditar que conseguiria aprender a ler, porém, mostrava-se mais confiante ao final do curso, observando suas conquistas. Seu Josias parece ser o que menos aprecia o trabalho com a agricultura dentre eles, dando sempre a impressão de se sentir injustiçado pelo trabalho que tem de realizar, que exige muito esforço físico em condições freqüentemente desfavoráveis (seja devido a fatores naturais, como o clima, ou à falta de apoio governamental) e não é bem remunerado ou valorizado socialmente. Ele agia como um líder do grupo que, especialmente no início dos encontros, se esforçava bastante para melhorar as condições físicas do espaço em que aconteciam as aulas, e também para encorajar os colegas. Participa de uma rádio como locutor, comunicando-se com pessoas de vários estados brasileiros, o que fez com que trouxesse com freqüência novas informações

9 As convenções de transcrição utilizadas nesta dissertação foram extraídas de Kleiman e Signorini, 2000: (...) fragmento curto não-transcrito; /.../ fragmento longo não-transcrito; [ ] reconstituição da referência pelo analista; ( ) reconstituição da fala pelo analista; (( )) comentário do analista; ... pausa; :: alongamento de vogal na fala; / corte brusco; MAIÚSCULAS alteração do tom de voz com efeito de ênfase; além do sinal ((?)) para os momentos em que as falas estão inaudíveis, e das convenções de pontuação da língua. Não colocamos as palavras da forma exata como os alunos as diziam, pois não temos um enfoque sobre os aspectos sociolingüísticos de sua fala, assim, apresentamos os termos sob uma forma mais próxima da variedade padrão, mantendo, contudo, as palavras que eram alteradas. (Por exemplo, se diziam, “as palavra”, apresentei “as palavras”, mas se diziam “tudo sujo”, em lugar de “todo sujo”, apresentei “tudo sujo”.)

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para o grupo.

Dona Rute nasceu no Paraná, onde morou quase toda a sua vida, tendo vivido também em Rondônia durante cinco anos, já casada, e depois migrado para São Paulo. Tem seis filhos, todos adultos. Continua trabalhando em casa e na roça, para ajudar o marido. Ela conta que nunca foi à escola e que sempre trabalhou na lavoura com os pais, desde criança, como é o caso de todos os alunos. Ela é a única aluna que não é católica: freqüenta três vezes por semana uma igreja evangélica do bairro e gosta muito dos hinos cantados nos cultos, guardando o grande sonho de poder ler a Bíblia.

Dona Marta conta ainda com muita indignação que ela e sua irmã, Dona Lúcia, se escondiam de seu pai para conseguirem ir à escola, muito próxima de sua casa, e quando isto acontecia, no dia seguinte, seu pai, acreditando que a escola não fazia bem algum para as meninas, como era costume entre as pessoas de seu grupo sócio-cultural, as obrigava a dormir na cozinha, para que pudesse ouvir, caso elas saíssem, pois assim teria certeza de que elas não iriam à escola, mas sim para a roça a fim de trabalhar junto da família. Dona Marta é mãe de seis filhos, conta muitas histórias, diz que foi muitíssimo pobre, e que se divertiu muito na infância com as brincadeiras de roda, cujos versos sabe de cor até hoje, e não hesita em declamar, havendo qualquer oportunidade. Era raríssimo faltar a uma aula, e sempre se mostrou muito empenhada, buscando ler tudo o que via ao seu redor, tornando-se impaciente quando não conseguia, e logo pedindo ajuda. Dona Lúcia participou de poucas aulas, enquanto duraram as férias de seu marido, que lhe deu os passes de ônibus que sobraram, embora dissesse ter gostado e ter muita vontade de voltar.

Seu Lineu e a esposa, Dona Rosemeire, chegaram ao bairro de cerca de oito meses depois que havíamos iniciado os encontros, e se entrosaram com os vizinhos rapidamente. Freqüentaram as aulas por pouco tempo, Seu Lineu, alegando ter um problema de visão, e Dona Rosemeire, por já ser alfabetizada. Ele não tem um parceiro para cuidar de sua lavoura, como é de costume entre os outros meeiros, o que faz com que trabalhe até mais tarde, o que muitas vezes o impediu de ir às aulas, porém, acredito que as dificuldades com o próprio aprendizado do código também foram um fator de grande importância para que se afastasse do grupo, já que ele também não conhecia o alfabeto, mas chegou muitos meses depois que os alunos já estavam freqüentando os encontros, o que o fazia sentir-se desconfortável.

Dona Angélica chegou logo depois que encerramos as gravações das aulas, tendo participado apenas de uma entrevista, no entanto, decidimos considerar os dados por ela

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gerados devido à influência muito forte que exerceu sobre os alunos, já que é “poeta”, como afirmava com muita confiança. Na ocasião em que esta entrevista (coletiva) foi gravada, ela contou um pouco sobre sua história em relação à poesia e declamou alguns de seus poemas, que sabia de cor. Os alunos os apreciaram muito, fazendo comentários como: “ela é poeta de

verdade”. Já era rudimentarmente alfabetizada, mas gostava de nossos encontros porque dizia que “aprend[ia] muito”. Mudou-se para um bairro vizinho devido a dificuldades financeiras e por isto não pôde mais vir às aulas.

5. O conhecimento de poesia dos educandos

Minha formação teórica no campo da literatura recebeu grande influência dos estudos de Abreu (2000, 2001), com os quais tive contato ao longo de minha graduação, quando já atuava como alfabetizadora de adultos. Assim, busquei, nas ocasiões em que trabalhava poemas nas turmas de alfabetizandos, levar em conta a noção de que a leitura é constituída pela diversidade, tanto do ponto de vista histórico como cultural. Isto é, os diversos grupos sócio-culturais, em momentos históricos específicos, e de acordo com influências econômicas, políticas e culturais particulares, definem formas singulares de produzir, receber e avaliar os objetos literários. (Adiante, voltaremos a comentar o assunto.)

De acordo com a pesquisa Retratos da leitura no Brasil (Abreu, 2001, 2003), as leituras habituais são: “livros religiosos (35% incluindo a Bíblia), histórias em quadrinhos (34%), livros de informática (20%), aventura e poesia (cada qual com 19%), para os homens”, e para as mulheres, livros religiosos, assim como ocorre com os homens “(50% incluindo a Bíblia), (...) livros de culinária (33%), quadrinhos (31%), livros infantis (27%), poesia (26%), romance (24%), história de amor (21%) e literatura juvenil (19%)”(2001, sem número de página). Isto considerando apenas a leitura de materiais impressos, quando sabemos que as práticas literárias nos grupos menos letrados sejam predominantemente orais, englobando também a audição de causos e contos, repentes, músicas, etc.

Entretanto, ainda que, ao se observarem as práticas em que a leitura está presente no cotidiano das pessoas, perceba-se que ela seja marcada pela diversidade, contraditoriamente, ver-se-á que no ambiente escolar impera a “uniformidade de textos [e a] uniformidade dos modos de ler”(Abreu, 2000:124). Assim, a escola, endossando a visão que se poderia chamar

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“acadêmica” da literatura, “seleciona algumas obras dentre todos os textos narrativos, poéticos ou dramáticos já escritos e os apresenta aos alunos como a literatura, desqualificando todos os demais como subprodutos ou formas imperfeitas.” (Idem.) Estas obras selecionadas – o cânone literário – são tidas como dotadas de “uma literariedade e uma qualidade intrínsecas, portanto a-históricas e a-culturais. Ou seja, qualquer leitor deve ser capaz de reconhecê-las; os que não as apreciam são ingênuos, mal formados, despreparados.”(Ibidem, p.125.) O que significaria que a grande maioria dos estudantes brasileiros e até mesmo de seus professores seriam “mal formados e despreparados”, já que, como mostram as enquetes que freqüentemente vemos nos jornais e revistas, o público leitor brasileiro não elege como preferidas as obras de Camões, Machado de Assis, Mallarmé ou Elliott (Lajolo, 2001), indicando que suas concepções de literatura variam, divergindo em especial da concepção ditada pela tradição literária, que também variou ao longo da história.

Assim, acredito que o trabalho com textos literários na escola pode ser diferente do que a tradição tem recomendado. É possível, por exemplo, mostrar aos alunos que um texto que foi avaliado como de boa qualidade (e que por isto se diz que deve ser lido na escola, importante legitimadora do cânone), foi julgado desta forma por um grupo específico de pessoas e instituições, cujo número é reduzido, em proporção inversa ao poder que detém de nomear o que é ou não é literário, independente de ser ou não ser lido pelo grande público. Este processo de “proclamação” de um texto como literário passa por critérios exteriores à obra, de natureza econômica, intelectual, política e social: diversas “instâncias se interpõem” entre o autor e o leitor, tais como editoras e órgãos que distribuem e vendem os livros, cursos de letras, eventos, publicações, titulações, intelectuais, professores, críticos, júris de concursos literários, currículos escolares, listas de livros para vestibulares, listas de obras mais vendidas etc. (Lajolo, 2001:17-19.) Tais instâncias adotarão posturas diferentes de acordo com o que conceito que apresentarem, em cada período histórico, de literatura, conceitos estes que, como afirmei antes, são tão diversos como as práticas de leitura das pessoas em suas vidas, ainda que na escola seja adotado um só conceito, respeitando-se a uniformidade imposta pela tradição literária.

Essa seleção e exclusão de textos considera exclusivamente a literatura escrita (a menos que certa literatura oral tenha sido registrada por escrito) e deixa de lado inúmeros autores que não participavam do grupo que se elegeria como formado por “gênios superiores responsáveis por obras-primas que cumpre reverenciar” (Abreu, 2000:130) por não serem

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homens, ou brancos, ou de determinada classe social, com determinada formação intelectual, ou por não escreverem suas obras de forma que dialogassem com outras já canonizadas, ou que estivessem de acordo com os aspectos formais que se convencionaram superiores naquele momento e por aquele grupo de pessoas e instituições. Cria-se, assim, “a ilusão de uma única história, uma única tradição” (idem), de que não fazem parte as maiorias – ainda chamadas “minorias” – da população.

Contudo, a escola ainda não está estruturada de modo a acolher culturalmente essas maiorias para que tenham acesso a obras produzidas em universos mais letrados, de fato participem de novas práticas de letramento (em vez de apenas as observarem de longe), e tenham, assim, mais possibilidades de exercerem sua cidadania, buscando construírem sociedades mais justas. Porém, pode-se “preferir que o mundo fosse diferente” (ibidem, p.132), e para isso, trabalhar com a literatura de forma diferente nas situações que, ainda que não ocorram no interior das instituições escolas, possam ser chamadas escolares.

Pode-se, por exemplo, explicitar para nossos alunos as formas de julgamento dos textos, considerando também as formas não eruditas; compreender que nem todos os leitores precisam apreciar os mesmos textos, apenas porque se diz que eles são bons; buscar compreender o universo em que os textos foram produzidos (não dissociá-los das práticas letradas em que foram gerados, considerando os complexos fatores que as definem); trazer para as aulas não apenas as leituras e as discussões dos textos canonizados, mas também de outros, que para certos grupos são tão literários ou muito mais literários que os anteriores; mostrar que os diversos grupos e autores usam linguagens diferentes em suas obras, algumas eruditas, outras não, e que isto não faz com que sejam melhores ou piores, e põem em jogo diferentes visões de mundo, concepções de amor, morte, moral e todos os temas que neles estejam presentes; aceitar e respeitar formas variadas de leitura de um mesmo texto, inclusive a recusa de interagir com algum deles. Nem todas estas posturas foram possíveis em todos os encontros, e outras, ainda, seriam convenientes, porém, os exemplos ilustram os ideais teóricos que eu desejava que estivessem presentes em minha prática docente.

Quando se iniciaram nossos encontros, portanto, eu compreendia a poesia sempre como abrangente de textos tanto canônicos como não-canônicos e tinha a intenção de permitir que os alunos conhecessem objetos literários de um universo mais letrado do que o seu, e também o desejo de conhecer e valorizar os objetos produzidos no seu universo de origem, em que a literatura oral predominava e se misturava à música talvez de modo ainda mais

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