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A Ironia da Loucura em Teixeira de Pascoaes

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Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes

A Ironia da Loucura em Teixeira de

Pascoaes

Lia Isabel Gomes Ribeiro de Bettencourt

Gesta

M

2019

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Lia Isabel Gomes Ribeiro de Bettencourt Gesta

A Ironia da Loucura em Teixeira de Pascoaes

Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes, orientada pela Professora Doutora Maria Luísa Malato da Rosa Borralho Ferreira da Cunha

Faculdade de Letras da Universidade do Porto

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A Ironia da Loucura em Teixeira de Pascoaes

Lia Isabel Gomes Ribeiro de Bettencourt Gesta

Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes orientada pela Professora Doutora Maria Luísa Malato da Rosa Borralho Ferreira da Cunha

Membros do Júri

Professora Doutora Rosa Maria Martelo Fernandes Pereira Faculdade de Letras - Universidade do Porto.

Professora Doutora Maria Celeste Lopes Natário Alves dos Santos Faculdade de Letras - Universidade do Porto

Professora Doutora Maria Luísa Malato da Rosa Borralho Ferreira da Cunha Faculdade de Letras - Universidade do Porto

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Não é a vida uma existência solitária nem definitiva.

Para esta dissertação, contei com os ralhetes dos meus pais, os bordados da minha avó, a casa abandonada da Aninhas, a ansiedade das esperas atrás de um palco, a frustração de um casamento, as palmas de gente anónima, a conversa com a Professora que mudou o rumo da minha forma de pensar, o colo da mamã e das irmãs e o renascimento, dentro do nascimento, de uma filha. Não foi escrita a quatro mãos, mas esta tese é, sem dúvida, uma convergência com uma certa direção. Para onde? Sabê-lo-ei no último suspiro.

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Sumário

Declaração de honra 7 Agradecimentos 8 Resumo 9 Abstract 10 1. Loucura e Ironia 11

2. Que faces da Ironia? 18

Capítulo 1 - LOUCURA E INTERROGAÇÃO 22

Algumas reflexões biográficas 22

Capítulo 2. – LOUCURA E RECONHECIMENTO 45

A voz da razão 45

Capítulo 3. – LOUCURA E APARÊNCIA 75

Da Loucura física à metafísica 75

Capítulo 4. - LOUCURA E AUSÊNCIA 92

A ilusão da linguagem 92

Conclusão (ou Considerações finais) 111

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Declaração de honra

Declaro que a presente dissertação A Ironia da Loucura em Teixeira de Pascoaes é de minha autoria e não foi utilizado previamente noutro curso ou unidade curricular, desta ou de outra instituição. As referências a outros autores (afirmações, ideias, pensamentos) respeitam escrupulosamente as regras da atribuição, e encontram-se devidamente indicadas no texto e nas referências bibliográficas, de acordo com as normas de referenciação. Tenho consciência de que a prática de plágio e auto-plágio constitui um ilícito académico.

Porto, 30 de Setembro 2019

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Agradecimentos

A quem me deu força e estímulo quando deixei de acreditar: a minha mãe, as minhas irmãs, a minha filha.

Agradeço à minha Professora, meu eterno farol, porque a sua luz me impediu de ir contra as rochas.

Agradeço a Luz de todas elas.

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Resumo

Este estudo pretende refletir propedeuticamente sobre a complexidade do conceito de Loucura na obra de Teixeira de Pascoaes. Na sua obra, a loucura é, fundamentalmente, a nosso ver, uma ironia de valor retórico, porque finge ser o que não é: uma voz menor. Incidiremos sobre a variabilidade da definição da “Loucura”, e que tipos específicos de Loucura residem na sua poética, na sua obra literária, mas também não-literária. Desde logo nas suas memórias, a loucura parece ocupar lugar de relevo: os loucos que povoam a sua infância são seus mestres, ensinam a ver, mas também a criar. Mas a Loucura é também personagem: determina um corpo que se move, e se fecha, de forma distinta dos demais. A Morte surge como um tema indissociável da loucura: nos poemas alegóricos, a descrição do amor que há entre a Loucura e a Morte vem adensar o pensamento de que o mundo necessita de uma visão sensível – e não apenas intelectual, mecanicista ou científica – para ser compreendido. Contextualizando a obra de Teixeira de Pascoaes, interessar-nos-emos desde logo pela sua sustentação irónica, para perceber até que ponto uma poética/retórica da loucura e morte é usada para sustentar um processo de transformação da arte em que a razão não se opõe à emoção, o físico se concilia com o metafísico, a imitação com a criação e o ético com o estético.

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Abstract

This study intends to reflect in its roots the complexity of the concept of Madness in the work of Teixeira de Pascoaes. Madness is fundamentally, in our view, an irony of rhetorical value, because it pretends to be what it is not: a small voice. We will focus on the variability of the definition of Madness in Pascoaes, specifying several types of Madness we can find in his poetics, in his literary, but also non-literary work. From the outset in his memories, madness seems to occupy a prominent place: the madmen who populate his childhood are his masters, they teach him to see, but also to create. Madness is also character: it determines a body to move and close differently from others. Death emerges as an inseparable theme of madness: in allegorical poems, the description of the love that exists between Madness and Death thickens the thought that the world needs a sensitive – and not just an intellectual, mechanistic or scientific – vision. We will be interested in the ironic support of Pascoaes’ work, to see to what extent a poetic / rhetoric of madness and death is a process of art transformation in which reason is not opposed to emotion, where the physical is reconciled with the metaphysical, the imitation with the creation, and the ethical with the aesthetic.

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11 Introdução

A LOUCURA COMO IRONIA: UMA ESTRATÉGIA RETÓRICA

Este trabalho deseja refletir sobre a complexidade do conceito de loucura no pensamento de Teixeira de Pascoaes. Com efeito, pensamos que a loucura é um engodo na sua poesia e na sua prosa. Ou melhor, uma ironia: o tema é uma estratégia para dizer que não é importante o que é mais importante. Diz-nos: “não ligues: são palavras de um louco”, mas para que leiamos: “liga ao que te digo: são palavras de sabedoria”.

1. Loucura e Ironia

Nesta relação entre a loucura e a ironia, parece-nos útil entrar no tema pela mão de um filósofo do séc. XX de nome Vladimir Jankélévitch (1903-1985). Este pensador distancia-se de Teixeira de Pascoaes pelo seu agnosticismo, no que toca ao carácter religioso, porém aproxima-se dele ainda enquanto pensador místico, no sentido em que pensa uma vivência entrançada do divino com o profano. Este tipo de vivência metafísica, de caráter transcendental, gera um saber, um conhecimento do mundo obtido em experiências humanas que não se é capaz de exprimir por sentidos literais, de forma concreta e objetiva.

De certa forma, o valor inefável de certas experiências humanas (como a descrição de um pôr-do-sol, a audição de uma obra musical ou a leitura de um poema), pela impossibilidade de o definir ou predicar, obriga-nos a admitir como complexas estas interpretações que vão muito para além da capacidade sensorial de cada recetor. As sensações, ainda que julgadas básicas, provocam sentimentos complexos e pedem

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palavras ambíguas. Estas experiências humanas, que são de facto baseadas na realidade, sugerem, apesar da sua simplicidade, um entendimento que está além das funções referenciais da linguagem, não só por se dizerem muitas vezes indizíveis e inexprimíveis, mas também por admitirem um sem número de interpretações subjetivas, nunca se conseguindo alcançar a totalidade de cada experiência. Por vezes, evocam um campo transcendental que se expressa como mistério, um sentido definido pela indefinição.

“[…] o homem, ao escutar o inefável, não sabe o que fazer para se elevar à altura do que saboreia. [...] Deve-se, portanto, perdoar o ouvinte do Andante Spianato caso ele não saiba como agradecer nem se colocar à altura daquilo que saboreia. Deve-se perdoá-lo caso ele celebre de modo desmedido aquilo que é incomensurável a toda a celebração: pois só balbuciando abordamos o inefável.” (Jankélévitch, 1964: 125)

A relação com a “religiosidade” na aceção latina de “re-ligação”, dá-se numa revisitada ligação entre o homem e o mistério, transcendente e inefável, expressa por Jankélévitch pela expressão “je-ne-sais-quoi”. A experiência vivida – que nunca se entende na sua completude (porque tal é impossível) – é lida como uma amostra do transcendente, para o ser que é tocado por ela: por ela, é-lhe possível intuir o que está para além do sensível, ainda que sem ver os limites no seu esplendor. No que o transcendente, tem que ver com o inefável existencial, e Jankélévitch liga esta incapacidade linguística à assunção de uma certa forma de ignorância:

“[…] eis o próprio mistério do nosso destino, o nosso destino é, portanto, literalmente um

néscio quo e um nescio-unde; esse destino duro e mole consiste, ao mesmo tempo, em alcançar algo

sem saber o que seja, em saber que se é antes de saber quem se é […].” (Jankélévitch, 1964: 60)

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Esta citação pode ser reduzida a um “eu-sei, sei-que-não-sou; o-que-não-sou, tudo-isso-sei”. O conhecimento não seria nunca completo e só através da religação com o divino poderíamos ter um ínfimo vislumbre do nosso saber relativo.

Sendo o nosso trabalho sobre as funções da loucura na obra de Teixeira de Pascoaes, a utilidade de referir o pensamento de Jankélévitch pode não parecer clara. E, no entanto, a loucura referida nos seus textos não se compreende sem esta noção comum de “inefabilidade” da descrição do mundo, devendo ela ser nomeada aqui, desde logo para relativizar a razão humana. Para Jankélévitch, é obrigação do ser humano tornar o infinito uma realidade linguística. Para Pascoaes, é obrigação do poeta tornar dizível esse infinito. Para ambos, o ato da palavra (filosófico ou poético) tem uma dimensão religiosa, mas na medida em que transcende a realidade sem a retirar do contexto do discurso possível, parecendo de certo modo assumir a inversão do processo de comunicação da linguagem. Não é a linguagem do inefável que preenche a linguagem do ser humano. Mas a linguagem do ser humano que tem de humanizar o inefável:

“O Homem está separado de Deus e unido. Todo o traço de separação é de união e vice-versa – a ponte e o abismo. O homem e Deus! a razão e o absurdo! [...] Se Deus é um absurdo, o nosso maior desejo é humanizá-lo, metê-lo dentro da nossa pele, revesti-lo da nossa fantasia. E ei-lo uma pessoa transcendente, ornada dos mais belos atributos”. (Pascoaes, 1993: 65)

O nosso poeta não só tenta humanizar Deus como vê na Natureza o mesmo valor transcendental atribuído ao ser humano. Todas as coisas contêm em si o Universo.

“O ser é uma síntese das coisas, onde elas se convertem em sensações, recebidas e estudadas à luz da consciência. É qual espelho reproduzindo as imagens e fundindo-as numa só imagem espiritual.” (Pascoaes, 1993: 9)

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Teixeira de Pascoaes defende que o complexo está sintetizado no simples, que dentro do nada há tudo e que, ao atingir essa unidade, estamos também a atingir a divindade: uma divindade que está patente na imperfeição humana e na dúvida existencial, em termos que podemos aproximar dos de Jankélévitch, sobre as experiências sensoriais, descritas curiosamente pelo mesmo sentido do paladar (“o homem, ao escutar o inefável, não sabe o que fazer para se elevar à altura do que saboreia”, cf. supra):

“Há frutos que transcendem o nosso gosto. E uma flor, com o seu sorriso de sol, é um instantâneo divino. O divino quando nos aparece é num relâmpago. Mas não guardamos, em nós, esse relâmpago, à maneira de S. Paulo. O divino é efémero.” (Pascoaes, 1993: 82)

Se, para Pascoaes, “o destino do homem é ser a consciência do Universo em ascensão perpétua [...]” (1993: 10), a base das coisas é de substância poética e não científica porque, segundo ele, a realidade não podia ser mensurada num plano científico nem material. Pascoaes renega os cientistas, mas porque julgam adquirir a infinitude do conhecimento do mundo através de medições quantitativas. Segue apontando a sua incapacidade de interpretar cabalmente os fenómenos que se limitam a uma perceção do mundo material. Chega a ridicularizar quem se recusa a uma experiência direta com essa “realidade” de onde gotejaria a essência do mundo e das coisas. Apenas o poeta adquiriria a sua inspiração em total sintonia com o cosmos (e por isso aqui o “poeta” surge como um artista que pode utilizar o som, o silêncio ou a palavra).

Tal não é certamente a posição de Jankélévitch, que tem em vista a discussão do pensamento filosófico. Mas há, em Pascoaes, uma sensibilidade irónica que o une a Vladimir Jankélévitch, porque em ambos é pela ironia que é estimulada a dúvida, ainda que com relações de estímulo bem diversas.

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Os minerais, os vegetais, os animais, os seres humanos, são feitos da mesma matéria. Mas ainda que a tenham em comum, são incapazes, ou capazes, de diferentes graus de consciência. Também para Jankélévitch, é a consciência que obriga a pensar não só o próprio absoluto, mas também as diferenças entre o ser humano e o Divino. O ser humano e Deus tornam-se, por um lado, cúmplices na partilha da consciência, mas, por outro, distintos na questão da imortalidade. Sendo simultaneamente “a ponte” e “o abismo” (retomamos aqui as metáforas de Pascoaes), resta ao ser humano fazer-se, à semelhança de Deus, criador e não somente criatura. É, pois, o ato de criar um fator que justifica a ligação estreita entre as duas entidades. O ser humano é compreendido a partir da sua continuidade e descontinuidade com o Criador.

Em que medida a questão da ironia é aqui relevante? Para Vladimir Jankélévitch, a ironia é uma espécie de boa consciência (e por isso ele a distingue da hipocrisia), em que a cumplicidade e o humor são parte fulcral da alteração do nível de consciência. A ironia é um lugar emaranhado de que são excluídos os ignorantes, os pedantes, todos os que têm sobre o que “entendem” uma certeza absoluta e inquestionável, e por isso também todos os que apenas utilizam a versão “à letra” do significado das palavras e do discurso. Por isso Jankélévitch afirma que a ironia pressupõe o culto da liberdade, e nessa liberdade radical se aproxima a ironia da loucura. Quando tudo é questionado, quando se quer dizer o contrário do que se diz, ou uma coisa diferente, os limites da verdade alargam-se infinitamente, estremecendo só então, de forma clara, os alicerces dos paradigmas tidos como certos. As definições são postas em causa e os dogmas estabelecidos são perturbados porque aí (na ironia ou na loucura) começa uma reflexão sobre a certa incerteza. Acerca deste espaço que se abre de repente, e sobre o tempo livre necessário a esta demanda reflexiva, escreve o filósofo na sua obra sobre a Ironia:

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“Una vez que han tomado conciencia de su ignorância, un malestar inexplicable los atormenta: un malestar que nace de la contradicción, y que, según el Platon de Ménon, prepara la reminiscência.” (Jankélévitch, 1964: 14)

Mas nem só neste aspeto a ironia se aproxima da loucura, ou a loucura da ironia. A loucura parece também escapar ao crivo moral pelo riso. O fator cómico não é evidente, ainda que ele esteja pressuposto, já que é preciso um sentimento de superioridade para que a ironia ‒ ou a loucura ‒ subvertam essa realidade com as lentes refratoras em que o emissor diz o contrário do que quer dizer, cabendo ao recetor interpretar essa distorção extrema. O momento irónico é, pois, um momento de cumplicidade superior. Quando tal dimensão refratora interpela seletivamente o leitor/ recetor último, este sorri ao entrar no jogo. Ele sabe também que o que parece não é:

“La seriedade se define com respecto a una alegria siempre posible, así como la evidencia designa el terreno ganado a la duda.” (Jankélévitch, 1964: 19)

Ainda segundo Jankélévitch, a ironia não tem unicamente uma importância artística, literária (apesar de parecer necessitar de um tempo/ espaço de ócio), porque a ironia tem necessariamente uma componente moral que a arte não possui como necessária. Ora se a loucura é um discurso não-moral, ou melhor, não condicionável pela moral porque colocado num patamar inimputável, poderíamos dizer que o discurso do louco se aproxima do discurso irónico porque foge à responsabilidade de dizer. Tudo o que a ironia diz pode ser negado.

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A ironia funciona assim como a loucura: é um instrumento de defesa e de ataque simultaneamente. Afasta a tristeza e ridiculariza o perigo para amenizar a dor e o sofrimento que a consciência provoca. É um jogo perigoso com um possível final infeliz. O louco, como o que usa da ironia, diz o que não pode ser facilmente entendível.

Resta saber quem sabe: quem percebe o jogo? Ingénuos e tolos serão, para Teixeira de Pascoaes, todos os que permanecem iludidos pela linguagem literal. O louco é, afinal, mais sábio que o vulgo, que tudo confunde.

“[…] o vulgo confunde tudo. Não distingue a Árvore das árvores, nem o Homem dos homens. E não haveria árvores sem a Árvore, esse fantasma que é todo o ambiente vegetal. Que é a nossa vida senão uma parte da vida que se concretizou e organizou?” (Pascoaes, 1993: 63)

Como Teixeira de Pascoaes, também Jankélévitch distende o pensamento de forma a relaxar os limites que o oprimem, para que ele se reinvente e mantenha a sua continuidade/ liberdade. Como se fora adolescente, com seu estilo interrogativo impetuoso, Pascoaes gera afinal a mesma controvérsia que o filósofo russo quando atribui a Sócrates a loucura da ironia, nas querelas com os charlatães atenienses, na Grécia Antiga. A ironia, desde logo a socrática, tal como a loucura em Pascoaes, parece servir para provocar exaltação, surpreender, espantar, ainda que o emissor “ironicamente” se considere, ou seja considerado, um tolo ou um doido.

Por esse lado, a ironia é uma figura que interessa à loucura. Num conjunto de figuras débeis, que dizem o que se não pode dizer, encontramos, com a mesma função dos loucos, todos aqueles que são linguisticamente desconsiderados: os palhaços, as crianças, os bêbedos, os doentes, os velhos, enfim, os moribundos da razão consciente, encorajados a expressar o que nunca se expressa em voz alta; a trazer para fora, o que está escondido, porque socialmente condicionado, por vezes alterando as posições sociais, hierarquicamente instituídas:

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“[…] la conciencia es una especie de echarse atrás [...] la conciencia es un desquitarse del objeto al que se aplica, y en este sentido es la fuerza del débil [...] En esto consiste la superioridade del inferior, la fuerza de los débiles, la riqueza de los pobres: el pobre será a fortiori, más rico que el rico.” (Jankélévitch, 1964: 20)

2. Que faces da Ironia?

Com o intuito de tentar alcançar o carácter imperscrutável da tensão entre quem pergunta e quem responde, quem sabe (o que pergunta) e quem não sabe (o que tenta responder), Pascoaes utiliza a loucura de uma forma irónica. Mas o que podemos nós entender aqui por “ironia”?

Entre a abundante bibliografia sobre o assunto (e não podendo citar tudo sob pena de nos perdermos em tipologias pouco abrangentes e/ou pouco consensuais, contrárias entre si), pareceu-nos importante, uma obra de Pierre Schoentjes sobre a ironia,

Poétique de l’Ironie, de 2001. Trata-se, segundo Marie de Gandt (2002: s. p.), de um

estudo fundamental que acaba por preencher muitas das lacunas dos estudos parcelares sobre o tema. Marie de Gandt não encontra outras obras teóricas com maior abrangência de definições do termo. Com efeito, simplificando algumas considerações de ordem histórica, são elencados, no quadro definido por Pierre Schoentjes, quatro tipos distintos de ironia:

a) a ironia socrática, centrada na estratégia filosófica, em geral exemplificada pela maiêutica de Sócrates. Trata-se de uma ironia de comportamento, em que o orador toma a palavra num diálogo, diminuindo o valor da sua declaração, mas colocando-se num nível humilde, em que pergunta ao outro interlocutor o que o outro afirma saber, para acabar por contestar a certeza desse saber. O orador é um

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b) a ironia de situação, centrada no contexto, em geral exemplificada pela situação trágica. Na ironia de situação, a narrativa acaba (por reconhecimento/

anagnórisis da verdade por parte do protagonista), por dar visibilidade ao que é

ocultado ou negado ao longo da sua construção.

c) a ironia aqui dita “verbal” (talvez a mais conhecida como figura de retórica), existente numa afirmação que é a negação do que é dito. Esta ironia retórica é, obviamente, a que mais cumplicidade exige entre os interlocutores pois, não existindo ela, a comunicação não se verifica nos termos em que é projetada pelo falante.

d) a ironia romântica, identificada desde F. Schlegel com o pensamento filosófico-literário do século XIX, e muito especialmente com o conceito de “ironia romântica”. Segundo Schoentjes, é ainda uma releitura da ironia socrática, agora centrada na arte, muito especificamente na arte literária. O autor romântico, que frequentemente toma a voz de um narrador, intromete-se na narrativa comentando-a, minando a convenção literária, que tende a apresentar como verdadeiro o que é narrado, levando o leitor a repensar a ilusão que para ele foi criada.

Demonstraremos, ou tentaremos demonstrar, que esta poliédrica visão irónica da loucura de Teixeira de Pascoaes é suficientemente problemática para considerar na sua obra estas quatro definições de ironia, sustentando a pertinência do nosso ponto de vista crítico nesta dissertação. A loucura em Pascoaes inscrever-se-ia numa tetralogia irónica: de índole filosófica, trágica, verbal/discursiva e ainda romântica.

A ironia socrática ou filosófica está presente quando a personagem faz perguntas segundo o modelo de Sócrates. A ironia dos fracos expressa-se pela boca de

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uma criança, de um estrangeiro, de um louco. Como sucede em O Pobre Tolo, de Teixeira de Pascoaes, a loucura pode exemplificar uma ironia filosófica. Considerando o contacto pessoal e intelectual de Teixeira de Pascoaes com o fenómeno da Loucura, consideraremos a sua potencialidade como Interrogação, e dela trataremos no capítulo I desta dissertação: “Loucura e Interrogação: reflexões biográficas”.

De notar que a loucura é também, muitas vezes, uma ironia trágica: quando as personagens se confrontam a si próprias e, ao julgar os outros, se tornam nos seus próprios carrascos. Por exemplo, em Pascoaes, o louco exibe uma ironia trágica em O

Doido e a Morte: nota-se a ironia trágica onde alguém despreocupadamente e, sem

saber, está exatamente na situação oposta à que julga estar (a Morte). A Loucura é um Reconhecimento. Essa dimensão da ironia será objeto do nosso segundo capítulo: “Loucura e Reconhecimento: a voz da razão”.

Mas também a ironia verbal, ainda que não nos pareça dominante, vai marcar a imagem da loucura: o leitor deve procurar entender o que quer o autor dizer, quando diz o contrário do que ele espera ouvir-lhe. A loucura diz e desdiz o que diz, num discurso do paradoxo que sempre seduziu leitores de Pascoaes tão distantes da sua poética como, por exemplo, Mário de Cesariny. A Loucura é ainda um jogo de aparências. Tentaremos compreender esta definição em Teixeira de Pascoaes sobretudo no nosso terceiro capítulo, “Loucura e Aparência: da loucura física à metafísica”.

Resta-nos, até na consequência das anteriores, a imagem da loucura como ironia romântica. Poderemos nós entender a sua poética do Saudosismo como uma questão retórica, em que a “saudade” é a melhor palavra para, no seu entender, criar

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uma perceção da ilusão, criada desde logo pela literatura? Pode a Loucura ser a estratégia da Ausência? A estas questões procuramos responder no quarto e último capítulo desta tese, “Loucura e Ausência: a ilusão da linguagem”.

Parece-nos que Teixeira de Pascoaes é um dos poetas mais ricos da nossa literatura que filosoficamente melhor justifica e alimenta a pertinência desta estratégia retórica da loucura. As palavras do louco, registadas pelo autor de Sempre, são a sua forma de sabedoria: ensinam a consciência do Amor e da Morte, entidades que se fundem e confundem. Pretendemos refletir sobre a universalidade desta estratégia e perceber como Teixeira de Pascoaes a encara e transforma numa gigantesca orquestra cósmica.

Não temos conhecimento de que haja estudos neste sentido ou perspetiva, incidindo sobre a obra de Teixeira de Pascoaes. Se existem, não as detetámos na nossa pesquisa e disso nos penalizamos. Mas se existem, com eles pretendemos, com mais tempo, revisitar o que escrevemos.

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Capítulo 1 -

LOUCURA E INTERROGAÇÃO

Algumas reflexões biográficas

“Pascoaes foi sempre um homem, nunca foi criança, tanto a falar como a brincar. [...] Pascoaes era diferente de todos nós, em todos os aspetos de menino e de homem.”

(Maria da Glória Vasconcellos, Olhando para trás

vejo Pascoaes)

Há na obra, e desde logo no nome de Teixeira de Pascoaes, um declarado indício da ligação ao local que mais amou: Pascoaes é uma toponímia, o sítio do solar que ele habitou durante a maior parte da sua vida. Tendo por nome de batismo Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos, assinava Teixeira “de Pascoaes”. Ainda que tivesse nascido na vila de Amarante, supostamente a 2 de novembro de 1877, o solar de Pascoaes proporcionar-lhe-ia uma infância marcadamente rural e aristocrática, entre a proximidade da natureza e a proximidade das gentes humildes que na casa viam um centro protetor.

“Vários incidentes da minha infância revelam-se numa luz misteriosa; adquirem um significado transcendente, aquela alma, aquele nimbo remoto em que as mais pequenas coisas se ampliam no vago e no infinito [...].” (Pascoaes, 2001: 41)

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A crer nas considerações de uma das suas irmãs que sobre ele escreveu, Maria da Glória Teixeira de Vasconcelos, o poeta Teixeira de Pascoaes teria tido, desde tenra idade, uma postura introvertida, ensimesmada, com forte tendência para a observação da natureza e dos seres humanos. O dia em que nasceu acabaria também por marcá-lo. Celebrava-se o seu aniversário no dia dos Defuntos, a 2 de novembro, entre as idas ao cemitério e os festejos da casa, entre a celebração dos que tinham já deixado a vida terrena e dos que entravam nela. Escreverá vários poemas em que a simbologia deste dia é tida como indício daquele poeta em que se tornará. Em “Poeta”, publicado em Sempre (1898), é possível ler-se explicitamente no seu nascimento a celebração melancólica da morte:

“Quando a primeira lágrima aflorou Nos meus olhos, divina claridade A minha pátria aldeia alumiou Duma luz triste, que era já saudade.” (Pascoaes, 1997: 104)

Maria da Glória recorda, já depois da morte do irmão (a 14 de dezembro de 1952, ainda no solar de Pascoaes, em Gatão), o espírito curioso de Joaquim. E como em criança costumava pedir à empregada Lucrécia que ela lhe narrasse um conto de fantasmas, ora um que lhe suscitasse interesse, ora outro que lhe tolhesse a coragem:

“Foi nesta casa sombria, com o seu ar de abandono e as histórias trágicas da Lucrécia, que se formou a alma de um grande poeta.” (Vasconcellos, 1996: 18)

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Nas suas palavras, Teixeira de Pascoaes “foi sempre um contemplativo”, voltado tanto para o passado como para o futuro:

“Não era triste, era um silencioso. [...] Meu irmão não gostava – mesmo como criança – de ouvir berrar, rir alto, nem sequer o atraía o ruído cantante da filarmónica [...] os ruídos metálicos irritavam-no. Talvez para não despertar o sonho que já vivia na sua alma…” (Vasconcellos, 1996: 18)

Com cinco irmãos, imagina-se que nem sempre o silêncio fosse tarefa fácil. Talvez por isso a índole introspetiva de Pascoaes fosse ainda mais notória. O próprio, no Livro de Memórias, refere:

“Conviver com os mortos, divagar entre ruínas, é tudo para mim. Divago e reconstruo. Disponho de uma substância da qual se extraem todos os materiais da Criação: a palavra, uma vibração no ar e uma luz que reflete, em nós, a imagem das coisas e dos seres. Convivo e reconstruo, na solidão.” (Pascoaes, 2001: 43)

Maria da Glória refere-se ao irmão mais velho como “Poeta”, com letra maiúscula, como se, até para ela, este estatuto continuasse a criança diferente que ele tinha sido e o adulto estranho em que se tornaria. Também em Amarante todos o tratavam assim, para todos ele era “o Poeta”. Este estatuto acentuaria a sua excecionalidade, que é também, inevitavelmente, uma forma de marginalidade:

“Nunca teve a nossa idade. Diferentes eram, pois, as suas brincadeiras. Caminhou sempre sozinho. Primeiro em casa e depois no mundo.” (Vasconcellos, 1996: 22)

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O Poeta, porém, não gostava da cor preta, nem de tons escuros. Mesmo as situações de enterros ou outras celebrações ligadas à morte, era com o encarnado e o azul que as festejava. Em vez da perspetiva da morte como lugar/tempo sombrio e sorumbático, a morte era tida por ele como animada e colorida, oportunidade para apreciar contrastes e deles fazer uma festa. A morte mergulhava, por um momento, na sombra do esquecimento, mas através da lembrança e da memória Pascoaes recuperava, como numa vitória, a ressurreição do ido.

“Vejo-te, minha aldeia, através do sorriso de Jesus e ouço zumbidos de insetos, cantos de pássaros e um bulir de folhas verdes. [...] Vejo-a através dos mortos que eu amei e lhe emprestaram a própria imagem transcendente, que se amoldou, por assim dizer, à configuração dos seus outeiros.” (Pascoaes, 2001: 45)

No prefácio que escreveu a Olhando Para Trás Vejo Pascoaes de Maria da Glória Teixeira de Vasconcellos, um dos principais investigadores de Pascoaes, António Cândido Franco, refere-se igualmente a Pascoaes como alguém que vivia de saudade e lembrança. Este apego à memória (da morte como da vida, sem que haja entre elas uma fronteira distinta) é como que um instrumento que dá ânimo ao seu pensamento, na medida em que a memória chega para trazer de novo à vida aqueles de que se fazia o luto. A morte, assim lida como festa de aniversário, não seria um fim, mas um acidente de percurso, sem carácter de finitude, mas antes de transição porque “a lembrança ressuscitava tudo” e por vezes até com mais vivacidade. Memorizar encerra em si a ação do desejo voltado para o futuro. Olhar, ver além do que é o concreto, implicava passar para um outro nível visual ou, por outro lado, de cegueira. Reconhecer o mundo, e assimilá-lo, acarretava ultrapassar o seu carácter concreto: isto será o pano base onde se estenderá a saudade pelo não existe neste plano imediato: uma memória do que foi e do que quer dizer, além do que é. O mesmo poema de

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“Humildes, pobres cousas, como eu sou Dor acesa na vossa escuridade… Sou, em futuro, o tempo que passou Em num, o antigo tempo é nova idade.” (Pascoaes, 1997: 104)

A constante vontade do Poeta em divinizar o humano e humanizar o divino seria também tida como herança de família, com relação direta a seu avô paterno, médico da Casa Real, com o qual partilhava a mesma índole telúrica:

“Consigo ver-te e ouvir a tua voz, meu avô; mas a tua figura é uma quimera que só tem realidade perante os deuses. [...] O corpo é que é tudo, embora sujeito à corrupção e a necessidades ridículas, de envergonhar o Criador.” (Pascoaes, 2001: 39)

No primeiro terceto do mesmo soneto de Sempre, Teixeira de Pascoaes diz-se já um ser plástico, húmus, misto de restos em deterioração que alimentam e dão forma ao homem:

“Sou fraga da montanha, névoa astral, Quimérica figura matinal,

Imagem de alma em terra modelada.” (Pascoaes, 2001: 104)

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No seu Livro de Memórias, ao narrar a permanência em Coimbra para estudar Direito, ilustraria bem o encontro do seu lado sensível com os rituais do mundo da ciência e da vida universitária:

“Neste meio académico e ruidoso, eu era um ser inverosímil. Não sabia as lições, nem traçar a capa, nem trilhar as ruas da vila. O estudante metera-se em mim, como um intruso. Nunca me conformei com ele, com essa capa e batina talhadas para outro corpo. [...] É o momento em que nos separámos da natureza e nos adaptámos à sociedade. Essa transição do natural para o artificial é uma tragédia em certos temperamentos enraizados no âmago da terra. É uma tragédia que vai até à morte.” (Pascoaes, 2001: 87)

Não tendo sido um aluno brilhante, cedo intuiu os tópicos que mais tarde seriam trazidos para o plano material, onde as premissas podem ser provadas e testadas. Como prova dessa consciência, temos as palavras do próprio Teixeira de Pascoaes. Apontamos estes versos do poema “Quinta da Paz”, dedicado a Guerra Junqueiro:

“A minha infância! Claridades misteriosas, Recordações saudosas,

Tomam figura – vede! – na distância…” (Pascoaes, 1997: 156)

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Forma-se nele muito cedo a ideia da relatividade. Ver algo no presente, com distância cronológica através da memória, reanima o evento. Ainda n’O Livro de

Memórias:

“Existo neste corpo que pesa sobre o mundo, e é um desafio do sonho à realidade; e vivo na minha infância, que é uma lembrança original, a persistir, e um retrato defunto, num velho álbum sepulcral. [...] Vejo, num outeiro florido, cabras e ovelhas. Pastam, há mais de trinta anos, uma erva tenra e verde, à luz do Sol. E a pastora sentou-se, para sempre, naquela pedra, a fazer meia. É uma rapariga de quinze anos.” (Pascoaes, 2001: 77)

A individualidade do Poeta assenta precisamente neste modelo material, “um corpo que pesa sobre o mundo”, definido como dimensão espaciotemporal onde as alusões a um certo evento, ou paisagem ou mesmo personagem, parecem já purificadas, sancionadas, por um modo de olhar adquirido na infância e perseguido/ prosseguido na idade adulta, entendido como o único modo de olhar e receber o mundo:

“A infância é uma recordação de Deus a materializar-se em jogos e brinquedos. [...] A infância é uma recordação de Deus, e tão viva, que anima todas as coisas.” (Pascoaes, 2001: 65)

Ao invocar cada objeto, cada personagem, cada gesto, casa, parente ou riso, o autor retoma a posse do mais íntimo de si, e em todas estas invocações está subjacente um significado religioso e sagrado. É como se a sua própria infância equivalesse à infância do mundo onde todas as coisas voltam à Luz Originária, onde os deuses se manifestaram e criaram. No imaginário do Poeta, o Marão, a serra do seu tempo de menino, é o lugar central, místico e mítico, a partir do qual se desdobram outros lugares, reiterações dessa montanha divinizada. O caráter universal e as preocupações filosóficas de Pascoaes estão presentes pela sua poesia fora. O poeta

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parece-nos ter o dom de conseguir exprimir de uma forma potenciada todas as qualidades sentimentais e intelectuais do ser humano. E de entre todos os homens, diz que o poeta é o mais habilitado para exprimir o drama humano, tanto na vertente religiosa como sentimental, sempre saudosa. O poeta é tido, seja ele vate clássico ou romântico, como se fosse uma espécie de guia, um eleito que apreende o real melhor que ninguém:

“Mas o drama da vida, através da sua aparência social, é profundamente religioso. O destino do homem é ser a consciência do Universo em ascensão perpétua para Deus.” (Pascoaes, 1993: 5)

A cosmogonia universal é um paradigma para o próprio ato de criação poético: inicia-se com um esforço, intermitentemente realizado, com intenção de convergir nesse illud tempus, num excesso de força e poder divinos. A Saudade de voltar à origem é por isso uma saudade que podemos dizer “religiosa”: a aspiração de poder voltar a viver num Mundo puro e virginal, em que fossem sensíveis as ligações entre todas as coisas, religando-as a Criatura tal como tinham sido concebidas pelas mãos do Criador. A nostalgia da Perfeição está na base do desejo de voltar ao Paraíso e recuperar assim, pela Saudade, um passado mítico. Reviver esse Passado, seja a nível individual ou cósmico, recuperando o peso simbólico nele implicado, é um ato de construção de um Novo Mundo, de uma Nova Realidade, tão mítica e poderosa como a existente no “passado”.

O conhecimento íntimo das coisas vem da intuição, não da razão. Como Pascoaes escreve em O Homem Universal:

“A essência das coisas, essa verdade oculta na mentira, é de natureza poética e não científica. Aparece ao luar da inspiração e não à claridade fria da razão.” (Pascoaes, 1993: 7)

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E a sua poesia segue da própria experiência pessoal. Como recetor ativo e passivo, ponte e abismo, o Poeta dialoga com a Natureza que o rodeia, e esse instante de comunicação fica incorporado no Poeta, e ele passa a sê-lo.

“Na composição da minha obra, recorri sempre às minhas experiências emotivas. Fui sincero.” (Pascoaes, 1993: 68)

Mas não basta sentir. Pascoaes gostava de cismar. Será esta a única forma de aceder a esse núcleo, o longínquo profundo da essência das coisas. Desta forma se entende que a poesia fosse para o escritor filosofia, conhecimento, religião, profecia. O seu mundo poético é composto por uma multiplicidade de forças que muitas vezes se mostram antagónicas. A busca contínua pela perfeição obrigava-o a trabalhar no duplo ou triplo ou quádruplo sentido das coisas. Como diria Pedro Sinde, em O Velho da

Montanha:

“Eis o núcleo, o ponto central, o trono em torno do qual todas as paisagens se ordenam e aquilo que era misto passa a ter uma hierarquia, aquilo que ocultava agora desvela: esta é a primeira separação das águas em subtil e espesso.” (Sinde, 2000: 22)

A poesia de Pascoaes vive dessa oscilação, essa simultaneidade de universos que lhe permite ir caminhando adiante, como que a seguir pistas, em direção à

verdade, sem nunca a ter por ponto de chegada. Assim, mais do que o poeta da Saudade, ou da noite, ou das trevas, Pascoaes é o poeta da sombra, onde tudo se

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mas sempre coexistindo. Por isso, é comum receber da sua obra imagens que refletem a indefinição e incerteza: enuncia as horas do crepúsculo como a aurora, a bruma e o nevoeiro, as estações de transição como o Outono e a Primavera. Tal como a sombra, estes são espaços indefinidos onde coincidem os contrários. Também na poesia de Pascoaes se fazem sentir essas indefinições entre fronteiras de opostos, lugar onde concorrem forças antagónicas que se tocam e se chegam a equivaler, tornando-se no seu limite indiferenciadas. Deste jogo de contrastes, desprende-se um significado simbólico que, muitas vezes, é paradoxal. Não é uma escolha inocente: o escritor, recusando aceitar as questões interiores que o dilaceram, opta por fazer uma representação plástica de coisas que se diluem e desfazem no espaço e no tempo, não para se extinguirem, mas para, desta forma, prolongando-se e fundindo-se, lhes possa proporcionar a imagem, a visibilidade, de uma continuidade, de algo que se há-de transformar noutra coisa nova. Uma nova realidade que possa, quem sabe, responder à espiral de dúvidas que fervem dentro de si.

Talvez seja por isso que o universo lexical do escritor está povoado de verbos da mesma área semântica, do gasoso e do líquido, estados em que as coisas perdem uma forma e passam a ter, quando muito, a do continente em que estão contidas: esfumar, esbater, desvanecer, dissolver… Em “Canção Crepuscular”, inserido em

Terra Proibida, escreverá:

“Quando a tarde vem dos céus, Rezemos então a Deus A nossa melancolia: Este vago sentimento De abandono e sofrimento Que o nosso ser anuvia…

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32 E, todo enevoado, cisma,

E, no seu nada, se abisma…” (Pascoaes, 1997: 206)

A loucura não se pode ler sem realçar antes nela este jogo de dualidade. Reconhece-a em algumas personagens que dependem das atenções da Casa. Conhece também o desespero extremo, por que se mata aquele seu irmão, depois de humilhado injustamente por um professor da Universidade.

Ele, que ciente já de algumas dúvidas, por volta dos dezassete anos, se separa da família e ruma a Coimbra para estudar Direito, nunca vai ganhar verdadeiro gosto pela vida boémia ou académica. Compõe a coletânea de poemas Sempre ainda em Coimbra (1898), resultado de uma paixão frustrada que aí lhe acontece. Atinge neles uma maturidade maior que em Embriões (1895), obra que renega, ou Belo (1896 e 1897). Em 1901, termina a Faculdade, certamente cumprindo o que é expectável. Estabelece-se inicialmente como advogado em Amarante, e continua depois a sua carreira judicial como juiz substituto em Amarante. Mas não tarda a abandonar a profissão, pois usufruía de alguma liberdade financeira que lhe permitia viver sem trabalhar. É possível antever que um género de vida mensurável, mundana, rotineira, lhe causaria algum tipo de insatisfação. Não lhe bastaria esta escolha: salienta-se pela verve retórica em causas perdidas: salva quem não espera já ser salvo, porque estava já julgado em público e a lei obedece mais vezes do que parece à justiça medida pelos conformes. A vida parece-lhe uma coisa fugidia, que não se apanha na lei física ou jurídica. A vida não é, consonante as suas próprias palavras, apreensível nos compêndios, mas por uma “experiência direta”, uma “sensibilidade vibrátil e penetrante”. Os fenómenos são “tradução” da essência do mundo:

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“Certos cientistas de carreira julgam apreendê-la (a vida) nos compêndios; [...] Apenas sabem ler nos livros, e os que sabem! São incapazes duma experiência direta, por míngua de sensibilidade vibrátil e penetrante dos fenómenos em que a essência do mundo se traduz.” (Pascoaes, 1993: 8)

Recolhe ao solar de família em São João de Gatão, onde um regrado isolamento lhe permite percecionar a realidade que o circunda e retirar dela o lado mais abstrato e metafísico que lhe alimenta a inspiração. No casarão, recebe os fiéis companheiros de ideais, como Raul Brandão, amigo de longa data, ou ainda os novos poetas da segunda metade do século XX: Eugénio de Andrade, ou Mário Cesariny, já referido. Com seus hóspedes perpetua o hábito contemplativo de admirar a serra do Marão. Almada Negreiros, Federico Garcia Llorca, foram alguns dos poetas que privaram com Pascoaes. Porém, o nosso autor recebia com agrado todos os admiradores que o procurassem.

Em Na Sombra de Pascoaes, Maria José Teixeira de Vasconcelos, sua sobrinha e secretária, refere-se à mãe do Poeta como sendo toda doçura. Foi talvez através desta fonte, que Pascoaes bebeu a religiosidade e o espírito de religação presentes na sua obra. Mas o carácter altruísta e religioso de Teixeira de Pascoaes parece também ter sido bebido no exemplo da velha Tabarda, a ama do Poeta. E uma ideia geral de fraternidade parece instalar-se no solar, diluindo as distinções entre senhores e criados, ricos e pobres.

“Esta boa mulher deixou um filho, mendigo de profissão, a quem Pascoaes sempre tratou por irmão e a quem dava uma boa mesada. Mas não queria que se soubesse para não prejudicar o pobre homem, porque apesar de não precisar, ele não desistia de pedir esmola.” (Vasconcelos, 1993: 24)

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marcaram a sua escrita indelevelmente. Nas suas memórias, frequentemente, relaciona cada personagem que reanima com estímulos do quotidiano:

“[...] mas quem aparece realmente não és tu, Maria; é uma luz que te surpreendi na face magoada. Não és tu que aparece, ó Couta centenária; mas outra imagem, emanada do teu vulto, que me cheira a côdea de milho e a cinza da lareira.” (Pascoaes, 2001: 55)

De entre estas personagens citadas, chama-nos a atenção as que de certa forma estão relacionadas com a loucura. Além deste mendigo de profissão, filho da ama do escritor, Maria José refere também o seu tio António, o irmão do poeta, que se suicidou ainda tão jovem, com um tiro na cabeça.

Os livros que vai publicando têm uma sequência quase anual: Jesus e Pã (1903), Para a Luz (1904), Vida Etérea (1906), As Sombras (1907), Senhora da Noite (1909), a sua obra mais célebre, Marânus (1911), ou Regresso ao Paraíso (1912). A bibliografia é conhecida e vasta, alarga-se a textos mais ensaísticos a partir de 1915 (ano em que publica A Arte de Ser Português) e até a algumas experiências dramáticas, como as que partilhou com Raúl Brandão (como Jesus Cristo em Lisboa, de 1926). Mas vai mudando de temas e formas. Com uma liberdade que muitas vezes não é compreendida. A qualquer momento de vida, a loucura aflora e num momento, se anula toda uma vida racional, com o insulto fácil de se ter alguém por louco. Também Teixeira de Pascoaes foi apupado de louco quando colaborou com Raúl Brandão na feitura do texto de Jesus Cristo em Lisboa, em 1927, e, no entanto, não lhe bastou uma vida inteira dedicada à poesia e à busca pela Verdade Suprema. Viver é estar sujeito a padecer mais que uma vez. A ironia da vida é a loucura ser, ela própria, uma forma de vida.

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Sabe-se que Pascoaes, a determinada altura da vida, quase parou de escrever versos para se dedicar à prosa. Escreveria ele:

“O Poeta morreu, a idade de ser Poeta passou. Voltei-me para a prosa, vingando-me, massacrando-me os meus biografados.” (Vasconcellos, 1996: 53)

Nas “biografias” a que se dedicou, transparece ainda o seu génio apaixonado reforçado pela sensibilidade que o acompanhou em todos as formas literárias a que se entregou. A paixão toldava-lhe as sensações e tanto se apaixonava pela beleza de uma mulher desconhecida, como pela personalidade da sua sobrinha afilhada. Se alguém que admirava profundamente ou o surpreendia, é miticamente que a trata, sejam as mulheres por que se apaixona sejam as vidas de São Paulo (1934), São Jerónimo e a

Trovoada (1936), Napoleão (1940) ou Camilo Castelo Branco, em O Penitente (1942).

Voltamos significativamente ainda ao último terceto do soneto incluído em Sempre, no longínquo ano de 1898, relembrando esta loucura diluída com o conhecimento, desde a sua raiz divina:

“Sou o homem de si mesmo fugitivo; Fantasma a delirar, mistério vivo, A loucura de Deus, o sonho e o nada.” (Pascoaes, 1997: 104)

O tema da Loucura ‒ ainda que vá tendo espaçadas referências em toda a sua obra, em verso ou em prosa ‒ parece-nos mais evidente a partir da publicação de O

Doido e a Morte, de 1913, estendendo-se até à biografia de Camilo, em 1942, e

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Pascoaes parece pelo menos intuir, de forma mais ou menos consciente, o que o universo científico da época, com a emergência da psicanálise, procura demonstrar racionalmente: que o mundo interno do homem, de uma forma generalizada, é propício ao desenvolvimento da loucura. Não temos conhecimento das suas leituras científicas, mas constatamos a sua obsessão pelo tema. Pascoaes não conseguirá talvez conhecer essa loucura, estudá-la ou medi-la simplesmente, através da evolução das ciências. Mas certamente crê na eficácia dos meios sensíveis. No entanto, o diálogo entre a obra de Pascoaes e a ciência sobre essa imanente loucura no ser humano tem, na sua época, possíveis interlocutores. Se consultarmos alguns escritos científicos publicados na sua época, verificamos que, por exemplo, segundo E. Krestschmer, autor de um livro sobre a estrutura do corpo e o carácter (1930), o estado de loucura deve ser compreendido como “forma extrema de um temperamento e de um caráter que se encontra na zona normal” (cf. Baudet, Péan, Gauquelin, 1970: 42). Outros psicólogos e antropólogos das primeiras décadas do século XX procuraram também entender essa passagem do estado “normal” (aceite pela sociedade) e um estado de “loucura” (que não permitia a convivência social e levava ao internamento em hospício) como processo evolutivo/ degenerativo que se viriam depois a revelar em dois tipos de comportamento doentio: as psicoses maníaco-depressivas e as esquizofrenias, delineadas, no final do século XIX, por Kraepelin. É sabida a influência que nesses estudos teve a guerra química usada em grande escala na Grande Guerra (1914-1918): os gaseados apresentavam, de forma mais ou menos permanente, linguagens e comportamentos erráticos, identificados somente pelo conceito de “loucura”. Ao longo do século XX, apesar das alterações das suas tipologias e dos respetivos métodos terapêuticos, permaneceu nos estudos científicos essa divisão básica de Kraepelin. Ainda que associada claramente a uma “doença” mais ou menos incurável, a loucura passa a classificar duas situações tipificadas, entre a “normalidade” da vida social e a sua impossibilidade total, que leva ao hospício-prisão.

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Nos estados bipolares das psicoses maníaco-depressivas, o doente alterna, ao nível do comportamento, entre estados de abatimento e euforia e, ao nível do discurso, entre a dispersão argumentativa e o silêncio. Nestes casos, a loucura é detetada entre a extravagância dos gestos e das palavras e a ruminação de ideias pessimistas sobre o ser humano e a vida em sociedade. Entre dois episódios consecutivos, o doente pode apresentar um “comportamento normal” (Ibid: 43).

Só em casos mais extremos a loucura se apresenta como uma cisão entre o eu e o mundo exterior. Mas, ainda nestes casos, de uma forma mais ou menos difusa. A situação de “esquizofrenia”, derivada etimologicamente do verbo grego “skizein” (fender), abarca um largo leque de sintomas e graus (Ibidem). O indivíduo encontra-se dividido entre o amor e o ódio aos seus semelhantes, ainda mais claramente aos que lhe são próximos. Vive para dentro, convencido da realidade dos seus sonhos e fantasmas.

Torna-se assim possível, entre os finais do século XIX e o século XX, classificar como “loucura”, ou atos de um “louco”, uma dilatada e difusa sensibilidade aos estados ditos “não normais”, num indivíduo melancólico ou em rutura com o mundo social. Passa a não existir um hiato claro entre o dito “louco” e o indivíduo dito “normal”: “Indivíduos normais aparentavam-se então, nitidamente, pela sua maneira de ser, a indivíduos que têm uma psicose” (Ibid: 45). A oscilação entre os dois mundos (o interior e o exterior) criaria estados de tensão, mais ou menos conscientes pelo próprio, que acabariam por desequilibrar o seu comportamento em sociedade, desde logo porque esta identificaria melhor (ou exclusivamente) os sinais da sua doença, as suas bizarrias mais ou menos graves.

A questão torna-se especialmente sensível para o retrato social que é feito dos intelectuais, e muito especialmente para a imagem que é feita dos artistas, e também pelos artistas. O Romantismo (sobretudo nas versões mais ultrarromânticas de finais do séc. XIX) é uma corrente que dá particular relevo ao individualismo, valorizando a rutura entre o poeta, criador de mundos próprios, e a sociedade, que o limita e

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despreza. Sobre este tópico do Romantismo, na edição revista da História da

Literatura Portuguesa de Óscar Lopes e A. J. Saraiva, refere-se:

“Como principais facetas literárias deste individualismo mencionam-se o culto da originalidade pessoal, em oposição à teoria clássica da imitação emuladora; o tema da insaciedade humana, da aspiração indefinida, a dor «cósmica» de simplesmente existir, a obsessão da morte, o autobiografismo direto ou velado, a apologia do herói insociável e amoral ou fora da lei (o pirata, o bandido, o proscrito, etc.). Este individualismo pode ir até ao extremo da autonegação, que se manifesta no gosto do sonho ou devaneio passivos, ou de qualquer evasão imaginativa para alhures no tempo e no espaço (historicismo, exotismo); no sentimentalismo amoroso indizível e irrealizável; [...] no encarecimento de valores poéticos inerentes às lendas cristãs, ao culto católico e ao mais antigo viver aristocrático feudal. [...] É típico sobretudo do romantismo alemão o senso de incomensurabilidade do indivíduo: a dor cósmica (Weltschmerz) e uma ironia de algo que, em nós, se sente transcendente ao mundo e, até, a qualquer expressão poética possível.” (Saraiva; Lopes, 2000: 654-655)

Na sua herança cultural e histórica, dentro do contexto psicossocial do ambiente finissecular em que nasceu, Teixeira de Pascoaes é possuidor das características românticas supracitadas: o Poeta pode assim ser lido como um produto típico do seu tempo finissecular. Também por isso traz consigo um conflito inerente, pois se, por um lado, o final do século XIX foi profícuo em descobertas científicas, sendo nele inegável uma mitificação da Máquina e um endeusamento da Ciência, por outro, está imbuído da descrença nesses mesmos valores, sendo igualmente inegável a reação idealista do fim do séc. XIX. A Ciência não conseguia responder, pelo esvaziamento de conteúdo humano que implicava, às mais íntimas questões do ser humano subitamente afastado da Mãe-Natureza, o espaço onde, até à data, ele poderia absolutamente ser. O poeta romântico exila-se nessa natureza bruta e também a marginalidade de Pascoaes se revê na marginalidade do espaço rústico que ele habita, como ele agreste e indomável:

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“Contemplar este espaço, é contemplar-me; é apropriar-me do meu ser, composto de alma e terra – uma paisagem. A paisagem funde-se, por fim, nesse Marão fantasma, em altos píncaros esquecidos.” (Pascoaes, 2001: 77)

Também Teixeira de Pascoaes defende o regresso à Natureza como meio de colmatar o vazio a que o excesso de civilização levara o Homem a mergulhar. Não que se oponha à razão científica, mas porque a crê limitada quando exclusiva. Pascoaes releva no seu pensamento o papel da intuição, do inconsciente, o poder das forças vitais, espirituais e morais. Não será o único, longe disso. É com valores similares que o chamado neogarrettismo ou neorromantismo se afirma. Não lhe é alheio a experiência lírico-espiritual de Antero de Quental (1842-1891) que espelha o aperfeiçoamento moral e sistemático do Universo em constante aspiração ao Absoluto. De Guerra Junqueiro (1850-1923) bebe a retórica declamatória, o panteísmo místico e o evolucionismo espiritualista que transparece em Oração à Luz. De António Nobre tem em comum o nacionalismo decadente e fatalista onde encontra o sentido que o faz querer reavivar a memória de um antigo Portugal vigoroso. Em Verbo Escuro (1914), Pascoaes salientou em António Nobre a “graça do dizer”, referindo-se a um jeito não tão profundo e com um tom mais familiar e lúdico com metáforas extremamente próximas da realidade material e psicológica. A este respeito escreveu Pascoaes sobre Nobre:

“Moreno coveiro, tocando viola, A rir e a cantar!

Empresta, bom homem, a tua sachola, Eu quero cavar:

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40 Que irá no mar!”

(cf. Nobre, 2000: 39)

Jacinto do Prado Coelho declara, no Preâmbulo de A Poesia de Teixeira de

Pascoaes, que Pascoaes acusava a influência da atualidade literária à época. Refere,

como seu principal modelo, António Nobre e “nas suas queixas de criança envelhecida”, no seu apego à melancolia, na proximidade ao desejo de retorno à infância, a espaços associados com as coisas simples da vida infantil e cristã, como se nelas se guardasse o Jardim perdido. O poeta de Só tinha em comum com Pascoaes a busca pela clausura desse Paraíso, etimologicamente esse “jardim fechado”, em que é possível evitar o confronto violento com a vida urbana, levando-o a habitar em espaços de ilusão alimentados pela memória da infância perdida. Também lhes era comum, a Nobre e ao nosso poeta, aquele estar só rodeado de pessoas: preferiam a solidão, a tristeza, o mundo ficcionado. Mas se António Nobre pode ter-se afastado da vida social por motivo de doença (de resto demonstra na sua obra este desespero de tentar e nunca conseguir alcançar a vida mundana), o mesmo não se passa com Pascoaes. O autor de Sempre cultiva amorosamente este modus vivendi.

“Como eu vos amo, ó tardes de abandono A vossa mágoa é irmã da minha mágoa. Eu sou talvez – quem sabe? – um outro Outono, Folhas mortas caindo… charcos de água...” (Pascoaes, 1997: 107)

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A origem destes pensamentos é elucidativa da vontade egocêntrica de se querer colocar no cerne da vida sem se querer mostrar. Pascoaes não estava preso ao mundo dos prazeres terrenos. Humano em si seria quase apenas o amor pela sua terra natal. Amaria, apesar de todos os seus esforços, não uma mulher real, mas uma “sombra de rapariga”.

“O verdadeiro amor de Pascoaes dirigia-se à natureza, ao silêncio, ao mistério, às alegrias do inefável, aos mortos, aos fantasmas. O mundo fantástico era o seu mundo.” (Prado Coelho, 1945: 12)

É neste contexto, e co-texto, que Pascoaes, diretor da revista A Águia, foi precursor do movimento literário denominado Saudosismo. Nesta revista, juntam-se-lhe outros nomes de comum afeição: Lopes Vieira (1878-1946), Correia de Oliveira (1879-160), Jaime Cortezão (1884-1960), com quem partilha algum apego ao valor deste “casticismo” guardado nas lendas de moiras, nas histórias de fantasmas, nos ditos populares, num mundo particular que por vezes não deixa ver a sua universalidade. Em tempos de mudança, influenciados pelo contexto sociopolítico que se sentia na altura, o tema da loucura é, por arrasto, revisitado. As particularidades dos indivíduos, como as particularidades dos povos, parecem ficar abafadas por uma globalização dos conflitos. Para isso, vimos já, contribuiu a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), quando os avanços tecnológicos potenciaram a letalidade das armas químicas pela primeira vez utilizadas de uma forma maciça. Para além das mazelas nos comportamentos ou na linguagem, este tipo de armas químicas deixou um novo género de estropiados: os de alma. Muitos dos soldados gazeados desenvolveram formas de demência, de exclusão ou de auto-exclusão, provocadas pela violência de uma guerra que se tornou inesperadamente longa, até por causa dos químicos usados nas lutas de trincheira, de lenta progressão. Apollinaire, na guerra, interessou-se por estes fenómenos. Emanava deles uma espécie de linguagem desordenada segundo as regras gramaticais, mas verosímil do ponto de vista simbólico. O espírito de cada

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indivíduo, o espírito de cada nação, onde ficam elas agora? Que fazer delas, quando parecem frágeis, inúteis?

O início do século XX constituiu assim um meio propício ao desenvolvimento das tipologias da loucura e à reflexão de que eram causa e efeito. Por um lado, a evolução das ciências veio minimizar o erro; por outro lado, favoreceu o estudo fervoroso das relações sensíveis, nem sempre eram tidas em conta.

Em que medida não é isto ainda a continuação de um pensamento romântico finissecular? O nosso Poeta procurava encontrar os outros em si. O eu é um reflexo de toda a humanidade. E o Marão, a sua aldeia, são o símbolo de Portugal e do Universo. É nos outros que ele se descobre e desvenda. E o tópico da loucura, sob este aspeto, é agora uma perceção da universalidade do particular, já não exclusiva do Poeta. Como lemos no poema “Quinta da Paz”, o que interessa ao louco comum e ao Poeta é o percurso, inconsciente ou consciente, por entre arquétipos e símbolos partilháveis:

“[…] a Doida que ficou sozinha, neste mundo,/ Julgando ver em todas as crianças,/ Os filhos que perdeu…” (Pascoaes, 1997: 152)

Conhecemos assim pela sua pena muitas personagens que vivem a loucura com a intenção de caminhar em busca da verdade. Na boca de um doido, a razão é ameaçada e tudo conspira para alcançar o verdadeiro. Por isso, Pascoaes recusa a distância ética concedida à loucura: ao contrário, ele aproxima-se dela porque a razão já não se distingue da loucura. Reconhece-se nela, porque é anterior a ela. A loucura é o cenário que distrai a consciência tranquila de uma razão segura de si mesma. Foucault recorda aqueles tempos não muito longínquos da História da Loucura, em que a loucura era interessante, porque reveladora de verdades ocultas:

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“Até o começo do século XIX, e até a indignação de Royer-Collard, os loucos continuam a ser monstros — isto é, seres ou coisas que merecem ser mostrados.” (Foucault,1972: 158)

A partir do século XVIII, os loucos passaram a ser dirigidos para estabelecimentos que se aproximavam da categoria de hospitais. De certa forma, isso aproximava-os já da condição de doentes que a psicologia/ psicanálise vai acentuar. Em A História da Loucura, Michel Foucault refere:

“Alguns hospitais irão testemunhar sobre a existência desse estatuto, através da era clássica e até a época da grande Reforma. [...] é uma maneira, ainda de todo exterior, de abordar uma experiência bastante positiva da loucura ‒ experiência que, retirando do louco a precisão de uma individualidade e de uma estatura com as quais a Renascença o caracterizara, engloba-o numa nova experiência e lhe prepara, para além do campo de nossa experiência habitual, um novo rosto: exatamente aquele em que a ingenuidade de nosso positivismo acredita reconhecer a natureza de toda loucura.” (Foucault, 1972: 138)

Em Portugal, no século XIX, na aldeia em que cresce Teixeira de Pascoaes, há vários tempos no tempo: a loucura não se esconde inteiramente e há ainda qualquer coisa de profético no louco: a memória popular guarda melhor estes saberes que a erudita. É algo para ser visto e ouvido com atenção. O louco já não é um monstro que sobe do fundo de si mesmo, e a loucura é entendida como um conjunto de mecanismos incompreensíveis que, por usufruírem de uma certa liberdade, dessa hesitação racional, pode vagar para um universo verdadeiro, ainda que essa verdade seja do domínio do fantástico. No período clássico, a razão nascia no espaço da ética. A ética, como pensamento ordenado, funcionaria como oposição ao desatino. Mas entre a loucura e a razão, há um movimento de escolha, de liberdade: para alcançar a razão, a loucura tem de ser livremente excluída. Deixa, contudo, a sua sombra durante todo o processo, uma espécie de perigo, pronto a reacender a qualquer momento. No Século

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XIX, frente à loucura, a razão tenderá a posicionar-se como uma necessidade positiva,

e não mais no espaço livre de uma escolha (cf. Foucault, 1972: 58). E todavia, a visão

de Teixeira de Pascoaes sobre a loucura permite-nos uma visão que uns poderão dizer mais antiga, outros mais romântica, outros permanente, sem tempo:

“Cipriano, o doido que falava,/ Além do entendimento…/ Às vezes, com furor, gesticulava,/ cabelo desgrenhado e solto ao vento…/ E falando, lá ia, a sós, pelos caminhos,/ Cheios de sol e de orações de pobrezinhos…” (Pascoaes, 1997: 153)

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Capítulo 2. – LOUCURA E RECONHECIMENTO

A voz da razão

“Jesus foi divinizado pela morte e D. Quixote pelo ridículo. Não haverá parentesco entre a morte e o ridículo? […] Deus criou o mundo por ironia e ri nas estrelas da noite e nas lágrimas da nossa dor.”

(Pascoaes, Livro de Memórias)

A hiperconsideração do Eu é a primeira marca de loucura esquizofrénica. É devido a esta elevada autoconsideração que ele abraça o erro como verdade e vê a mentira como sendo uma realidade. A loucura é consequentemente uma espécie de sonho cujo acordar se receia, por se rebaixar a “auto-estima”. Esse pensamento centrado na autoconsideração, quando levada ao seu limite, parece não ser compatível com o pensamento filosófico, que metodicamente duvida das conclusões que lhe são apresentadas, mas também daquelas a que o pensamento vai chegando. Michel Foucault sintetiza:

“No percurso da dúvida, é possível desde logo pôr de lado a loucura, pois a dúvida, na própria medida em que é metódica, é envolvida por essa vontade de despertar que, a todo momento, é um desgrudar voluntário das complacências da loucura. Assim como o pensamento que duvida implica o pensamento e aquele que pensa, a vontade de duvidar já excluiu os encantamentos involuntários do desatino e a possibilidade nietzschiana do filósofo louco. Bem antes do Cogito, existe a arcaica implicação da vontade e da opção entre razão e desatino.” (Foucault, 1972: 158)

Referências

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