• Nenhum resultado encontrado

LOUCURA E APARÊNCIA

No documento A Ironia da Loucura em Teixeira de Pascoaes (páginas 75-92)

Da Loucura física à metafísica

“De entorpecido espírito sonâmbulo, Sem consciência nem remorsos… Cisma, Alheado nos braços da quimera.” (Pascoaes, O Pobre Tolo)

No contínuo percurso em busca de uma resposta que cale a nossa proposta de compreensão da ironia em contacto com algum tipo de loucura na obra pascoaesiana, torna-se indispensável debruçar sobre o pensamento de Michel Foucault. Se há algum tipo de loucura, então intuímos que há mais que uma tipologia da loucura. Conhecer a arqueologia da Loucura é tentar percebê-la na sua conceção mais abrangente, sabendo- se de antemão que alcançar a totalidade da sua significação será sempre impossível e, por isso, frustrante.

“Afastar-se da razão sem o saber, por estar privado de ideias, é ser imbecil; afastar-se da razão, sabendo-o, porque se é escravo de uma paixão violenta, é ser fraco; mas afastar-se da razão com confiança, e com a firme persuasão de estar obedecendo à razão, é o que constitui, a meu ver, o que chamamos de ser louco.” (Foucault, 1972: 204)

Há sempre um espaço entre a loucura e a razão, um hiato. Neste intervalo, há forças que tendem a restabelecer, com um caráter positivo, as correspondências de confiança com a razão. Entre o mal do corpo e o mal da alma, um e outro podem não estar relacionados: o corpo adoece sem que para isso tenhamos qualquer tipo de

76

intervenção propositada; a alma adoece quando se despreza a razão. (E neste momento, vem-nos à memória, uma aula de Literaturas Orais e Marginais, quando o Prof. Doutor Pedro Eiras disse:

– Não sabemos se temos alma, quanto mais o estado dela!

A questão poderia ficar aqui arrumada. Continuemos, no entanto, partindo do princípio de que sim, temos alma. E de que a vida, como a loucura, necessita de uma existência absoluta. O louco, o portador da loucura, não teoriza sobre a loucura. Ele é- a. É certo, o louco também não teoriza sobre esse absoluto. Mas ele é a representação dessa consciência.

“Na tua velha ponte, S. Gonçalo,

Contempla um pobre tolo as duas margens Do Tâmega. […]

Vives, mas de que serve a tua vida? Não és a tua vida, o teu fantasma, Aéreo viandante. Ficas sempre Preso à tua existência de esqueleto: Pétrea cruz em que estás crucificado.” (Pascoaes, 2000: 151)

O tolo no meio da ponte, hesita. As potências contrárias lutam dentro de um corpo, do qual não tem consciência, e age como uma marioneta. A loucura, no seu absoluto, reduz a vida a uma ação que a auto-relativiza, e não no-la deixa viver (a ela, à vida) na sua plenitude. A loucura é incluída num valor interno e eterno que a consome e não lhe concede a liberdade do simples viver. No limite, no entanto, quando a loucura é confrontada com a razão, o compromisso total com o absoluto pode, por um breve momento, questionar a sua existência ainda que, passado o breve momento, por estar tão presa a esse compromisso, o sujeito volte para o ponto da existência absoluta da loucura.

A condição da loucura tem precedência absoluta em relação à razão. Ponderámos se o seria em relação à vida: mas em oposição, no extremo, o louco não

77

quer morrer. Tem instinto de sobrevivência. A loucura não é apática, é ação sob as suas próprias leis, ainda que esta lógica seja biologicamente positiva. Não empurra para o abismo da morte existencial. Para a morte física, talvez. À frente voltaremos.

A loucura funciona como uma autoridade que, baseada na confiança, evita a insegurança. Retomamos uma questão central: Qual é o tolo que diz que é tolo? Se essa força deixar de ter êxito como autoridade, cria uma descontinuidade nessa crença, e surge um vazio aniquilador. Também deste vazio angustiante vive quem não é tolo. O louco e o não-louco partilham, num determinado ponto da viagem, do mesmo ponto convergente. Karl Jaspers, na Iniciação Filosófica, a este respeito exemplifica:

“Há homens que, por exemplo, jogaram a sua vida na luta solidária por uma existência fraterna no mundo. A solidariedade tinha precedência absoluta em relação à vida de que era condição.” (Jaspers, 1981: 51)

O absoluto implica uma participação no eterno. Ser-se louco, em absoluto, sempre e em todo o lado implica não decidir sobre si. A loucura pode não emergir naturalmente, mas pode estar latente. O louco não tem medo de errar. Não é o erro que constitui a loucura, porque, lá, ele não existe. O erro faz parte desse absoluto, onde tudo cabe porque não há julgamentos. A loucura justifica o erro. Este pertence apenas à realidade, à outra vida, não à vida do louco. A loucura acontece quando há um desacordo entre a vida interior e a realidade. Bruno Cassinelli refere a este propósito que “El espasmo interior destruye la correlación entre la vida y las cosas. Puede estar cada uno en lo cierto, mas, si el hilo que ata ambas verdades se rompe, sobreviene la locura” (Cassinelli, 1942: 89).

A loucura é a vida a padecer quando se perde a intuição vital. Ao perder-se esta intuição, resta-nos olhar o que se vê de fora, o material, o mensurável: podemos contar os versos de um poema, as suas palavras ou as suas sílabas, mas sem o sopro da intuição que lança a hipótese, não lhe poderemos ler a literariedade, talvez nem sequer a literalidade. A Ciência tende a olhar para o aspeto mecânico da doença: a loucura no

78

corpo doente, a loucura na mente alterada, a loucura na apatia do indivíduo. É neste momento que recordamos as palavras de Pascoaes:

“O absoluto é dos poetas e o relativo é da ciência. O sábio observa, analisa, decompõe; o filósofo generaliza, dá o conjunto; o poeta dá o significado anímico das coisas, a sua própria natureza. É ele que me representa o mundo e a sua consciência. Irmão de todas as mães, encerra o segredo criador, essa íntima potência exteriorizante, o aflorar da luz na escuridão.” (Pascoaes, 1993: 19)

A loucura (como de resto, o mundo), segundo o autor, deve ser olhada com maior um olhar mais abrangente que apenas o olhar técnico.

O médico considera a demência como uma doença do corpo. Através da observação do indivíduo (depois de ter sido indiciado pela família, pelos amigos ou por quem rodeie o enfermo, que foram os primeiros a notar a alteração na pessoa), o analista julga-o pelas conversas, pelos seus gestos, pela postura. Nada mais faz que observar o que todos observam e a loucura pode escapar, desta forma, ao olho clínico que apenas alcança a observação fisiológica. O diagnóstico médico da loucura não está relacionado diretamente com alterações físicas porque o organismo pode responder positivamente a todas as questões, mas a mente do indivíduo pode estar desgovernada. Existem sintomas patológicos que, sendo comuns à loucura, podem não estar alinhados com um paciente louco e que mantém até o seu grau de lucidez: lesões dos sentidos, as alucinações, as vozes interiores, o paladar e o olfato alterados, a inadaptação (comum a todos os alienados), a força física superior que demonstram os maníacos, o calor e a temperatura aumentada que emana dos danados. Porém, quem em momentos da sua vida nunca teve algum destes sintomas sem que por isso lhe tenha sido atestada a condição de louco enfermo? As lesões dos sentidos podem ser o resultado de algum acidente. As alucinações não são por si, condição exclusiva dos lunáticos (poeticamente, a visão está, muitas das vezes, ligada aos oráculos e à profecia). A cólera e a inspiração são igualmente condições que podem potenciar a força física de uma pessoa. Noutra perspetiva, se a loucura fosse de facto uma deformidade física, ainda que apenas no cérebro, seria visível aquando de uma

79

autópsia. Ora a autópsia de um louco não apresenta, no geral, ferida visível. Sobre o assunto, em O Livro da Consciência, António Damásio refere que para as alterações de consciência contribui mais vezes um mecanismo químico como as drogas ou os anestésicos, que são reversíveis com uma posologia adequada e imediata.

“Por outro lado, os danos estruturais causados por traumatismos cranianos, acidentes vasculares ou certas doenças degenerativas produzem frequentemente distúrbios de consciência com poucas probabilidades de recuperação completa. Além disso, em certas situações, as lesões cerebrais podem igualmente levar a ataques epiléticos, durante ou após os quais estados alterados de consciência são um dos sintomas de nota.” (Damásio, 2010: 293)

Pareceu-nos oportuno aqui refletir um pouco mais sobre a descrição física da Morte. Seria desafiante pensar na relação entre a fisionomia da Morte e o seu estado de delírio amoroso. Na obra, a Morte aparece como sendo uma mulher. Há vários exemplos na literatura com o mesmo sentido, derivada em parte de ser um substantivo de género feminino. Também em As Intermitências da Morte de José Saramago, a Morte é uma mulher, quase revisitação de um emblema:

“Envolvida no seu lençol, com o capuz atirado para trás a fim de desafogar a visão, a morte sentou-se a trabalhar.” (Saramago, 2005: 187)

Parece-nos que Saramago escolheu a descrição clássica da Morte com um fim propositado. Por um lado, não quereria talvez desviar as atenções da trama que se iria passar, acrescentando-lhe uma descrição diferente que levasse o leitor a gastar tempo no que, a nosso ver, seria irrelevante no processo de leitura a seguir. Proporcionou-lhe o reflexo aproximado da imagem da Morte que habita no inconsciente coletivo de todos nós, cedeu-lhe o aspeto romântico de capa e foice que serviria para engrossar e validar a personagem. O mesmo parece suceder no poema de Pascoaes:

80 “Envolta numa túnica de sombra,

Segurava na mão, só feita de ossos, A Fouce reluzente que ao luar, Tão fria, cintilava! Nos seus olhos, Dois profundos buracos tenebrosos…” (Pascoaes, 1998: 270)

Mas a Morte, no poema de Pascoaes, humaniza-se. Antes do encontro com o Doido tinha um corpo ressequido (cf. Pascoaes, 1998: 270). O amor transformou o seu corpo:

“Mas, em vez – que milagre! – do contacto Duma ossada, sentiu tocar-lhe os lábios A carne viva, quente, apetecida! Caiu aos pés da Parca a negra túnica. E a repentina luz dum corpo em flor […]” (Pascoaes, 1998: 279)

Indiretamente, encontramos aqui um “milagre”. Neste caso, de amor. A transformação que a emoção produziu no corpo tangível, liricamente, foi até capaz de trazer sangue e sede ao esqueleto Supremo. Hipoteticamente, assistimos à metamorfose de uma entidade dita “absoluta”. A Morte como que morreu (do seu estado supremo) para de novo renascer (através do amor, para a vida terrena) disponibilizando-se para a vida humana. Por consequência, permite-se morrer corporeamente ou, num plano sensível, permite-se morrer de pequenas mortes. Quando falamos em pequenas mortes, referimo-nos às várias vezes que, durante uma vida, a realidade que temos como certa, se desconstrói. Como quando por exemplo, alguém se vai embora do nosso quotidiano e temos de reaprender a viver com a

81

ausência dessa pessoa. O tempo de regeneração seria então como a possibilidade de viver uma nova vida.

A loucura revela-se, muitas das vezes, como um efeito das causas morais. De que forma as causas morais poderiam machucar os nervos ou os tecidos? Ou poderiam? Por vezes, as emoções provocam sintomas físicos. Quando esses sintomas passam a doença, a ciência chama-lhe doença psicossomática: quando o paciente crê que tem uma doença, o corpo acaba por desenvolver uma doença. Em resultado dessa crença, motivado por uma reação física que varia (aceleração cardíaca, cegueira, convulsões, paragem respiratória ou até algum sintoma na pele como urticária, as variações são infinitas), o sujeito acredita que tem um problema e a mente, que controla o corpo, estende essa certeza ao plano físico, concretizando-a. À pergunta “poderá haver consciência sem sentimentos?”, António Damásio responde:

“A resposta é não. Introspectivamente, a experiência humana requer sempre sentimentos. É claro que os méritos da introspecção podem ser postos em causa, mas mesmo assim precisamos de explicar o motivo pelo qual os estados conscientes nos surgem da forma como surgem nesta mesma introspecção.” (Damásio, 2010: 301)

Cabe nesta perspetiva, refletirmos sobre a condição da Morte que, consciente, com sentimentos, viva, passaria, ironicamente e diretamente a assumir uma dimensão humana.

“E não te oculto mais a simpatia Que já por ti eu sinto, muito embora, O inexorável fado me proíba

Qualquer doce fraqueza ou sentimento Que possam porventura humanizar-me.” (Pascoaes, 1998: 277)

82

E de repente, surge uma hipótese de reflexão sobre a Morte: fria, inalterável, desalmada, sem compaixão, enfim, sem emoções, a que volta à razão, a que volta ao seu ofício, ao seu destino, inteira, é a que não tem sentimentos, a que não é humana. O Doido por seu lado, é o que tem sentimentos, o que anda pelo mundo sorrindo, cantando, mas é também o que não tem consciência: o Doido que deambula pelo mundo sem rota, e sem noção. É como se tivessem os papéis invertidos. A pergunta que se eleva da equação: afinal, o ser humano é o que tem consciência? Como assim, se a Morte, que não é humana, é quem a tem? A inversão irónica dos papéis é justificada por dela provir um novo saber. Desta esquizofrenia de personagens, entre quem sente sem consciência e quem não sente que tem consciência, eleva-se um saber que atrai por estar vedado e ser de difícil acesso. O acesso a esta sabedoria tem-na o Doido em estado bruto e assim também é facultada ao leitor através do cenário louco e enviesado em que os personagens estão colocados. Michel Foucault afirma:

“Este saber, tão inacessível e temível, o Louco o detém em sua parvoíce inocente. Enquanto o homem racional e sábio só percebe desse saber algumas figuras fragmentárias — e por isso mesmo mais inquietantes —, o Louco o carrega inteiro em uma esfera intacta: essa bola de cristal, que para todos está vazia, a seus olhos está cheia de um saber invisível. [...]” (Foucault, 1972: 63)

O leitor é convidado a assistir ao vivo ao nascimento de uma nova realidade: uma morte em vida, quando as personagens, em estado bruto, se despedem, pelo contacto com a Morte, sujeito consciente, dessa capa da realidade brutal que tinham até esse momento dada como certa, imutável, porque verosímil:

“Ce qui caractérise la folie, ce n’est pas simplement un aveuglement, mais un aveuglement aveuglé à lui-même, au point de nécessairement comporter une illusion de raison. […] Du moment que la folie, en tant que telle, comporte nécessairement un acte de foi en la raison, toute conviction raisonnable est en droit suspecte de folie.” (Felman, 1978: 37)

83

Esta citação faz-nos pensar que a personagem da Morte não poderia ser substituída por outra de função de menor relevância. O Doido não se poderia apaixonar por uma talhante ou uma caçadora, ou por alguém que se limitasse a tirar a vida, exercendo esse seu ofício de dia-a-dia, de uma forma banal. O autor teve de eleger a Morte das mortes para esta personagem. Ele teve de criar um cenário verosímil, credível (ainda que, à primeira vista, fosse mais fácil o Doido encontrar uma talhante ou uma caçadora do que a própria Morte a cavalo) para que a nova sabedoria pudesse emergir. Neste poema explicitamente alegórico, é possível falar de uma “retórica da loucura” neste caso de O Doido e a Morte quando o Doido se materializa num discurso da própria loucura. Por outro lado, a Morte incorpora a loucura passional, com origem na paixão inflamada, um delírio.

“Não é mais possível estabelecer uma divisão entre o sentido e a loucura; apresentam-se conjuntamente, numa unidade indecifrável em que podem passar indefinidamente de um para outro: Nada existe, por mais frívolo que seja, que não seja de algum modo bastante importante; não há loucura, contanto que seja bem seguida, que não passe por sabedoria.” (Foucault, 1972: 113)

Existe uma semelhança entre a razão da Morte e a loucura do Doido. Algo passa a uni-las. Aquilo que as opunha metamorfoseia-se numa espécie de fidelidade ilusória que vai preencher o vazio com algo que é aparência, porém aparência da própria razão. O que, tradicionalmente, oporia o saber da razão do ser humano com o saber da loucura da morte é agora substituído por uma oposição mais complexa e de contornos mais difíceis de esclarecer. Na loucura, não havia razão mas somente um lugar vazio. Essa ausência de razão ganha um relevo positivo, quase se auto- conformando: um jogo de semelhanças que engana sem, no entanto, enganar. O louco distanciava-se da razão mas apresentando argumentos, imagens, crenças, tal e qual como se fosse um homem de razão. O louco não conseguia ser louco para si mesmo, pois ele simplesmente crê no que diz. Apenas aos olhos de outrem, um louco pode ser

84

louco porque só este terceiro olhar, vai poder distinguir o exercício da razão da própria razão. A loucura faz parte de um teatro de aparências.

O discurso da loucura veste-se de diferentes roupagens. Em O Pobre Tolo, o discurso segue na segunda pessoa do singular onde a descrição da figura do Tolo é o diagnóstico “clínico” da própria loucura.

“Cismas, falas contigo, falas alto… Envolves-te num fumo perturbante. Foge-te a alma em lívidas palavras. […] Chamam-te duas vozes. Para quê? Não te decides nunca. Não resolves Tomar um ruo definido. Hesitas… […] Instável, doloroso, em que resistes À tentação do Abismo…” (Pascoaes, 2000:152)

O Tolo é a personificação da própria loucura e a loucura predispõe-se a ser vista. Quando o homem contempla, ao longe, a figura do Tolo, essa figura tão estranha que, parado na ponte de São Gonçalo, se contempla a ele próprio as duas margens, sem saber para que lado há-de ir, numa espécie de mise-en-abyme que se estende num infinito de espelhos verdes. Metonimicamente, o Tolo é esse espetáculo grotesco da loucura, que o torna desumano. O homem que o vê ao longe, quer afastar-se, mas é para onde secretamente ele é atraído. Falar do Tolo é falar da loucura. Falar do Tolo é colocar a loucura no Outro. É falar de si próprio, mas através do Outro. O Tolo é, uma vez mais, um Poeta que se pensa, pensando ainda o que o rodeia, sem se agarrar à objetividade que tornaria o sujeito somente objeto.

“[…] Mas também no silêncio é que se criam Murmúrios vagos, ilusórias vozes,

85 Converte em claros sons articulados,

Medidos e ritmados, que adormecem As crianças de todas as idades!” (Pascoaes, 2000: 154)

É certo que a figura do Tolo é uma figura melancólica, contemplativa, que evita companhia e prefere lugares isolados. O espírito reflexivo do poeta-filósofo é propício à imaginação. Porém Foucault, pensando nessa velha imagem do intelectual, distingue claramente entre o melancólico e o maníaco:

“O espírito do melancólico é inteiramente ocupado pela reflexão, de modo que a imaginação permanece em repouso e em estado de lazer. Enquanto o espírito do melancólico se fixa num único objeto, impondo-lhe, apenas a ele, proporções irracionais, a mania deforma conceitos e noções; ou então perdem sua congruência, os seus valores representativos são falseados; de todo modo, o conjunto do pensamento é atingido em seu relacionamento essencial com a verdade. Enfim, a melancolia sempre se faz acompanhar pela tristeza e pelo medo; no maníaco, pelo contrário, pela audácia e pelo furor.” (Foucault, 1972: 297)

Interessante é a forma antiga, que remete ainda para a medicina dos humores, como este antropólogo faz a descrição física de um melancólico, tomado pela bílis negra:

“a cor da pele é amarelada, a língua é seca como a de alguém muito perturbado, os olhos são secos, vazios, nunca umedecidos por lágrimas; o corpo todo é seco e áspero, e o rosto sombrio e coberto pelo horror e pela tristeza […]” (Foucault, 1972: 297)

Mas leia-se o Ensaio de Jacinto do Prado Coelho, para demonstrar a dificuldade em avaliar os limites da “tristeza” e do “furor”, da retração e da audácia:

86

“Em face da tortura humana, e do aparente destino do homem, que é a morte, o poeta não reage, nem se revolta: conforma-se. É por natureza doce e resignado. Lê-se no seu olhar o sentimento de uma grande paz. A sua tristeza é quási alegre, […] a alegria de quem aceita uma lei religiosa (em tudo o poeta vê manifestações da Lei), e comunga na vida tal qual é, feita de vida e de morte, de alegria e de sofrimento. […] Goza a melancolia, que se torna, […] o seu prazer habitual e maior […] Pascoaes ama a tristeza porque nela descobre o caminho de uma alegria transcendente.” (Coelho, 1945: 67)

Em jeito de curiosidade, numa e noutra descrição, aparece-nos o que parece ser a imagem do próprio Teixeira de Pascoaes quase a servir de ilustração ao que vai sendo dito sobre ele. Damos como exemplo a Fotobiografia de Teixeira de Pascoaes, de António Mega Ferreira, onde não raro as fotografias escolhidas de Pascoaes parecem fazer jus às descrições físicas e psicológicas registadas pelos investigadores

No documento A Ironia da Loucura em Teixeira de Pascoaes (páginas 75-92)

Documentos relacionados