do problema da eternidade do mundo
em S. Tomás de Aquino
1. Instauração do problema
E m diversos passos da obra de S. Tomás de Aquino evidencia-se
a problematização do carácter durador das coisas criadas, tornando-se
manifesta, pela extensão de tratamento reflexivo concedido, a i m p o r
-tância momentosa desta questão n o pensamento escolástico da época
do D o u t o r Angélico
1.
As origens do problema da duração do m u n d o criado remontam
às formulações mais antigas da doutrina dos Padres da Igreja que,
defendendo a originalidade da tese revelacional da criação do m u n d o
e da própria matéria por Deus, interpretam de variadas maneiras e
contrapõem de u m m o d o geral às concepções helénicas acerca da
eternidade da matéria e do cosmos
2. N o pensamento patrístico
1 Neste artigo trata-se, apenas, d o l e v a n t a m e n t o d o p r o b l e m a e m S. T o m á s , excluindo-se
as vias de solução e o extenso desenvolvimento da questão. R e f i r a m - s e c o m o passos mais importantes relativos ao p r o b l e m a da eternidade d o m u n d o S. TOMÁS, Sum. theol., I, q. 46; Sum. c. Gent., II, 30-38; II Sent., d. 1, q. 1; Compend. theol, 98; e sublinhe-se o aparecimento, e m cerca de 1270-1271, d o opúsculo De aeternitate mundi contra murmurantes.
2 Para a cultura filosófica helénica a eternidade d o m u n d o era u m a consequência n o r m a l da concepção divina d o m e s m o . Só c o m o pensamento hebraico e as concepções dos Padres da Igreja é q u e se problematiza o sentido da eternidade d o m u n d o , encetando-se u m a polémica n ã o só contra os filósofos não-cristãos, mas t a m b é m contra o gnosticismo cristão. Cf. Claude TRESMONTANT, La métaphysique du Christianisme et la naissance de la philosophie chrétienne, Problèmes de la Création et de l'Anthropologie des origines à Saint Augustin,
Paris, D u Seuil, 1961, p p . 214-242.
322
d i d a s k a i . i aexistem divergências quanto ao carácter da temporalidade do mundo
criado, admitindo-se ora u m sentido de coeternidade da criatura
ao Criador, em fórmulas predominantemente afectas ao pensamento
alexandrino
3, ora u m sentido de finitude coincidente com o próprio
tempo criado, numa tendência que procura obviar a todo o perigo
mais ou menos próximo de assimilação panteísta do Criador na
criatura
4.
Este problema da eternidade do mundo, embora já equacionado
e resolvido no âmbito doutrinal dos ensinamentos da Igreja, que
durante a Alta Idade Média lhe concedeu uma feição pouco
rele-vante, torna-se uma das questões mais importantes do pensamento
escolástico do séc.
XIIIapós o contacto havido e o grande
inte-resse despertado pelas obras de Aristóteles. As concepções do
Estagirita sobre a duração persistente da matéria e o sentido da
eternidade do cosmos pelo carácter de circularidade do ritmo
temporal, retomadas com certo aliciante de novas e ousadas
inter-pretações destes temas elaboradas por alguns filósofos árabes e
cristãos de tendência averroísta, constituem os motivos conjunturais
da localização deste problema no quadro próximo da reflexão
tomista
5.
3 E m Clemente de Alexandria, bem como em Orígenes, encontra-se a concepção
da eternidade da Criação, argumentando-se tanto pela impossibilidade da cessação do acto criador divino, quando pela impossibilidade de se admitir u m Deus ocioso «antes» da Criação. Eternidade da Criação e não propriamente eternidade de u m mundo, a não ser que o sentido de m u n d o se torne equivalente à universalidade da Criação. Cf. CLEMENTE DE ALEXANDRIA, Stromatas, VI, c. 16, (PG, IX, 369): «Où TOÍVUV &aneç> Tivèç úxoAafx(3ávouai TY)V ávamx-ucriv TOÜ ©EOÕ 7réraxvraa 7toitõv ó ©sóç • à y a f t ò ç y à p ù v , ET 7raúa£Toa TOTE àya&o-epycov, Hr TOÜ ©eòç eivou Trauas-rca (...) IIõSç 8 ' á v Èv xpóvcò yévoiTO, xTtaiç, CTuyysvofiévou TOÏÇ o5ai x a l TOO xpóvou;» ORÍGENES, Contra Celsum, IV, c. 65, (PG, XI, 1133): «'Ofxoía S'arc' à p / í j ç síç TÉXOÇ y) TÓW ftv^Tcõv rtspíoSoç • x a l x a x à TÀÇ TE-rayjjivaç ávaxuxX^aEiç áváyx?) Tà aù-rà á s t x a l ysyovávai, x a t Eivai, x a l ëaea-è-ai..»
4 Santo Ireneu e S. Gregório de Nissa, bem como mais tarde Santo Ambrósio e
depois Santo Agostinho, defendem a distinção entre a criação e a eternidade, admitindo que é inerente à noção de criação o sentido de começo temporal e respectivo termo no tempo. C f . IRENEU, Adv. Haer., II, 3 4 , 2 ( P G , V I I , I, 8 3 5 ) ; GREGÓRIO DE NISSA, De hominis opificio, X X I I I , 2 0 9 .
5 A doutrina do eterno retorno é reposta na discussão que no séc. x m se estabelece entre os doutores cristãos ortodoxos e os filósofos de inspiração aristotélica. S. Boaventura na continuidade dos pensadores augustinianos serve de contraponto à posição de S. Tomás perante a intromissão do pensamento aristotélico no que respeita ao problema da eternidade do mundo. A influência árabe dos processos de dialéctica de câlâm (palavra, disputa), bem como a progressiva autonomia concedida à razão em complementaridade com o plano da fé, são repostas por S. Tomás na metodologia do problema. Cf. Claude TRESMONTANT, La Métaphysique du Christianisme et la crise du XIII' siecle, Paris, D u Seuil, 1964, pp. 216 e segs.; cf. tb. S. MUNK, Mélanges de philosophie juive et arabe, Paris, Vrin, 1955.
A relação entre o pensamento árabe, que interpreta e afeiçoa
a sua doutrina da eternidade do m u n d o de harmonia c o m os
princípios da religião revelada, e os interesses especulativos da
filosofia escolástica, que procura levar às últimas consequências a
cristianização doutrinal e o aproveitamento reflexivo da luz natural
da razão, determina-se como amplitude alargada do âmbito da
questão da eternidade do m u n d o , re-descoberta e re-definida como
o problema da Natura.
Durante o séc.
XIIIo problema da Natureza entendida como
conjunto dos seres naturais e físicos, ou como m u n d o fenomenal
existente, torna-se relevante e manifesta-se não só na estética da
cultura humanista e naturalista instituinte, por exemplo, do tipo
iconográfico da catedral gótica, c o m o espelho da natureza e modelo
arquitectónico da mesma, mas t a m b é m nas formulações
especula-tivas das Sumas em que se tecem os pensamentos unificadores da
diversidade das coisas criadas
6. A manifestação da Natureza, a
exclu-sividade do m u n d o criado, a unidade causal do mesmo, o sentido
orgânico da História — eis vários índices sintéticos do estatuto da
questão àcerca do m u n d o , que só a partir desta época pré-renascente
se torna legítima como tema a u t ó n o m o de reflexão e a título de
razão de ser determinante de u m problema como o da eternidade
do m u n d o
7.
Contudo, apesar de se poder justificar o carácter determinante
desta grande importância que adquire o problema da eternidade do
m u n d o por u m suposto predomínio das coordenadas
histórico--filosóficas que enquadram o pensamento de S. Tomás, não é só
u m motivo conjuntural da dinâmica do pensamento na época do
D o u t o r Angélico que está efectivamente a delinear esta questão.
Além da condição de historicidade, que situa em termos privilegiados
no pensamento escolástico e tomista da Idade Média o problema da
eternidade do m u n d o segundo a perspectiva da filosofia
contem-porânea, perdendo de vista o sentido da contemplação metafísica da
6 Sobre esta acepção de naturalismo medieval cf. Émile MÂLE, L'art religieux du XIII'
siècle en France, Etude sur l'iconographie du moyen âge et ses sources d'inspiration, Paris, A. Golin, 1958, t. I, pp. 75 e segs.
7 E m b o r a se pretenda que a noção de m u n d o c o m o indicativo temático de u m a reflexão filosófica surja j á na antiguidade, o u na problemática renovada da escolástica d o séc. xra, esta noção só v e m a ser plenamente tematizada n o pensamento renascentista de Nicolau de Cusa e de Giordano B r u n o . C f . Vár. aut., Idée de monde et Philosophie de la Nature, in «Recherches de Philosophie», VII, Bruges, Desclée de B r o u w e r , 1954; J. CERQUEIRA GONÇALVBS, Homem e Mundo em S. Boaventura, Braga, ed. Francis., 1970, pp. 111-158.
324
d i d a s k a i . i ahistória tal c o m o era proposta na filosofia medieval, revelam-se
circunstâncias de alteração estrutural de procedimento estético, lógico
e ético na formulação do problema da natureza, ou do m u n d o
8.
A questão da eternidade do m u n d o constitui parte integrante do
problema geral cosmológico, que não está determinado pelo sentido
temporal da própria indagação mas constitui o elemento central e
mediador ou base de referência da arquitectónica sistemática da
visão ampla do universo. C o m o problema cosmológico a questão
acerca da eternidade do m u n d o insere-se, não tanto nas
deter-minantes epocais, mas, sobretudo, nas condições estruturais, que
legitimam ao nível da expressão, do nexo causal e da finalidade
ética a sua possibilidade e o seu esclarecimento. A eternidade ou
a não-eternidade do m u n d o decide-se n o quadro problemático da
acepção de m u n d o , que é entendido primeiramente como natura
e só mais tarde v e m a adquirir características estéticas fenomenais,
lógicas e ontológicas e até u m sentido ético de destinação que
acaba por recuperar u m primitivo sentido transcendente da N a t u
-reza
9.
Este sentido de Natura, que tinha correspondido ao indicativo
de uma reflexão transcendente sobre a diferenciação do processo
originante, e se aplicava como termo legítimo ao próprio Deus
criador, torna-se significativo do predomínio de uma reflexibilidade
veiculada por u m a sensibilidade predominantemente óptica, aliás
tradutora do sentido da visão mística e da metafísica da luz na
especulação natural da r a z ã o
1 0. A visualização da Natureza como
8 Apesar da influência d o neo-platonisnio árabe de Avicena e d e Al Gazâli, e d o aristotelismo averroista, S. T o m á s afasta-se cada vez mais ao l o n g o da sua reflexão dos m o t i v o s circunstanciais desta questão t o r n a n d o - a u m m o m e n t o essencial e original na e c o n o m i a d o seu p e n s a m e n t o . C f . S. TOMÁS, Sum. theol., I, q. 46, a. 1: Utrum universitas creaturarum semper fuerit; a. 2: Utrum mundum incoepisse sit articulus fidei; a. 3: Utrum creatio rerum fuerit in principio temporis; reparando-se na estrutura expressiva e lógica destes três m o m e n t o s .
9 Sobre o sentido p r i m i t i v o de natura n o t e m - s e as acepções contidas n o De divisione
naturae de Escoto Eriúgena e a importância f u n d a m e n t a l das funções ontológico-lógicas que c u m p r e . C f . C . H . DO CARMO SILVA, «O p e n s a m e n t o da diferença n o «De divisione naturae» d e Escoto Eriúgena», in: Didaskalia, vol. III, 1973, sobret. p p . 295-300.
1 0 O simbolismo da metafísica da luz, q u e irá mais tarde p r o m o v e r o esboço dos
temas da ciência óptica, aparece i n t i m a m e n t e associado ao platonismo augustiniano que se e x p r i m e e m Santo A l b e r t o M a g n o , W i t e l o , T h i e r r y de F r i b u r g o , etc. A visão mística da natureza solar, sinal d o p r ó p r i o C r i a d o r , vai-se substituindo c o m a crise da matemática, da astronomia e da dióptrica, e c o m o interesse pela biologia, pela história natural, o sentido da natureza q u e é iluminada p o r D e u s n u m p l a n o físico da Criação. N ã o é j á a natura naturans, mas u m a natura naturata c o m o diria Espinoza. C f . Alexandre KOYRE, «Les Origines d e la Science M o d e r n e — U n e interprétation nouvelle», in: Diogène, 1 9 5 6 , 1 6 (Paris-Gallimard), p p . 14-42 ( R e e d . in: Études d'Histoire de la Pensée scientifique, Paris, P . U . F., 1966, p p . 48-72).
conjunto dos seres naturais, isto é, como coisas criadas fisicamente
manifestas e constitutivas da unidade causal do mundo visível,
destituindo o carácter transcendente de u m visionar re-criador que
poderia promover infinitos mundos possíveis, determina a
unici-dade do sentido de u m mundo como estatuto de realiunici-dade
exclusiva
11.
Apesar de degradada a noção de Natura quando utilizada nesta
acepção expressiva de conjunto de seres naturais ou de unidade
estética do mundo, o sentido especulativo causal e arquitectónico
da natureza não se limita a uma justificação racional do m u n d o
fenomenal no seu estado de existência presente, mas permite a
radical inteligibilidade modelar das transformações que determina
a um nível profundo de causalidade o mundo essente e arquetípico
ou o sentido essencial da Natureza
1 2.
Porém, o sentido cosmológico e até ontológico da questão
acerca da eternidade do mundo não se situa dentro da metodologia
do pensamento de S. Tomás ao nível de uma investigação
transcen-dente do próprio estatuto da razão, que se contagiasse de u m
processo gratuito numa via mística, ou sequer se estruturasse em
arquétipos mentais que, participados numa ordem de
supra-causali-dade, permitissem qual alquímica transformação das estruturas
essen-ciais da Natureza
1 3. Outrossim, tal questão aparece
fundamental-mente circunscrita pelas coordenadas morais e pedagógicas patentes
no pensamento de S. Tomás, concretizando-se na elaboração
defi-nida e típica de uma questão escolástica
14.
11 O t e m a dos infinitos m u n d o s possíveis, que irá surgir na especulação de G i o r d a n o
B r u n o r e t o m a n d o a lógica infinitesimal, q u e j á tinha sido proposta desde a antiguidade e tematizada n o p e n s a m e n t o de Anaxágoras de Clazómenas, está o b v i a d o na d o u t r i n a aristoté-lico-tomista que concede u m ú n i c o estatuto racional ao m u n d o e c o m o m u n d o . C f . Pierre DUHEM, Le Système du Monde, Histoire des Doctrines cosmologiques de Platon à Copernic, Paris, H e r m a n n , s. d., t. V .
1 2 O sentido radical da natureza é o de essência existente. A causalidade que se exerce neste plano p r o f u n d o e criador subalterniza as chamadas causas segundas q u e se e x e r c e m a partir d o estatuto de natureza criada. C f . P . DUHEM, id., t. V , p p . 468 e segs.
1 3 N ã o será de excluir o c o n h e c i m e n t o de S. T o m á s e m relação à ciência alquímica, que era n o t a v e l m e n t e possuída pelo seu mestre Santo A l b e r t o M a g n o . Mas, m e s m o sem a referência esotérica, S. T o m á s p o d e remeter a u m a o r d e m de causalidade e n t r e realidades p u r a m e n t e inteligíveis, n u m nível angélico, apenas m e n t a l sem o contacto c o m o sensível.
1 4 A quaestio c o m o u m dos vários processos escolares da época desenvolve-se e m artigos, p o r seu t u r n o , analisáveis e m três partes: A apresentação de dificuldades e m relação à tese; a apresentação de c o n t r a - a r g u m e n t o s ; e, a resposta c o m as respectivas soluções da questão. Este p r o c e d i m e n t o a r g u m e n t a t i v o constitui u m a espécie de t r i b u n a l da razão, influência p r o v á v e l da tradição d o direito r o m a n o . C f . G. PARE, A. BRUNET, e P. TREMBLAY, La renaissance du Xlle siècle. Les écoles et l'enseignement, P a r i s - O t a w a , Vrin, 1933.
326
d i d a s k a i . i aO problema da eternidade do m u n d o , manifestante de
perplexi-dades de compreensão e significativo de uma dificuldade inteligível
de conciliar o sentido da finitude do m u n d o com o da infinita
duração, pode possuir as raízes históricas j á referidas, mas o que
o determina essencialmente sob a forma de uma questão dentro
dos tipos de argumentação clássica é o sentido pedagógico realizado
a título de magistério da Ecclesia n o intuito esclarecedor e didáctico
das obras de S. Tomás. N a estrutura especular das Sumas, na
divisão tripartida das mesmas (correspondendo a parte central ao tema
da criação em geral), nas questões relativas aos seres criados e à
temporalidade dos mesmos e nos artigos sobre o problema da
eternidade do m u n d o , construídos segundo a estrutura c o m u m de
disputa e solução das dificuldades surgidas nesse procedimento
dialó-gico, encontram-se o ritmo de exposição, a objectivação
termino-lógica, o m é t o d o reflexivo e o espaço mental que transformam o
problema da eternidade do m u n d o na questão pedagógica
respec-tiva
1 5.
Esta argumentação típica de u m processo escolástico de encarar
o próprio exercício de u m a razão constrangida por uma leitura
determinativa das suas possibilidades lógicas, n o que se refere ao
problema da eternidade do m u n d o , surge formulada n o opúsculo
«De aeternitate m u n d i contra murmurantes», nos «Comentários às
Sentenças», no «De potentia», além dos artigos das «Summa
Theolo-gica» e «Summa contra Gentiles» em que o D o u t o r Angélico se
refere ainda de u m m o d o mais sistemático à questão em causa
1 6.
O indicativo deste e de outros textos fundamentais, em que
se escreve esta questão, logo denuncia uma precedência do próprio
processo de leitura, que se supõe prévio porque justamente
corres-p o n d e a u m m é t o d o de acorres-prendizagem, a uma excorres-pectativa de u m
saber feito e per-feito que corresponde ao desenvolvimento natural
das possibilidades da razão humana. N ã o se trata de uma ars
inveniendi, n e m de u m a investigação dialéctica e transcendente, mas
1 5 O tribunal da razão a q u e S. T o m á s s u b m e t e todos os problemas adquire u m carácter
p e d a g ó g i c o dada a intenção ética e apologética d o uso da p r ó p r i a razão. Só n u m pensador c o m o K a n t é q u e se encontra pensada a razão d o p r ó p r i o tribunal, o u seja, a razão j u r í d i c a d e t e r m i n a n t e .
1 6 N o s vários t e x t o s referidos n ã o se p r e t e n d e u m estudo c o m p a r a t i v o histórico da discussão d o p r o b l e m a d e eternidade d o m u n d o , mas apenas salientar o c o n s t r a n g i m e n t o lógico c o m u m a t o d o s eles, o u seja, p ô r e m relevo o m é t o d o d o p e n s a m e n t o de S. T o m á s . C f . M . L. COLISH, The Mirror of Language A Study in the Medieval Theory of Knowledge,
de u m m é t o d o em que as condições de leitura, de aprendizado
ou de comunicação (no sentido de permuta do que já é comum)
predeterminam as possibilidades expressivas, a semântica
termino-lógica e os graus de liberdade dos nexos lógicos e morais que
articulam e desenvolvem a quaestio
17.
O m é t o d o pedagógico do pensamento de S. Tomás, e m cujo
estatuto se insere o âmbito da questão sobre a eternidade do m u n d o ,
correspondendo aliás à precedência de uma leitura possível e
ulte-riormente realizável segundo a c o m u m conformidade e acessibilidade
dos procedimentos racionais, manifesta uma relação intensa e decisiva
com os valores éticos que presidem à questão cosmológica. O valor
antropológico e até antropocêntrico do problema cosmológico em
geral e, nomeadamente, da questão acerca da eternidade do m u n d o ,
manifesta a determinação moral do pensamento do D o u t o r Angélico,
na medida em que na problematização e m causa se insere uma
investigação, não tanto acerca de uma génese cosmogónica, mas
sobre o estatuto do m u n d o criado e sua conciliação c o m os valores
éticos do h o m e m , simbolizando-se o m u n d o c o m o u m espaço
eminentemente axiológico
1 8.
O valor simbólico da questão pedagógica acerca da eternidade
do m u n d o pode equacionar-se na contraposição de u m sentido
positivo de eternidade c o m o sinal de perfeição e m relação a uma
acepção negativa do m u n d a n o finito e criado, mas que possa supôr-se
dure também eternamente.
A finitude do h u m a n o enquanto considerada pelos limites da
sua circunscrição existencial definidos n o tempo m u n d a n o parece
destituir de valor ético a eternidade possível do m u n d o , por
extrín-seca à área de liberdade e consciência delineadas pelo h u m a n o .
1 7 Sobre a lógica presente na a r g u m e n t a ç ã o e m f o r m a d e quaestio cf. o estudo j á referido
d e G . PARÉ, A . BRUNET e P . TREMBLAY, La renaissance du XII' siècle; cf. t b . W . e M . KNEALE,
The Development of Logic, O x f o r d O x f . C l a r e n d o n Press, 1971, p p . 225 e segs., e m que se torna relevante a influência peripatética n o s escritos da escolástica tomista e se contrasta essa lógica silogística c o m o pre-leibnizianismo de u m R a i m u n d o Lúlio e a sua arte c o m b i n a t ó r i a c o m o u m a ars inveniendi «avant la lettre». Sobre a lógica silogística lembrar-se-ia a crítica q u e lhe é dirigida p o r DESCARTES: «(...) j e pris g a r d e que, p o u r la logique, ses syllogismes et la plupart de ses autres instructions servent p l u t ô t à expliquer à autrui les choses q u ' o n sait (...) q u ' à les apprendre». (Discours de la Méthode..., II, A d a m - T a n n e r y , t. VI, p. 17).
1 8 A articulação essencial entre a criação e o C r i a d o r insere-se n u m a o r d e m de fé nela se reflectindo o sentido axiológico insusceptível de ser decidido n u m a o r d e m de consideração racional m e r a m e n t e natural. C f . Sum. theol., I, q. 46, a. 2: « R e s p o n d e o d i c e n d u m q u o d m u n d u m n o n semper fuisse, sola fide tenetur et d é m o n s t r a t i v e p r o b a r i n o n potest; sicut et supra (q. 32, a. 1) de mysterio Trinitatis d i c t u m est.»
328
d i d a s k a i . i aPor outro lado, o valor moral que se pretendesse descobrir n u m
m u n d o considerado eterno remeteria, quer a uma perenidade do
imperfeito e do finito da criatura, qual régio dissimilitudinis, quer
a u m a coeterna e quase divina valorização do próprio m u n d o
transcendente aos valores éticos do h u m a n o e sua finitude
1 9.
A questão do valor moral simbolizado na eternidade do m u n d o
não se deve pôr em termos de u m confronto de temporalidades
humana e mundana, aliás ambíguo no seu sentido de tempo eterno
2 0,
mas situa-se c o m o tensão significativa entre o m o d o existencial e
h u m a n o na sua finitude concreta e o m o d o da concretização
essencial que garante a eternidade do h o m e m através do seu
esta-tuto de ser natural, participante da natureza, sendo esta a garantia
da permanência dos valores morais que realizam o h u m a n o n u m
destino cósmico.
Trata-se da relação entre o h o m e m e o m u n d o em que se
descobre c o m o aquele se torna o espaço simbólico e objectivo de
realização moral, essencialmente mediador e decisivo para que esta
dimensão do h u m a n o se assuma plenamente, não só ao nível dos
valores permanentes da espécie humana, mas também no
constitu-tivo individual e essencial que pode dizer-se quase como u m
estar-- n o estar-- m u n d o e n u m serestar--para e porestar--esseestar--mundo
2 1.
O enquadramento moral da questão acerca da eternidade do
m u n d o tipifica-se n o pensamento de S. Tomás através da
corres-pondência e complementaridade entre o sentido do m u n d o e o
sentido do m u n d o moral, ou seja, entre o primado da substância do
esse constitutivo dos entes e as determinações essentes da quidditas
respectiva dos valores éticos
2 2. O fundamento de tal correspondência
e complementaridade pode buscar-se n u m referencial ético à maneira
1 9 C f . C . TRESMONTANT, La métaphysique du Christianisme et la crise du XIII' siècle,
p p . 216; Sobre o t e m a da regio dissimilitudinis, cf. P. COURCELLE, «Tradition néo-platonicienne et traditions chrétiennes d e la «région d e dissemblance» (Platon, Politique, 273 d)», in: Archives d'Histoire doctrinale et littéraire du Moyen Age, 1957, t. X X I V , p p . 5-33.
2 0 T e m p o e t e r n o o q u e constitui p a r a d o x o , cf. Sum. theol. I, q. 46, a. 1: «Ad s e p t i m u m
d i c e n d u m q u o d , sicut dicitur i n IV Physic, prius et posterius est in t e m p o r e , s e c u n d u m q u o d prius et posterius est in m o t u . U n d e p r i n c i p i u m et finis accipienda sunt in t e m p o r e , sicut et in motu.»
2 1 Neste sentido o «In-der-Welt-Sein» da recente f e n o m e n o l o g i a está j á antecedido n o p e n s a m e n t o de S. T o m á s p o r essa relação d e inerência d o h o m e m n o m u n d o . O q u a d r o lógico d e definição, o u seja o princípio da d e m o n s t r a ç ã o , é «quod q u i d est», c o m o a p r ó p r i a essência d o d e m o n s t r a d o (Sum. theol., I, q. 46, a. 2, R e s p . ) e, assim, o m u n d o constitui o quadro lógico essencial a o h o m e m .
2 2 Sobre esta questão cf. S. TOMÁS, De ente et essentia (ed. p o r M . - D . R o l a n d Gosselin,
platónica como o Bem, c o m o a realização da felicidade e da
harmonia, pela ressurreição do m u n d o através da sua assumpção
moral, ou pode indicar u m âmbito de referência lógica fundamental
em que se permite conjugar a essência moral de toda a realidade
criada c o m a manifestação fenomenal e existente de uma
natura--naturata
23.
A condição lógica do pensamento que realiza a união do
humanismo e do naturalismo como duas faces complementares n u m a
mesma metafísica, tal como se efectiva no carácter moral e natural
da quaestio acerca da eternidade do m u n d o , é a da analogia
2 4.
Só u m processo analógico pode consentir a transposição do fenómeno
à realidade numénica, a reconversão do m u n d o dos eventos ao m u n d o
dos modelos, da existência fáctica às essências valorativas das
circuns-tâncias espaciais e temporais da própria natureza criada.
Assim, o princípio lógico da analogia torna-se significativo d o
estatuto articulante e mediador que se expressa n o problema da
eternidade do m u n d o e que permite recortá-lo c o m o u m a questão
perfeitamente definida segundo as leis de u m «organon» em que se
observa o princípio da transitividade lógica finita e não
contradi-tória
2 5.
Se o princípio da não-contradição corresponde à periferia
delimitante do âmbito da razão na sua máxima amplitude possível,
o m é t o d o da transitividade lógica e analógica do pensamento de
S. Tomás define a quaestio como o universo do discurso que há-de
esgotar o âmbito problematizavel da investigação.
2 3 C f . Etienne GILSON, Le Thomisme, Introduction à la Philosophie de Saint Thomas
d'Aquin, Paris, Vrin, 1965, p. 193: «Or, D i e u est la cause suffissante d u m o n d e , soit en tant que cause finale puisqu'il est le Souverain Bien, soit en tant que cause exemplaire puisqu'il est la S u p r ê m e Sagesse, soit en tant q u e cause efficiente puisqu'il est la T o u t e --Puissance. Mais n o u s savons d ' a u t r e p a r t que D i e u existe de t o u t e éternité; le m o n d e , c o m m e sa cause suffisante elle-même, existe d o n c aussi de t o u t e éternité. C f . tb. C o r n é l i o FABRO, Participation et Causalité selon S. Thomas d'Aquin, Louvain-Paris, P u b l . U n i v . Louv-, Béatrice-- N a u w e l a e r t s , 1961, p p . 374 e segs.
2 4 C f . C . FABRO, Participation et Causalité, p p . 640: «Nous avons d é f e n d u l'analogie de l'être par r a p p o r t aux individus c o m m e étant son d o m a i n e n o r m a l , parce q u e l'être c o m m e tel ne peut être q u ' i n d i v i d u e l et singulier: ainsi la participation prédicamentale fait f o n c t i o n d'intermédiaire et de lien n o t i o n n e l entre l'univocité f o r m e l l e et l'analogie. Mais il faut t o u j o u r s tenir présent que le «passage à la limite» de la sphère prédicamentale à la trans-cendentale s'opère u n i q u e m e n t m o y e n n a n t la référence à l'esse é m e r g e n t intensif, u n i q u e «média-teur transcendental»».
2 5 Sobre a importância da analogia na constituição da l i n g u a g e m e d o p e n s a m e n t o filosófico cf. D a v i d BURRELL, Analogy and Philosophical Language, N e w H a v e n and L o n d o n , Yale U n i v . Press, 1973, p p . 119-170: Thomas Aquinas: Analogical Usage and Judgement.
330
d í d a s k a l i aO que então se torna deficiente é a articulação entre as várias
questões, a estruturação entre os vários momentos do problema
cosmológico no pensamento de S. Tomás, porque não é a simples
sequência copulativa e intuida das várias questões que justifica a
localização e instauração de uma determinada quaestio específica
26.
O carácter fragmentário, de u m ponto de vista lógico, da exposição
do pensamento de S. Tomás remete a inter-relação das várias
questões para as possibilidades de expressividade e leitura analógica
intrínseca ao âmbito linguístico-especulativo circunscrevente de cada
artigo e de cada quaestio
27.
Assim, a instauração do problema da eternidade do m u n d o
aparece realizada por S. Tomás sob a forma de uma quaestio, cuja
delimitação lógica intrínseca manifesta u m contexto
pedagógico--moral e permite analogicamente a elucidação do nexo
inter--relacional entre a eternidade de Deus, a finitude do h o m e m e o
estatuto intermediário do m u n d o criado e eterno.
2. A eternidade como expressão «temporal»
O que constitui problema na questão proposta é o sentido da
eternidade aplicado ao m u n d o . E esta eternidade é já de si
interrogável em variadas acepções que cumpre historicamente até à f o r m u
-lação de S. Tomás e tal sequência de acepções pode reduzir-se a dois
momentos essenciais de problematização do sentido da eternidade:
o da perenidade no tempo e o da instantaneidade absoluta e
não-- t e m p o r a l
2 8.
A objectivação explícita do carácter histórico do problema da
eternidade pode circunscrever-se em dois momentos fundamentais
correspondentes àquelas duas principais acepções de eternidade
refe-ridas. O primeiro m o m e n t o de problematização surge no pensamento
2 6 N a s «Sumas» S. T o m á s segue u m a e n u m e r a ç ã o de artigos, cuja articulação não v e m
d a d a p o r u m a justificação discursiva ao nível da quaestio, mas estando suposta a equiva-lência desta c o m a adição de t o d o s os artigos e m que ela se d e c o m p õ e , a questão não é p r o b l e m a t i z a d a e m si m e s m a .
2 7 Sobre as limitações e inserção da lógica n o p e n s a m e n t o de S. T o m á s cf. R . W .
SCHMIDT, The Domain of Logic according to Saint Thomas Aquinas, H a g u e , M . N i j h o f f , 1966.
2 8 O eterno aparece ora c o m o todo o t e m p o , o «sempre», ora c o m o t e m p o n e n h u m , o «nunca» (cf. «nunc» c o m o eterno «agora»). C f . N e l s o n PIKE, God and Timelessness, L o n d o n , R o u t l e d g e & K. Paul, 1970, p p . 6 e segs.: The Predicate «Timeless».
grego na meditação acerca da circularidade do m o v i m e n t o perfeito
dos astros e da plenitude esférica e imutável do ciclo do eterno
retorno do m e s m o
2 9. O segundo m o m e n t o aparece c o m o sentido
cristão da eternidade do Deus transcendente às criaturas e criador
do próprio tempo c o m o finitude de u m processo linearmente
irreversível
3 0.
Porém, a consideração de outras acepções de eternidade c o m o
expressão temporal, ainda que de u m «tempo» sui generis, permite
objectivar a análise dos principais sentidos da eternidade
conside-rando-os metodologicamente delimitantes na economia do
pensa-mento de S. Tomás.
O tema do eterno retorno do mesmo constitui a transferência
do próprio círculo dialéctico da análise e da síntese pensantes para
a exigência expressiva do m o v i m e n t o tornado concreto na natureza
e n o ritmo cíclico de toda a relação nela existente. Aliás, se o
eterno começa a ser referido pelos pensadores gregos c o m o duração
vital segundo a configuração do ciclo da vida humana e m o r m e n t e
do perdurar do período da sua maior virilidade, logo se transpõe
este sentido de permanência imensa para os seres dotados de longa
vida, as dimensões sobre-humanas do cosmos vivo e, finalmente,
para o sentido da duração ilimitada do ciclo divino, manifestando
aquela transferência do círculo dialéctico para o eterno retorno da
natureza
3 1.
O esquema do eterno retorno encontra-se plenamente assumido
nas formulações aristotélicas e plotinianas que vão servir também
de quadro de referência do pensamento de S. Tomás no seu nexo
dialéctico ao orientar a sequência das suas obras fundamentais pelos
momentos essenciais do esquema de processão e de retorno,
consi-2 9 C f . ARISTÓTELES, Metafísica, A , 1072 a e segs.
3 0 C f . C . TRESMONTANT, La métaphysique du Christianisme et la crise du XIII* siècle,
p p . 216: «Dieu est éternel parce qu'il est Celui qui est. Le m o n d e a c o m m e n c é d'exister, parce qu'il est crée. Les Pères associaient n a t u r e l l e m e n t l'idée de création à celle de c o m m e n c e m e n t , ou, plus exactement, ils n ' o n t pas pensé q u ' o n p o u v a i t dissocier, o u d u m o i n s distinguer, ces d e u x notions».
3 1 Sobre o sentido d o eterno n o p e n s a m e n t o g r e g o p r i m i t i v o e n t e n d i d o c o m o ϔcov e a
sua evolução ulterior c o m o ' a e o n ' e ' a e v u m ' cf. A.-J. FESTUGIERE, «Le sens philosophique d u m o t aîciv», in: La parola dei Passato, Rivista di Studi Classici, 1949, t. X I , pp. 172-189; cf. tb. Mircea ÉLIADE, Le Mythe de l'Eternel Retour, Archétypes et répétition, Paris, Galli-m a r d , 1949. Sobre a n o ç ã o de aevuGalli-m cf. SuGalli-m. theol. I, q. 10, a. 5 e 6 e Galli-m que S. T o Galli-m á s apresenta esta d e t e r m i n a ç ã o c o m o intermediária entre a eternidade (sem c o m e ç o , n e m f i m ) e o t e m p o ( c o m c o m e ç o e fim), c o m o apenas possuindo c o m e ç o , mas s e m f t m ( S u m theol. I, q. 10, a. 5, R e s p . «quod a e v u m differt a t e m p o r e et ab aeternitate, sicut m é d i u m existens inter illa.»)
332
d i d a s k a i . i aderando o Deus criador, a criação e a persistência da mesma, além
do retorno a Deus, da assumpção do h u m a n o e dos meios éticos do
seu destino sobrenatural
3 2. O carácter típico da circularidade
expres-siva do universo do discurso, objectivado na totalidade do processo
real, determina-se n o problema da eternidade do m u n d o como u m
sub-ciclo da subsistência e do equilíbrio das leis e causas, que
garantem a constância renovada de todos os seres naturais e de todas
as cousas criadas.
Enquanto para os primeiros filósofos gregos o sentido do eterno
se concretiza n u m a realidade que permaneça, n u m ser perene como
presença de elementos e de princípios originantes, a concepção
aristotélica de perenidade exige, tal como irá ser requerido por
S. Tomás, o sentido do substancial, e a subsistência inerente a tal
suposto
3 3.
Porém, enquanto a substância permanente como tal é distinta
por Aristóteles segundo pertença ao m u n d o sublunar dos m o v i
-mentos imperfeitos, da mudança desordenada, da geração e da
corrupção, o u pertença ao m u n d o supra-lunar do m o v i m e n t o perfeito
e da mudança plenamente renovada, em S. Tomás é esta segunda
acepção de permanência do ciclo do cosmos que está problematizada
na questão acerca da eternidade do m u n d o
3 4.
C o m efeito, não é de estranhar que seja neste sentido cíclico
do m o v i m e n t o perfeito ao nível das substâncias criadas por Deus,
que se situe o pensamento de S. Tomás que objectiva o sentido
da eternidade, dadas as exigências de conceber o m u n d o e o seu ciclo
perene em função das leis e das causas, que justamente representam
a região modelar do m u n d o supra-lunar da cosmologia aristotélica.
N ã o é tanto a matéria individuante, mas a generalidade das formas,
a reconquista da universalidade ideal platónica, e, sobretudo, o sentido
da essência como quidditas que permite a S. Tomás reformular como
3 2 O esquema n e o - p l a t ó n i c o de n p o o S o ç (processão) e de ÈTTKJTpoçíj (retorno) ao princípio (divino) m a n t é m - s e na o r d e n a ç ã o das partes da Suma Theologica e da Suma contra Gentiles.
3 3 C f . Sum. theol. I, q. 10, a. 4, R e s p . : «(...) ex h o c q u o d aeternitas est tota simul, q u o d t e m p o r i n o n convenit: quia aeternitas est mensura esse permanentis, t e m p u s v e r o est mensura motus.»; cf. t b . Ibid, sol. 3; e ibid. a. 5: «Est e r g o d i c e n d u m q u o d , c u m aeternitas sit mensura esse permanentis, s e c u n d u m q u o d aliquid recedit a p e r m a n e n t i a essendi, s e c u n d u m h o c recedit ab aeternitate».
3 4 C f . Sum. theol. I, q. 10, a. 1: «Sic e r g o ex d u o b u s notificatur aeternitas. P r i m o , e x h o c q u o d id q u o d est in aeternitate, est interminabile, idest principio et fine carens (ut terminus ad u t r u m q u e referatur) secundo, per h o c q u o d ipsa aeternitas successione caret, tota simul existens.»
delimitação metodológica do problema da eternidade do mundo,
o sentido aristotélico da perenidade do mundo das causas, dos astros
e das formas perfeitas, entendida como permanência das leis da
natureza e das causas segundas cujos efeitos se tornam visíveis
35.
São as formas, as essências a título de causas que, ao manterem-se
no nexo que efectiva a relacionação com os seres respectivos segundo
uma persistência que transcende o carácter individual de cada
momento de um processo genérico, permitem a estabilidade do
conjunto dos seres criados na consideração metodológica da natureza
criada e subsistente como acção causal de segundo nível.
Assim, o que realiza no método de S. Tomás o eterno retorno
do ciclo do mundo é a figura da perenidade formal do ciclo das
causas, distinto em termos de uma causalidade segunda, que é
transcendida pela causa primeira ou eficiente e pela causa final
3 6.
A transcendência da causalidade primeira, confundida com a acção
criadora de Deus, em relação à causalidade segunda própria da
natureza criada e também criadora, demarca a diferença que se
estabelece com o pensamento aristotélico e o ambíguo estatuto da
causa primeira como imanente ao início do processo real e perene
para além desse mesmo início.
Todavia, embora o pensamento de S. Tomás proponha u m
quadro especial de delineamento do problema da eternidade por u m
sentido de perenidade específico do m u n d o criado, e entendido
n u m nível causal distinto do sentido da causalidade perene
conce-bida ao nível da transcendência criadora, o que exprime o próprio
método tomista, não é tanto a perenidade entendida como
manu-tenção de u m ciclo, mas como a-temporalidade e constância total
do processo lógico-temporal de problematização da questão da
eternidade do mundo.
Tal atemporalidade determina o pensamento de S. Tomás n u m
horizonte diverso do pensamento aristotélico, pois trata-se de conceber
o eterno retorno como ciclo total da perenidade, correspondente à
3 5 C f . I Sent, d. 8, q. 2, a. 2; De pot., q. 3, a. 14; Sum theol. I q. 10, a. 4, 3;
cf. tb. Sum. theol. I, q. 46, a. 1, sol. 6: «Aliter e n i m est i n t e l l i g e n d u m de agente particulari, q u o d praesupponit aliquid, et causat alterum; et aliter d e agente universali, q u o d p r o d u c i t t o t u m . (...) U n d e rationabiliter consideratur in eo, q u o d agit in t e m p o r e posteriori et n o n in priori, s e c u n d u m i m a g i n a t i o n e m successionis t e m p o r i s post t e m p u s . Sed in agente universali, q u o d p r o d u c i t r e m et tempus, n o n est considerare q u o d agat n u n c et n o n prius, s e c u n d u m i m a g i n a t i o n e m t e m p o r i s post tempus, ( . . ) » .
334
d i d a s k a i . i aexigência lógica de u m discurso sistemático, e não de u m devir
concebido através de u m m é t o d o de explicitação física de u m m o v i
-m e n t o cíclico repetido e se-m fi-m
37.
A determinação do plano lógico como quadro racional do
entendimento do problema da eternidade constitui a circunscrição
própria da posição de S. Tomás na história das reflexões filosóficas
acerca desta questão da eternidade do m u n d o . O sempre, o que se
m a n t é m c o m o f o r m a inteligível, como causa, não devêm n e m
necessita de se manifestar temporalmente, persistindo no carácter
atemporal do sempre possível prévio ao acto de ser perene.
Contudo, a distinção entre uma eternidade que se expressa e
se actualiza n o tempo, c o m o resumo de todo o devir n o seu
ciclo próprio, e uma eternidade que se formaliza atemporalmente
c o m o potência daquela estabelece-se u m a readmissão do m o d o
aristotélico metafísico de se pensar o problema da eternidade em
relação a dois «tempos» lógicos e ontológicos diferenciados: o do
acto e o da potência
3 8.
Este carácter relacional entre duas dimensões do eterno, que a
doutrina do acto e da potência permite a propósito do problema
da eternidade c o m o expressão temporal, correspondendo a uma
pre-tensão racionalizante e redutora do estatuto cosmológico de tal
problema e à intenção sistemática da filosofia escolástica, justifica a
diferenciação complementar e objectivante de dois sentidos de
verdade, de uma dupla razão que, ora estabelece a eternidade do
m u n d o c o m o possível, ora concebe u m começo finito do tempo
para o m u n d o e relega o sentido da eternidade como possibilidade
não realizada
3 9.
3 7 C f . Sum. theol. I, q. 10, a. 4: « R e s p o n d e o d i c e n d u m q u o d m a n i f e s t u m est t e m p u s
et aeternitatem n o n esse i d e m . Sed huius diversitatis r a t i o n e m q u i d a m assignaverunt ex hoc q u o d aeternitas caret principio et fine, t e m p u s a u t e m habet p r i n c i p i u m et finem. Sed haec est differentia per accidens, et n o n per se. Q u i a d a t o q u o d t e m p u s semper f u e r i t et semper f u t u r u m sit, s e c u n d u m p o s i t i o n e m e o r u m , q u i m o t u m caeli p o n u n t s e m p i t e r n u m , a d h u c r e m a n e b i t differentia inter aeternitatem et t e m p u s , (...) ex h o c q u o d aeternitas est tota simul, q u o d t e m p o r i n o n convenit: quia aeternitas est m e n s u r a esse permanentis, t e m p u s v e r o est mensura motus.»
3 8 C f . Sum. theol. I, q. 10, a. 4: « U n d e si m o t u s caeli semper d u r a r e t , t e m p u s n o n
m e n s u r a r e t i p s u m s e c u n d u m s u a m t o t a m d u r a t i o n e m , c u m i n f i n i t u m n o n sit mensurabile; sed m e n s u r a r e t q u a m l i b e t circulationem, quae habet p r i n c i p i u m et finem in t e m p o r e . Potest t a m e n et aliam r a t i o n e m h a b e r e ex p a r t e i s t a r u m m e n s u r a r u m , si accipiatur finis et p r i n c i p i u m in potentia.» C f . tb. II Sent., d. 1, q. 1, a. 5.
3 9 A d o u t r i n a da dupla verdade é mais tardia mas está j á p r e m e d i t a d a nas possibilidades
lógicas, q u e são concedidas pelo p e n s a m e n t o de S. T o m á s , cf. Paul RENUCCI, L'aventure de l'humanisme Européen au Moyen-Age (IVe-XIV* siècle), Paris, Belles-Lettres, 1953, pp. 91 e segs.
Esta dualidade de razões e esta doutrina que irá conduzir a
uma dupla verdade, reflecte não só a influência do duplo sentido
da eternidade como perenidade do devir e como totalidade
atem-poral do mesmo em potência, mas também a presença de u m
sentido articulante e dialéctico entre o que é dado conhecer à razão
natural e o que de facto determina sobrenaturalmente as suas
possibilidades. A razão e as acepções de eternidade formuladas
encontram-se perante os vínculos da fé que assume diversamente
um dos sentidos da eternidade e nesse confronto descobre o seu
poder dialéctico transcendendo os limites paradoxais do seu
exer-cício sistemático.
A metodologia dialéctica revelada na origem do sentido dúplice
do pensamento da eternidade em S. Tomás, pondo de parte a
concepção aristotélica da permanência física, bem como da
perma-nência meta-física entendida ainda de um modo aristotélico, recupera
todavia o estatuto ontológico da dialéctica platónica e o sentido da
eternidade experienciado na própria concepção dialéctica do tempo
4 0.
Posto que a maior parte destas concepções dialécticas do tempo
se devam aos pensadores do idealismo alemão e o próprio tema
se costume indicar como peculiar da problemática da filosofia
contemporânea, pode-se afirmar que, embora de uma forma não
reflectida, a questão da eternidade concebida como dialéctica total
do tempo está já presente nas formulações do pensamento de
S. Tomás
4 1. Não se trata de u m devir dialéctico, nem da
pereni-dade atemporal dos ciclos e nexos lógicos que lhe presidem como
plano de eternidade, mas tal plano é descoberto na relação que
permite pensar uma eternidade cosmológica e uma eternidade lógica
ou gnoseológica, pela referência ontológica do processo dialéctico
da razão de uma totalidade de tempo, ou do universo da criação.
E, assim, contrariamente a Hegel a quem mais vem a interessar
a totalidade da razão do que a razão de uma totalidade estranha
4 0 C f . Sum. theol. I, q. 10, a. 1: « R e s p o n d e o d i c e n d u m q u o d , sicut in c o g n i t i o n e m simplicium o p o r t e t nos venire per composita, ita i n c o g n i t i o n e m aeternitatis o p o r t e t nos venire per tempus; (...) A d p r i m u m e r g o d i c e n d u m q u o d simplicia c o n s u e v e r u n t per n e g a t i o n e m definiri, sicut punctus est cuius pars non est. Q u o d n o n ideo est, q u o d negatio sit de essentia e o r u m : sed quia intellectus noster, qui p r i m o a p p r e h e n d i t composita, in c o g n i t i o n e m simplicium pervenire n o n potest, nisi per r e m o t i o n e m compositionis».
4 1 C f . Sum. theol. I, q. 10, a. 1: « U t r u m convenienter definiatur aeternitas, q u o d est interminabilis vitae tota simul et perfecta possessio», sol. 2: «Ad s e c u n d u m d i c e n d u m q u o d illud q u o d est vere a e t e r n u m , n o n s o l u m est ens, sed vivens: et i p s u m vivere se extendit q u o d a m m o d o ad o p e r a t i o n e m , n o n a u t e m esse».
336
d i d a s k a i . i ae irredutível porque de origem e raiz transcendente, S. Tomás
formula no processo de abordagem do problema da eternidade
entendida como expressão temporal a razão da totalidade do tempo
e da criação, ou seja, do mundo eterno produzido por Deus
4 2.
A eternidade dialéctica transcendendo todo e qualquer tempo
aspira à totalidade do mesmo e parece integrar a heterogeneidade
dos momentos do tempo, como o antes e o depois, num mesmo
plano de consideração e de homogénea natureza. Todavia, tal não
acontece dado que o próprio procedimento dialéctico do método
racional utilizado por S. Tomás supõe uma transcendência de
momentos, que cumpre ao nível das criaturas uma diferenciação
análoga à que se legitima em relação à transcendência absoluta
do Deus criador
4 3.
Este sentido de transcendência, que está na raiz da diferenciação
entre o estatuto da eternidade como mundo criado desde sempre
e o estatuto absoluto da eternidade do próprio Deus criador, supõe
que a expressão temporal da eternidade na dialéctica de S. Tomás
admita a tangência fundamental dos dois sentidos de eternidade
44.
Sem tal coincidência não existiria sequer uma comunicação análoga
da noção de eternidade como ponte entre o divino e as criaturas.
Além disso, é nesta tangência que se pode descobrir o sentido do
contacto místico implícito na concepção de eternidade segundo a
analogia dialéctica de uma razão hipertrofiada.
O ponto de contacto entre a eternidade de Deus e a eternidade
do mundo, sendo embora ambíguo na imediata analogia que
arti-cula e traduz de forma mediadora ambos os sentidos da eternidade,
corresponde a u m centro de diferenciação, garante da transcendência
irredutível do Criador à criatura, que promove instantânea e
atem-4 2 C f . Sum. theol. I, q. 10, a. 1, sol. 3: «Ad t e r t i u m d i c e n d u m q u o d aeternitas dicitur
tota, n o n quia habet partes, sed i n q u a n t u m nihil ei deest».
4 3 C f . Ibid., a. 4: «Sed tarnen istae differentiae c o n s e q u u n t u r earn quae est per se et
p r i m o , d i f f e r e n t i a m , per h o c q u o d aeternitas est t o t a simul, n o n a u t e m tempus. A d p r i m u m e r g o d i c e n d u m q u o d ratio ilia procederei, si t e m p u s et aeternitas essent m e n -surae unius generis: q u o d patet esse falsum, ex his q u o r u m est t e m p u s et aeternitas mensura».
4 4 C f . Ibid., a. 2: « U t r u m D e u s sit aeternus: R e s p o n d e o d i c e n d u m q u o d ratio
aeternitatis consequitur i m m u t a b i l i t a t e m , sicut ratio temporis consequitur n o t u m , (...). U n d e , c u m D e u s sit m a x i m e immutabilis, sibi m a x i m e competit esse a e t e r n u m (...). Q u o d a u t e m dicit Augustinus, q u o d Deus est auctor aeternitatis, intelligitur de aeternitate participata; eo e n i m m o d o c o m m u n i c a t D e u s s u a m aeternitatem aliquibus, q u o et s u a m i m m u t a -bilitatem». C f . ibid., a. 3.
poralmente a assumpção, dir-se-ia mística, da eternidade do universo
como u m eterno agora
45.
A eternidade pensada através de u m a via dialéctica que se
transcende n o ponto de contacto entre os sentidos limites do eterno
como absolutamente não-temporal ou transcendente e como relação
absoluta e total de todo o tempo ou tempos possíveis, ao
deter-minar-se como eternidade instante de u m agora, corresponde à
recuperação da intuição augustiniana e da linhagem
platónico--franciscana de muitos pensadores medievais, c o m o
comple-mento místico que realiza a plenitude do processo racional de
S. T o m á s
4 6.
N o entanto, se a eternidade c o m o u m eterno agora representa
influência de Santo Agostinho, de Santo Anselmo o u de S. Boaventura
na filosofia do D o u t o r Angélico, a concepção da mesma, quando
interrelacionada com o sentido da perenidade do m u n d o através
da sua estrutura causal e c o m o sentido da absoluta perenidade de
Deus, altera-se na economia do pensamento tomista
4 7. N ã o é o
instante em que se dissolvem todos os tempos, perdendo significado
o próprio estatuto do m u n d o criado como distinto daquele que o
assume e distinto do próprio Criador, n e m o m o m e n t o que ilumina
e torna transparente toda a realidade criada como mero reflexo do
Criador, mas constitui u m p o n t o de acentuação privilegiada do
âmbito persistente da temporalidade e do devir de u m m u n d o
distinto e intermediário
4 8.
A via mística de Santo Agostinho e dos outros pensadores
de tradição platónica vai ser assumida por S. Tomás c o m o via
simbólica, em que a experiência de iluminação se marginaliza em
relação ao sentido essencial do universo, que sob a f o r m a do
4 5 C f . Sum. theol. I, q. 10, a. 4, dif. 2: «Ergo aeternitas est nunc temporis. (...) Sed contra est q u o d aeternitas est tota simul: in t e m p o r e a u t e m est prius et posterius».
4 6 Sobre a persistência da influência platónico-augustiniana e m S. T o m á s cf. Etienne
GILSON, Le Thomisme, p p . 190 e segs.; cf. tb. C . FABRO, Participation et Causalité, p p . 426 e segs.
4 7 C f . Sum. theol. I, q. 10, a. 1: «Ad q u i n t u m d i c e n d u m q u o d i n t e m p o r e est d u o
considerare: scilicet i p s u m tempus, q u o d est successivum; et nunc temporis, q u o d est i m p e r -f e c t u m . Dicit e r g o tota simul, ad r e m o v e n d u m tempus: et per-fecta, ad e x c l u d e n d u m n u n c temporis».
4 8 S. T o m á s distingue entre a perfeita eternidade d e D e u s e a eterna repetição cíclica realizada pelo m u n d o , q u a n d o se considerasse este t a m b é m eterno. C f . Sum. theol. I, q. 46, a. 2, R e s p . 5: «Ad q u i n t u m d i c e n d u m q u o d , etsi m u n d u s semper fuisset, n o n t a m e n parificaretur D e o , in aeternitate, ut dicit Boetius, in fine De consol. : quia esse d i v i n u m est esse t o t u m simul, absque successione; n o n a u t e m sic est de mundo».
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d i d a s k a i . i asímbolo se condensa e se significa, tornando o âmbito do símbolo
espacializado e integrador dos momentos dialécticos, à maneira do
mito e m Platão, ou à maneira do valor em H e g e l
4 9. O espaço
simbólico, em que adquire sentido radical e limite a eternidade
expressa c o m o dialéctica do tempo coincidente com o eterno agora
da sua intuição mística, pode tornar-se sinónimo da extensão do
m u n d o criado e do seu espaço de tempo cíclico próprio. Nessa
extensão assim considerada o ponto neutro, o centro desse círculo,
o instante da eternidade corresponde a uma espacialização imaginária
do que n o agora aparece como não extenso nem espacializável.
3. A eternidade como o «sempre» determinante ou
perma-nência expressiva metódica
A consideração de que os vários sentidos de eternidade
desen-volvem a delimitação do problema da perenidade ou não
pereni-dade do m u n d o no pensamento de S. Tomás, e o resultado da
mesma atendendo-se à espacialização da totalidade do tempo
confun-dida com a extensão simbólica do universo e só recuperada como
p o n t o central e imagem privilegiada n o místico agora que interioriza
o problema da realidade eterna do m u n d o , exige que o método
de tratamento deste problema se origine neste contexto. Entre o
centro-imagem do eterno e a periferia da extensão simbólica da
mesma estabelece-se o âmbito da metodologia que converte do
cosmológico ao lógico e do ontológico também ao lógico pelo
cons-trangimento das possibilidades racionais e analógicas de tal
rela-cionamento
5 0.
Já não é o eterno como quadro delimitante do problema mas o
sempre como m o d o lógico de pôr a própria questão, segundo a
ordem de conexão e prioridades lógicas, que realiza a
meditação--mediação entre os extremos limites dos dois sentidos que
funda-mentalmente objectivam c o m o poios antagónicos as acepções de
eternidade, a saber: o m o v i m e n t o circular de u m devir perpétuo
4 9 Q u a n t o à i m p o r t â n c i a da simbolização n o p e n s a m e n t o medieval cf. Jacques LE GOFF, La civilisation de l'Occident médiéval, Paris, A r t h a u d , 1967, pp. 404 e segs.; cf. tb. Sum. theol. I, q. 10, a. 1, sol. 4.
e cósmico e a imobilidade absoluta do instante sem extensão n e m
duração, o u eterno agora.
Por u m lado a concepção aristotélica, por outro a concepção
augustiniana da eternidade — eis os parâmetros que referenciam
historicamente dois processos distintos de problematização metódica
da questão da eternidade
5 1. Enquanto e m Aristóteles o m é t o d o
causal remonta a uma causa primeira mas determina-se apenas
formalmente, sendo a matéria perene e perene t a m b é m na fórmula
de subsistência cíclica e universal em Santo Agostinho o m é t o d o
intui-tivo e de iluminação extasia-se n o nunc instans, que concede no ictus
da mente o acesso à plenitude perene do real
5 2.
N u m caso a relação expressiva do pensamento objectiva o p r o
-blema da eternidade como o termo limite de u m procedimento,
como a garantia de definição de u m a discursividade que devêm e
retorna até ao princípio ou axioma da sua própria inteligibilidade.
Tal é o caso do pensamento de Aristóteles em que a transitividade
do sentido ao longo dos vários momentos da sua discursividade
exprime uma problematização cíclica e permanente do próprio ciclo
da eternidade
5 3.
N o outro caso, o de Santo Agostinho, o problema da eternidade
é manifestado e esclarecido na imediatez de sucessivos momentos,
que não decorrem n e m retornam discursivamente, mas se encadeiam
numa dialéctica intuitiva, que permite pelo carácter instantâneo e
5 1 N o t e - s e que a diferença de m é t o d o se p o d e caracterizar pela presença de u m
sentido espacializante das relações lógicas (extensivas t a m b é m ) , n o p e n s a m e n t o aristotélico, e pelo aparecimento de u m sentido r í t m i c o (temporal e até musical) n o p r o c e d i m e n t o dialéctico de Santo Agostinho, e m que as relações lógicas não são intermediárias entre t e r m o s estáveis, mas os m e d e i a m c o m o m o m e n t o s funcionais de u m a reflexão. Sobre esta diferença, entre u m a lógica predicativa e u m a lógica de j u í z o s proposicionais c o m o funções proposicionais cf. I. M . BOCHENSKI, Formule Logik, F r e i b u r g - M u n c h e n , K . Alber, (trad. ing. p o r I. T h o m a s , N . Y., Chelsea P u b l . C o . , 1970, pp. 20 e segs.; cf. t b . P. GOCHET, Esquisse d'une théorie nominaliste de la proposition, Essai sur la Philosophie de la Logique, Paris, A. Colin, 1972.
5 2 C f . SANTO AGOSTINHO, Confes. VII, 10; ibid., X I , 14, 17: «Si e r g o praesens, u t
t e m p u s sit, ideo fit, quia in p r a e t e r i t u m transit, q u o m o d o et h o c esse dicimus, cui causa, ut sit, illa est, quia n o n erit, u t scilicet n o n vere dicamus t e m p u s esse, nisi quia tendit n o n esse?»; cf. tb. A. SOIIGNAC, «La conception d u t e m p s chez Augustin» ( N o t e ) in: SAINT AUGUSTIN, Les Confessions, Liv. VIII-XIII, (Oeuvres d e Saint Augustin, t. 14) Bruges, Desclée de B r o u w e r , 1962, p p . 581-591.
5 3 A l é m dos textos d o oitavo livro da Física e d o p r i m e i r o d o De Coelo, e m que Aristóteles e x p õ e a d o u t r i n a acerca da eternidade d o m u n d o , refira-se o sentido cíclico da própria a r g u m e n t a ç ã o considerada viciosa e m Ref Sof, V , 167 a e segs. Se o círculo vicioso é condenável c o m o a r g u m e n t o dialéctico n o dizer de Aristóteles, p o r é m a circulari-dade da m u d a n ç a paradigmática ao nível da p r i m e i r a esfera é o sinal r e d u t o r de t o d a a diversidade de m o m e n t o s racionais na unidade m á x i m a d o seu â m b i t o possível. C f . tb. Sum. theol. I, q. 10, a. 4, R e s p .
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d i d a s k a i . i adescontínuo deste método entender a eternidade como um instante
intemporal, ou u m eterno agora
5 4.
A divergência dos métodos de problematização do sentido da
eternidade vai-se tornar a u m tempo patente e esbatida no método
de problematização de S. Tomás. C o m efeito, embora se evidencie
ao nível da discussão dos artigos a diferença de opinião dos diversos
autores, porém a tentativa de solução deste problema supõe o carácter
misto do intento metodológico do Doutor Angélico, que aplica
como que uma metodologia aristotélica à intuição e ao processo
de iluminação do problema em Santo Agostinho.
O problema da eternidade em S. Tomás torna-se equivalente
ao da duração perpétua no tempo, como o que sempre foi e
sempre continuará sendo
5 5.
O m o d o como esta perenidade que é problematizada a
propó-sito do mundo vai ser elucidada por S. Tomás revela a antecipação
e o contágio da própria perenidade ao nível do método, entendido
como constância formal e subsistência do plano de definição e de
encadeamento lógicos da argumentação racional
5 6.
Porém, a objectivação do problema de eternidade encontra
em S. Tomás uma conexão íntima com a problemática ética que
procura harmonizar a fé e os dados revelacionais com aquele ritmo
e sequência racional.
O que distingue a implantação deste problema, e a sua
deli-mitação como eternidade, no pensamento de S. Tomás equivale ao
carácter típico adveniente da presença antecipada ao nível do próprio
método do pensamento tomista da persistência delimitante da própria
questão.
C o m efeito, o método de S. Tomás antecipa a perenidade,
que pretende problematizar, na constância de um nível linguístico
5 4 A intuição d o instante e o seu carácter i m e d i a t o v e m referida e m n u m e r o s o s
pas-sos da o b r a d e S a n t o A g o s t i n h o (Cf. Confes. X I , 13 e segs.; cf. e tb. Erich LAMPEY, Das Zeitproblem nach den Bekenntnissen Augustins, R e g e n s b u r g , H a b b e l , 1960) e é criticada p o r S. T o m á s , cf. Sum. theol. I, q. 10, a. 4, sol. 2
5 5 Trata-se de u m a c o n t i n u i d a d e tota simul sem sucessão (diferenciada) de m o m e n t o s :
C f . Sum. theol. I, q. 10, a. 1, R e s p . ; «Sic e r g o e x d u o b u s notificatur aeternitas. P r i m o , ex h o c q u o d id q u o d est in aeternitate, est interminabile, idest principio et fine carens (ut terminus ad u t r u m q u e referatur). Secundo, p e r h o c q u o d ipsa aeternitas successione caret, t o t a simul existens.»
5 6 Este p r o b l e m a está consciente e m S. T o m á s q u a n d o se c o m e n t a a n o ç ã o d o m o d o da
necessidade lógica. C f . Sum. theol. I, q. 10, a. 3: «Ad t e r t i u m d i c e n d u m q u o d necessarium significat q u e n d a m m o d u m veritatis. V e r u m a u t e m , s e c u n d u m P h i l o s o p h u m , V I Metaphys., est in intellectu. S e c u n d u m h o c igitur vera et necessaria sunt aeterna, quia sunt in intellectu aeterno, qui est intellectu divinus solus.»
e discursivo, que se supõe coeterno e coetâneo na relação entre os
seus diversos elementos
5 7.
A eternidade pode então ser encarada como algo que se pode
sempre dizer e por isso referir como sempre existente, fazendo-se
derivar a perenidade metodológica para uma objectividade
ontoló-gica
5 8.
Porém, a eternidade também pode ser entendida como m o d o
de um processo dialéctico cuja prova demonstrativa se relega sempre
para ulterior instância, e, neste sentido, é esse m o d o lógico-dialéctico
que se transcende numa prática demonstrativa perene.
N o entanto, quer a eternidade subsistente e objectivada, quer
o sentido da perenidade circular e viciosa de uma argumentação
lógica indefinidamente retomada não bastam para caracterizar a
plena delimitação metodológica do problema da eternidade no
pensamento de S. Tomás. Só a consideração das determinantes
éticas, que orientam e abrem do círculo lógico à concretização real
ou ao nível ontológico da eternidade, numa superação de
formali-dade pela eticiformali-dade nesta revelada, permite que a delimitação do
problema da eternidade não seja definitivamente estática e
exclusi-vamente intelectual.
A delimitação metodológica do problema da eternidade abre
a pseudo-circularidade do âmbito estritamente racional em
ampli-tudes sucessivas de círculos concêntricos ou de movimentos em
espiral de abertura cada vez maior, n u m ritmo de procedimento
analógico e numa assumpção do pleno poder expressivo do nível
do símbolo. O método lógico e ético transforma-se numa via de
participação mística e simbólica, tornando-se o problema da
eterni-dade numa questão de vivência participada e de persistência modelar
do próprio símbolo como eternidade
5 9.
5 7 Tal constância d o plano m e t o d o l ó g i c o , e m b o r a r e m e t i d o e m sentido p r ó p r i o para o intelecto divino, aparece acessível metaforicamente através a l i n g u a g e m que o p e r m i t e participar, cf. Sum. theol. I, q. 10, a. 1: «Ad q u a r t u m d i c e n d u m q u o d , sicut Deus, c u m sit incorporeus, n o m i n i b u s r e r u m c o r p o r a l i u m m e t a p h o r i c e in Scripturis n o m i n a t u r , sic aeternitas, toda simul existens, n o m i n i b u s t e m p o r a l i b u s successivis».
5 8 Repare-se o m o d o c o m o é enunciado o p r i m e i r o artigo da quaestio : U t r u m universitas creaturarum semper fuerit (sublinhado ulterior) )Sum. theol, I, q. 46, a. 1).
5 9 Pode-se l e m b r a r a acepção e m que se t o m a o t e r m o símbolo fazendo referência a Enrico CASTELLI, Le démoniaque dans l'art, trad. franc, p o r E. Valenziani, Paris, Vrin, 1958, p. 15: «Dans le s y m b o l i q u e l ' o e u v r e est achevée mais le processus qui a c o n d u i t à la conclusion e x p r i m é e par le s y m b o l e n'apparait pas». C f . tb. C . H . DO CARMO SILVA, «Carácter rítmico da estética bonaventuriana» in: Revista Portuguesa de Filosofia, 1974, t. 1-3, p p . 266-267.