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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

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Academic year: 2019

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A ARTE DE CONTAR:

UMA INTRODUÇÃO

AO ESTUDO

DO VALOR DIDÁTICO DA

HISTÓRIA DA MATEMÁTICA

ANTONIO CARLOS BROLEZZI

Dissertação

de

Mestrado

apresentada ao Departamento de

Metodologia do Ensino e Educação

Comparada da Faculdade de

Educação da Universidade de São

Paulo, sob orientação do Professor

Doutor Nílson José Machado.

(2)

Não é por acaso que os verbos "contar" (números) e "contar" (histórias) apresentam freqüentemente a mesma raiz etimológica: em alemão se diz zahlen e erzalen; em holandês, tellen e

vertellen; em italiano, espanhol e português usa-se contar para ambos; em francês arcaico, o verbo conter era igualmente empregado nos dois sentidos; e, em hebreu, o verbo saphor ("contar, calcular") tem o mesmo radical que saper ("contar história")1.

Conteúdo:

Introdução

Capítulo 1. Breve História das Fontes da História da Matemática

1.1.

Valor das Fontes Históricas no Estudo da História da Matemática

1.2.

Caminhos da História da Matemática Pré-Helênica

1.3.

Tradição Greco-Latina

1.4.

De Boécio a Gerbert

1.5.

O Renascimento no Século XII

1.6.

O Advento dos Livros de História da Matemática

Capítulo 2. Tipos de Livros de História da Matemática

2.1.

Cronologias

2.2.

Biografias

2.3.

Por Assunto

2.4.

Outros

Capítulo 3. O Valor Didático da História da Matemática

3.1.

História da Matemática e Lógica da Matemática em Construção

3.2.

História da Matemática e Significado

3.3.

História da Matemática e Visão da Totalidade

Conclusões

Apêndice: Experiências de Alguns Cursos

Bibliografia Geral

Bibliografia Específica Sugerida

(3)

É de se esperar que as pessoas queiram aprender de nós como e em que ordem as descobertas matemáticas se sucederam umas às outras, e seria nosso dever ensiná-las. Foi feita a História da Pintura, da Música, da Medicina, etc. Uma boa História da Matemática, em particular da Geometria, seria uma obra mais curiosa. Que prazer não se teria ao ver a ligação, a conexão dos métodos, o encadeamento das diferentes teorias começando desde os primeiros tempos até o nosso, no qual essa Ciência se encontra transportada a tão alto grau de perfeição!1

O texto acima retrata muito bem a antigüidade da preocupação pela difusão do conhecimento sobre a História da Matemática. Trata-se de trecho de uma carta dos fins do século XVII, escrita pelo cavalheiro francês Montmort aum dosmatemáticos da família Bernoulli.Maspoderia ter sido produzido em pleno século XX, salvo alguma pequena alteração de estilo, pois retrata uma situação muito atual principalmente para Professores de Matemática elementar. Passados trezentos anos, apesar de haver muitos livros de História da Matemática, poucos são acessíveis. Sua aplicabilidade didática também é uma questão que só recentemente passou a ser discutida com mais vigor.

Há, portanto, nessa área, uma lacuna a ser preenchida, uma vez que a Matemática tem História. Como qualquer outra Ciência, não é estática, mas evolui ao longo do tempo. O conhecimento matemático de um século atrás diferia muito do de hoje, assim como eram diferentes a Biologia, a Física e as próprias Línguas faladas ou escritas. Essa evolução das idéias matemáticas dificilmente se percebe pela simples observação do estado atual da Matemática. Para poder conhecer sua História, é preciso transcender o âmbito específico do conhecimento matemático. Percorrer caminhos outros que não os das definições, teoremas e demonstrações.

Esse distanciamento entre a Matemática ensinada hoje nas escolas e seu desenvolvimento ao longo do tempo reforça a idéia de que a Matemática, considerada a Ciência exata por excelência, está muitas vezes associada a um falso imobilismo, que nenhuma Ciência de fato apresenta. Na verdade a Matemática está muito viva. Já alertava Florian Cajori, há um século:

É possível ao professor deixar claro para o aluno que a Matemática não é uma Ciência morta, mas uma Ciência viva na qual um progresso contínuo é realizado2.

Uma Matemática viva, em progresso, ou seja, em construção, surge aos olhos dos alunos quando se recorre à História da Matemática. Mas esse recurso não é tarefa trivial. Faltam, como dissemos, informações históricas adequadas ao ensino da Matemática elementar. Além disso, há o perigo de se ficar na superficialidade de uma utilização de fatos da História da Matemática como meras curiosidades sem nenhuma implicação no tratamento dos conteúdos matemáticos em si.

Para preencher a lacuna existente entre o ensino de Matemática elementar e a História da Matemática, pretendemos aqui sugerir algumas linhas básicas de pesquisa que podem levar a uma abordagem na qual o próprio conteúdo seja influenciado pelo uso da História da Matemática em sala de aula. Não se trata apenas de ilustrar as aulas de Matemática com histórias que divirtam, como biografias de matemáticos famosos. Nem simplesmente de acrescentar mais conteúdo ao currículo elementar de Matemática, para recheá-lo de referências históricas diretas que de algum modo ajudem a demonstrar a importância ou a beleza do assunto que se quer ensinar. O que pretendemos fazer aqui é contribuir para o estudo de uma utilização muito mais profunda do recurso à História da Matemática.

Esse estudo deveria levar em consideração a existência de um encadeamento lógico característico na construção do conhecimento científico e outro na sistematização, na formalização desse conhecimento. A nosso ver, a ordem lógica mais adequada para o ensino de Matemática não é a do conhecimento matemático sistematizado, mas sim aquela que revela a

1 MONTMORT, Carta a Bernoulli. Apud LORIA, Gino. Guida allo Studio della Storia delle Matematiche. 2a ed. Milano, Ulrico Hoepli, 1946. 385 p., p. 19, nota 1.

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Matemática enquanto Ciência em construção. O recurso à História da Matemática tem, portanto, um papel decisivo na organização do conteúdo que se quer ensinar, iluminando-o, por assim dizer, com o modo de raciocinar próprio de um conhecimento que se quer construir.

Essa abordagem constitui-se no cerne desse estudo sobre o valor didático da História da Matemática, embora também façamos referência a outras funções do recurso à História da Matemática. Podemos chamar essa abordagem de Arte de Contar, pois contar em diversas línguas se aplica tanto a contar histórias quanto a contar objetos. Desse modo queremos expressar nossa intenção de contribuir para que não se considerem o ensino da Matemática e a História da Matemática como compartimentos estanques, revelando a existência entre eles de uma relação intrínseca que une o conhecimento matemático construído na História e o reconstruído nas aulas de Matemática.

Para proceder a esse estudo, sugerimos recorrer diretamente às fontes da História da Matemática. Dentro das tendências atuais da historiografia, está ocorrendo um retorno à valorização das fontes genuínas, às narrativas de pequenos acontecimentos e da vida de algumas pessoas concretas, para a partir daí compreender a mentalidade e a cultura de uma época passada. De modo especial, essa abordagem se aplica à tentativa de reconstituição das causas que determinaram o surgimento de tópicos específicos da Matemática, através da análise dos indícios registrados pelas fontes. Assim, sugerimos entrar em contato o mais diretamente possível com pormenores significativos que evidenciam o modo de pensar peculiar dos protagonistas da História da Matemática. As razões que levaram à elaboração de um resultado matemático podem ser múltiplas e complexas. Sejam como forem, é nas fontes originais que essas razões são melhor encontradas, pois são as mais próximas testemunhas da gênese daquela idéia matemática.

Em síntese, a proposta desse trabalho é servir de introdução ao estudo acerca do uso da História da Matemática enquanto fornecedora dos elementos necessários para a construção de caminhos lógicos tendo em vista a construção original daquele tópico matemático que se quer ensinar, propiciando ao aluno uma visão com significado da totalidade da matéria. A proposta inclui uma caracterização dos meios de se obter conhecimentos sobre História da Matemática através do recurso às fontes históricas e aos vários tipos de livros de História da Matemática.

Iniciaremos com uma retrospectiva da transmissão de conhecimentos sobre História da Matemática, reconhecendo os principais documentos disponíveis para conhecer essa História. No primeiro capítulo veremos uma História dessas fontes. Conforme veremos, os livros sobre História da Matemática não são a única fonte de informação sobre ela. Muitas vezes temos de recorrer a textos originalmente matemáticos. Por isso, nessa primeira capítulo trataremos indistintamente de escritos matemáticos historicamente importantes e de escritos exclusivos de História da Matemática.

No segundo capítulo estudaremos com mais pormenor alguns livros específicos sobre História da Matemática, segundo sua divisão por tipos (cronologias, biografias, por assunto e outros). O modo como o livro está organizado é importante para definir a estratégia de sua utilização didática. No estudo desses livros, a estrutura do seu conteúdo como um todo é tão reveladora que pareceu-nos conveniente trabalhar também com a própria relação de conteúdo de alguns livros, a fim de apreendermos adequadamente sua organização interna. Os objetivos dos autores desses livros, expostos em suas análises introdutórias, também serão considerados, pois esclarecem a concepção de livro de História da Matemática do autor em questão.

(5)

CAPÍTULO 1

Breve História das Fontes da História da

Matemática

1.1 Valor do recurso às Fontes da História da

Matemática

Uma coisa é escrever como poeta, e outra como historiador; o poeta pode contar as coisas não como foram, mas como deviam ser, e o historiador há de escrevê-las, não como deviam ser, mas como foram, sem acrescentar nem tirar à verdade a mínima coisa.

Cervantes3 A história é uma aventura espiritual em que a personalidade do historiador se compromete por completo.

Marrou4 Para estudar o valor didático da História da Matemática é necessário inicialmente conhecer essa História, sendo esse conhecimento construído fundamentalmente à partir do contato com suas fontes. O acesso às fontes históricas é de grande utilidade para a construção do conhecimento histórico em geral. De modo especial, para a construção do conhecimento específico sobre História da Matemática, as fontes representam um papel muito importante.

O historiador francês Henri-Irénée Marrou, em sua obra Sobre o Conhecimento Histórico, explica que o valor do recurso às fontes deve-se principalmente ao fato de o passado não poder ser alcançado diretamente, mas apenas na medida em que reencontramos os traços que ele deixou atrás de si, e também na medida em que formos capazes de interpretá-los, isto é, torná-los inteligíveis para nós5. Isso faz com que a história seja sempre feita com documentos, que são para a história como o combustível para o motor à explosão6. Desse modo, muitas das questões que poderiam interessar o historiador podem permanecer sem resposta por falta de documentação suficiente. Incluída no processo de construção da história está a explicação, ou a interpretação dos dados documentais feita pelo historiador:

A explicação em história é a descoberta, a apreensão, a análise dos mil laços que, de modo talvez inextrincável, unem umas às outras as múltiplas faces da realidade humana - que ligam cada fenômeno aos fenômenos vizinhos, cada estado a antecedentes, imediatos ou longínquos, e, similarmente, às suas conseqüências7.

Essa explicação, elaborada pelo historiador, constitui-se em teorias, as quais são sempre elaboradas tendo em vista um problema particular e limitado. Posteriormente, essa hipótese explicativa pode ultrapassar seu domínio original, e pretender assim reconstruir a realidade histórica de acordo com esse sistema escolhido previamente8. Mas o campo de atuação das explicações históricas é limitado, havendo um nível determinado no qual se estabelece a validade da história9. Existe sempre o risco de enfatizar a contribuição do historiador na produção do conhecimento histórico, em detrimento do valor das fontes documentais. É claro que, como afirma o mesmo autor, a história é o resultado do

3 CERVANTES, Miguel de. O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha. Tradução de Viscondes de Castilho e Azevedo. São Paulo, Abril Cultural, 1978. 609 p., p. 325

4 MARROU, Henri-Irénée. Sobre o Conhecimento Histórico. Tradução de Roberto Cortes de Lacerda. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1978. 265 p., p. 164

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esforço criador de estabelecer relações entre o passado e o presente10. Já desde o início, ao selecionar o tema de pesquisa, ao escolher as fontes e ao interpretá-las, o historiador compromete sua personalidade, numa ação criadora. Mas essa contribuição criadora do historiador na elaboração da história não deve ser nunca encarada como um jogo gratuito, a livre utilização da imaginação que lida com textos, datas, gestos e palavras como o faz um escritor de ficção ou um poeta.

É necessário tomar cuidado para nunca superestimar uma teoria ou explicação histórica, evitando extrapolações para campos por demais amplos.As observações de caráter geral, às vezes chamadas de "leis da história", nada mais são que semelhanças parciais sobre alguns aspectos do passado, de acordo com o ponto de vista momentâneo do historiador11. Marrou chama a atenção para o fato de que a realidade histórica, que captamos na análise dos documentos, constitui-se em fenômenos singulares, únicos e irrepetíveis, entre os quais existem analogias que entretanto só incidem em aspectos parciais, abstraídos pela análise mental, e não englobam aspectos gerais da realidade histórica na sua totalidade.

A conclusão é que o fundamental na tarefa do historiador é justamente a compreensão, das Verstehen, das fontes:

Empiricamente observada, a compreensão aparece como a interpretação de sinais (...) ou de indícios (cinzas de um fogo, impressões digitais) através de cuja realidade imediata conseguimos alcançar alguma coisa do homem de outrora: sua ação, seu comportamento, seu pensamento, seu ser interior ou, ao contrário, às vezes simplesmente sua presença (um homem passou por aqui)12.

Já se vê que as fontes históricas vão muito além de simples documentos escritos. A história pode fazer-se com documentos escritos, quando existem, mas também com tudo aquilo que o engenho do historiador coloca ao seu alcance: sinais, pinturas, registros com fins didáticos, administrativos ou técnicos, instrumentos de uso cotidiano, exames de pedras por geólogos, análises de espadas metálicas efetuadas por químicos, etc13.

Esse leque amplo de possibilidades de um objeto qualquer vir a tornar-se fonte histórica levou o historiador italiano Carlo Ginzburg a expor em seu ensaio Sinais: Raízes de um Paradigma Indiciário14, uma forma de conhecimento baseado nos indícios e sinais pelos quais tomamos contato com uma realidade inacessível diretamente. Segundo suas análises, um verdadeiro modelo epistemológico, ou paradigma, teria surgido por volta do final do século XIX, principalmente no âmbito das ciências humanas: Trata-se de

uma atitude orientada para a análise de casos individuais, reconhecíveis apenas através de pistas, sintomas, indícios15.

Ginzburg não concebe forma melhor de explicar esse modelo epistemológico que elaborando uma analogia com o método de conhecimento dos médicos, detetives, classificadores de arte e outras profissões nas quais o fundamental está na observação de pormenores. No caso dos procedimentos clínicos, o profissional deve observar atentamente todos os pequenos sintomas, e só assim pode elaborar "histórias" precisas da doença, que é, em si, inatingível16. Daí a existência de uma verdadeira semiótica médica, que permitiria diagnosticar as doenças inacessíveis à observação direta com base na observação de sintomas superficiais, os quais muitas vezes passam inadvertidos aos olhos do leigo17. O conhecedor de arte, por sua vez, também seria capaz de descobrir se uma pintura é autêntica ou falsificada pela observação de pormenores, como o traçado de orelhas e fios de cabelo, por trás dos quais se percebe a mão do gênio ou do falsificador. A analogia com o trabalho do detetive é também evidente, pois ele descobre o autor do crime baseado em pequenos indícios, muitas vezes imperceptíveis para a maioria18. Também Marrou comenta que o inquérito policial desencadeado pela descoberta de um assassinato é um estudo de ordem propriamente histórica, procedendo através de

10 Cf. Ibid., p. 45

11 Cf. Ibid., p. 161 12 Ibid., p. 67 13 Cf. Ibid., p. 63

14 GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas e Sinais: Morfologia e História. Trad. de Federico Carotti. São Paulo, Companhia das Letras, 1989. 281 p., pp. 143-179

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pesquisa, crítica e interpretação de documentos, de indícios (pegadas, impressões digitais) e dos testemunhos recolhidos19.

Esse retorno às fontes históricas em busca de indícios significativos caracteriza uma verdadeira tendência recente da historiografia, apontada por Roberto J. Lopez no seu artigo

Nuevas Tendencias en la Historiografia: La Vuelta al Arte de Contar20. Lopez diz que a narração de um pequeno acontecimento ou da vida de alguns indivíduos pode servir como ponto de partida para o estudo de situações mais gerais. Desse modo, os historiadores estariam retornando à prática de contar relatos, mas esses teriam algumas diferenças com relação aos relatos tradicionais, por estarem menos centrados na narração da vida de reis, políticos, militares e gente da diplomacia, e mais nas vidas e costumes de autores anônimos da história. Dentro desse paradigma, as fontes históricas ocupam uma nova posição:

As fontes empregadas costumam ser novas, ao menos no seu uso (atas de notários, registros judiciais, sentenças); há uma estreita vinculação com a antropologia, na medida em que trata de alcançar o significado simbólico dos fatos narrados. Definitivamente, o que se busca é "jogar luz sobre os mecanismos internos de uma cultura ou de uma sociedade no passado"21. A história das

mentalidades (...) constitui a vanguarda da nova narrativa22.

Portanto, nessa tendência da historiografia é dado um lugar de destaque ao acesso às fontes como forma de descobrir o significado e a lógica interna das formas de pensar, das mentalidades do passado.

De um modo especial, também para nós é conveniente recorrer às fontes da História da Matemática e aos diferentes tipos de livros que há sobre o tema, pois neles encontramos os indícios que revelam as razões do surgimento das idéias matemáticas. Além disso, mais que conhecer uma série de fatos históricos isolados, importa sobretudo que o Professor tenha claro a noção de onde obter essas informações históricas. Por um lado, porque existe uma quantidade muito grande de dados históricos, a qual vai inclusive crescendo e se modificando à medida em que se desenvolvem as pesquisas históricas. Por outro lado, conforme veremos mais adiante, fazer uso da História da Matemática para ensinar Matemática elementar não se reduz ao simples ato de contar histórias: é necessário captar a forma de pensar, a lógica da construção matemática. Isso faz com que seja fundamental para quem queira fazer uso didático da História da Matemática, conhecer primeiro suas fontes.

Embora as formas em que a História da Matemática é apresentada traduzam em parte a concepção de História do autor, não estamos aqui interessados nas diferentes teorias de explicação histórica e suas respectivas conseqüências no estudo da evolução do pensamento científico. Quando realizamos uma classificação por tipos dos livros de História da Matemática e quando esboçamos uma breve História da fontes, não estamos querendo descrever as várias posturas históricas que já surgiram, mas apenas relacionar de forma ordenada os principais escritos que servem para o conhecimento de História da Matemática, falando também um pouco de alguns autores significativos. Nossa intenção é facilitar o acesso o mais diretamente possível a essas fontes, de modo que cada qual possa extrair da análise dos relatos do fenômeno da criação científica, elementos para uma abordagem

mais significativa do conteúdo que pretende ensinar, baseando-se nos indícios registrados na História. Para facilitar esse acesso às fontes foi-nos muito útil o contato com a resenha de livros realizada por Gino Loria, em seu Guia ao Estudo da História da Matemática23. O objetivo de Loria ao escrever essa retrospectiva era auxiliar o pesquisador, o qual

se não quiser perder tempo e esforço ao redescobrir coisa já sabida, deve antes de tudo conhecer os pontos comuns dos pesquisadores precedentes, cujo ponto de chegada deve servir para ele como ponto de partida24.

Loria pretendia orientar o futuro autor de História da Matemática, relacionando as obras do tipo já existentes, de modo a que ele pudesse conhecer os pontos comuns entre elas e planejar uma obra que de algum modo representasse um avanço em relação às anteriores. De fato, como diz

19 Cf. MARROU, op. cit., p. 105

20 LOPEZ, Roberto J. Nuevas Tendencias en la Historiografía: la Vuelta al Arte de Contar. Madrid, ACEPRENSA, 16 Marzo 1988, servício 37/88

21 STONE, Lawrence. El Passado y el Presente. México, Fondo de Cultura Económica, 1986, 289 p. 22 LOPEZ, o. cit.

23 LORIA, Gino. Guida allo Studio della Storia delle Matematiche. 2a ed. Milano, Ulrico Hoepli, 1946. 385 p. Principalmente o Capitolo II:Rassegna delle principali opere sulla Storia delle Matematiche, pp. 15-60

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Marrou, um trabalho histórico deve iniciar pela leitura do que já foi escrito sobre o mesmo assunto, os temas vizinhos e outros relacionados. Isso é útil sobretudo para orientar a heurística, aprendendo dos trabalhos anteriores o gênero de fontes nas quais se pode encontrar informações25.

O espírito do presente trabalho difere do de Loria, pois não visa diretamente o trabalho do historiador da Matemática. Não nos dirigimos em primeiro lugar ao pesquisador de História da Matemática em si, mas sim àqueles interessados em descobrir seu valor didático. Para nós permanece válido, porém, considerar as diferentes espécies de fontes segundo as três categorias apontadas por ele:

I. Relíquias ou restos, que são vestígios do passado sem qualquer propósito de conservar ou transmitir à posteridade a memória do presente, como edifícios, armamentos, brasões, contratos, leis, cartas, festas, etc.

II. Monumentos erigidos com o propósito de conservar para a posteridade a memória do presente, como por exemplo construções de monumentos, túmulos, inscrições, etc.

III. Tradiçãooral e escrita26.

Percebe-se na enumeração de Loria a noção de que os conhecimentos matemáticos de certo modo precederam a capacidade humana de escrever suas idéias, existindo muitos testemunhos da Matemática do passado em forma por exemplo de obras arquitetônicas. Inclusive também, segundo Marrou, pode-se considerar como documento histórico toda fonte da qual o espírito do historiador saiba extrair informações para o conhecimento do passado humano, de acordo com seu objetivo27 . Mas é evidente que só com o surgimento da escrita é que se passou a registrar com maior fidedignidade o estágio matemático de uma determinada cultura. Desse modo, a maior parte das informações nos vem do período posterior ao surgimento da escrita, por volta de cinco mil anos antes de Cristo, e principalmente após a constituição da Matemática enquanto Ciência e sua primeira organização lógica, feito que provavelmente se deve aos gregos do século VI a.C.

Portanto, como se verá, esse trabalho lida fundamentalmente com fontes do tipo literário, embora também para esses documentos seja aplicável o que foi dito acima, acerca do valor do recurso às fontes, pois é a própria produção escrita dos matemáticos que fornece rico material para a pesquisa em História da Matemática. Javier de Lorenzo, em sua Introducción al Estilo Matematico28, caracteriza essas diferentes formas de expressão utilizadas pelos matemáticos em três distintos níveis:

Linguagem de criação Linguagem de exposição Linguagem de divulgação29

Explica que a linguagem de criação pode ser encontrada em trechos de diários, cartas, ensaios breves, etc, muitas vezes em esquemas pouco claros e incompletos30. Já para expor suas idéias, o matemático cuida mais da forma e do rigor da linguagem. Para fazer a divulgação, muitas vezes em obras ou publicações de cunho didático, o autor procura atingir um público mais amplo, através de uma linguagem acessível.

Antes que os matemáticos começassem a produzir, havia outros tipos de registros da Matemática de cada época, que também servem de fonte da História da Matemática. Dedicaremos à consideração desses documentos e seus caminhos até nós no item Caminhos da História da Matemática Pré-Helênica. Estudaremos o surgimento de obras propriamente matemáticas que se deu com o advento da civilização grega no item Tradição Greco-Latina. A conservação e transmissão da ciência e cultura gregas durante a segunda metade do primeiro milênio da nossa era será estudada no item De Boécio a Gerbert. O período seguinte, caracterizado pelo surgimento das Universidades européias e o crescente interesse pela Ciência que provocou um retorno aos originais gregos via traduções para o latim, será estudado no item O Renascimento no Século XII. Encerramos essa primeira capítulo com um estudo sobre a época marcada pela utilização da imprensa e o surgimento de muitas obras especificamente sobre História da Matemática, até as atuais obras disponíveis nas bibliotecas, no item O Advento dos

25 Cf. MARROU, op. cit., p. 60

26 LORIA, op. cit., p. 4 27 Cf. MARROU, op. cit., p. 62

28 LORENZO, Javier de. Introducción al Estilo Matematico. Madrid, Tecnos, 1989. 209 p. 29 Ibid., p. 196

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1.2 Caminhos da História da Matemática

Pré-Helênica

Os documentos preservados não são sempre (a experiência quase nos autoriza a escrever: nunca) aqueles que desejaríamos, que seria preciso que fossem. Ou não existem, ou são em número insuficiente: é o que comumente ocorre em história antiga.

Marrou31 O legado científico e cultural que a Civilização greco-romana nos deixou talvez seja responsável pela concepção usual de que a História deve ser registrada e preservada para as gerações futuras. Mas antes de Heródoto, considerado por alguns pelo seu pioneirismo como o Pai da História, essa concepção não era nada corrente. Desse modo, os historiadores têm dificuldades especiais para construir a História Antiga da Matemática, principalmente do período anterior aos gregos. Conforme explica Marrou, em história antiga,

na maioria das vezes, trabalhamos sobre fontes literárias, sempre concisas demais, e, de resto, secundárias ou terciárias (...); as poucas fontes primárias que possuímos estão representadas pelos documentos arqueológicos, as inscrições, os papiros descobertos ao sabor das escavações, em virtude, portanto, de uma seleção arbitrária32.

Mesmo com a espantosa duração de Civilizações como a do Egito, mais do que o dobro de toda a era cristã, a quantidade de registros intencionalmente históricos é ínfima, se comparada com a nossa. Basta ver que quando um faraó sucedia a outro no trono, muitas vezes fazia por apagar, literalmente, o nome do antecessor de todas as inscrições nos templos e palácios, na tentativa de eternizar seu próprio nome como o autor daquelas obras. No que se refere à Matemática existem, no entanto, registros que se conservaram até hoje. Por aterem-se excessivamente às necessidades práticas, os egípcios não arriscavam alçar vôos rumo às generalizações. Cada problema era resolvido de um modo particular, não havendo na verdade métodos gerais de resolução de problemas33. O que faziam era registrar a resolução de cada problema passo por passo, e é graças a isso que podemos conhecer agora como era a Matemática da época. A História da Matemática egípcia é tarefa de pesquisadores atuais, que baseados em dados arqueológicos procuram reconstituir o que quer que se assemelhe a Matemática e que se conservou até hoje.

De fato, o conhecimento da Matemática egípcia nos chegou apenas após os hieróglifos terem sido decifrados por Champollion, que publicou em1842 seu Dictionnaire Egyptien34. A Pedra de Rosetta, trazendo a inscrição trilingüe que lhe permitiu a decifração dos hieróglifos, foi produzida em 196 aC e permaneceu incógnita por muitos séculos35. O mais famoso papiro egípcio sobre Matemática foi produzido pelo escriba Ahmes36 em 1650 aC e encontrado mais de 3000 anos depois, quando em 1858 o antiquário escocês Henry Rhind o adquiriu37. Somente em l877 é que Eisenlohr conseguiu traduzi-lo38. Não há, portanto, uma tradição linear ligando a nossa Civilização à do Egito Antigo, e a pesquisa sobre sua Matemática tem que ser feita com base nesses achados arqueológicos.

Algo semelhante se dá com a Matemática dos povos da Mesopotâmia. Existem centenas de tabletas cuneiformes trazendo informação sobre a Matemática de quatro mil anos atrás. A tradução desse material só teve início em 1870, quando se descobriu uma inscrição também trilingüe

31 MARROU, Henri-Irénée. Sobre o Conhecimento Histórico. Tradução de Roberto Cortes de Lacerda. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1978, 265 p., p. 56

32 Id., ibid.

33 Cf. BOYER, Carl Benjamin. História da Matemática. Tradução de Elza F. Gomide. São Paulo, Edgard Blücher, 1974. 488 p., p. 16

34 Cf. GILLINGS, Richard J. Mathematics in the Time of the Pharaohs. New York, Dover, 1972. 288 p. 1

35 Cf. CERAM, C. W. Deuses, Túmulo e Sábios: o Romance da Arqueologia. Trad. de João Távora. 16a ed. São Paulo, Melhoramentos, 1982. 392 p., p. 79

36 Cf., p. ex., a tradução de Thomas Eric Peet: The Rhind Mathematical Papirus. Apud MIDONICK, Henrietta O. (Ed.) The Treasury of Mathematics. New York, Philosofical Library, 1965. 820 p., pp. 706-32

37 Cf. BOYER, op. cit., p. 9

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nas encostas do monte Behistun, narrando a vitória do rei Dario sobre Cambises39. Somente em 1934 Otto Neugebauer decifrou, interpretou e publicou as tabletas matemáticas babilônias40.

Do mesmo modo, uma pessoa que queira conhecer a História da Matemática da China, da Índia ou do Japão deve recorrer aos originais antigos que de algum modo se preservaram até hoje e a partir dos quais são inclusive escritas obras de História da Matemática dessas civilizações, como The Development of Mathematics in China and Japan, de Yoshio Mikami41, e a incomparável obra em três volumes de Joseph Needham, Science and Civilization in China42. Existem muitas dificuldades inclusive para saber a data de documentos antigos, pois as obras chinesas podem ter vários autores de épocas diferentes43, enquanto algumas obras hindus apresentam datação considerada inverossímil, como dois milhões de anos44.

Outra fonte sobre a História da Matemática primitiva, sobretudo a respeito do surgimento dos números, é o estudo das linguagens indígenas, que muitas vezes remontam a épocas pré-históricas45, e o estudo das formação das palavras das línguas modernas.

Essa ausência de tradição linear que liga a Matemática das civilizações pré-helênicas até hoje pode ser um dos fatores que reforçam a idéia de que a Matemática é uma ciência que praticamente nasceu pronta. Essa idéia está muito presente em algumas concepções do ensino da Matemática, principalmente no nível elementar. A sistematização grega da Matemática é muitas vezes identificada como sua própria gênese, e poucos autores retrocedem para antes dos gregos ao estudar a História da Matemática. Piaget e Garcia, por exemplo, ao elaborarem sua obra Psicogênese e História das Ciências46, iniciam o estudo histórico a partir dos gregos, justificando-se precisamente pela falta de uma ligação para com a evolução anterior aos gregos.

39 Cf. BOYER, op. cit., p. 8

40 Cf. NEUGEBAUER, Otto. Mathematische Keilschrigt Texte. Berlin, Springer-Verlag, 1934.

41 MIKAMI, Yoshio. The Development of Mathematics in China and Japan. New York, Chealsea, 1913, 347 p. 42 NEEDHAM, Joseph. Science and Civilization in China. Cambridge, University Press, 1959. 3 v.

43 Cf. BOYER, op. cit., p. 143 44 Cf. BOYER, op. cit., p. 152

45 Cf. GROZA, Vivian Shaw. A Survey of Mathematical Elementary Concepts and their Historical Development. New York, Holt, Rinehart and Winston, 1968. 327 p., p. 8

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1.3 A Tradição Greco-Latina

Todo os homens têm, por natureza, desejo de conhecer.

Aristóteles47 Com o advento da Civilização grega tem início uma preocupação especial com a História, e conseqüentemente com a História da Matemática. As mais antigas Histórias da Matemática são gregas e a primeira de que se tem notícia foi escrita por Eudemos de Rodes48, por volta de 320 aC. Eudemos era um peripatético, isto é, aluno de Aristóteles. Essa obra histórica de valor inestimável não sobreviveu à passagem dos anos. Nela certamente haveria muitos dados sobre a controvertida passagem das Matemáticas Pré-Helênicas, de caráter eminentemente prático, para os sistema mais teórico dos gregos. O papel de Tales de Mileto (624-548 aC) e de Pitágoras de Samos (580-500 aC) nessa construção inicial do pensamento matemático na Grécia também seria melhor elucidado. Mas desse livro de Eudemos só nos restam referências esparsas em outras obras. O mesmo pode-se dizer da

Biografia de Pitágoras, escrita pelo próprio Aristóteles49, que também se perdeu.

Outros livros que foram preservados dessa época trazem algumas referências ao início heróico da Matemática grega, mesmo não sendo livros propriamente de História da Matemática. Por exemplo, a maior parte dos trabalhos de Platão e cerca de metade dos de Aristóteles se conservou até hoje50, e esses filósofos possuíam um real interesse pela totalidade do Conhecimento de uma maneira ampla, incluindo a Matemática. Mas o que mais se aproxima de uma narrativa verdadeiramente histórica da evolução da Matemática nesse período, e que se conservou, encontra-se num Comentário

ao primeiro livro de Os Elementos de Euclides, escrito pelo filósofo neo-platônico Proclus Diadochus (410-485 dC)51. Apesar do milênio que o separa da vida de Tales, é em Proclus que nos baseamos para afirmar quase tudo o que sabemos sobre Tales e Pitágoras, porque teria incorporado no seu Comentário

um trecho resumido da História da Matemática de Eudemos.

Logo no início do Comentário, por exemplo, após reafirmar a idéia de ter a Geometria tido seus primórdios no Egito, diz que Tales

primeiro foi ao Egito e de lá introduziu este estudo na Grécia. Descobriu muitas proposições ele próprio, e instruiu seus sucessores nos princípios que regem muitas outras, seu método de ataque sendo em certos casos mais geral, em outros mais empírico52.

Depois, prossegue dizendo que

Pitágoras, que veio após ele, transformou esta Ciência em uma forma liberal de educação, examinando seus princípios a partir do início e provando os teoremas de uma forma imaterial e intelectual. Ele descobriu a teoria dos proporcionais e a construção das figuras cósmicas53.

Uma coleção de Biografias de Matemáticos e Filósofos Gregos é atribuída a Diógenes Laércio54. Nessa obra se encontra, por exemplo, a narração de que Tales mediu a altura das pirâmides do Egito observando o comprimento das suas sombras no momento em que a sombra de um bastão vertical era igual à sua altura.

Além desses documentos específicos de História, para se reconstituir o período grego contamos com inúmeros escritos propriamente matemáticos, muitos deles estruturados já segundo um nível lógico formalizado, como é o caso de Os Elementos de Euclides55. Falaremos sobre a importância dessa organização lógica dos gregos no Capítulo 3 desse trabalho. Por hora basta dizer que

47 ARISTÓTELES. Metafísica. A. 1. Apud: Coleção "Os Pensadores". V. IV. 1a ed. Trad. de Vicenzo Cocco. São Paulo, Abril Cultural, 1973. p. 211

48 Cf. LORIA, Gino. Guida allo Studio della Storia delle Matematiche. 2a ed. Milano, Ulrico Hoepli, 1946. 385 p., p. 16 49 Cf. BOYER, Carl Benjamin. História da Matemática. Tradução de Elza F. Gomide. São Paulo, Edgard Blucher, 1974, 488 p.

72 50 Cf. Ibid., p. 61

51 Cf., p. ex., a trad. de Ivor Thomas. Proclus Summary. Apud: MIDONICK, Henrietta O. (Ed.) The Treasury of Mathematics. New York, Philosofical Library, 1965. 820 p.

52 Cit. in. HEATH, Thomas Litle. A History of Greek Mathematics. New York, Dover, 1981. 2 v. I, p. 128. Cf. BOYER, op. cit., p. 35

53 Cit. in HEATH, op. cit., p. 141. Cf. BOYER, op. cit., p. 36 54 Cf. LORIA, op. cit., p. 16

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a Matemática atual apresenta características lógicas que se podem chamar herdadas dos gregos. Paralelamente a essa herança de conhecimentos especificamente matemáticos, existe uma linha de transmissão do conhecimento sobre a História da Matemática começando na Grécia, no século VI aC, e prosseguindo até o surgimento das Universidades na Europa no século doze, que podemos chamar de Tradição Greco-Romana ou Greco-Latina.

É claro que, dentro desse milênio e meio, outros povos e outras línguas - de modo especial, os árabes -, tiveram uma participação importante na História da Matemática. Principalmente porque a passagem natural da Ciência grega através do mundo romano viu-se interrompida com a invasão dos bárbaros que tomaram Roma em 476. Quando, a partir do segundo milênio da nossa era, o surgimento das Universidades na Europa começar a atrair o interesse dos estudiosos latinos para os textos gregos, é em grande parte a língua árabe que vai servir como ponte de ligação entre o grego e o latim.

Os árabes, desde o início da era maometana em 622, foram conquistando paulatinamente muitos dos centros culturais da Antiguidade, como Alexandria, em 641. No século oito, funda-se a Casa da Sabedoria em Bagdá, no final do califado de Harum al-Raschid (786-809), famoso por figurar nas Mil e uma Noites. Bagdá torna-se então um grande centro cultural, onde se farão traduções de inúmeras obras gregas, as quais mais tarde foram por sua vez traduzidas para o latim.

Parece muito provável que, em meio aos 750.000 volumes que supostamente continha a Biblioteca de Alexandria, haveria informação abundante sobre História da Matemática. Entretanto, entre o incêndio provocado por Júlio César no ano 47 aC, em perseguição a Pompeu que se refugiara em Alexandria, e a queima quase total de 641 dC, decretada pelo Califa Omar, sucessor de Maomé no comando dos árabes, pouco sobrou para contar essa valiosa História. É importante observar que parte desse tesouro da Tradição Greco-Latina conseguiu sobreviver ao fogo cruzado das invasões árabes por um lado e dos ataques bárbaros por outro.

Pode não ser verdadeiro o relato de que os árabes, após terem tomado Alexandria, decidiram queimar os livros da Biblioteca pois se estivessem de acordo com o Corão, seriam supérfluos, e se estivessem em desacordo, seriam pior que supérfluos56. Nem que as fogueiras dos acampamentos árabes foram alimentadas durante meses com os milhares de volumes da Biblioteca, pois de certo modo essa atitude estaria em contradição com o espírito freqüentemente árabe de apropriar-se da cultura do povo conquistado, fazendo dela uso prático, e contribuindo assim indiretamente para a preservação do conhecimento para as gerações posteriores. Mas se escapou aos prováveis incendiários árabes, certamente a Cultura Greco-Latina, incluindo informações valiosas sobre História da Matemática, teve muito que padecer nas mãos dos povos bárbaros.

Os bárbaros paulatinamente penetraram por todos os lados do decadente Império Romano, durante os primeiros séculos da nossa era: vândalos, visigodos, ostrogodos, etc. E sua presença causou uma desconexão com as sutilezas filosóficas do espírito grego, conforme descreve Collette:

Quando as grandes invasões deslocaram o Império Romano do Ocidente e instalaram um rei ostrogodo no lugar do Imperador, o Ocidente ficou praticamente desconectado do Império Romano do Oriente e, por esse mesmo fato, desligado da Ciência helênica. Só subsistiram as tradições transmitidas em latim por autores que viveram durante os séculos V e VI57.

Falaremos a seguir sobre esses autores que transmitiram a Tradição Greco-Latina, a partir dos séculos V e VI.

56 Cf. BOYER, op. cit., p. 165

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1.4 De Boécio a Gerbert

Deve-se ensinar divertindo.

Alcuino58 Tornando-se Odoacro, o Hérulo, Imperador romano em 476, já ocorre uma grande alteração nos cuidados oficiais com a Cultura. Seu sucessor Teodorico, o Ostrogodo, ainda mantém-se por algum tempo assessorado por um dos últimos Senadores Romanos, Ancius Manílius Torquatus Severinus Boethius, ou Boécio, que viveu de 480 a 524. Boécio será, na corte bárbara, como que um representante da Cultura e Ciência Helênicas, pois é

não apenas um filósofo e matemático, mas também um homem de Estado59, um

romano que conhece a fundo a cultura grega e que percebe que o esplendor cultural do mundo antigo passou(...).No entanto, percebe o que deve ser feito: só se pode salvar a cultura em épocas de crise como a que ele viveu adaptando-se às condições dos bárbaros60.

Conforme relata Cajori61, o trabalho de Boécio não foi em vão. Apesar de que parte do seu projeto fosse traduzir todas as obras de Platão e Aristóteles62, Boécio não pode completá-lo: teve um fim trágico e repentino. Por ter desagradado Teodorico, foi aprisionado e executado algum tempo depois63. Uma possível explicação desse desagrado é aventada por Boyer64. Boécio, que era cristão assim como outros matemáticos (Pappus, por exemplo), teria adotado idéias sobre a Trindade Divina que estariam em desacordo com as crenças do Imperador. Mesmo na prisão, o esforço intelectual de Boécio não cessou, e foi lá que ele escreveu sua obra mais célebre, De Consolatione Philosophiae. Nesse ensaio em prosa e verso, discute a responsabilidade moral à luz da filosofia aristotélica e platônica65.

Devido ao esforço de pessoas como Boécio, tornou-se possível a sobrevivência da Matemática na Europa Ocidental, pois

graças a esse trabalho humilde e sacrificado, assumido conscientemente por quem tinha talento para muito mais, a Matemática preservou-se no Ocidente e pôde manter-se até o século X, quando recebe novo impulso com Gerberto e, a partir dos séculos seguintes, desenvolver-se mais e mais66.

De fato, até finais do século X, outros autores latinos como Cassiodoro, Isidoro de Sevilha, Beda o Venerável e Alcuíno irão exercer grande influência sobre o ensino da Matemática nas escolas medievais, servindo-se principalmente de trabalhos de Euclides, Nicômaco e Ptolomeu67. Após o século X, terá início um movimento de maior retorno à Ciência grega, valendo-se do auxílio de versões manuscritas árabes.

Enquanto os povos bárbaros se estabelecem na Europa, vão pouco a pouco assimilando essa Cultura Greco-Romana, até chegarem a formar as atuais nações européias (França, Alemanha, Inglaterra, etc). Para que tal processo ocorresse, tiveram importante papel as instituições monásticas de ensino, pois havia praticamente uma escola para cada mosteiro, e era lá que o ensino pode sobreviver ao descaso bárbaro, principalmente durante o período de 500 a 120068. Além desse papel de divulgação, os monges medievais contribuíram muito para a preservação da Cultura em si, através das cópias manuscritas que realizavam com tal dedicação que cada página era uma verdadeira obra de arte69.

58 Cf. LAUAND, Luiz Jean. Educação, Teatro e Matemática Medievais. São Paulo, Perspectiva/EDUSP, 1986, 117 p., p. 73 59 BOYER, Carl Benjamin. História da Matemática. Trad. de Elza F. Gomide. São Paulo, Edgard Blucher, 1974, 488 p., p. 139 60 LAUAND, op. cit., p. 23

61 Cf. CAJORI, Florian. A History of Mathematics. New York, The Macmillan Company, 1919, 516 p., p. 67 62 Cf. LAUAND, op. cit., p. 24

63 Cf. BOYER, op. cit., p. 140 64 Id., ibid.

65 Id., ibid.

66 LAUAND, op. cit., p. 25

67 Cf. COLLETTE, Jean-Paul. Historia de las Matemáticas. Mexico, Siglo Veintiuno, 1986, 2 v. V. I, p. 219

68 Cf. ARCHIBALD, Raymond Clare. Outline on the History of Mathematics. Ohio, Mathematical Association of America, 1941, 76 p., p. 26

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Dos mosteiros sairão as maiores obras com informações sobre a História da Matemática desse período. Cassiodoro (480-575), discípulo de Boécio, escreveu diversas obras matemáticas que serviam de livro-texto nas escolas dos mosteiros70. Cassiodoro morreu em idade avançada num convento que ele mesmo havia fundado, tendo incentivado grandemente

aos monges a cópia de manuscritos, costume que persistiria durante muito tempo nos conventos do período medieval e teve desta forma uma importante influência nas tradições científicas71.

Depois dele, outro autor produtivo foi Santo Isidoro de Sevilha (570-636), que escreveu uma Enciclopédia em 20 volumes intitulada Origens ou Etimologias72. Conforme comenta Cajori73, essa obra segue o modelo das enciclopédias romanas de Martianus Capella de Cartago e Cassiodoro. Parte dela é dedicada ao estudo da Matemática, dentro da concepção corrente na época, que englobava o chamado Quadrivium - Aritmética, Música, Geometria e Astronomia. Essa parte da Enciclopédia é de especial importância para a História da Matemática, pois contém já os numerais indo-arábicos que serão mais tarde os substitutos dos algarismos romanos74.

Outra fonte de informação sobre a História da Matemática são os trabalhos do monge inglês São Beda, o Venerável (673-735). É interessante observar que muitas das suas 37 obras são tratados sobre o cálculo necessário para a datação precisa da Páscoa, base do Calendário. Inclusive comenta Cajori que mesmo o cálculo do Calendário contribuiu para que a arte de calcular sempre encontrasse algum lugar no currículo para a educação dos monges75. Segundo Smith, São Beda pode ser considerado um precursor do ensino na Inglaterra, e por isso suas obras adquirem uma importância singular76.

É outro inglês o responsável principal pelo desenvolvimento da Educação no Grande Império Franco: Alcuíno de York (735-804). Ele nasceu no ano da morte de São Beda, e após ter sido educado na Irlanda tornou-se o maior colaborador de Carlos Magno, que tinha muita preocupação com o ensino77. O trabalho de Alcuíno na França foi o estopim do chamado Renascimento Carolíngeo, nas Artes, na Ciências e no Ensino. Uma de suas mais importantes obras é precisamente de natureza didática. Trata-se do Diálogo entre Pepino e Alcuíno78, em que são recolhidos inúmeros enigmas e adivinhações com funções pedagógicas, bem de acordo com suas idéias no campo educativo, que incluíam seu famoso princípio citado na epígrafe deste item:

Deve-se ensinar divertindo79.

Também é atribuída a Alcuíno a autoria de uma coletânea de problemas que segundo ele eram apropriados ao desenvolvimento da inteligência dos jovens80, que constituem uma boa amostra não só da Matemática desse período, como também do seu interesse pela Educação. O modo como Alcuíno procurava ensinar a Matemática - através da resolução de problemas81 - possui importância particularmente atual, já que essa técnica tem recentemente sido objeto de interessantes estudos relacionados com a didática da Matemática82.

Além dos manuscritos latinos, um dos caminhos percorridos pela História da Matemática da Antigüidade até nós foi o dos manuscritos árabes. O recurso a esses manuscritos deveu-se fundamentalmente ao fato de o interesdeveu-se pelos textos matemáticos crescer muito na Europa, de modo que apenas o que fora resgatado por Boécio e outros tornou-se insuficiente.

70 Cf. BOYER, op. cit., p. 181

71 COLLETTE, op. cit., p. 221

72 San Isidoro de Sevilha. Etimologías. Versão bilingue (Latim/ Espanhol) de José Oroz Reta e Manuel-A. Marcos Casquero. Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 1982. Livro III (De Mathematica), p. 422 a 481

73 Cf. CAJORI, op. cit., p. 113 74 Cf. BOYER, op. cit., p. 182 75 Cf. CAJORI, op. cit., p. 114 76 Cf. SMITH, op. cit., p. 184 77 Cf. CAJORI, op. cit., p. 114 78 Cf. LAUAND, op. cit., p. 71 79 LAUAND, op. cit., p. 73 80 Cf. CAJORI, op. cit., p. 114

81 Alguns desses problemas aparecem em EVES, Howard. An Introduction to the History of Mathematics. New York, Holt, Rinehart and Winston, 1969, 464 p., p. 227

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Nesse recurso aos árabes, terá influência decisiva um monge francês de extraordinária atividade científica: Gerbert ou Gerberto (950-1003). Conforme explica Cajori, o zelo com o qual o estudo da Matemática foi tomado pelos monges é devido principalmente à energia e influência de Gerbert83. Tanto assim que, no século X, pode-se dizer que recomeça o progresso da Matemática, já que as obras de Gerbert corrigem muitos erros dos séculos anteriores84. Ao lado dos muitos trabalhos matemáticos que produziu, dedicou-se também a diversos outros campos de atividade. Conforme relatam os historiadores, Gerbertnasceu em Auvergne, França, possuindo dons incomuns para a Matemática e outras ciências. Chegou a construir ábacos, globos terrestres e celestes, um relógio, e talvez até um órgão85, escrevendo também sobre Aritmética, Geometria e outras áreas da Matemática, e provavelmente sobre o Astrolábio86. Sendo um dos primeiros cristãos a estudar nas escolas árabes da Espanha87, Gerbert adquiriu logo fama de sábio e educador. Foi então chamado a ser tutor e conselheiro de Otto III, Imperador do Santo Império Romano. Mais tarde tornou-se Arcebispo, primeiro em Reims e depois em Ravenna, e em 999 foi elevado ao papado, com o nome de Silvestre II88. Com relação a sua contribuição para o desenvolvimento da Matemática, relata Lattin:

Com Gerbert, a atividade numérica prática (Logística) pela primeira vez obteve o mesmo "status" da atividade numérica teórica (Aritmética) como matéria de ensino avançado formal. Ele desenvolveu velocidade nas operações aritméticas através da revitalização do uso do ábaco e sua introdução, a partir da Espanha, dos nove numerais indo-arábicos (sem o zero). Além disso, trouxe consigo regras para sua utilização, que escreveu de forma elaborada89.

Os abundantes escritos de Gerbert fornecem uma panorâmica acerca dos métodos de calcular da Europa antes da introdução dos numerais indo-arábicos90. Mas é sem dúvida seu papel de educador, ao lado da introdução, difusão e ensino dos numerais indo-arábicos, que constitui sua mais interessante contribuição, dando-lhe um lugar especial na História da Matemática91. Quando faleceu, a 12 de maio de 1003, já havia infundido nova vida no estudo não apenas da Matemática, mas também da Filosofia92. Segundo Lattin,

as porções remanescentes do corpo lógico aristotélico que tornaram-se parte do pensamento europeu ocidental no século XII foram integrados num único tecido apenas sobre o sólido fundamento do ensino organizado por Gerbert no século X93.

Seus inúmeros alunos, da França, da Alemanha ou da Itália, tornaram-se por sua vez professores e difundiram esse conhecimento pela Europa94, promovendo o interesse pelos clássicos gregos sobre Ciência e Matemática95. Esse interesse irá desencadear uma nova etapa muito importante para a História da Matemática, que estudaremos a seguir.

83 Cf. CAJORI, op. cit., p. 115

84 Cf. LAUAND, op. cit., p. 96 85 Cf. EVES, op. cit., p. 207

86 Cf. SMITH, David Eugene. History of Mathematics. 2 v. Boston, Ginn and Co., 1923. V. I, 596 p., p. 196 87 Cf. EVES, op. cit., p. 207

88 Cf. BOYER, op. cit., p. 182

89 LATTIN, Harriet Pratt (Ed.). The Letters of Gerbert. New York, Columbia University Press, 1961. 412 p., p. 19 90 Cf. CAJORI, op. cit., p. 115

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1.5 O Renascimento no Século XII

Em 1136, ainda adolescente, John de Salisbury estudou lógica em Paris e ficou muito impressionado com os mestres e as aulas brilhantes a que assistiu.

Kneale & Kneale96 Para compreender o caminho da História da Matemática até hoje é necessário observar o que se passou na Europa no século XII. Boyer diz quea barreira entre os europeus e a cultura árabe foi superada nesse século. Ao redor do ano 1000, os matemáticos ou astrônomos europeus tinham que possuir um bom conhecimento da língua árabe para aprofundar nos estudos. Mas já no fim do século pode surgir na Itália cristã um matemático do peso de Fibonacci. Boyer prossegue dizendo que:

A época foi tão evidentemente de transição de um ponto de vista mais antigo para um mais novo que C. H. Haskins denominou sua obra The Renaissance of the Twelfth Century (New York, Meridian Books, 1957). O

ressurgimento que ele descreveu começou, inevitavelmente, com uma série de traduções97.

Uma das primeiras obras matemáticas clássicas a aparecer em tradução latina do árabe foram Os Elementos de Euclides, a versão tendo sido feita em 1142 por Adelard de Bath (cerca de 1075-1160). Eves relata que Adelard teria corrido riscos físicos na sua busca do conhecimento árabe, disfarçando-se inclusive de estudante maometano98. E Cajori acrescenta que, no primeiro quarto do século XII, Adelard teria viajado pela Ásia menor, Egito, talvez também pela Espanha, enfrentando grandes perigos99. Sem dúvida, Adelard teve dificuldades para realizar suas traduções, pois estava na linha de frente, entre os primeiros estudiosos dedicados à tradução de manuscritos para o latim. Mas logo suas traduções tornaram-se algo bastante comum na Europa. Na Espanha, especialmente em Toledo, onde o arcebispo encorajava tal trabalho, uma verdadeira escola de tradução se desenvolvia. Conforme explica Boyer,

a cidade, outrora uma capital visigoda, mais tarde esteve nas mãos dos mouros por vários séculos, antes de ser conquistada pelos cristãos, e era um lugar ideal para a transmissão da cultura. Nas bibliotecas de Toledo havia uma quantidade de manuscritos muçulmanos; e grande parte da população, composta de cristãos, maometanos e judeus, falava o árabe, o que facilitava o fluxo interlíngue de informação100.

Dentre os tradutores da Espanha destaca-se Gerardo de Cremona (1114-1187). Em 1175 Gerardo traduziu o Almagesto de Ptolomeu, obra muito importante do ponto de vista histórico. Entre as mais de oitenta e cinco obras atribuídas a Gerardo encontra-se uma adaptação em latim da Al-jabr wa'l Muqabalah de al-Khowarismi101, de cujo título advém nosso termo Álgebra102. Desse modo a Ciência Antiga pode ser recuperada plenamente e preservada para as pesquisas dos séculos futuros. Obras de Filosofia e Lógica também foram sendo recuperadas. Como dizem Kneale e Kneale,

pouco depois de 1250 o conjunto do Organon estava em circulação, ou na antiga versão de Boécio ou em traduções recentes e dentro dos 50 anos seguintes os restantes escritos de Aristóteles foram traduzidas para o Latim. Algumas traduções

96 KNEALE, Willian & KNEALE, Martha. O Desenvolvimento da Lógica. 1a ed. Trad. de M. S. Lourenço. Lisboa, Fundação Calouste Gulberkian, 1972, 770 p., p. 231

97 BOYER, Carl Benjamin. História da Matemática. Tradução de Elza F. Gomide. São Paulo, Edgard Blücher, 1974, 488 p., p. 183

98 Cf. EVES, Howard. An Introduction to the History of Mathematics. New York, Holt, Rinehart and Winston, 1969, 464 p., p. 208

99 Cf. CAJORI, Florian. A History of Mathematics. 2a ed. New York, The MacMillan Company, 1919, 516 p., p. 118 100 BOYER, p. 183

101 Ibid., p. 184

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foram feitas nesta altura em Espanha a partir de traduções Arábicas; outras foram feitas em Itália por estudiosos em contato com a cultura Bizantina103.

Após o século XII, com o surgimento das Universidades Européias, tem início o período dentro do qual encontramos os livros específicos de História da Matemática, de início manuscritos, mas logo impressos tais como podem ser hoje encontrados nas bibliotecas. No século XIII, as Universidades começaram a florescer em Bolonha, Pádua, Nápoles, Paris, Oxford e Cambridge. Pessoas que fizessem reproduções manuscritas de tratados eram intensivamente empregados pelas universidades, e pela metade do século XV, seus produtos estavam sendo vendidos como os livros de hoje em dia. Tais métodos de difundir conhecimento foram aperfeiçoados em muito quando se deu início à distribuição de obras impressas. Conforme relata Archibald,

a publicação destas, com tipos móveis, começou por volta de 1450. Mais de duzentas obras matemáticas foram impressas, apenas na Itália, antes de 1500; mas esse número foi aumentado para 1527 no século seguinte104.

Passaremos a falar agora desses livros que começaram a ser impressos, dentre os quais havia alguns especificamente de História da Matemática.

103 KNEALE, op. cit., p. 230

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1.6 O Advento dos Livros de História da

Matemática

A História da Matemática pode ser instrutiva bem como agradável.

Cajori105 Passaremos agora a considerar, ainda que brevemente, a seqüência mais recente dos livros de História da Matemática propriamente ditos, isto é, obras escritas com esse fim específico. A partir do século XVI, Loria106 já identifica na produção científica uma atitude de verdadeira veneração pela obra dos antigos, com

um sentimento de profunda gratidão àqueles que fizeram progredir a Ciência; isso induziu alguns autores a inserir nos seus escritos a partir daí um verdadeiro e próprio caráter histórico, com informações em torno dos predecessores107.

Desse modo, já em 1615 Giuseppe Biancani produz uma Clarorum Mathematicorum Chronologia como adendo a outra obra maior sua108. Entre outros autores desse século, destaca-se Milliet Descharles que introduziu numa obra sua o item De Progressus Matheseos et Illustrius Mathematicus109. No início do século XVII, o abade Bernardino Baldi publica suas

Biografias de Matemáticos110, após um trabalho de pesquisa de quatorze anos. Essa grande obra traz 365 biografias e serviu de fonte para inúmeros trabalhos posteriores. Segundo Smith, Baldiera um lingüista de habilidades incomuns e por isso pôde com desenvoltura lidar com fontes de informação biográfica em diversas línguas111.

A primeira obra com o título de História da Matemática foi escrita em 1742 por Johann Christoph Heilbronner112. Em sua Historia Matheseos Universae, Heilbronner inclui um valiosa relação de manuscritos que podiam ser obtidos na época, além de uma lista dos últimos livros impressos. Mas a primeira verdadeira e própria História da Matemática113, segundo a expressão de Loria, é sem dúvida a Histoire des Mathématics de Jean Étienne Montucla (1725-1799)114. Sua obra constitui-se num modelo de História da Matemática totalmente cronológica. Além disso, sendo Montucla um erudito, escreveu em estilo abrangente, de modo que quase não foi superado pelas Histórias posteriores115. Pois a obra de Montuclaretrata não só a Matemática pura e aplicada, mas inclui também a História da Geografia, da Música, da Gnomônica e da Navegação. Esse caráter cronológico de Montucla será tema muito importante para a compreensão dos desenvolvimentos posteriores dos tipos de livros sobre História da Matemática.

No início do século XIX uma abordagem diferente, visando a utilização didática da História da Matemática, irá surgir nas mãos do Pe. Pietro Franchini, que dedicava-se entre outras coisas ao ensino da Matemática em diversas escolas secundárias da Itália. Ele era também um matemático muito capaz, e escreveu textos de pesquisa em Matemática, principalmente sobre Análise116. Sua obra histórica, intitulada Saggio sulla Storia delle matematiche corredato di scelte

notizie biografiche ad uso della gioventù117, marca uma nova orientação da visão da História da

105 CAJORI, Florian. A History of Mathematics. 2a ed. New York, The MacMillan Company, 1919, 516 p., Introducion, p. I 106 Cf. LORIA, Gino. Guida allo Studio della Storia delle Matematiche. Milano, Ulrico Hoepli, 1946. 385 p.

107 Ibid., p. 26

108 BIANCANI, Giuseppe. Aristotelis loca Mathematica ex Universis Operibus Collecta et Explicata. Boloniae, 1615. Apud LORIA, op. cit., p. 17

109 DESCHARLES, Milliet. Cursus Seo Mundus Mathematicus. Lugd., 1674. Apud LORIA, op. cit., p. 17

110 BALDI, Bernardino. Cronaca de'matematic ovvero Epitome dell'istorie delle vite loro. Urbino, 1707. Apud. LORIA, op. cit., p. 18

111 Cf. SMITH, David Eugene. History of Mathematics. 2 v. Boston, Ginn and Co., 1923. V. II, 596 p., p. 539

112 HEILBRONER, Johan Cristoph. Historia Matheseos Universae a mundo condito ad seculum post Chr. Nat. XVI. Leipzig, 1742. Apud SMITH, op. cit., p. 539

113 Cf. LORIA, op. cit., p. 20

114 MONTUCLA, Jean Étienne. Histoire des Mathématics. 2 v., Paris, Jombert, 1758

115 Cf. SMITH, David Eugene. History of Mathematics. 2 v. Boston, Ginn and Co., 1923. V. II, 596 p., p. 540 116 Cf. SMITH, op. cit., p. 542

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Matemática, que é sua vinculação ao ensino da Matemática. Essa relação entre História da Matemática e ensino da Matemática será retomada depois por outros autores.

Seguindo o modelo clássico de Montucla, irá surgir no final do século XIX e início do XX a obra que, segundo Loria, assinala uma época na História da pesquisa sobre a evolução do pensamento matemático118. Trata-se da colossal Vorlesunger über Geschichte der Mathematik, de Moritz Benedict Cantor119. Em quatro volumes, publicados entre 1880 e 1908, a obra segueum critério rigorosamente cronológico. Segundo Cajori120, Moritz Cantor é o mais notável escritor geral do século XIX sobre História da Matemática. Nasceu em Mannheim, e estudou inicialmente em Heidelberg. Em Gottingen estudou com Gauss e Weber, e em Berlim com Dirichlet. Deu aulas em Heidelberg onde em 1877 tornou-se Professor Honorário. Seu primeiro artigo histórico surgiu em 1856. A diferença principal entre Cantor e Montucla está na abrangência do programa. Enquanto Montucla fala sobre a História de diversos ramos científicos, Cantor ocupa-se exclusivamente da Matemática pura. A semelhança com Montucla está justamente no modelo cronológico que segue, criticado de certa forma por Loria porque permite interrupções no tratamento de alguns assuntos, por exemplo a questão referente à criação do Cálculo Infinitesimal121.

Com Cantor, o sistema cronológico de narração fica claramente estabelecido. No início do século XX irão surgir no entanto outros tipos de tratamento da História da Matemática, além de outras edições de História da Matemática seguindo a cronologia. Um dos autores mais importantes dessa época é sem dúvida Florian Cajori. Já em 1894 tinha surgido a primeira edição de A History of Mathematics122, um clássico do gênero cronológico em um só volume. Professor de História da Matemática da Universidade da Califórnia, Cajori expõe logo na introdução algumas razões que o levaram a escrever essa obra, baseadas no princípio exposto na epígrafe deste item. No prefácio à segunda edição, de 1919, ele opina que existem vantagensem fazer uma História da Matemática de um só volume para uso dos leitores que não podem dedicar-se a um estudo intensivo da História da Matemática. Por outro lado, admite que é uma tarefa difícil dar uma visão de relance adequada do desenvolvimento da Matemática de seus mais antigos começos até o tempo presente123.

Essa dificuldade apontada por Cajori foi de certo modo resolvida por David Eugene Smith, na sua History of Mathematics124 em dois volumes, publicados em 1923. Smith esclarece que um texto único cronológico não é didaticamente aconselhável, e resolve essa questão planejando uma História da Matemática com dupla visão, em dois volumes com tratamento distintos:

O plano geral adotado na preparação deste trabalho é o de apresentar o assunto a partir de dois pontos de vista distintos, o primeiro, no volume I, levando a uma visão do crescimento da Matemática por períodos cronológicos, com as devidas considerações sobre as realizações étnicas; e o segundo, no volume II, levando a uma discussão da evolução de certos tópicos importantes. Tentar fundir essas duas características e assim apresentá-las foi muitas vezes pretendido. É o que caracteriza, por exemplo, o tratado monumental de Montucla e, em larga medida, o de Cantor. Para o professor, no entanto, esse plano não é satisfatório125.

Smith toma para si a tarefa de escrever um livro de História da Matemática voltado para o Professor de Matemática, portanto pautado do ponto de vista de sua aplicação didática. Esse ponto de vista não era desconhecido por Cajori, que admitia também o valor do conhecimento histórico para o Professor de Matemática126. Mas o público-alvo de Cajori constituía-se fundamentalmente de matemáticos, tendo presente que

a contemplação dos vários passos pelos quais o gênero humano tomou posse do vasto estoque de conhecimento matemático dificilmente deixa de interessar ao matemático127.

118 Cf. LORIA, op. cit., p. 26

119 CANTOR, Moritz Benedict. Vorlesunger über Geschichte der Mathematik. Berlin, Verlag und Teubner, 1880-1908. 4 v. 120 Cf. CAJORI, op. cit., p. 6, nota 1

121 Cf. LORIA, op. cit., p. 27 122 CAJORI, op. cit.

123 Ibid., Preface to the Second Edition

124 SMITH, David Eugene. History of Mathematics. Boston, Ginn and Co., 1923. 2 v. 125 SMITH, op. cit., v. I, Preface, p. iii

Referências

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