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Índio e missionário: modernização e crise de identidade (sobre <i>Maíra</i>, de D. Ribeiro)

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Academic year: 2020

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Í N D I O E M I S S I O N Á R I O : M O D E R N I Z A Ç Ã O E C R I S E D E I D E N T I D A D E ( S O B R E MAÍRA, D E D . R I B E I R O )

Renato F R A N C O1

MAÍRA: U M R O M A N C E S I N G U L A R ?

Malra, ficção de Darcy Ribeiro publicada em 1976 - mesmo ano em que apareceram dois dos mais significativos romances da d é c a d a , Quatro-Olhos de Renato Pompeu e A Festa de Ivan Angelo - aparenta, por v á r i o s motivos, ser obra bastante singular. De fato, ela parece n ã o compartilhar, com os romances do período, a m a t é r i a narrada nem tampouco recorre ao uso intensivo de procedimentos literários recentes ou herdados das vanguardas históricas. D o mesmo modo, n ã o forja, em alguma carpintaria literária, uma linguagem pretensamente inovadora. À primeira vista, t a m b é m n ã o e s t á voltada para o interesse, comum à prosa da época, de narrar alguns dos aspectos da s u b s t â n c i a de nossa história política recente, à qual, por obra da t r u c u l ê n c i a da censura e da atmosfera repressiva criada pela ditadura, esta s ó teve acesso mediante grandes dificuldades. Enfim, Maíra n ã o aparenta poder ser incluído entre os romances que se nutriram da a m b i ç ã o de narrar essa história a contrapelo. Sua singularidade p r o v é m , portanto, do fato de almejar narrar, por modos n ã o apegados à e x p e r i m e n t a ç ã o , aspectos da vida indígena no p a í s , ou, para dizer mais precisamente, a trajetória de u m índio que, à é p o c a de sua f o r m a ç ã o , conhece algumas decisivas c o n t r a d i ç õ e s .

Essa a m b i ç ã o narrativa n ã o é, no entanto, propriamente uma novidade em nossa história cultural, visto que, em outros p e r í o d o s , v á r i o s romances tentaram elaborar narrativas semelhantes. Nessa empreitada literária, alguns lograram certa originalidade - caso de Macunaíma (se é que

1 Docente do Departamento de Antropologia, Política e Filosofia da Faculdade de Ciências e Letras - UNESP - 14800-901 - Araraquara - SP.

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se pode incluir esse l i v r o nessa t r a d i ç ã o ) que tornou m a t é r i a sua a n a r r a ç ã o baseada nas lendas e mitos da A m a z ô n i a - , outros, p o r é m , n ã o obtiveram resultados expressivos mas ajudaram a cristalizar entre n ó s uma imagem mais ou menos idealizada dos índios.

N a literatura latino-americana, p o r é m , a a s s i m i l a ç ã o literária da h e r a n ç a cultural dos indígenas e mesmo a p r o d u ç ã o de romances, cujo c o r a ç ã o narrativo se alimenta diretamente deste material, parece ser uma constante, inclusive nos períodos recentes e, o que é decisivo, obter melhores resultados. Exemplos notáveis s ã o No reino deste mundo do cubano Alejo Carpentier e Pedro Páramo do mexicano Juan Rulfo, os quais, em certo sentido, se comparados com a obra de Darcy Ribeiro, n ã o deixariam de abalar o prestígio de Maíra j u n t o ao p ú b l i c o leitor.

M A Í R A E O R O M A N C E DOS ANOS 7 0

Hoje, p o r é m , dada a distância temporal que nos separa daqueles anos, podemos recorrer à potente lente histórica que nos permite, em â n g u l o privilegiado de o b s e r v a ç ã o , examinar melhor o teor do brilho desta estrela solitária - Maíra - na c o n s t e l a ç ã o literária daquela d é c a d a . E, talvez a t é u m pouco surpresos, constatar que a a p a r ê n c i a de singularidade, que dela emana, nessa nova perspectiva dissipa-se com rapidez.

Maíra narra a trajetória de u m quase ex-índio que, originário da aldeia M a i r u m , situada ao norte de M a t o Grosso, j á na região a m a z ô n i c a , f o i catequizado por padres católicos que o enviaram para estudar, primeiramente em G o i á s Velho e, depois, para completar sua f o r m a ç ã o religiosa - e t a m b é m intelectual - em Roma, onde foi se especializar em teologia. O romance c o m e ç a exatamente pelos momentos que antecedem à c o n c l u s ã o desses estudos e, portanto, à é p o c a em que Isaías deveria ordenar-se sacerdote para, dessa maneira, dar continuidade ao trabalho iniciado por seus educadores tornando-se, ele p r ó p r i o , u m missionário. Todavia, ele recusa tal c o n s a g r a ç ã o - e, com isso, aniquilar sua origem indígena - para decidir voltar ao Brasil.

Parte considerável da n a r r a ç ã o é inclusive dedicada a este difícil regresso para o interior do p a í s , em viagem que é t a m b é m a tentativa de recuperar u m tempo passado. A p r e t e n s ã o de Isaías é efetivamente constituir o futuro do passado - ou seja, o futuro que aquele menino índio poderia ter tido se n ã o houvesse a decisiva intervenção dos religiosos. Ele almeja, assim, negar o presente e mesmo o passado recente: entretanto sabe que, embora seja

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índio, é t a m b é m quase m i s s i o n á r i o ; diante dessas c o n t r a d i ç õ e s , experimenta formidável crise de identidade.

I s a í a s pressente, ainda em Roma, que sua o r d e n a ç ã o o tornaria igual ao catequizador e, que tal c o n d i ç ã o n ã o lhe seria adequada: ao c o n t r á r i o , soterraria definitivamente sua identidade original que, no entanto, mesmo a p ó s longos anos de estudo em lugar t ã o distante, jamais f o i superada, dado o a s s í d u o trabalho da m e m ó r i a que manteve, no estudante de teologia, as r e m i n i s c ê n c i a s - ainda que vagas - de u m lugar-outro, de u m ser-outro, de uma outra cultura. A s l e m b r a n ç a s da infância - da vida na aldeia - s ã o as cicatrizes de sua origem.

Ora, essa m a t é r i a literária, à primeira vista t ã o original, n ã o é estranha a muitos dos romances da d é c a d a de 70, ou a t é mesmo de alguns dos anos 60. É o caso, por exemplo, de Quarup de Antonio Callado publicado em

1967, que narra a trajetória de Nando. Como I s a í a s , mas j á consagrado padre, esse personagem abandona o sacerdócio para, a p ó s v á r i a s e x p e r i ê n c i a s eróticas que fortalecem tal decisão, aproximar-se da vida e da e x p e r i ê n c i a social cotidiana, perfazendo u m complexo "processo de d e s e d u c a ç ã o " , conforme a feliz e x p r e s s ã o de Ferreira Gullar.

O ex-padre conhece, nesse itinerário, v á r i a s t r a n s f o r m a ç õ e s , as quais culminam com uma derradeira m u d a n ç a ocorrida em u m jantar de natureza a n t r o p o f á g i c a - em que devora simbolicamente seu amigo, o guerrilheiro morto (Levindo) para assumir sua identidade e, desse modo, resolver a crise pessoal. Essa última t r a n s f o r m a ç ã o o impele a tentar concretizar a p r ó p r i a t r a n s f o r m a ç ã o do p a í s : j u n t o com Manuel Tropeiro e seus homens, dirige-se para o centro do Brasil, onde ajuda a dar origem ao processo revolucionário, de natureza popular, que deveria "como fogo em rastilho de p ó l v o r a " se alastrar por todos os lugares e, por fim, eclodir no sul - maneira, portanto, de contribuir para a s u p e r a ç ã o a t é mesmo da crise de identidade do p r ó p r i o p a í s .

E ó b v i o que as diferenças entre Nando e Isaías s ã o enormes e que n ã o interessa a nosso p r o p ó s i t o comparar os dois romances - o que, evidentemente, seria de pouca utilidade - , p o r é m , talvez se possa afirmar que, para (re)assumir sua natureza, o personagem da obra de Darcy Ribeiro t a m b é m f o i obrigado a vivenciar u m "processo de d e s e d u c a ç ã o " algo semelhante ao de Nando, embora em menor grau e sem as mesmas c o n s e q ü ê n c i a s . O decisivo aqui é realçar que essas m u d a n ç a s experimentadas pelos dois personagens s ã o manifestações de u m dos mais significativos sintomas do romance p ó s - 6 4 , que aparenta, de uma maneira ou de outra, ter

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sido forçado a construir u m b o m n ú m e r o de personagens que, por motivos diversos, conhecem algum tipo de crise de identidade.

De fato, isto é notável em muitas obras do período e constitui o fundamento das constantes t r a n s f o r m a ç õ e s vividas por seus personagens. Essa crise de identidade talvez esteja enraizada no terreno m o v e d i ç o da conjuntura histórica de então, que, afinal, experimentava s ú b i t a s m u d a n ç a s requeridas pelo processo de m o d e r n i z a ç ã o , o qual arrancava o p a í s de sua estrutura agraria tradicional, suscitando formidáveis m u d a n ç a s nos comportamentos e h á b i t o s cristalizados, na paisagem social e na c o n f i g u r a ç ã o das cidades, nas quais a massa trabalhadora afirmava sua p r e s e n ç a , inclusive de modo político. Nesse aspecto, Quarup é u m dos que apresentam maior singularidade, visto que resolve positivamente essa crise, o que n ã o ocorre com, por exemplo, o escritor G i l , de Bar Don Juan, que abandona o Rio de Janeiro para i r para C o r u m b á com a tarefa de preparar as condições de eclosão da luta revolucionária na região por meio da guerrilha e de, ao mesmo tempo, escrever "o romance da r e v o l u ç ã o " . N o entanto, fracassa em ambas empreitadas e, em mais uma abrupta m u d a n ç a , põe-se a escrever u m l i v r o comum, narrando a história de um amor que, p o r é m , m í n g u a dia a dia na mesma p r o p o r ç ã o em que o escritor engorda.

Lamartine, personagem de Armadilha para Lamartine, de Carlos & Carlos Sussekind, assim como Ralfo, de Confissões de Ralfo de Sérgio Sant'Anna, t a m b é m experimentam decisivas crises de identidade e muitas m u d a n ç a s . O mesmo ocorre com Quatro-Olhos, personagem do romance (de mesmo nome) de Renato Pompeu. Nessa obra, o narrador-personagem tenta reescrever u m l i v r o que redigiu meticulosamente todos os dias, "exceto numa segunda-feira", dos 16 aos 29 anos e que foi confiscado pela polícia política. A o perder o l i v r o , Quatro-Olhos perde t a m b é m os laços com a realidade, sendo e n t ã o internado em u m m a n i c ô m i o . A o recuperar a s a ú d e mental, tenta reescrever, sem sucesso, o l i v r o que outrora ele p r ó p r i o havia narrado, mas do qual n ã o se lembrava absolutamente de mais nada. Nesse caso, o dilaceramento do personagem, socialmente provocado, o motivou a t é a tentar regredir no tempo para transformarse em u m índio: ao chegar em casa, l i v r a -se das roupas para, como verdadeiro -selvagem, rolar pela relva do carpete.

De certo modo, I s a í a s , personagem central de Maíra, t a m b é m e s t á dilacerado, completamente dividido entre o que f o i e o que é. A s u b s t â n c i a de sua crise de identidade é a n á l o g a a de Quatro-Olhos; recuperar no futuro o passado remoto, ú n i c o modo de recompor sua natureza e superar suas c o n t r a d i ç õ e s . O romance de Darcy Ribeiro apresenta ainda outro personagem: uma j o v e m carioca que t a m b é m conhece crise semelhante e que decide, a p ó s

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algumas e x p e r i ê n c i a s conflitantes, abandonar o Rio de Janeiro para tentar sua t r a n s f o r m a ç ã o pessoal no interior do p a í s à moda dos personagens de Bar Don Juan.

Ora, visto dessa perspectiva, Maíra n ã o apresenta tanta singularidade: ao c o n t r á r i o , o núcleo sólido de sua m a t é r i a narrativa - a crise de identidade de I s a í a s (e t a m b é m a de A l m a ) - parece provir da conjuntura histórica e cultural da d é c a d a . A l é m disso, a m e m ó r i a desempenha no l i v r o papel decisivo, o que t a m b é m é uma constante no c e n á r i o literário desses anos. A f i n a l , Pedro Nava tornou nossa história recente uma h i s t ó r i a para memorialistas, assim como a d é c a d a confidenciou seus mais horrendos segredos para as obras memorialistas de Renato T a p a j ó s e Fernando Gabeira. E c o n v é m lembrar que Erico Veríssimo, com Incidente em Antares em 1 9 7 1 , j á havia iniciado a luta contra o esquecimento.

O N A R R A D O R E N T E D I A D O

Pode-se, freqüentemente, penetrar no universo de um romance de diversos modos. U m deles, se a obra permitir, fornece o prazer da leitura de maneira intensificada. Isso, p o r é m , n ã o ocorre com qualquer romance, mas, geralmente, com aqueles cujas histórias s ã o sustentadas por u m narrador experiente. E m Maíra, todavia, a n a r r a ç ã o nos causa ao mesmo tempo um espanto positivo, e t a m b é m certa d e c e p ç ã o .

Se é possível expressar-se desta maneira, pode-se dizer que no romance de Darcy Ribeiro h á u m narrador e u m narrador-personagem. Esta diferenciação fica evidente em u m dos c a p í t u l o s centrais intitulado, significativamente, Egosum. Nele, o narrador, aparentemente encurtando a d i s t â n c i a estética que o separa do leitor - o que n ã o deixa de ser saldo positivo, j á que r e a l ç a a natureza ficcional do relato e, com isso, arrebenta o mandamento da veracidade, "do f o i de fato assim" - , mostra-se como a n t r o p ó l o g o , obrigado, à s vezes contra a vontade, a conviver com os índios, em suas aldeias:

Aqueles meses de convívio ineleitável de maloca, quase me enlouqueceram. Só na prisão das quatro paredes me senti assim contido e constrangido. Condicionados a viver em casas com muros e portas para nos isolar, para nos esconder, não suportamos aquela comunicação índia sem fim, de dia e de noite, vivendo sempre uma vida totalmente

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comungante. Eu, às vezes, fugia para me procurar pelo mato ... tempos meus longínquos aqueles em que eu me exercia como gente, apreendendo a viver a existência dos outros, mas sentindo-me irremediavelmente atado e atolado no fundo de mim. (Ribeiro, 1978, p. 210-1)

Ora, esse narrador, embora " v i v a a vida dos outros", t a m b é m vivência certa contrariedade e enfado, uma espécie de enjôo de estar onde está, nostalgia da civilização, embora, em nenhum momento aparente conhecer, ele p r ó p r i o , uma crise de identidade. Contudo, ele deve ser a l g u é m experiente, que apreendeu muito por ouvir os outros, por ouvir aqueles que tem conselhos a dar e real sabedoria acerca das coisas, j á que o verdadeiro narrador n ã o é apenas aquele que vem de longe ou que trabalha de modo sedentário, mas t a m b é m aquele que ouve, que assimila as histórias. De narrador semelhante, podemos esperar muito. Podemos, por exemplo, esperar que nos entretenha durante horas. Ou que nos transmita u m pouco de sabedoria, da qual nos sentimos t ã o carentes, ou o sabor atrativo que certas experiências ainda conservam, particularmente para n ó s , visto que elas se tornaram hoje quase impossíveis. N o entanto, ele se limita a narrar alguns poucos casos.

Em um deles relata, com muita g r a ç a , o ocorrido em u m dia que, deitado em uma rede, olhava tristonho para longe, para lugar nenhum. Vendo-o assim, Vendo-o chefe A n a c ã , deitadVendo-o em rede n ã Vendo-o muitVendo-o distante, j u n t Vendo-o cVendo-om a mulher que carinhosamente lhe tirava piolhos dos cabelos, levantou-se, a p ó s indagar os motivos de tanta aflição, caminhou a t é a rede com a m ã o fechada e, n u m gesto de grande amizade, sapecou-lhe meia d ú z i a de piolhos bem gordinhos pela c a b e ç a , dizendo " é pra sua mulher catar". E m outra, conta que, depois de bom tempo sem qualquer contato com a cultura branca, recebe, por a v i ã o , u m pacote que continha u m exemplar de D . Quixote, ao qual se p õ e logo a ler deitado em meio a muitas gargalhadas. A o se levantar, deixa o livro no c h ã o . A n a c ã corre, pega-o, deita-se no mesmo lugar e se p õ e a gargalhar, pensando que se tratava de uma m á q u i n a de fazer rir!

N o entanto, deliberadamente, t a l narrador prefere silenciar e dar voz a Isaías que, ao relatar as contradições mais profundas que o mobilizaram para empreender essa difícil viagem de volta, que n ã o é apenas espacial mas uma d e s c o n s t r u ç ã o do colonizador-catequizador e do passado que resultou neste presente - n e g a ç ã o de sua origem e do futuro que essa mesma origem poderia ter - relata t a m b é m os mitos da tribo a que pertence. Essa n a r r a ç ã o n ã o é casual: ela é um meio de dar vida, ainda uma vez, no céu do presente, a

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u m t i p o de e x i s t ê n c i a que tende hoje ao desaparecimento, e à qual ele aspira efetivamente recuperar.

N a r r a r é, portanto, nesse caso particular, u m modo de romper o fluxo h i s t ó r i c o , de implantar no presente a semente de uma vida que u m dia foi possível e, assim, reviver os mortos e os antepassados. É t a m b é m o ú n i c o modo de I s a í a s obter êxito em sua empreitada, visto que, na realidade, sua viagem de regresso e s t á fadada ao fracasso.

P A R A ( Q U A S E ) C O N C L U I R

Esse fracasso, todavia, n ã o é caso ú n i c o entre os personagens dos romances dos anos 70. A o c o n t r á r i o , a maior parte deles o experimenta, de modo que n ã o é impossível afirmar que esse aspecto constitui outro dos sintomas da ficção dessa é p o c a . Dessa maneira, como ocorre (por exemplo) com Quatro-Olhos ou personagens de Zero, Isaías enfrenta o b s t á c u l o s c o n s i d e r á v e i s que o impedem de a l c a n ç a r sua meta, tomando inconcluso seu regresso. T a l fracasso testemunha o poder e a hostilidade das forças sociais do p e r í o d o que conspiram contra a autonomia e a liberdade do sujeito.

A o chegar ao Brasil, por exemplo, depara-se com Brasília e observa que jamais seu povo construiria uma cidade em semelhante região, visto que ela se localiza do lado oposto onde deveria estar a terra sem males - mau p r e s s á g i o para a vida nacional. À medida que continua a viagem e sobretudo a p ó s chegar a sua aldeia diante dos evidentes sinais de que ocorreram grandes t r a n s f o r m a ç õ e s na paisagem - física e social - da região, convence-se de que é preciso resistir a essas m u d a n ç a s efetuadas pelo branco. Todavia, diante do ritmo inexorável da m o d e r n i z a ç ã o , que provoca grandes conflitos fundiários -j á que capitalistas do sul, deputados, senadores e a t é militares e s t ã o agora

empenhados em se apossar de enormes latifúndios na floresta, apoiados em d o c u m e n t a ç ã o forjada ou, a t é mesmo, que m i s s i o n á r i o s norte-americanos, com significativo apoio e c o n ô m i c o , c o n s t r u í r a m uma verdadeira fortaleza no meio da floresta com o intuito de estudar a língua dos índios para, no mais sofisticado projeto de c a t e q u i z a ç ã o , editar a bíblia na língua nativa - Isaías n ã o consegue nem mesmo imitar os índios de uma aldeia vizinha, que, depois de manterem contato com os invasores, resolveram novamente isolar-se e combater, por meio de saques, os novos inimigos.

Embora consciente da necessidade de resistir à s m u d a n ç a s que a m e a ç a m seu povo, Isaías n ã o logra mais do que formular projetos i n ó c u o s que o integra na lógica do capital. Enfim, é incapaz de fazer desabrochar o

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futuro que aquele menino índio poderia ter tido, objetivo de seu regresso. N ã o o b t é m êxito no plano pessoal nem é capaz de, diante dos conflitos e dificuldades que a aldeia enfrenta, suscitados pelas formidáveis m u d a n ç a s na r e g i ã o , oferecer alternativas históricas a eles. Esse fracasso pessoal, como j á foi sugerido, n ã o é propriamente resultante de c a r a c t e r í s t i c a s meramente individuais: é, antes, a marca da sociedade no indivíduo e traduz a brutalidade da conjuntura histórica da d é c a d a .

Ora, t a m b é m esse aspecto confirma que o romance de Darcy Ribeiro n ã o sustenta sua a p a r ê n c i a de originalidade: ao c o n t r á r i o , ele efetivamente e s t á ligado a muitas das questões que a d é c a d a de 70 i m p ô s à e x p e r i ê n c i a literária. Esse enraizamento, no entanto, n ã o o desmerece, embora possa abalar sensivelmente o local que Antonio Candido, em ensaio sobre a nova narrativa (do período), o colocou: para esse crítico, Maíra é u m dos melhores romances p ó s - 6 4 justamente por optar em manter uma prosa mais atada à t r a d i ç ã o e n ã o apegar-se aos problemas conjunturais.

Entretanto, a eventual força do romance talvez esteja justamente assentada nessa sua ligação estreita com a década. A f i n a l , narrar os impasses atuais dos índios e mesmo de toda região a m a z ô n i c a diante da m o d e r n i z a ç ã o autoritariamente imposta ao p a í s pela ditadura militar é u m modo de constituir uma narrativa de resistência, capaz de denunciar a hostilidade do presente para tudo o que n ã o seja idêntico e submisso ao atual modo de existência social.

Nessa perspectiva, sua i m p o r t â n c i a n ã o é reduzida, embora A Festa, Quatro-Olhos, Armadilha para Lamartine, e a t é mesmo Zero, Reflexos do Baile ou Confissões de Ralfo p a r e ç a m ter obtido resultados mais expressivos.

A f i n a l , alguns desses romances conseguiram elaborar formas narrativas que articulam, em sua e s t r u t u r a ç ã o , as fraturas e os problemas impostos à experiência ficcional pela conjuntura histórica de e n t ã o . Para tanto, foram forçados a recorrer a procedimentos técnicos n ã o t ã o usuais entre n ó s , como a fragmentação extremada, a montagem, a d e s c e n t r a l i z a ç ã o radical da n a r r a ç ã o . A Festa, por exemplo, constitui, em termos formais, uma espécie de g r a m á t i c a da resistência. A l é m disso, tais obras parecem ter vislumbrado a f o r m a ç ã o de uma nova consciência narrativa que, entre outros aspectos, questiona nossa inclinação para o documental. Isso, todavia, n ã o pode ser encontrado em Maíra, embora ele seja dos poucos, no p e r í o d o , a retomar tanto a t r a d i ç ã o regionalista como a indianista.

Nesse aspecto, ele produziu, por u m lado, uma r e n o v a ç ã o nesta t r a d i ç ã o ao elaborar u m personagem indígena marcado por grave crise de

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identidade, o que acaba por desbancar em nossa cultura a imagem idealizada do índio A p r e s e n t á - l o como frágil, contraditório, cindido entre duas culturas - mais que aculturado - n ã o é pouca coisa. Do mesmo modo, dialogar com a vertente regionalista, em é p o c a de d e s t r u i ç ã o das diferenças regionais e, portanto, da pluralidade cultural - que parece ter sido o projeto estatal à é p o c a , e do qual a televisão f o i instrumento adequado é bastante significativo. Afinal, tal d e s t r u i ç ã o pode n ã o apenas ter sido útil para a r e a l i z a ç ã o da integração nacional almejada pelos militares como sobretudo para, calando as diferentes formas expressivas locais, preparar o solo para a a m e r i c a n i z a ç ã o da p r o d u ç ã o cultural no p a í s . De qualquer modo, embora seja u m pouco cedo para podermos avaliar isto, o que torna no m í n i m o apressada qualquer tentativa de efetuar um b a l a n ç o do significado atual do regionalismo entre n ó s , bem como tecer p r o g n ó s t i c o s acerca de suas possibilidades futuras, parece-me razoável supor que, para melhor resistir a esse processo - que prolonga hoje seus tentáculos poderosos para todos os setores da cultura necessitaremos estimular a diferenciação cultural

R e f e r ê n c i a b i b l i o g r á f i c a

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