Uma Vida para o Samba de Roda
O aprendizado estético e significativo ao longo da vida no Recôncavo
Katharina Doring1O presente artigo consiste num extrato resumido da minha tese de doutorado, apresentada ao programa internacional em Educação (WWW.inedd.de) na Universidade Siegen (Alemanha) e orientada pela Profa. Dra. Dorle Klika. O trabalho completo futuramente será traduzido do alemão para o português. A tese é fruto de um longo e continuo relacionamento de pesquisa e produção cultural no universo do Samba de Roda no Recôncavo baiano e tem um caráter interdisciplinar, logo transita pelos campos da etnomusicologia, história oral, antropologia, sociologia, hermenêutica, estudos culturais, estética, música, artes cênicas, ludicidade e arte - educação.
Palavras chave: Samba de Roda, Patrimônio imaterial, Mestres do Notório Saber, Arte-Educacão, Pesquisa biográfica
I.
O Caminho das Pedras e das Alegrias
Ao lado do Candomblé e da Capoeira, o Samba de Roda representa continuidade e presença sociocultural e estética de matrizes africanas na Bahia, as quais formam importantes símbolos da identidade negra e baiana menos conhecidas na sua (est-) ética mais profunda, assim como em suas múltiplas dimensões que vão além do visível, do belo e da alegria do momento. Os três grandes pilares da cultura afro-baiana representam universos culturais complexos que escondem uma infinidade de estilos, sons, ritmos, poéticas, movimentos, gestos, significados e realidades diferenciados que variam de terreiro em terreiro, de roda em roda, de bairro em bairro, de vila em vila, de mestre para mestre. No caso do Samba de Roda, este significa muito mais do que um simples divertimento, embora não se negue a assumir também esta função. Quando se manifesta, o Samba de Roda revela a corporeidade, musicalidade, poesia, ludicidade, sensualidade, diálogo e o sagrado da presença africana no Brasil. Do mesmo modo, necessita do espaço e espírito coletivos, da integração das pessoas
1Me em Etnomusicologia, Dra em Educação Profa. Ass. – Departamento de Educação UNEB – Campus I
katharinadoring@yahoo.com.br
e dos ambientes para acontecer de forma plena e harmoniosa. O Samba de Roda tem uma ligação com a religiosidade do Candomblé, como também com as festas católicas e suas interpretações populares no sincretismo brasileiro – uma convivência e síntese prazerosa que não separa o que seria profano ou espiritual e simplesmente percebe e vive o corpo sagrado.
No Recôncavo, o samba sem dúvida tem uma posição especial. É significante a ligação que o samba consegue entre todas as faixas etárias e entre os sexos, como também o fato de que formas de samba são ligadas, de uma ou outra maneira a quase todas as espécies culturais importantes, e tem um papel importante nas demais datas festivas, sejam elas religiosas, rituais ou de outra natureza (PINTO, 1991:106)2.
Durante os vários anos do meu envolvimento com o Samba de Roda no Recôncavo passei por várias fases, crises, reflexões e atividades diferentes, desde a pesquisa etnomusicológica, passando pelo engajamento sociocultural e produções culturais, gravações de áudio e vídeo até á reflexão sobre educação, transmissão e a continuidade do Samba de Roda e suas implicações para a realidade pedagógica contemporânea. Entre as diversidades atividades que estive envolvida, o projeto Cantador de Chula3 tinha como foco o registro do samba chula, na voz e visão da geração mais velha dos sambadores e sambadeiras do Recôncavo. Estava movida pela urgência em preservar esse conhecimento tão peculiar que somente pode ser encontrado nesta geração ainda viva. O começo do projeto Cantador de Chula coincidiu com a pesquisa para minha tese de doutorado que tem como um dos principais objetivos construir uma ponte entre os Saberes e Fazeres da Tradição Oral e os fundamentos práticos e teóricos de uma arte-educação contemporânea e brasileira. Por um lado, percebi a importância de registrar a memória e história dos mestres antigos e seus repertórios imensos que estão em vias de se perder para sempre, se não houver um movimento de procura e registro da geração mais antiga no Samba de Roda. Por outro lado, me dei conta de que existe um universo cheio de conteúdos, práticas, significados e aprendizados valiosos que deveria ser traduzido para a pedagogia dos nossos tempos, respeitando a inserção e convivência orgânica no contexto sociocultural, que se opõe a um ensino escolarizado e fragmentado, na maioria das vezes destituído dos sentidos mais profundos sobre a vida.
2
Pinto, Tiago de Oliveira. Capoeira, Samba, Candomblé. Berlin: Staatliche Museen Pr. Kulturbesitz, 1991.
Hoje por exemplo, entra-se numa escola urbana da China, da Índia ou do Brasil e reconhece-se de imediato uma maneira de se organizar a educação que se tornou senso comum no Ocidente. Os alunos se sentam passivamente em salas separadas. Tudo obedece a um plano predeterminado, com sinos, campainhas e regras para manter as coisas funcionando, como uma gigantesca linha de montagem, ao longo das horas, dias e anos. E, realmente, foi a linha de montagem que inspirou a organização da escola da era industrial, cujo fito é obter um produto uniforme e padronizado com a máxima eficiência possível. Embora a necessidade de formar cidadãos globais inteligentes, competentes e solidários divirja em muito, no século XXI, da necessidade de treinar operários no século XIX, a escola da era industrial continua a prosperar, sem ser quase afetada pelas realidades das crianças de nossos tempos4.
Perante este cenário comecei a questionar um sistema educacional que absorve quase nada da experiência, sabedoria e memória das populações tradicionais de matriz africana (e indígena, entre outras) e que continua divulgando um modelo de educação mal copiado e interpretado do hemisfério norte que pouco tem a ver com as práticas, os valores, os sentidos e os fundamentos dos povos brasileiros. Estes questionamentos valem para toda a área de educação, especialmente para a arte-educação que por sua vez ainda não recebeu um devido lugar e valor nos espaços educacionais. Neste sentido, formulei as seguintes perguntas norteadoras da minha pesquisa:
• Quais são os conhecimentos que podem ser adquiridos pelas
histórias de vida e práticas cênico-musicais dos sambadores e
sambadeiras da mais velha geração na Bahia?
• Quais são os elementos práticos e fundamentos teóricos que
podem ser extraídos a partir desse aprendizado para uma
pedagogia estética de sentidos no Brasil contemporâneo?
Como metodologia, trabalhei com a pesquisa qualitativa com foco na hermenêutica e fenomenologia, com referencial bibliográfico da historia oral e estudos culturais, assim como instrumentalizei a entrevista narrativa e biográfica e a noção de descrição densa de Geertz.5
4 Senge, Scharmer, Jaworski, Flowers. Presença. Propósito humano e o campo do futuro. São Paulo: Ed. Cultrix, 2007, p. 20.
II.
Dona Zelita e Domingos Preto
No que diz respeito ao levantamento de dados qualitativos, o projeto Cantador de Chula, elaborado e coordenado por mim no ano de 2008, foi um subsídio
fundamental. Através deste projeto, um conjunto de mestres e mestras do Samba de Roda foi visitado e entrevistado em suas residências no Recôncavo. As entrevistas foram realizadas pelo antropólogo Dr. Ari Lima e pelo etnomusicólogo Cássio Nobre. De um total de 16 entrevistas orientadas, oito foram selecionadas, transcritas e submetidas a uma análise mais detalhada. Deste modo, pretendia melhor conhecer o universo dos sambadores da geração mais antiga, encontrar semelhanças e diferenças em suas histórias, em suas visões de mundo, assim como revelar o aprendizado dos mesmos que será aqui resumidamente apresentado. Muitas informações sobre a vida e sabedoria dos sambadores foram incrementadas através da convivência e diálogo com os mestres do Samba de Roda durante vários anos, numa espécie de descrição densa. Daí que posso afirmar que:
• Todos /as nasceram como filhos de famílias pobres no Recôncavo rural.
Estas famílias lutavam diariamente por comida e sobrevivência, através do
cultivo extensivo da terra, da pesca, da coleta de marisco e caranguejo, da
pequena criação de gado, artesanato e outros trabalhos de ganho (lavar
roupa, carregar mercadoria, venda dos produtos do mar etc.).
• Todos /as são filhos, parentes, vizinhos ou amigos de praticantes do Samba
de Roda, caruru e rezas. Portanto, nasceram e cresceram imersos nas
tradições culturais e religiosas da população negra no Recôncavo baiano,
embora alguns, crianças, tenham sofrido restrições dos próprios pais à
participação nestas tradições.
• Todos /as ajudaram desde pequeno nos trabalhos dos pais. Assumiam
tarefas complementares em casa, tais como, cuidar dos irmãos menores,
catar ostra e outros mariscos, separar feijão etc., como também fora da casa
(as crianças maiores, jovens): roçando (na enxada), pescando, mariscando,
confeccionado e vendendo artesanato.
• A cultura é assunto central nas entrevistas e histórias de vida. Pouco se fala
sobre relações pessoais com familiares e companheiros. Vale ressaltar que
tal comportamento parece ser um traço dessa cultura e convivência
defesa e (auto-)proteção, ou seja, só se contam fatos pessoais após anos de
amizade e confiança.
• O Samba de Roda constitui um dos elementos mais importantes na vida dos
sambadores e continua sendo assim até hoje! Todos foram fortemente
marcados pela vivência no samba e praticam o samba até a idade mais
avançada, inclusive apontando para os benefícios para a saúde.
• Relativo às diferenças entre samba chula e samba corrido pode se observar
que os comentários dos sambadores e das sambadeiras são coerentes e não
contraditórios, quanto à musicalidade, estrutura, poética, dança, sendo que
sempre existiram e existirão variações locais e improvisação, decorrente da
disponibilidade de viola, uso da palma na mão ou tabuinhas de madeira
entre outros recursos.
• Samba de Roda é assunto sério e lúdico ao mesmo tempo sem contradição,
pois todos valorizam o elemento alegre e vitalizante, porém se comportam
com respeito perante a tradição e aos outros sambadores e sambadeiras.
Todos se pronunciam com severidade contra a leviandade, imoralidade e
falta de respeito da juventude que se expressa na música, letra e
comportamento do “pagode baiano”;
• Quase todos se queixam da ausências de gerações novas no tradicional
Samba de Roda e principalmente da falta de respeito e de paciência dos
mais jovens com os mais velhos, atitude que seria necessária para poder
aprender o samba chula entre outros.
• Em geral, pode se observar que nenhum dos mais velhos é “somente”
sambador, e sim uma força cultural e criativa na comunidade.
Normalmente, estão engajados em praticamente todas as manifestações
tradicionais, como p. ex., as festas e rezas para os santos (veja a conexão do
samba com o caruru e as outras rezas), o bumba-meu-boi, a chegança, terno
de reis, Zé do vale, como também o artesanato tradicional, a depender da
região.
• Todos /as expressaram de maneira explícita ou implícita que têm
consciência do valor das suas tradições culturais e que eles sentem orgulho
por ter mantido durante toda vida a originalidade do samba de roda;
• De forma geral, não existe uma relação direta com a Capoeira. A maioria
dos oito sambadores selecionados não praticam a capoeira, com a exceção
de dois deles, Mestre Nelito e Mestre Ananias. Geralmente, acontece o
de Roda nos seus grupos de Capoeira, como elemento importante da cultura
e tradição negra na Bahia.
• Também não existe uma relação direta ou explícita entre o Samba de Roda
e o Candomblé, inclusive há diferenças muito grandes na musicalidade. Por
outro lado, existe um elo entre ambos que fica evidente com a figura do
Caboclo, entidade espiritual incorporada à religião afro-brasileira e que se
expressa com o samba do caboclo. Geralmente os terreiros convidam
grupos de samba de viola e samba chula para as festas dos caboclos que
adoram dançar e cantar o Samba de Roda. O tema Candomblé não é
abordado pelos sambadores, entre outras razões, pelo fato de que esta
religião foi discriminada durante séculos. Nas entrelinhas, percebe-se que a
grande maioria vem de uma família que tradicionalmente pratica ou
praticava o Candomblé como religião principal, não deixando de lado os
santos católicos e suas datas comemorativas. Muitas sambadeiras são
filhas-de-santo e muitos sambadores são ogans, mas raramente alguém
comenta sobre esta relação entre samba e religião;
• Apesar da idade (a faixa varia entre 66 e 80), percebe-se que os sambadores
e sambadeiras são pessoas ativas que continuam trabalhando na roça, no
mar, no mangue e no artesanato, mesmo recebendo uma pequena
aposentadoria. O Samba Chula para alguns é uma renda adicional e a
maioria já viajou para alguma cidade para apresentar o Samba de Roda;
• Infância e juventude no interior foram marcantes para todas estas pessoas,
que preservaram uma ligação forte com os pais e outras pessoas do seu
entorno sociocultural. O trabalho duro e a pobreza nunca foi motivo para
queixa e foi compensado pelo samba e outras tradições cênico-musicais.
Tudo que eles aprenderam nesta fase da sua vida é preservado até hoje: o
samba, o respeito, a dignidade, a honestidade, os trabalhos manuais;
• Chama atenção o fato de que todos os sambadores e sambadeiras
entrevistados têm um carisma muito grande. Têm presença, suavidade,
agilidade corporal e não demonstram a avançada idade na aparência. Eles
estão sempre dispostos para novas aventuras e atividades musicais e
revelam uma atitude positiva e alegre perante a vida, valorizando a vida
social, as pessoas de seu apreço, e a comunicação de todas as formas. Não
gostam de lamentar ou se queixar da vida e preferem aproveitar as
oportunidades que encontram para rir, conversar, cantar, tocar, dançar e
Entre os oito entrevistados selecionados, Dona Zelita de Saubara e Domingos Preto de Santiago do Iguape são duas personalidades importantes para o Samba de Roda e para outras tradições cênico-musicais que vivenciam e preservam no Recôncavo baiano. Ambos são comunicativos e receptivos e demonstram uma preocupação muito grande com a continuidade do Samba de Roda que conseguem articular de forma clara e explícita em coerência com toda sua vida narrada. Dona Zelita e Domingos Preto contaram suas vidas em entrevistas narrativas e biográficas, começando pelo pedido para que falassem sobre suas histórias de vida6. Devido ao bom entrosamento e a familiaridade da situação de estarem em suas residências, cada um começou a falar sem restrições e somente eram interrompidos se houvesse uma pergunta de compreensão. O resultado foram dois longos registros com inúmeras histórias e acontecimentos interessantes que ilustram de forma bem viva as realidades complexas do povo negro no Recôncavo baiano, marcadas pela luta da sobrevivência, por racismo, pela falta de comida, cidadania, educação, infra-estrutura social e muito mais. Por outro lado, encontrei nas entrelinhas uma riqueza de sabedoria, conhecimentos, práticas e comportamentos e principalmente o amor pelo Samba de Roda, pela atividade estética em todos os sentidos, que muitas vezes tinha que ser conquistada na infância e juventude, porque os pais eram severos naquele tempo e não deixaram seus filhos participarem dos sambas quando aconteciam na casa dos outros:
Domingos Preto: Tinha um quarto lá no fundo, ficava no quarto, espiando os homens sambá quando era caruru, aqui direto, quase todo mundo rezava aqui direto. Um rezava no domingo, outro sábado, outro quarta-feira, aí ficava espiando – mas eu vou aprender a sambar! Eu vou aprender a sambar – quando teve um rapaz chamado Júlio de Santo Amaro, ele fez um samba ali. Ai, saiu meu pai e minha mãe, que era cumpadre, aí digo eu: é hoje que vou no samba! Peguei uma tramelazinha, peguei a tramela, cheguei, peguei assim no prego, botei no lado, folguei a tramela e peguei a faca assim ... eu fui pro samba, fiquei escondido lá, quando eles estavam perto de vim embora, fui me embora .. e nisso continuei, continuei, continuei, quando foi um dia, esse Leopordo veio aqui, teve um caruru, lá em São Felix, na casa de Zeca, Leopordo veio aqui – Oh seu Pequeno, eu vi seu menino sambá no porto, batendo na canoa e sambando! seu menino ta danadinho pra sambá, Pequeno. Ele disse: que esse besta sabe sambá nada! Ele disse: olhe, vai ter um caruru lá em Zeca, eu vim ver ele pra dar um grito mais eu! Ele disse: oh lá ... Ele disse: não! Pode deixar o menino comigo! Me levou e aí meu pai foi também com a sanfona – quando meu pai tá lá tocando ... Aí ele disse: oh menino, chama Domingos aí
6 As entrevistas narrativas e biográficas com Dona Zelita e Domingos Preto foram
(Leopordo) – aí entrei, sentei – encoste aí mais Jaime - aí, ele gritou, ele gritou o samba, eu gritei o relativo, meu Deus, eu tou me lembrando do samba que ele gritou. O samba que ele gritou foi assim: eh iá iá, eu vou lá em cima, eu vou lá em cima, eu vou passeá mais Idalina! – aí, isso é com você Domginos – aí gritei: oh lá oh lá oh lá oh lá oh lá deixe eu vadiá! – aá disse, sai daí vocês dois, tirou esse Bial e Emiliano – deixe os menino sambá! A gente sambou até de manhã, não deu uma falha, daí foi que eu vim no samba, não perdi mais um samba.
A participação no Samba de Roda tinha que ser conquistada entre os homens sambadores. Domingos ilustra isso claramente como um ritual de passagem do jovem para a sociedade dos homens adultos sambadores. Naquele momento, teve reconhecido pelos homens adultos seu conhecimento de sambar, embora ainda fosse tratado como menino pelo próprio pai. Para as mulheres, a aceitação e restrição em participar do samba ainda era mais rígida. Apesar disso, Dona Zelita conta que o chamado do Samba para ela desde pequena foi tão forte que esqueceu até da família e do respeito pelo pai que tenta reprimir o talento da filha:
Estes são somente dois trechos para ilustrar a complexidade do aprendizado num universo tradicional de outros tempos, quando a vida foi extremamente marcada pela sobrevivência e códigos de ética rígidos que, no entanto, tinham seus momentos de flexibilidade e de ruptura, sendo que o samba tinha um valor muito grande entre as pessoas da comunidade.
Para concluir, baseada em descrições, observações, transcrições, análises e interpretações ao longe dessa e de outras pesquisas e apoiada por leituras, teorias e reflexões da áreas de filosofia, arte-educação, percepção e educação musical e psicologia entre outros, apresento em seguida diversos aprendizados decorrentes do universo do Samba de Roda que formulei e condensei:
1. Aprendizado estético e artístico
Viver e praticar o Samba de Roda com seus diversos aspectos pode ser considerado como escola permanente da vida, uma formação musical e estética abrangente e integrada organicamente nos processos do cotidiano que contempla as seguintes competências:
• Musical – onomatopéia, timbres sonoros, ritmo (elementar e polirritmia), melodia, harmonia, diálogos musicais, improvisação, técnica instrumental e vocal, memória, prontidão, alternância, variações etc.
• Cênica – coordenação motora, orientação e exploração espacial, lateralidade, repertório de movimentos, ritmo, gestualidade, consciência e experiência da cena, presença de corpo e espírito, coreografia, dialogo, improvisação, prontidão etc.
• Poética – jogo de palavras, diálogo, memória literária, espontaneidade, capacidade de construir sentido e interpretação, criatividade, improvisação, presença de espírito, humor, etc.
• Plástica-visual – Simetria e ruptura, criatividade, habilidades manuais, cores, formas, materiais, técnicas, improvisação e adaptação (as competências plásticas são mais importantes na construção de instrumentos, vestuário, indumentária das tradições).
2. Aprendizado corporal
sentidos e abrangem os aspectos do ritmo e da coordenação motora. São aprendidos e literalmente incorporados competências, movimentos, gestos e repertórios corporais que acompanham as pessoas durante toda vida e que exercem uma influência positiva para o bem-estar físico (e emocional): Suavidade, flexibilidade, tônus muscular, disposição para o movimento, equilíbrio entre as fases de atividade e descanso, capacidade de reação, diálogo e improvisação, equilíbrio corporal entre interior e exterior, tensão e relaxamento, contato com a sensualidade e sexualidade, ou seja, o contato com o sexo oposto.
3. Aprendizado psicoemocional
A dimensão psicoemocional do samba de roda, como também de outras tradições estéticas e espirituais da população afro-brasileira, ainda não foram investigadas suficientemente. Podem ser observadas no universo do Samba de Roda as seguintes qualidades que evidenciam maturidade psicológica e emocional em concordância com o aprendizado corporal:
- Equilíbrio psicoemocional, autoconsciência e confiança na roda (no grupo). Neste caso, isto ocorre quando, às vezes, o sujeito é o centro das atenções, outras vezes transferindo este lugar a outro.
- Experiência do acolhimento e da aceitação pelo grupo, diante do desafio de “entrar na roda”. Isto promove engajamento, compromisso, capacidade para a felicidade e o diálogo, canalização de energia, emoções e desejos, maturidade interior e firmeza de caráter, flexibilidade situacional, prontidão para ação, espontaneidade, sexualidade.
4. Aprendizado sócio-pedagógico
fronteira delicada entre desenvolvimento e crescimento livre e estruturado, que dependem entre outros do próprio interesse, compromisso e comportamento.
5. Aprendizado cultural
O Samba de Roda e outras tradições culturais formam a memória coletiva, no sentido de história oral e identidade sociocultural da comunidade. Nos momentos da convivência prazerosa, os saberes da comunidade negra no Brasil são transmitidos para as próximas gerações, de maneira orgânica e integrada mediante palavras, ritmos, melodias, movimentos, gestos e diálogos, que unem todas as formas de expressão e a continuidade das culturas africanas na diáspora, preservando valores, conteúdos, saberes e linhagens ancestrais.
6. Aprendizado econômico
A questão econômica não tem um significado concreto nas tradições do Recôncavo, porém existem ligações implícitas, porque alguns rituais ganham sentido de acordo com os ofícios dos sambadores e com os pedidos pela prosperidade e produtividade da comunidade. Por exemplo, a pesca tem uma ligação direta com o mar, a água e as festas e oferendas para as divindades do mar, do mangue e do rio. Em muitas comunidades se realizam mutirões de trabalho, p. ex.: construção de casa que antigamente eram acompanhadas ou finalizadas com um Samba de Roda. Hoje em dia, o Samba de Roda assume uma função econômica para muitos grupos e mestres, porque eles ganham um dinheiro adicional pelas apresentações que realizam, o que significa na prática que os sambadores e sambadeiras precisam aprender a lidar com produção cultural, administração, formalidades, comunicação entre outros.
De acordo com diversas teorias sobre percepção e educação estética pode se dizer que no Samba de Roda ocorrem simultaneamente vários níveis de percepção, expressão e aprendizagem estéticas e sociais, que formam uma espécie de conjunto sinergético o qual “integra os fenômenos singulares nas suas conexões transversais que são reconhecidas de maneira polivalente”7. Essa visão representaria a essência da criatividade estética: “Eles (os fenômenos) funcionam como unidades de sentido em vários níveis da construção do
significado e conectam dessa maneira outras unidades pela primeira vez com singeleza”8. Isso significa com outras palavras que as percepções diversas (visuais, auditivas, cinéticas, sensoriais, psicoemocionais, sociais etc.) não ocorrem de forma separada e sim, formam um Todo que potencializa e transcende as competências de percepção, execução e aprendizado. A sinergia da percepção estética se refere simultaneamente á integração dinâmica do processo de percepção e execução, como é visto aqui no fenômeno musica-dança, ou seja, leva a competência para outros níveis de aprendizado e execução de elevada complexidade.
A percepção social ainda é pouco contemplada em música-dança, geralmente priorizando os aspectos estéticos ou artísticos ou então as questões antropológicas. Mesmo sabendo que a prioridade para os participantes consta nas expressões musicais, cênicas e poéticas, no Samba de Roda, o evento como um todo não teria a mesma intensidade, referente aos processos de percepção e aprendizagem, se o entorno social não estivesse originalmente presente. A teoria da percepção social representa por um lado a condição social e sua influencia sobre as percepções singulares, como também do registro através da percepção do acontecimento social como um todo9, ou seja o evento Samba de Roda com todos os níveis de significados, acontecimentos para o grupo como para o individuo que ocorrem de forma entrelaçada e simultanea. Pode-se falar de um reconhecimento sensorial, que se encaixa na visão do Samba de Roda e seu
entorno: “Percepção e aprendizagem fornecem o contexto e a condição social para a apropriação da realidade como uma realidade da cultura humana”10. A função da arte encontra-se aqui no seu contexto original que preserva o ritual da integração, renovação e solidariedade e traz a memória estética inscrita no corpo e coração dos Sambadores em conexão com a memória social.
8 Ebenda. S. 334.