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FRONTEIRAS INTERNAS NO BRASIL DO SÉCULO XIX: um breve comentário

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Academic year: 2021

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Resumo

O termo “fronteira” tem sido comumente utilizado ora para definir territorialmente os limites de um estado, ora no sentido proposto por Turner, ou seja, como elemento importante na formação de personalidade de um povo. Há que se destacarem, ainda, os estudos de José de Souza Martins. Ao reconhecer que a situação de fronteira é uma situação de conflito, Martins abre novas possibilidades de análise para o historiador, uma vez que permite aprofundar-se o tema, percebendo a fronteira para além da ocupação territorial stricto sensu. O trabalho proposto analisa as disputas pela delimitação territorial do antigo município de Paraíba do Sul, na segunda metade do século XIX. Trata-se de discutir como os limites das fazendas são o ponto de partida para se compreender a questão da posse e da propriedade da terra e sua relação com a delimitação da fronteira como espaço territorial e como espaço de conflito entre agentes sociais.

Palavras-chave: fronteira; conflito; Lei de Terras.

Abstract

The word “frontier” has most commonly been used to define the territorial limits of a nation-state and also, following Turner, as an important element in the formation of the personality of a people. José de Souza Martins opens up new possibilities for historical analyzes when he recognizes that the frontier defines a conflict situation. This allows a more comprehensive interpretation that goes beyond territorial occupation alone. This paper analyses the conflicts towards the territorial definition of frontiers in the former municipality of Paraíba do Sul, during the second half of the XIX century. Here, the limits of farming land were crucial in defining land ownership as well as frontier.

Keywords: frontiers; conflict; land legislation.

Márcia Maria Menendes Motta Professora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense; doutora em História pela UNICAMP e coordenadora do Núcleo de Referência Agrária da UFF.

FRONTEIRAS INTERNAS NO BRASIL DO SÉCULO XIX:

um breve comentário

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O termo “fronteira” carrega uma gama de significados. Comumente ele é utilizado para definir territorialmente os limites de um estado. Ao analisarmos uma legislação que faça referência direta ou indireta à apropriação territorial, o mencionado termo aparece para definir as terras limítrofes de um país. Nesse sentido, a ação do Estado é entendida como o dever de encontrar os meios necessários para assegurar a posse de uma determinada área, impedindo ou tentando impedir a ocupação de estranhos/estrangeiros sem prévia autorização.

Os inúmeros problemas relativos à fronteira nacional têm merecido a atenção de muitos historiadores e cientistas sociais, e a consagração dessa fronteira é vista como o resultado de uma política de Estado. O mesmo não se pode afirmar em relação à consolidação de fronteiras internas, ou seja, entre municípios, entre estados, e mesmo entre fazendas e/ou entre fazendas e sítios. A pouca atenção dada ao tema talvez seja resultado de um processo de naturalização dos marcos territoriais ou, ainda, de uma política de produção de amnésia social, que encobre os conflitos de terra que gestaram e consolidaram – como natural – um

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determinado recorte no espaço, nos quadros de um recorte espacial maior: o país . Assim, para além do fato de que “a territorialidade de um Estado exige uma demarcação ou delimitação de soberanias mediante fronteiras” (Dicionário de Ciências Sociais, 1986, p.498), isso implica também afirmar que, nas tentativas de demarcação, há uma história de luta a ser contada, estratégias postas em prática para garantir e consolidar tais fronteiras. A partir daí, num processo intermitente de

invenção de tradições, a fronteira territorial passa a ser vista, muitas vezes, como

algo a-histórico e natural, fruto do destino e da vontade da união de um povo (Motta, 1998b).

O presente trabalho procura discutir o tema das fronteiras internas entre fazendas e sítios na antiga província do Rio de Janeiro em meados do século XIX. Partimos aqui do pressuposto de que o entendimento da dinâmica de produção de fronteiras nos permite avançar na construção de uma história dos conflitos agrários no Brasil. Nesse sentido, discutimos a Lei de Terras, de 1850, em sua relação com a temática proposta, para destacar algumas questões relativas à gestação e consolidação do que aqui denominamos de “fronteiras internas”.

Nesse sentido, a noção de “fronteira” deve ser entendida a partir de uma multiplicidade de propostas de análise na qual seja possível incorporar elementos que constituem essa noção e que são – a principio – estranhos ao entendimento do espaço territorial. Em um dos seus mais importantes trabalhos, José de Souza Martins afirmou:

“ela é fronteira de muitas e diferentes coisas: fronteira da civilização (demarcada pela barbárie que nela se oculta), fronteira espacial, fronteira de culturas e visões de mundo, fronteira de etnias, fronteira da História e da historicidade do homem. E, sobretudo, fronteira do humano” (Martins, 1997, p.13).

Apesar de se referir à história contemporânea da fronteira, no embate entre o homem branco e grupos indígenas na Amazônia, os argumentos de Martins são bastante instigantes, pois reafirmam novas possibilidades de análise para o historiador. A partir de suas observações, é possível analisar a fronteira para além da delimitação territorial stricto sensu ou como expressão – natural – de uma

fronteira nacional.

E mais: é possível pensar a fronteira não somente como espaço-limite, ocupação em áreas de “ponta”, delimitação territorial de uma nação em relação a outra, ou base de um modelo de ocupação territorial visto como exemplo de civilização e civilidade. Lembramos aqui o modelo de desenvolvimento

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americano, que se tornaria um exemplo pensado por aqueles que, ao criticarem a inoperância da legislação agrária de 1850 e o fracasso do Estado em delimitar suas terras devolutas, identificavam em tal modelo a possibilidade de se transformar radicalmente a estrutura fundiária brasileira. Um exemplo dessa última afirmação é a tentativa abortada de reformulação fundiária proposta por Rui Barbosa no alvorecer da República. O fracasso representou um rearranjo das elites agrárias no sentido de obstaculizar qualquer política que significasse uma reformulação da estrutura fundiária vigente (Silva, 1998, p.13-40).

Assim sendo, pensar a fronteira implica também discutir a dinâmica que explica a produção/reprodução de fronteiras internas, limites entre ocupações diversas, embates entre histórias de ocupação. Refletir sobre ela no universo rural dos Oitocentos significa, antes de tudo, reconhecer a existência de conflitos de terra nos “brasis” de outrora. É importante, por fim, compreender que as disputas territoriais são disputas por direitos ou usurpação de direitos. São embates em nome de uma determinada visão do que seja justo em contraposição a um outro, identificado sempre como invasor.

A Lei de Terras e as fronteiras

Em 1850, quando da promulgação da primeira legislação agrária produzida no Brasil, informava-se que as terras de fronteira, ou seja, “as situadas nos limites do Império com países estrangeiros em uma zona de 10 léguas” poderiam ser concedidas gratuitamente (Lei n. 601, de 18 de setembro de 1850). O governo procurava assegurar os limites territoriais fronteiriços pela via da ocupação. Nos artigos 83 e 84 do Regulamento de 1854, dispunha-se sobre o estabelecimento prévio de colônias militares, para que, em seguida, fossem marcados numericamente os lotes a serem doados aos colonos (Decreto n. 1318, de 30 de janeiro de 1854).

O problema da fronteira no Império fica bastante flagrante quando analisamos as determinações relativas às do sul do país, região marcada por tentativas de autonomia, como na Revolta Farroupilha, entre 1835 e 1845. A partir de 1850, o Império somou esforços no sentido de regularizar a expansão territorial no sul do país, no bojo de um processo de incorporação ilegal de terras por parte dos terratenentes da região (Christillino, 2004). No entanto, nos anos 50, apesar da resistência dos fazendeiros sulistas a seguir a determinação da Lei de Terras e discriminar suas terras – dificultando o trabalho das repartições criadas para esse fim – o caso do Rio Grande do Sul nos mostra que o “Estado esforçava-se por fazer valer o documento legal e seu dispositivo naquela província, palco de históricas lutas por limites territoriais. Ao doá-las a imigrantes, o governo procurava impor limites aos fazendeiros locais, redesenhando o espaço territorial” (Motta, 1998b, p.85).

Muito se tem discutido acerca do fracasso da Lei de 1850 em seu intento de discriminar as terras públicas das privadas (Carvalho, 1988; Motta, 1998). Como dispositivo legal, entretanto, ela teve algum papel nas estratégias estatais de reafirmar os limites nas fronteiras do sul, região emblemática da política externa do Império brasileiro. Lembremos aqui as questões que envolveram a fronteira entre o Uruguai e o Brasil, que, embora acertada pelo Tratado de 1801, foi recorrentemente contestada por fazendeiros e pecuaristas de ambos os lados. Talvez não tenha sido à toa que as repartições especiais criadas para realizar o trabalho da discriminação das terras continuaram a existir em São Paulo, Santa Catarina, São Pedro do Rio Grande do Sul, ao contrário do que então ocorria em outras províncias (Ministério da Agricultura. Relatórios: 1868, 1869, 1870, 1874).

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No entanto a questão se adensa quando se tenta entender como se deu a constituição das fronteiras internas entre fazendas e sítios nos marcos das transformações inauguradas com a Lei de Terras de 1850. Em trabalho recente, Cristiano Christillino procurou rediscutir os embates entre os fazendeiros sulistas na construção das fronteiras internas, incorporando algumas ilações de nosso trabalho anterior (Christillino, 2004). Assim sendo, para o autor, na província do Rio Grande do Sul “houve uma intrínseca relação entre a regulamentação da Lei de Terras e o processo de centralização e afirmação política empreendido pela Coroa no Segundo Reinado” (Christillino, 2004, p.324). Ameaçada por conflitos externos (com o Uruguai e a Argentina nos anos 50 e com o Paraguai nos anos 60/70), o Império empreendeu sua centralização e afirmação política “a partir de uma margem de negociação estabelecida entre as elites locais” (Christillino, 2004, p.325). A nosso ver, os argumentos de Christillino nos permitem afirmar que, no bojo da consolidação das fronteiras como os países limítrofes, o Estado operou na dinâmica local no sentido de permitir a fluidez das fronteiras internas, não impondo uma regularização fundiária que delimitasse claramente as fazendas e os sítios. Assim sendo, a perpetuação de conflitos permitia que ele assegurasse sua presença na consagração da fronteira nacional sem ferir os interesses dos terratenentes no jogo de poder para a criação/recriação das fronteiras internas.

A experiência do Sul, exemplo emblemático de produção de fronteiras internas no bojo da consolidação da fronteira nacional, não deve ser, entretanto, entendida como uma particularidade sulista. Ao contrário, a dinâmica de ocupação/invasão de terras dos fazendeiros segue a mesma lógica do restante do país, a despeito das gritantes diferenças nacionais e do fato incontestável de que, em algumas regiões, as fronteiras não se estabelecem no confronto com outros países.

Para os limites deste artigo, retomaremos algumas das questões discutidas em nossos trabalhos anteriores, a partir do reexame de algumas fontes consultadas naquele momento, à luz da proposta aqui apresentada. Assim sendo, valemo-nos dos registros paroquiais de terras de 94 declarantes e de quatro processos de embargo, abertos entre os anos de 1858 e 1860 para a freguesia de Cebolas, do antigo município de Paraíba do Sul, Rio de Janeiro, região marcada por recorrentes conflitos de terra ao longo do século XIX. A partir do cruzamento das informações presentes nessas fontes, encaminhamos aqui uma possibilidade de análise da dinâmica social de construção de fronteiras internas. Partimos do pressuposto de que tal dinâmica presente num antigo município do Rio de Janeiro é mais do que o resultado de uma política de apropriação territorial local, pois expressa uma realidade dos brasis do século XIX, em relação direta com a forma como se instituiu a ocupação de terras no Brasil, sendo o conflito seu elemento estruturante.

São múltiplas as definições possíveis para “conflito de terra”. Esse termo expressa o confronto de agentes sociais opostos em relação a entendimentos diferenciados – portanto conflituosos – em relação ao direito à terra. Trata-se de um embate de interpretações sobre esse direito, e pode variar desde um confronto direto até ações judiciais para a solução do embate. Elemento estruturante da sociedade brasileira, os conflitos de terra no Brasil são intermitentes em algumas regiões e permanentes em outras. No primeiro caso, trata-se de áreas onde os conflitos ocorrem em intervalos e são, algumas vezes, solucionados por ações judiciais ou de procedimentos governamentais, como em ações de desapropriação em áreas ociosas ocupadas por fazendeiros ou grilagens. No segundo, a pouca presença – seja da justiça, seja do governo – transforma as áreas em regiões de permanentes conflitos.

Retomemos aqui o que determinava o Regulamento da Lei de 1850 em relação à obrigatoriedade do registro e da delimitação da terra. Segundo o Decreto

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de 30 de janeiro de 1854, os chamados registros paroquiais tornaram-se obrigatórios para “todos os possuidores de terras, qualquer que seja o título de sua propriedade ou possessão”. Eram os vigários de cada freguesia os encarregados de receber as declarações para o registro de terras. Cada declaração deveria ter duas cópias iguais, contendo: “o nome do possuidor, designação da Freguesia em que estão situadas; o nome particular da situação, se o tiver; sua extensão se for conhecida; e seus limites”. Dessa forma, a lei e seu regulamento estabeleciam que cabia ao declarante informar sobre os limites de sua terra, não sendo necessária a apresentação de documento que confirmasse a propriedade – no caso de sesmarias em situação regular. Nem mesmo era solicitada a presença de testemunhas que assegurassem a legitimidade da ocupação no caso de sesmeiros em situação de comisso, isto é, aqueles que não haviam cumprido a determinação régia quando da concessão: a demarcação da terra e a obrigatoriedade do cultivo (Motta, 1998a).

Na segunda metade do século XIX, várias eram as perspectivas em confronto. Uma delas era a do Estado: através de uma legislação agrária que visava reorganizar o espaço territorial, o Estado procurava chamar para si a discriminação e a demarcação de suas terras devolutas, delimitar o público de o privado. Outra perspectiva era a de fazendeiros ou lavradores, que viam no dispositivo legal a oportunidade de assegurar sua ocupação. Assim, alguns tendiam a seguir as determinações, na expectativa de verem reconhecidos os limites territoriais da sua área; outros fazendeiros, ou mesmo lavradores, ao contrário, preferiram desconsiderar a norma legal, estabelecendo a fronteira de sua fazenda e seus sítios através de seu poder. Havia, por fim, a perspectiva presente na luta de pequenos posseiros e lavradores, que, baseados no princípio da primeira ocupação, esforçavam-se por definir uma fronteira entre fazendas e pequenos sítios para assegurar sua sobrevivência.

São, portanto, várias visões em confronto, conflitos de interpretações, embates que se expressavam na justiça ou na violência pura e simples de grandes fazendeiros. As desconfianças e disputas sobre os esforços governamentais no estabelecimento de fronteiras internas eram reconhecidas, inclusive, pelo presidente de província. Em vários relatórios produzidos ao longo do período, destacam-se os reclamos do governo em relação ao fracasso em discriminar as terras, estabelecendo – para a “tranqüilidade pública” – limites territoriais precisos. Em 1850, por exemplo, o presidente de província afirmava:

“se o simples arrolamento encontra estes embaraços, outros ainda maiores surgem, quando se quer ensaiar uma estatística que sirva de base ao legislador e ao estadista para o estudo comprado das fontes de riqueza, da percepção dos impostos, da redução de uns, e substituição por outros, da adoção de medidas peculiares a certos municípios com relação a sua indústria especial. [...] Entre nós o mais ridículo exame oficial

da propriedade é logo taxado de violência e de perseguição, de

sorte que nem sequer podemos ainda fazer exatamente o inventário de nossa produção agrícola” (Relatório do Presidente de Província do Rio de Janeiro, março de 1850; grifo nosso).

Uma rápida análise dos registros paroquiais da freguesia de Cebolas, Paraíba do Sul, Rio de Janeiro, aponta um dado bastante interessante para encaminharmos o tema aqui proposto. Dos 94 declarantes, ou seja, fazendeiros, lavradores ou pequenos posseiros que registraram suas terras, quase 62% nada informam sobre a forma de ocupação, cerca de 9% declaram que adquiriram suas terras por compra, e 4,5% por herança. O restante informa que as adquiriu por doação ou por troca. Além disso, dos 94 declarantes, 10 ignoram (sic!) o fundo de

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suas terras, mencionando-o através da expressão “com os fundos que se acharem”, “com fundos incertos”. Antônio Dias Lessa alega, por exemplo, possuir “264 braças de testada com os fundos que se acharem” (Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1854-1858).

Para os que desconhecem a história da região, basta informar que a citada freguesia havia sido criada em 07 de maio de 1837. O início de sua ocupação, no entanto, remonta ao final do século XVIII, em decorrência da abertura do Caminho Novo para Minas. A freguesia era parte de um município cuja ocupação territorial havia se intensificado nos anos 30/40 do século seguinte, impulsionada pela produção cafeeira.

Assim, ao alegarem desconhecer o fundo de suas terras, alguns declarantes não estavam tão somente afirmando sua ignorância. Eles operavam os dispositivos da lei para reafirmar seus domínios sobre terras que provavelmente não eram suas ou, ao menos, terras sobre as quais não poderiam provar ter algum direito. Para além do estabelecido em lei, ou seja, de discriminar as terras públicas das privadas, havia estratégias diversas, adotadas pelos fazendeiros para atenderem os seus interesses.

Ademais, ao alegarem desconhecer os limites de suas terras “pelas portas dos fundos”, tais declarantes impediam que o governo de fato pudesse vir a conhecer as terras devolutas que, a partir daquela data, só poderiam ser adquiridas por compra. Havia de fato uma interpretação sobre delimitação territorial entre fazendas e sítios que diferia do projeto e lei de terras e tinha muito mais a ver com o jogo de forças e poderes estabelecido na região.

Esta última informação pode ser verificada se analisarmos a maneira como os declarantes registraram os seus confrontantes. Em outras palavras, como cada um deles apresentou a extensão da sua terra e principalmente os seus limites. O reconhecimento nominal de um confrontante era a legitimação da terra de outrem, o estabelecimento de um limite físico das terras. Assim, por exemplo, quando o fazendeiro Julião José da Silva Leitão apresentou-se perante o vigário para registrar a sua fazenda de Santa Bárbara, que possuía 400 braças de largura e 2.100 braças de comprimento, informou que a mencionada fazenda limitava “pelos lados com Antônio Ferreira de Lacerda, Floriano Manoel da Rosa e Joaquim Soares Bernardes e pelas testadas com o Capitão José Maria de Carvalho e a linha que vai do marco judicial da Villa d'Anta”. Floriano Manoel da Rosa, por exemplo, quando registrou suas 300 braças de testada e 700 de fundos também reconheceu Julião Leitão como seu confrontante.

Em trabalho anterior já argumentamos que “registrar ou não sua terra, contar ou não com o reconhecimento de seus confrontantes era, em suma, uma questão difícil e estava relacionada à existência ou não de uma rede de relações já consolidada” (Motta, 1998a, p.177). Nesse sentido, alguns poderiam vislumbrar os benefícios da lei para a consagração de seus limites territoriais, outros poderiam sentir-se ameaçados ao identificar no registro um limite ao seu poder, que poderia consubstanciar-se na delimitação física e precisa de sua terra. Afinal, em razão da lei e de seu regulamento, havia sido criada a Repartição Geral de Terras Públicas, cuja finalidade era organizar o registro das terras possuídas, propondo ao Governo a fórmula a ser seguida para a revalidação de títulos e legitimação das terras possuídas.

A citada Repartição era, ainda, responsável por dirigir a medição, dividir e descrever as terras devolutas e prover sua conservação. Também era de sua competência propor ao governo quais terras devolutas deveriam ser reservadas à colonização indígena e fundação de povoações, e quais deveriam ser vendidas, além de fiscalizar tal distribuição e promover a colonização nacional e a estrangeira

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(Decreto n. 1318, de 30 de janeiro de 1854). A Repartição Geral teria, em suma, não somente a responsabilidade de discriminar as terras públicas das privadas, mas de definir fronteiras entre elas, reconhecer ou não as fronteiras entre fazendas e entre fazendas e sítios.

A análise dos processos de embargo para a freguesia de Cebolas

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também se mostra bastante interessante para a questão aqui proposta . No primeiro processo, aberto no ano de 1858, o fazendeiro José Antônio Nunes e sua mulher, senhores e possuidores das Fazendas da Rocinha e da do Retiro da Pedra alegaram que João Antunes Teixeira Braga havia feito uma “barraca no gramado” em terras do autor do processo. O réu, por sua vez, afirmava que estava edificando uma casa de vivenda em sua fazenda das Pedras, herança de seu pai. Os autores também alegaram serem legítimos possuidores, por compra, de terras antes pertencentes a outro fazendeiro, que as havia recebido por herança. Não há nenhuma conclusão no processo: não sabemos se o autor ganhou a ação, nem ao menos o limite territorial entre a fazenda e a área objeto da disputa.

Os outros processos seguem a mesma lógica. Referem-se às disputas na Fazenda do Fagundes e na Fazenda do Ribeirão. São senhores e possuidores em disputa, embates jurídicos entre eles ou tendo lavradores como réus. Nesse confronto de interpretações sobre as histórias de ocupação dos lugares, três questões são importantes.

A primeira é o fato de que apenas em um dos processos há uma determinação final sobre quem tem o direito ao quinhão de terra objeto do conflito. Em muitas ocasiões, a disputa se dá nas fronteiras entre as fazendas, mas a dificuldade de definir o direito à terra de uma das partes nos mostra a perpetuação de conflitos, “solucionados” por laços de casamento ou por ações diretas de violência entre as partes. No caso das uniões, o casamento permite a consagração de uma nova fronteira, eliminando, ou ao menos adiando, o conflito entre os “donos”.

Em segundo, em nenhum dos processos, autores e/ou réus utilizaram os registros paroquiais de terra para legitimar sua versão dos fatos, assegurando, numa decisão judicial, seu direito à terra objeto de embate. Na maioria da documentação relativa à questão de terra após 50, a ausência do Registro Paroquial de Terra como prova legal de propriedade é flagrante. E isso não é um mero detalhe; é uma escolha entre alternativas possíveis. Se o que estava em jogo era a propriedade da terra, era em nome desse direito que tanto autor como réu defendiam suas versões do fato. A não-utilização do registro como elemento importante nas defesas é um indício para (re)discutirmos porque o Estado Imperial não foi capaz de discriminar as terras públicas das privadas, possibilitando que a legislação de 1850 se tornasse de fato inócua ou pouco eficaz, senão em todas, provavelmente na maioria do território nacional.

E mais. A maneira como grandes fazendeiros operaram com os dispositivos legais muito tem a nos dizer sobre como se construiu e se consolidou uma visão patrimonialista, na qual o poder público não foi “além da porteira”. O estudo e a análise dos processos de embargo, bem como os de despejo e os de medição de terras, nos ajudam a discutir as estratégias utilizadas por tais

senhores para continuar a invadir terra devoluta, com base em seu poder, sua

força e seu prestígio.

Assim sendo, mais do que o estabelecimento físico da área ocupada pelo fazendeiro, é preciso estar atento para o fato de que a constituição de fronteiras internas deu-se a partir da junção entre força, poder e prestígio em sua relação com a consagração de um determinado espaço físico, suficientemente fluido para permitir a ocupação para além das fronteiras originais.

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Explicamo-nos melhor: o processo de ocupação territorial no Brasil consagrou uma forma de operacionalização da ocupação territorial que não esteve atrelada a nenhum mecanismo de regularização fundiária. O esforço da Coroa, em fins do século XVIII, para ordenar a forma de ocupação da então colônia brasileira

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foi em vão . Da mesma forma, o período que vai de 1822 (fim do sistema de sesmarias) até 1850 consagrou a posse como única forma de ocupação, sem nenhuma imposição de limites. A partir de 1850, a despeito de todas as tentativas do governo de instituir um cadastro de terras, não foi possível regularizar a ocupação, já que – como já afirmamos –, os fazendeiros operaram com os dispositivos da lei a partir de seus próprios interesses e se recusaram, na prática, a permitir que o Estado regularizasse a ocupação territorial, consolidando fronteiras internas precisas.

Para uma pesquisa sobre a produção de fronteiras internas

A constituição de fronteiras internas deu-se a partir de um tripé de dominação: força, poder e prestígio. Em primeiro lugar, a utilização da força para expulsar os pequenos posseiros localizados em áreas fronteiriças das fazendas, impondo um limite territorial não desejado, ou para lutar contra outro fazendeiro, também interessado em expandir-se para além de suas fronteiras originais; em segundo lugar, o poder para consagrar o mesmo limite, nos embates na Justiça e no processo de “legalização” de terras, instituindo a fronteira como um resultado “natural” de compra, doação ou herança de terras; por último, o prestígio, que irá traçar uma junção entre o nome do fazendeiro e a denominação de sua fazenda, naturalizando, assim, um espaço fluido de extensão que atende aos interesses do dono.

Mas como podemos reconstruir a dinâmica da produção de fronteiras internas em pesquisas sobre a história de uma região? São vários os caminhos possíveis, mas todos nos levam à imperiosa necessidade de um extenso cruzamento de fontes capaz de resgatar a trajetória da produção de fronteiras internas em uma dada localidade.

Primeiramente, é preciso definir o corte cronológico da pesquisa e levantar os principais fazendeiros do período. No Rio de Janeiro e em outras províncias é possível ter acesso a uma listagem inicial por meio do Almanaque Laemmert, publicação anual da editora do mesmo nome, que trazia a relação de fazendeiros, vereadores, juízes etc. de cada município da província. Em regiões onde não contamos com esse instrumento inicial de pesquisa, podem-se encontrar informações sobre os principais fazendeiros da região nos livros dos memorialistas locais e nos dados colhidos na imprensa regional. Um segundo passo é resgatar os dados constantes nos inventários e testamentos dos fazendeiros, onde, na parte referente ao bem imóvel, tem-se a descrição de sua ocupação territorial. Com muita paciência, é possível reconstruir a cadeia sucessória do fazendeiro, sendo provável encontrar-se o primeiro documento “legal” da ocupação, como, por exemplo, a carta de sesmarias. Uma vez que o inventário é o instrumento necessário para a transmissão do patrimônio, no caso a fazenda, é preciso estar atento a todos os detalhes. Em terceiro lugar, a partir dessa lista, é necessário resgatar os dados relativos à compra e à venda de parcelas de terra. Muitas dessas informações já estão presentes nos inventários e outras podem ser encontradas nos livros de registro dos cartórios locais. Um quarto passo é levantar os processos de embargo e despejo envolvendo os fazendeiros. Nesses processos cíveis, é muito provável que sejam encontrados dados mais consistentes sobre os esforços de delimitação territorial, já que as ações são abertas, exatamente para expulsar

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um “invasor”. Assim sendo, o cruzamento das informações ali contidas com as presentes nos inventários nos dão condições de reconstruir – ao menos em parte – a produção da fronteira interna.

No cruzamento das informações recolhidas nesse conjunto de fontes, podem-se reconstruir as fronteiras, operando com detalhes presentes nos documentos: local da fazenda e/ou sítio, delimitações territoriais naturais (morros, rios), embates entre confrontantes. Nesse jogo de força, poder e prestígio, deve-se, ainda, cruzar a lista de fazendeiros com informações relativas à política local. Para as regiões que possuem algum tipo de almanaque, a tarefa é mais tranqüila. Em outras, tem-se que pesquisar a relação de vereadores locais, as Atas das Câmaras e os dados relativos aos juízes da localidade, já que – como sabemos – muitos fazendeiros contavam com uma rede de poder que se entendia à Câmara e ao Tribunal.

Em muitos lugares, o nome de uma fazenda se confunde com o nome de seu proprietário. Assim, há várias informações dispersas sobre a fazenda que estão, quase sempre, presentes nos textos dos memorialistas da região. Num intenso e às vezes cansativo cruzamento das fontes, é possível detectar o processo de constituição de uma fronteira, suficientemente fluida para atender os interesses do fazendeiro. Assim, a consagração de um nome para um território não delimitado tem um duplo papel: de um lado, permite atrelar o nome da fazenda ao seu dono, sem fazer referência explícita ao limite físico da área ocupada; de outro, empreende um processo de naturalização de uma fronteira fluida que confunde os esforços, seja do governo, seja da população local, no sentido de esquadrinhar o processo de ocupação legal daquelas terras.

A reconstituição histórica da produção e consolidação de fronteiras internas, principalmente em áreas de conflito, tem ao menos dois resultados visíveis para o historiador. Em primeiro lugar, ela permite operar com o tripé anteriormente mencionado – força, poder e prestígio – no processo de deslegitimação de cortes espaciais que foram construídos via ocupação irregular e mesmo grilagens. Isso é importante no sentido de aclarar a historicidade da consagração dos fazendeiros locais como detentores de amplas faixas de terras. Em segundo, a reconstituição pode tornar-se um elemento importante no processo de elaboração de laudos antropológicos em áreas intituladas de remanescentes de quilombos ou de reservas indígenas, uma vez que tal mecanismo de investigação sai do recorte espacial – objeto particular do laudo – para refletir de forma mais densa sobre a história da ocupação territorial e de produção de fronteiras internas na região.

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(10)

R IO P A R A IB A R IO P IA B A N H A P A R A ÍB A D O S U L

CARTA COROGRÁFICA DA PROVÍNCIA DO RIO DE JANEIRO – 1858-1861

Fonte: arquivo nacional (alterações feitas pela autora)

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NOTAS

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Em um dos nossos artigos, analisamos a produção de amnésia social em relação aos conflitos de terra ocorridos numa fazenda em Paraíba do Sul, Rio de Janeiro.

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Para os limites deste artigo, foram selecionados apenas quatro processos, abertos entre 1858 e 1860, ou seja, no período imediatamente posterior à data-limite dada pelo governo para que todos os possuidores declarassem as suas terras nos registros paroquiais. Uma análise mais detalhada de alguns dos principais argumentos deste texto pode ser encontrada em Motta (1998a).

3 Referimo-nos aqui aos esforços do governo de D. Maria I para regularizar o sistema de sesmarias no Brasil, em virtude das inúmeras denúncias de conflitos de terras.

REFERÊNCIAS

ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Registro Paroquial de Terras. Município de Paraíba do Sul, Freguesia de Cebolas, 1854-1858.

BRASIL. Ministério Extraordinário para Assuntos Fundiários. Coletânea: legislação agrária, legislação de registros públicos, jurisprudência. Lei n. 601, de 18 de setembro de 1850, e Decreto n. 1318, de 30 de janeiro de 1854. Elaboração de Maria Jovita Valente. Brasília, 1983.

BRASIL. Mistério da Agricultura. Relatórios: 1868, 1869, 1870 e 1874. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1869-1875.

CARVALHO, José Murilo de. A política de terras: o veto dos barões. Teatro das sombras. São Paulo: Vértice; Rio de Janeiro: IUPERJ, 1988.

CHRITILLINO, Cristiano. Estranhos em seu próprio chão: o processo de apropriações e expropriações de terras na província de São Pedro do Rio Grande do Sul (o Vale do Taquari no período de 1840-1889). Dissertação (Mestrado). Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Rio Grande do Sul, 2004.

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Referências

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