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Revista Eletrônica Fórum Paulo Freire Ano 1 Nº 1 Julho 2005 PAULO FREIRE E A ECOLOGIA

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PAULO FREIRE E A ECOLOGIA

Autores: Professor Dr. Balduino Antonio Andreola Acadêmico Marcos – Bolsista do CNPq

O professor Dr. Sírio Lopez Velasco da FURG, em conversa pessoal e numa conferência, há alguns anos, levantou a seguinte questão: “Diante do cada vez mais iminente perigo de holocausto ecológico da humanidade e do Planeta inteiro, ganha cada vez mais importância a dimensão ambiental da educação, à qual Paulo Freire, a não ser em “À sombra desta Mangueira”, não deu o merecido destaque”. O questionamento do colega Sírio significou para mim o desafio a uma releitura de Freire nesta ótica ecológica, que me levou a descobrir em sua obra uma riqueza extraordinária, por ele explicitada em torno de temas como: espaço, terra, latifúndio, reforma agrária, árvores, rios, córregos, natureza. Diríamos que Freire se revela um apaixonado da natureza, sob todas as suas formas, sendo veemente ao denunciar tudo o que desrespeita a vida. Em sua 3ª “Carta Pedagógica” inacabada, expressando sua indignação perante a matança do índio Pataxó, declara que o fato “(...) nos adverte de como urge que assumamos o dever de lutar pelos princípios éticos como do respeito à vida dos seres humanos, à vida dos outros animais, à vida dos pássaros, à vida dos rios e das florestas”. Proclama depois: “A ecologia ganha uma importância fundamental neste fim de século. Ela tem de estar presente em qualquer prática educativa de caráter radical, crítico ou libertador”. Destruir a casa de alguém é uma forma cruel de violência e opressão. Destruir a casa comum, a Terra, é a expressão extrema da violência. A defesa do Planeta é, pois, um dos desafios mais urgentes da “Pedagogia do Oprimido”, desafio máximo de Freire a todos nós.

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PAULO FREIRE E A ECOLOGIA: CARTA AO PROF. DR. SÍRIO VELASCO DA FURG Prof. Balduino Antonio Andreola

Meu caríssimo colega e amigo professor Sirio.

Nossos diálogos não foram muitos e estão sendo, infelizmente, bastante esparsos. Todavia, foram e estão sendo para mim muito desafiadores e fecundos. Na última vez que nos encontramos, você me propôs uma questão a respeito da obra de Paulo Freire. Tenho inclusive em mão uma palestra sua, em que você explicita longamente e fundamenta, com a seriedade intelectual que lhe é peculiar, aquela mesma questão. Reconhecendo a importância extraordinária da obra freireana, você questiona se ele teria dado uma contribuição significativa para o problema ambiental, que se revela um dos desafios maiores e decisivos para a própria sobrevivência da humanidade.

Professor Sírio, a questão por você levantada me preocupou bastante durante os vários anos que se passaram desde o nosso último encontro. Minha preocupação não consiste, evidentemente, em querer provar a você ou a alguém outro que Paulo Freire se ocupou significativamente desta temática em seus escritos e sua práxis pedagógico-política. Seria da minha parte uma preocupação ingênua. Acho que o problema por você levantado tem um alcance muito maior do que isto. Neste sentido, em minhas releituras dos escritos de Freire, na preparação de aulas, palestras, seminários ou artigos, preocupei-me em relê-los também nesta ótica da ecologia ou do problema ambiental. A minha releitura fiz questão de compartilhá-la com meus alunos e alunas nos cursos de Pós-Graduação, e com os membros de meu grupo de pesquisa. Posso dizer-lhe inclusive que os diálogos foram neste sentido muito profícuos e gratificantes.

Em vários livros de nosso pedagogo maior, descobri, desafiado por você, textos extremamente interessantes com relação aos problemas ambientais. Mas antes de referir-me àqueles textos, quero deter-me alguns instantes numa reflexão de ordem mais geral sobre o sentido ecológico da pedagogia freireana de libertação. O sentido maior, com efeito, de toda a prolongada luta de Freire constitui-se num empreendimento sem trégua de denúncia e de luta contra todas as formas de opressão. Feita esta consideração, eu me pergunto: Uma das modalidades mais cruéis de opressão não consistiria acaso em invadir a casa do outro, pessoa ou povo, expulsá-lo de sua casa, e arrasá-la? Esta pergunta que eu propus a mim

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mesmo significa dizer que a Pedagogia do Oprimido tem, com certeza, um sentido ecológico radical.

A esta altura ocorre-me que Paulo Freire foi sempre muito atento aos questionamentos que lhe eram propostos e às diferentes críticas levantadas em torno de sua obra. Lembrando esta postura dele, estou pensando, em tom jocoso, que Paulo Freire deve ter captado a transmissão de seu pensamento, Sírio, ou então que algum passarinho lhe transmitiu ao ouvido a sua pergunta crucial. Digo isto porque no último livro que ele estava escrevendo, cujo título seria “Cartas Pedagógicas”, se refere, de maneira explícita e com extrema veemência, ao problema ecológico. Isto aconteceu em sua terceira carta, que nos deixou inconclusa sobre sua mesa de trabalho. Nós a encontramos no livro publicado por sua esposa, Dra. Ana Maria Araújo Freire, sob o título “Pedagogia da Indignação: Cartas Pedagógicas e outros escritos” (p. 65-67). A carta começa assim:

Cinco adolescentes mataram hoje, barbaramente, um índio pataxó que dormia tranqüilo, numa estação de ônibus, em Brasília. Disseram à polícia que estavam brincando (p. 65).

Depois de relembrar o episódio terrivelmente cruel, Freire prossegue:

Que coisa estranha, brincar de matar índio, de matar gente. Fico a pensar aqui, mergulhado no abismo de uma profunda perplexidade, espantado diante da

perversidade intolerável desses moços desgentificando-se no ambiente em que decresceram em lugar de crescer (p.66).

Perante a enormidade do que aconteceu, Paulo não se detém em análises sociológicas ou psicológicas, mas expressa antes o sentimento de espanto que irrompe do fundo de seu corpo consciente e proclama:

O acatamento ao outro, o respeito ao mais fraco, a reverência à vida não só humana mas vegetal e animal, o cuidado com as coisas, o gosto da boniteza, a valoração dos sentimentos, tudo isso reduzido a nenhuma ou quase nenhuma importância. Se nada disso, a meu juízo, diminui a responsabilidade desses agentes da crueldade, o fato em si de mais esta trágica transgressão da ética nos adverte de como urge que assumamos o dever de lutar pelos princípios éticos mais fun-

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damentais como do respeito à vida dos seres humanos, à vida dos outros animais, à vida dos pássaros, à vida dos rios e das florestas (p. 66-67).

Na minha Carta-Prefácio ao livro póstumo de Freire, eu escrevo: “Paulo, tu estás defendendo o valor da vida na sua universalidade, sob todas as suas formas, com a veemência do Cristo, que expulsou os profanadores do santuário, e com a linguagem poética e mística de Francisco de Assis, eleito o maior personagem do milênio recém-findo. Tua defesa não se inspira num sentimentalismo vago, mas sim na radicalidade de uma exigência ética que assim proclamas”:

Não creio na amorosidade entre mulheres e homens, entre os seres humanos, se não nos tornamos capazes de amar o mundo. (p. 24)

Neste momento, aquele que é, por parte de Paulo Freire, um grito veemente em defesa da ética, se transforma numa proclamação da urgência radical do problema ecológico:

A ecologia ganha uma importância fundamental neste fim de século. Ela tem de estar presente em qualquer prática educativa de caráter radical, crítico ou libertador. Não é possível refazer este país, democratizá-lo, torná-lo sério, com adolescentes brincando de matar gente, ofendendo a vida, destruindo o sonho, inviabilizando o amor (p. 67).

As últimas palavras desta carta inacabada, porque inacabada, trazem reticências, como convite a continuarmos a reflexão e a luta. Esta é a derradeira mensagem escrita de Freire:

Desrespeitando os fracos, enganando os incautos, ofendendo a vida, explorando os outros, discriminando o índio, o negro, a mulher não estarei ajudando meus filhos a ser sérios, justos e amorosos da vida e dos outros... (p. 67)

Meu amigo Sírio, eu poderia ter apenas citado a carta, assinalando o conteúdo ecológico da mesma. Preferi destacar os trechos que se referem diretamente a esta questão, balizando-os com breves comentários meus. Deste livro póstumo, passo agora ao último

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livro publicado em vida por Paulo, em 1997, intitulado “Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa”.

Na p. 33, temos, como subtítulo do capítulo 1º: “Ensinar exige respeito aos saberes dos educandos”. E Paulo pergunta:

Por que não aproveitar a experiência que têm os alunos de viver em áreas da cidade descuidadas pelo poder público para discutir, por exemplo, a poluição dos riachos e dos córregos e os baixos níveis de bem-estar das populações, os lixões e os riscos que oferecem à saúde das gentes. Por que não há lixões no coração dos bairros ricos e mesmo puramente remediados dos centros urbanos? Esta pergunta é considerada em si demagógica e reveladora da má vontade de quem a faz. É pergunta de subversivo, dizem certos defensores da democracia (p. 33).

Em continuidade, como no livro Pedagogia da Indignação, Freire associa os problemas ecológicos às exigências éticas e aos problemas sociais ou, melhor dito, aos problemas de discriminação de classe:

Por que não discutir com os alunos a realidade concreta a que se deva associar a disciplina cujo conteúdo se ensina, a realidade agressiva em que a violência é a constante e a convivência das pessoas é muito maior com a morte do que com a vida? Por que não discutir as implicações políticas e ideológicas de um tal descaso dos dominantes pelas áreas pobres da cidade? A ética de classe embutida neste descaso? (p. 33-34).

Nas p. 49 e 50 do mesmo livro, Paulo Freire se refere ao espaço como elemento fundamental de uma educação condizente com a dignidade humana de todos os alunos. Assim escreve ele:

Há uma natureza testemunhal nos espaços tão lamentavelmente relegados das escolas”. Em A Educação na cidade chamei a atenção para esta importância quando discuti o estado em que a administração de Luiza Erundina encontrou a rede escolar da cidade de São Paulo em 1989. O descaso pelas condições materiais das escolas alcançava níveis impensáveis. Nas minhas primeiras visitas à rede quase devastada eu me perguntava horrorizado: Como cobrar das crianças um mínimo de respeito às carteiras escolares, às mesas, às paredes se o Poder Público revela absoluta desconsideração à coisa pública. É incrível que não imaginemos a significação do “discurso” formador que faz uma escola respeitada em seu espaço.

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A eloqüência do discurso “pronunciado” na e pela limpeza do chão, na boniteza das salas, na higiene dos sanitários, nas flores que adornam. Há uma pedagogicidade indiscutível na materialidade do espaço (p. 49-50).

No capítulo 2º de “Pedagogia da Autonomia”, sob o título “Ensinar exige alegria e esperança”, Freire relata uma caminhada que realizou em Olinda com o professor Danilson Pinto, através de uma favela onde o ambiente não fala muito de alegria, e onde a esperança parece quase impossível. Ouçamos seu relato:

Caminhávamos, Danilson Pinto e eu, com alma aberta ao mundo, curiosos, receptivos, pelas trilhas de uma favela onde cedo se aprende que só a custo de muita teimosia se consegue tecer a vida com sua quase ausência, ou negacão, com carência, com ameaça, com desespero, com ofensa e dor. Enquanto andávamos pelas ruas daquele mundo maltratado e ofendido eu ia me lembrando de experiências de minha juventude em outras favelas de Olinda e Recife, dos meus diálogos com favelados e faveladas de alma rasgada (p. 82).

Este problema do espaço, visto e sentido por Paulo Freire não apenas como espaço físico ou geográfico, mas sim como espaço político, social e cultural, do qual muitos são expulsos, me transfere agora para outro livro dele, intitulado “Extensão ou Comunicação?” Na p. 41, lemos:

Entre as várias características da teoria antidialógica da ação, nos deteremos em uma: a invasão cultural. Toda invasão sugere, obviamente, um sujeito que invade. Seu espaço histórico-cultural, que lhe dá sua visão de mundo, é o espaço de onde ele parte para penetrar outro espaço histórico-cultural, superpondo aos indivíduos deste seu sistema de valores. O invasor reduz os homens do espaço invadido a meros objetivos de sua ação.

Meu caro amigo Sírio, não preciso deter-me em considerações, porque é evidente demais aqui a denúncia, por parte de Freire, de todas as formas de colonialismo de outras épocas, mas certamente também das de hoje, mais cruéis e opressoras do que aquelas. E não é menos evidente, com relação ao espaço, que os problemas políticos significam também tremendos problemas ecológicos. Permito-me, neste sentido, citar aqui o prefácio a um livro que você aponta como importante para a problemática da ecologia. Ladislau Dobwor, prefaciando o livro “À sombra desta mangueira” (p. 10), escreve:

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Uma África devastada chora as suas últimas árvores, e vê seus solos desprotegidos, carregados pelos ventos e pelas chuvas torrenciais, enquanto o Ocidente que a devastou lhe recomenda cuidados ambientais. Mas temos cada dia melhores computadores, vídeo-cassetes, e discos laser.

A este problema devastador da erosão, Paulo Freire também se refere, no livro anteriormente citado, “Extensão ou Comunicação?” (p. 35). Depois de explicar que num programa educativo se deve partir da cultura e da experiência dos educandos, ele declara:

Concomitantemente com a discussão problemática da erosão e do reflorestamento, por exemplo, se faz indispensável a inserção crítica do camponês em sua realidade como uma totalidade. A discussão da erosão requer (em uma concepção problematizante, dialógica da educação e não antidialógica) que a erosão apareça ao camponês, em sua “visão de fundo”, como um problema real, como um “percebido destacado em si” em relação solidária com outros problemas. A erosão não é apenas um fenômeno natural, uma vez que a resposta a ele, como um desafio, é de ordem cultural (...).

Esta exigência de situar o problema ecológico interligado com outros problemas, numa visão de totalidade, é muito bem salientado pela Profª Christina Schachtner (2002: 129), em sua conferência no Congresso Internacional Paulo Freire, na UNISINOS, em 1998. Esta estudiosa de Marburg (Alemanha) relatou iniciativas de vários grupos ou movimentos, sobretudo ligados à Agenda 21 da ONU, comprometidos em promover “um desenvolvimento social, ecológico e econômico que leve em conta a idéia de sustentabilidade”. Segundo ela, os elementos teóricos formulados por Freire, “determinam substancialmente o pensamento e a ação desse novo movimento sócio-ecológico”. Ela situa as mudanças exigidas na linha do que Freire denomina pela sua urgência, “situações- limites”.

O tradutor optou pela denominação “situação limítrofe”, que requer “ações limítrofes” (Ib.: 130). Além desta categoria (“situações-limites”), a estudiosa alemã aponta a “orientação dialógica”, a solidariedade, que “significa tomar partido pelos oprimidos”, os temas geradores e, sobretudo, a esperança, como categorias e/ou idéias-força de

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fundamental importância na inspiração de projetos em que ela salienta o “entrelaçamento das perspectivas global e local, das perspectivas ecológica, econômica e social”. Com relação a este “entrelaçamento”, a professora Christina destaca a concepção que Freire tem da realidade como “estrutura interdependente”. Segundo ele, se o ser humano não vê a realidade como totalidade, mas sim de forma fragmentada, não terá condições de conhecê-la e, conseqüentemente, de transformá-conhecê-la.

Voltando ao tema do espaço, eu diria que Freire expressa, em toda a sua forma de existir e estar-no-mundo, e em toda a sua obra, uma comunhão cósmica com o espaço, com a terra, com o planeta, em todos os seus recantos. Numa longa entrevista com o Claudius Ceccon, para o Pasquim (1978, nº 462), falando de sua experiência do exílio, Freire declara:

(...) o que eu quero dizer é que sou, existencialmente, um bicho universal. Mas só sou porque sou profundamente recifense, profundamente brasileiro. E por isso comecei a ser profundamente latino-americano e depois mundial. Eu sou capaz de querer bem, enormemente, qualquer povo.

Meu caro colega Sírio, sei que você não vai me cobrar uma lógica rigorosa nesta minha fala, pois não se trata de um artigo, mas sim de uma carta a um amigo. Neste sentido, permito-me participar desta comunhão cósmica do Paulo, indo e vindo também, com liberdade, em diferentes espaços físicos e culturais, ao mesmo tempo que vou e venho, na minha releitura prazerosa dos diferentes escritos seus. Passo, pois, para “Cartas à Guiné-Bissau”.

Depois de lembrar que seu primeiro encontro com a África não se deu com a Guiné-Bissau, mas sim com a Tanzânia, ele observa:

Faço esta referência para sublinhar quão importante foi, para mim, pisar pela primeira vez o chão africano e sentir-me nele como quem voltava e não como quem chegava (Freire, 1978:13).

Justificando a sua sensação de volta, Freire proclama emocionado:

Daquele momento em diante, as mais mínimas coisas – velhas conhecidas – começaram a falar a mim, de mim. A cor do céu, o verde-azul do mar, os

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coqueiros, as mangueiras, os cajueiros, o perfume de suas flores, o cheiro da terra; as bananas, entre elas a minha bem-amada banana-maçã; o peixe ao leite de coco; os gafanhotos pulando na grama rasteira; o gingar do corpo das gentes andando nas ruas; os corpos bailando e ao fazê-lo, “desenhando o mundo”, a presença, entre as massas populares, da expressão de sua cultura que os colonizadores não conseguiram matar, por mais que se esforçassem para fazê-lo, tudo isso me tomou todo e me fez perceber que eu era mais africano do que pensava (Ib.: 13-14). Falando daquele encontro, Freire o qualifica: “que era um reencontro comigo mesmo”. E referindo-se à Bissau escreve: “Poderia dizer: quando ‘voltei’ a Guiné-Bissau”.

Podemos dizer, com razão, que se trata de um “reencontro” profundamente ecológico. Paulo se sente “em casa” (Oikos). Encontro/reencontro com os povos africanos, com as árvores, as frutas, a natureza exuberante, a terra, a cultura.

Das andanças de Freire pelos caminhos da Guiné-Bissau, não posso omitir a lembrança de um momento emocionante sob o ponto de vista ecológico. Depois de contar uma visita ao interior do país, ele escreve:

Na volta a Bissau, olhando pela janela do helicóptero dirigido por pilotos soviéticos, junto aos quais dois jovens nacionais continuavam sua aprendizagem, via, lá embaixo, as frondes das árvores queimadas pelo napalm. Olhava atentamente, curiosamente. Nenhum animal. Uma ou outra ave maior voava calmamente. Lembrava-me do que nos dissera o Presidente Luiz Cabral, em nosso primeiro encontro, quando nos falava de diferentes instantes e aspectos da luta, com a mesma sobriedade com que o jovem diretor do Internato conversara com Elza e comigo. “Houve um momento, disse o Presidente, em que os animais da Guiné ‘pediram asilo’ aos países vizinhos. Somente os saguins permaneceram, refugiando-se nas zonas libertadas. Tinham horror aos ‘tugas’. Depois, coitados, passaram a temer-nos. É que nos vimos forçados a começar a comê-los. Espero que, em breve, os nossos animais retornem – concluiu o Presidente – convencidos de que já não há guerra”. Da janela do helicóptero olhava atentamente, curiosamente. Não havia ainda, pelo menos naquelas bandas do país, indícios daquele retorno... (Ib.: 38).

Estas reminiscências de Freire me levam a salientar uma presença extraordinária, que eu qualificaria de ontológica, poética e até mística, das árvores na vida e nos escritos de Paulo Freire. Bastaria lembrar o título do livro “À sombra desta mangueira”, que você

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muito oportunamente citou em sua conferência, e contemplar a figura patriarcal de Freire se deliciando daquela sombra, para entender o quanto às árvores eram suas amigas. Citemos o primeiro parágrafo do livro (p. 15):

As árvores sempre me atraíram. As frondes arredondadas, a variedade do seu verde, a sombra aconchegante, o cheiro das flores, os frutos, a ondulação dos galhos, mais intensa ou menos intensa em função de sua resistência ao vento. As boas-vindas que suas sombras sempre dão a quem a elas chega, inclusive há passarinhos multicores e cantadores. Há bichos, pacatos ou não, que nelas repousam.

As duas páginas iniciais, intituladas “Primeiras palavras”, são um verdadeiro poema às arvores. Quanto ao título, Freire justifica: “(...) é uma licença que me permito e com a qual sublinho a importância que teve na minha infância a sombra das árvores (...)”. Da p. 23 a 26 fala do quintal da sua infância. Daquele quintal, ele fala em muitas oportunidades. Na entrevista do Pasquim, assim o lembra:

(...) vivíamos numa casa grande, com um quintal enorme, que na época dava para duas ruas, uma era a do Encanamento e a outra era a rua de São João. No meio das duas, o quintal ligando-as, era o meu mundo. Cheio de árvores, de bananeiras, cajueiros, fruta-pão, mangueiras. Eu aprendi a ler à sombra das árvores, o meu quadro negro era o chão, meu lápis um graveto de pau.

Suas reminiscências ecológicas e poéticas não significam saudosismo, em dissonância com seus engajamentos político-pedagógicos. Para percebê-lo basta lermos o que ele escreve na p. 26 do livro “À sombra...”:

Minha terra é boniteza de águas que se precipitam, de rios e praias, de vales e florestas, de bichos e aves. Quando penso nela, vejo o quanto ainda temos de caminhar, lutando para ultrapassar estruturas perversas de espoliação. Por isso, quando longe dela estive, dela a minha saudade jamais me reduziu a um choro triste, a uma lamentação desesperada. Pensava nela e nela penso como um espaço histórico, contraditório, que me exige como a qualquer outro decisão, tomada de posições, ruptura, opção.

Esta comunhão cósmica de Paulo com as árvores, com a natureza, com a terra, nos convida a um vôo para a Amazônia. O professor Alberto Damasceno, da Universidade

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Federal do Pará, escreveu um depoimento breve, mas extraordinariamente rico para o livro “Paulo Freire: uma biobibliografia” (1996:231-232). O título: “Paulo Freire, a Amazônia e o boto”. Freire se encantou com a narração da lenda relativa à força sedutora do boto, identificando na mesma não apenas o encanto poético, mas “uma determinada forma de ação cultural”. Fiel a seu compromisso com o diálogo, segundo o professor Damasceno, Freire “fala com o povo da Amazônia e aprende com este o saber da floresta; permanece fiel à idéia da transformação permanente e mais uma vez recria o discurso pedagógico e inaugura a idéia da ação educativa (...)” e discorre a respeito

do gosto pela liberdade de ser, de estar sendo, da liberdade de andar, da liberdade de parar, da liberdade de voltar, da liberdade de perguntar, da liberdade de sonhar, da liberdade de dizer não, da liberdade de farrear, da liberdade de aplaudir, da liberdade de achar bonita a lua que aparece, da liberdade de me banhar, da liberdade de acreditar ou não acreditar na potência e na força do boto.

O professor Damasceno confessa encantado:

Foi uma experiência e tanto ciceroneá-lo nesta viagem ao coração da Amazônia. A cada palavra sobre a terra, as águas, os bichos, as plantas; sobre nossos gostos, cheiros e cores e, ainda, da gente do Norte e seus hábitos indígenas, ouvia-se de sua boca uma frase carregada de paixão pedagógica. Creio tratar-se de sua insistente crença na sabedoria popular e na necessidade imperiosa do diálogo com os oprimidos, para, daí, produzir-se o verdadeiro conhecimento.

Amigo Sírio, este papo está se tornando muito longo, e são horas de ir me encaminhando para o fim. Antes disso, porém, ocorreu-me registrar um evento ligado à ecologia para o qual Paulo Freire seria convidado especial. Ele morreu antes. Sua esposa, Professora Ana Maria, participou do evento, em Brasília. Faço este registro porque a carta que lhe escrevo é um convite apenas, para ampliarmos e aprofundarmos o diálogo.

Temas como espaço, natureza, mundo, terra, árvores, rios, perpassaram todas as páginas desta minha tentativa de resposta à sua questão. Gostaria poder deter-me ainda alguns minutos sobre o tema da terra, mais especificamente sob o ângulo do problema agrário e da Reforma Agrária.

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Recebi um convite muito honroso em 2002 para falar na II Conferência Estadual “Por uma educação básica do campo”, em Porto Alegre, no mês Abril de 2002, publicada num caderno especial sobre o evento (p. 58-63). Naquela palestra levantei a hipótese, quase certeza da minha parte, que Paulo Freire, em seus escritos, tem muito mais referências ao campo do que à cidade, embora fosse de origem urbana. Não vou estender-me sobre a temática então desenvolvida. O que eu quero salientar aqui é o compromisso histórico de Paulo Freire com a Reforma Agrária. Isto significa também denúncia do latifúndio como uma das estruturas mais perversas de nossa história, grande responsável pelas relações de dominação e opressão da maioria dos grupos subalternos no Brasil e na América Latin.

A preocupação de Freire com esta problemática no Brasil percorre muitas páginas do seu livro “Educação como prática da liberdade”. Outro livro seu já citado, “Extensão ou Comunicação?”, surgiu dos trabalhos de alfabetização e educação de adultos no contexto da Reforma Agrária realizada no Chile durante o governo de Eduardo Frei. Se eu situo estas dimensões da obra de Freire numa carta sobre ecologia, é porque a propriedade ilimitada e concentradora da terra nas mãos de uma minoria gananciosa, comandada unicamente pela ética do mercado e da especulação, me parece um dos fatores principais e mais iníquos na devastação da terra e destruição do meio ambiente.

Mas há outra dimensão importante deste engajamento de Freire na defesa da Terra em favor da vida. Trata-se da sua solidariedade histórica com as lutas dos trabalhadores rurais e, em particular, aqui no Brasil, com o MST. No livro póstumo “Pedagogia da Indignação”, ele fala apaixonadamente da luta destemida dos Sem-Terra em várias passagens da primeira e da segunda Cartas Pedagógicas. Na Segunda Carta (p. 60-62), escreve:

O Movimento dos Sem Terra, tão ético e pedagógico quanto cheio de boniteza, não começou agora, nem há dez ou quinze, ou vinte anos.

Depois de referir-se às lutas dos quilombos e das Ligas Camponesas, fala da combatividade do MST, e lembrando a grande marcha que realizaram até Brasília, tendo partido dos recantos mais longínquos de todo o Brasil, assim conclui a Carta:

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A eles e elas, sem-terra, a seu inconformismo, à sua determinação de ajudar a democratização deste país devemos mais do que às vezes podemos pensar. E que bom seria para ampliação e a consolidação de nossa democracia, sobretudo para sua autenticidade, se outras marchas se seguissem à sua. A marcha dos desempregados, dos injustiçados, dos que protestam contra a impunidade, dos que clamam contra a violência, contra a mentira e o desrespeito à coisa pública. A marcha dos sem-teto, dos sem-escola, dos sem-hospital, dos renegados. A marcha esperançosa dos que sabem que mudar é possível.

Sírio, não haveria, talvez, melhor conclusão do que o texto acima. Mas preciso fazer ainda um registro importante. Realizei, nesta minha carta, uma revoada rápida, sem muitas preocupações de ser completo, sobre alguns escritos de Paulo Freire. Há um livro, porém, que não pude reler e citar, porque emprestei a alguém, e ainda não voltou. Trata-se de “Cartas a Cristina”, nas quais Paulo dedica longas páginas à sua prazerosa convivência com os rios, os córregos, as árvores e com a boniteza das cores e dos cantares dos pássaros. A par das alegrias que aquele ambiente multicolorido lhe proporcionava, Paulo fala também de sua experiência da pobreza e da fome, bem como dos castigos da poluição e da morte a que eram submetidas as águas e os peixes da região.

Meu fraternal amigo Sírio, se minha carta não teve a pretensão de rigor científico e filosófico, tenho a certeza de que ela pode significar um motivo para retomarmos nossos diálogos nunca encerrados, mas apenas interrompidos, na caminhada que nos une com as multidões sempre mais numerosas e solidárias, que lutam a favor da vida e de um mundo mais fraterno em nosso planeta Terra.

Um grande abraço do amigo Balduino Antonio Andreola.

Post scriptum:

Em homenagem a você e ao nosso inesquecível mestre Paulo Freire, acrescento a esta minha carta um poema em que expresso este sentimento coletivo de luta em defesa de nossa Mãe-Terra.

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GRITO DE MÃE

Eu sou a Mãe Terra. Cansada de guerra, De ódio e violência, A minha aparência Não é mais aquela Da Mãe grande e bela, Que Deus quis e fez. Pra muitos, em vez De casa e jardim, De mãe até o fim, Sou vil propriedade. No campo ou cidade Vendida ou comprada, A mãe já não sou, E o filho de outrora, Meu dono de agora, Virou gigolô... Com passos incertos, De braços abertos, Tateando no escuro, Meus filhos procuro E os quero devolta, Da mesa em volta, Do ódio esquecidos Na casa reunidos, Sem medo e sem fome Que a muitos consome. Do imenso cansaço Dos longos caminhos, Voltai, meus filhinhos, Ao meu grande abraço. Anseio de novo

O amor de meu povo, Que encontre em mim A casa e o jardim, A mãe que Deus quis Formosa e feliz, A Mãe que Deus fez Pra todos vocês.

Porto Alegre, 3º Fórum Social Mundial, Janeiro/2003. (Assinado):

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