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IMMANUEL KANT E A EDUCAÇÃO MORAL: CUIDAR, DISCIPLINAR E INSTRUIR

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IMMANUEL KANT E A EDUCAÇÃO MORAL: CUIDAR, DISCIPLINAR E INSTRUIR

Tércio Inácio Jung1

Resumo

Kant, no livro Sobre a Pedagogia, apresenta a educação como um processo, que inicia com o cuidado na infância, a disciplina na adolescência e a instrução na juventude e vida adulta: 1. na infância a criança precisa apenas ser cuidada, pois a natureza agirá por conta própria fazendo com que o infante se desenvolva até um determinado ponto, quando será necessário uma intervenção maior do adulto; 2. a segunda etapa é caracterizada pela

disciplina, isto é, se o adolescente ficar a mercê de suas vontades, provavelmente

desenvolverá um caráter vicioso, preocupado apenas em satisfazer seus caprichos egoístas, o que comprometerá o amadurecimento moral, dificultando a vida em sociedade; 3. a terceira etapa é a instrução. Através dessa, Kant quer abarcar o que ele considera como educação positiva, ou seja, enquanto as etapas anteriores tratavam da educação negativa, assim conceituada por tratar da selvageria no homem que precisa ser dominada para que ele progrida até a humanidade, a positiva diz respeito à questão da cultura, isto é, aquilo que deverá ser construído a partir do desenvolvimento da razão. Inclusive, a razão desenvolvida é o pressuposto fundamental para a moralização do homem. Apesar de dedicar poucas páginas ao estágio da disciplina, nota-se claramente sua fundamental importância para passar do cuidado à instrução, ou seja, sem disciplina torna-se muito dificil a moralização das pessoas.

1. Immanuel kant e a educação moral: cuidar, disciplinar e instruir

Kant, no escrito Sobre a Pedagogia, distingue o homem do animal. Enquanto o animal nasce predestinado instintivamente, o homem pode criar seu destino através do uso da razão, que por sua vez, precisa ser desenvolvida.

Segundo Pinheiro, a passagem da animalidade para a humanidade situa-se em nós mesmos, implicando no estabelecimento de princípios bons, disciplinar nossas tentações e,

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sobretudo, desenvolver a razão para que essa atue sobre nossos instintos (PINHEIRO, 2003, p.139); entretanto, Eidam procura deixar claro que a razão não é simplesmente uma substituição do instinto, pois aquela é superior qualitativamente. Através da razão própria ele pode determinar o que é, o que faz de si e o que ainda fará de si, isso evidencia sua posição particular em relação aos outros seres naturais (EIDAM, 2005, p.105).

Um animal é por seu próprio instinto tudo aquilo que pode ser; uma razão exterior a ele tornou por ele antecipadamente todos os cuidados necessários. Mas o homem tem necessidade de sua própria razão [...] e precisa formar por si mesmo o projeto de sua conduta (Kant, 2006, p.12).

“Os animais cumprem o seu destino espontaneamente e sem o saber. O homem, pelo contrário, é obrigado a tentar conseguir o seu fim” (Kant, 2006, p.18). Fim esse que não é a morte ou uma velhice feliz, mas é o fim de toda espécie humana: o desenvolvimento das disposições naturais para alcançar a perfeição da natureza humana.

Na obra Idéias de uma História de um Ponto de Vista Cosmopolita, Kant se propõe a descobrir um propósito da natureza, um fio condutor para a história de um determinado plano da natureza (fim).

A natureza não faz verdadeiramente nada supérfluo e não é perdulária no uso dos meios para atingir seus fins. Tendo dado ao homem a razão e a liberdade da vontade que nela se funda, a natureza forneceu um claro indício de seu propósito quanto à maneira de dotá-lo. Ele não deveria ser guiado pelo instinto, ou ser provido e ensinado pelo conhecimento inato; ele deveria, antes, tirar tudo de si mesmo (KANT, 2004, p.6).

Evidencia-se, pois, a importância e a necessidade da educação no processo de desenvolvimento da razão, já que é através do uso da razão (e não de maneira instintiva) que o homem pode e deve formar o projeto de sua conduta: “O homem não pode se tornar um verdadeiro homem senão pela educação. Ele é aquilo que a educação dele faz” (KANT, 2006, p.15).

No livro Sobre a Pedagogia ele apresenta a educação como um processo, dividindo-a, primeiramente, em cuidado e formação. Esta últimdividindo-a, ainda é separada em disciplina e instrução: “Por educação entende-se o cuidado de sua infância (a conservação, o trato), a disciplina e a instrução com a formação” ( KANT, 2006, p.11).

O cuidado pode ser entendido como a primeira etapa e estágio da educação, na fase inicial da vida, ou seja, enquanto criança (infante), ela requer cuidados: “Por cuidados

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entendem-se as precauções que os pais tomam para impedir que as crianças façam uso nocivo de suas forças” ( KANT, 2006, p.11). O cuidado com a criança faz parte do desenvolvimento natural e acontece basicamente, no primeiro estágio da vida humana.

A segunda etapa da educação compreende a formação (disciplina e instrução). Pode-se afirmar que é a parte mais intensa no processo educativo pelo fato de tratar da disciplina e da instrução, e por incluir a moralização, fim de todo processo educativo. O segundo “estágio” refere-se à disciplina. Esse período é muito valorizado e de vital importância para o estágio seguinte, que é a instrução. Inclusive, a falta de disciplina dificulta e até compromete a instrução: “A falta de disciplina é um mal pior que a falta de cultura/instrução, pois esta pode ser remediada mais tarde, ao passo que não se pode abolir o estado selvagem e corrigir um defeito de disciplina” ( KANT, 2006, p.16). A instrução para ser bem sucedida, necessita do cuidado e da disciplina enquanto estágios anteriores, ou melhor, o cuidado seria como que o projeto de uma obra/construção, a disciplina seria os fundamentos e a instrução seria a obra em si, que será tanto mais perfeita e forte, quanto mais sério e bem feito for o projeto e os fundamentos.

Apesar de dedicar poucas páginas à disciplina, é possível notar sua função intermediadora entre o cuidado (princípio e base) e a instrução, que é o fim do processo, ou seja, a moralização. Não seria muito produtivo semear algo sem antes preparar o terreno. Disciplinar significa, para Kant, transformar a animalidade no homem em humanidade, ou seja, o homem nasce em estado bruto e precisa ser polido para que a humanidade nele possa sobrepor-se aos seus instintos animais.

Um animal é por seu próprio instinto tudo aquilo que pode ser; uma razão exterior a ele tornou por ele antecipadamente todos os cuidados necessários. Mas o homem tem necessidade de sua própria razão [...] e precisa formar por si mesmo o projeto de sua conduta (KANT, 2006, p.12).

Como o homem nasce em estado bruto, ele não pode de imediato construir o seu destino ou, parafraseando Kant, formar por si mesmo o projeto de sua conduta ( KANT, 2006, p.12). Primeiro ele precisa desenvolver a razão, com a ajuda dos outros, para depois extrair da própria espécie humana todas as qualidades naturais que pertencem à humanidade e avançar em direção da perfeição da natureza humana, através do desenvolvimento - pela educação - de todas as disposições naturais no homem.

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Incansavelmente, Kant retoma e reforça a idéia de desenvolvimento, que subentende um processo a ser seguido para que de fato possa haver um crescimento e amadurecimento do ser humano. Portanto, torna-se vital ao homem o desenvolvimento de sua razão, pois será através dela que se diferenciará dos animais e poderá construir seu projeto de vida através de opções e decisões racionais.

Na Metafísica dos Costumes, Kant enfatiza que é dever do homem progredir sempre mais, desde a incultura, própria da natureza (da animalidade), até a humanidade, que é a única pela qual é capaz de se propor fins: “suprir sua ignorância pela instrução e corrigir seus erros; e isto não apenas lhe é aconselhado pela razão tecnicamente prática, em vista de seus outros projetos (da habilidade), mas é absolutamente ordenado pela razão moralmente prática, e converte este fim em um dever seu para ser digno da humanidade que habita nele” (PINHEIRO, 2003, p.143).

A disciplina é a parte negativa da educação, conforme Kant, no sentido em que seu primeiro emprego é evitar que maus hábitos sejam desenvolvidos como opostos à formação do pensar. Através da disciplina, a tendência a selvageria do ser humano é mantida sob controle até não mais prejudicar o agir moral.

Inclusive, o homem precisa usar da razão para dominar sua selvageria. Selvageria que consiste na independência de qualquer lei, ou seja, como o homem precisa de leis para viver em sociedade, também precisa habituar-se a elas, o que não impede o questionamento e/ou até sua mudança para melhor, mas jamais o liberta da observância delas enquanto membro da dita sociedade.

A disciplina que submete o homem às leis da humanidade e começa a fazê-lo sentir a força das próprias leis. Mas isso deve acontecer bem cedo. Assim, as crianças são mandadas cedo à escola, não para que aí aprendam alguma coisa, mas para que aí se acostumem a ficar sentadas tranqüilamente e a obedecer pontualmente àquilo que lhes é mandado, a fim de que no futuro elas não sigam de fato imediatamente cada um de seus caprichos (KANT, 2006, p.13).

E, com certeza, depois de disciplinado, para não seguir todos os seus caprichos e habituado as regras, também se tornará mais fácil a educação para lei que está dentro dele, de cada ser humano, ou seja, o que Kant chama de lei moral, desenvolvida, sobretudo, no livro da Fundamentação da Metafísica dos Costumes e da Crítica da Razão Prática.

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As leis morais têm que ter um fundamento. O único fundamento que sobra para elas é a razão. Esta não mora nem no céu nem na terra. Justificando esta carência de solo da razão, ele descartou-lhe todo fundamento externo: o mundo, a natureza, o sentido interno possuem tão pouca autoridade moral quanto Deus. Por esse motivo a ética de Kant não pode ter outra base que a autonomia, demonstrada na Critica da Razão Prática a partir da razão (KANT, 2003, p.XIV).

Pinheiro afirma que para Kant a coação dos deveres e a severidade das ordens servem para formar um caráter na criança, indicando a importância do respeito à Lei. Essa coação, em um primeiro momento, é exterior a criança, no caso, e deve ser aceita passivamente, porém, todo trabalho da educação consiste em torná-la uma coação interior, ou seja, transformar a natureza numa consciência pura, orientada para a ação por dever, ou seja, para o agir moral (PINHEIRO, 2007, p.30).

Conforme Kant, o homem está naturalmente inclinado para a liberdade, o que pode ser muito prejudicial quando ele se acostuma a ela e acaba querendo satisfazer todos os seus caprichos, seguindo geralmente, suas inclinações animais e/ou seu instinto. Por isso, é preciso recorrer cedo à disciplina para que aprenda a submeter sua vontade aos preceitos da razão. “Quando se deixou o homem seguir plenamente a sua vontade durante toda a juventude e não se lhe resistiu em nada, ele conserva uma certa selvageria por toda a vida” (KANT, 2006, p.14).

Um dos maiores problemas da educação é o poder de conciliar a submissão ao constrangimento das leis com o exercício da liberdade [...] É preciso habituar o educando a suportar que a sua liberdade seja submetida ao constrangimento de outrem e que, ao mesmo tempo, dirija corretamente a sua liberdade. Sem essa condição, não haverá nele senão algo mecânico; e o homem, terminada a sua educação, não saberá usar sua liberdade (KANT, 2006, p.32).

Mas a disciplina também não é escravização, isto é, “não tratar as crianças como escravos, mas sim que faça que elas sintam sempre a sua liberdade, mas de modo a não ofender a dos demais” ( KANT, 2006, p.50). Nem escravidão nem libertinagem, mas consciência das próprias ações, sempre inseridas em um contexto social. “É necessário que ele sinta logo a inevitável resistência da sociedade, para que aprenda a conhecer o quanto é difícil bastar-se a si mesmo, tolerar as privações e adquirir o que é necessário para tornar-se independente” ( KANT, 2006, p.33).

Cabe à educação buscar, sobretudo, pela disciplina, o meio para formar e possibilitar à criança a compreensão das regras e prescrições a serem seguidas, pois desse aprendizado

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surgirá a capacidade de o homem aceitar suas próprias leis autônomas e também o conjunto de leis do Estado (PINHEIRO, 2007, p.77).

Torna-se fácil dar uma disciplina aos movimentos da alma, mas é necessário evitar uma atitude servil, que é contrária à dignidade do homem, dignidade que deve ser respeitada também na criança. Kant proíbe os castigos violentos; corre-se o risco da criança fechar-se em si mesma num estado psíquico de rebeldia ao ouvir o mais sábio conselho que possa futuramente ser-lhe dirigido, ou então, abandonar-se a uma hipócrita observância exterior de todo conselho e preceito, mas no íntimo, tem outro desejo que manifestará numa ocasião propícia, impunemente ao exterior.

Enfim, a disciplina prepara o terreno para a parte positiva da educação que é a instrução ou a cultura. Kant novamente recorre a termos diversos para a questão da educação positiva (ou prática, ou moral), ou seja, àquela “que diz respeito à construção do homem, para que possa viver como um ser livre [...] educação de um ser livre, o qual pode bastar-se a si mesmo, constituir-se membro da sociedade e ter por si mesmo um valor intrínseco” ( KANT, 2006, p.35).

Kant afirma que vive em uma época de disciplina, de cultura e civilização, mas que tal época não é ainda a da verdadeira moralidade: “nós vivemos em um tempo de treinamento disciplinar, cultura e civilização, mas de modo algum em um tempo de moralização” ( KANT, 2006, p.28).

Mas, por que a humanidade ainda não está moralizada? A moralização é, para Kant, a última etapa na educação do homem: “Deve, por fim, cuidar da moralização. Na verdade, não basta que o homem seja capaz de toda sorte de fins; convém também que ele consiga a disposição de somente escolher fins bons” ( KANT, 2006, p.26). Bons são aqueles fins aprovados necessariamente por todos e que podem ser, ao mesmo tempo, os fins de cada um.

A pessoa precisa, então, adquirir certa disposição para que possa agir moralmente. Uma disposição distingue-se de um hábito, no sentido de que ela precisa envolver uma deliberação consciente, ou seja, racional acerca das máximas da ação e não ser meramente um reflexo instintivo do comportamento.

A pessoa moralizada adquire uma disposição muito enraizada para escolher somente os fins bons, fins que precisam ser caracterizados pela aprovação de todos. A pessoa deve ser educada para escolher somente os fins que podem ser os fins simultâneos de todos. O assim escolher deve tornar-se um modo de pensar arraigado, inerente, como que uma segunda natureza, muito mais do que um processo de decisão complicado, que pode ser utilizado em

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tempos de dúvidas e incertezas. Isso porque, para Kant, “a cultura moral deve-se fundar sobre máximas, não sobre a disciplina. Esta impede os defeitos; aquelas formam a maneira de pensar. É preciso proceder de tal modo que a criança se acostume a agir segundo máximas” ( KANT, 2006, p.75).

Na educação moral kantiana, é preciso cuidar para que o aluno aja segundo suas próprias máximas, e não por simples hábito, e que não faça simplesmente o bem, mas o faça porque é bem em si: “... não é suficiente treinar as crianças; urge que aprendam a pensar. Devem-se observar os princípios dos quais todas as ações derivam” (KANT, 2006, p.27). Com efeito, todo o valor moral das ações reside nas máximas do bem.

Já para Eidam, educar é muito mais que transmissão de saber. A educação tem um sentido político: “[...] tomam como tarefa sua a produção de uma consciência correta, e isso significa a formação e a promoção da capacidade de cada indivíduo à decisão consciente e autônoma, pois uma democracia que não quer apenas funcionar, senão que deve trabalhar a favor de seu próprio conceito... (EIDAM, 2005, p.112)

De acordo com Kant, o primeiro esforço da cultura moral é lançar os fundamentos do caráter. Para ele, o caráter consiste no hábito de agir segundo certas máximas. Estas são, em princípio, as da escola e, mais tarde, as da humanidade.

Quando se quer formar o caráter das crianças, é preciso mostrar-lhes em todas as coisas sob certo plano, certas leis, as quais devem seguir fielmente. Assim, por exemplo, se lhes é estabelecida uma hora para dormir, para trabalhar, para brincar, tais horários não devem ser dilatados ou abreviados. Isto tudo porque Kant acredita na educação moral como fomentadora da confiabilidade entre os homens. Para ele, “os homens que não se propuseram certas regras não podem inspirar confiança; não se sabe como se comportar com eles, e não se pode saber ao certo se se tem vez com eles” ( KANT, 2006, p.77).

Kant questiona a questão de querer apresentar as coisas às crianças de tal modo que as cumpram por inclinação, o que até pode ser bom em alguns casos. Entretanto, ele adverte: muitas coisas devem ser-lhes prescritas como dever, lição que inicia na adolescência, para quando ingressar no mundo adulto (emprego, impostos, negócios...), não se perder e acabar revoltando-se contra tudo e todos.

Ele divide a educação em cultura livre e cultura escolástica, ou seja, a primeira seria mais um divertimento enquanto a escolástica uma obrigação por implicar em trabalho, empenho, dedicação. Enquanto o divertimento é agradável em si, o trabalho só se torna agradável conforme o fim proposto, ou seja, em si ele é desagradável e por isso tão evitado.

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Nesse sentido Kant pergunta, se não seria a Escola o melhor espaço para cultivar essa tendência ao trabalho e as questões sérias? Certamente, aqui, ele não está se referindo aos infantes, que precisam apenas ser cuidados, mas aos adolescentes e jovens. E, nesse sentido, precisamos concordar que nossa educação escolar não avançou, pelo contrário, para não dizer que regrediu ou se perdeu, vamos dizer que ela estacionou perante a cultura escolástica kantiana.

Conforme o filósofo, querer que as crianças aprendam tudo por diversão pode ser muito prejudicial, pois também devem ser habituadas desde cedo a ocupações sérias. Ela deve brincar e se divertir, mas também deve aprender a trabalhar, afinal, um dia deverá ingressar na vida em sociedade. Kant é incisivo nesse aspecto e afirma que é muito prejudicial querer acostumar a criança a considerar tudo como um divertimento. “O gosto pela facilidade é para o homem o mais funesto dos males da vida. Por isso é sobremaneira importante que as crianças aprendam a trabalhar desde cedo [...] No que diz respeito aos prazeres, não devemos torná-las ávidas nem deixar a elas a escolha” ( KANT, 2006, p.72).

É preciso dirigir a vontade dos jovens de modo que aprendam a ceder e não querer dobrar sua vontade. Enquanto infante, a criança deve obedecer cegamente e jamais se deve ceder aos gritos dela quando pretende alguma coisa, exceto quando se achar alguma razão importante em contrário, como ter-se machucado. Se elas conseguem tudo através de gritos podem tornar-se muito más e se obtém tudo com súplicas podem tornar-se suscetíveis no futuro, segundo Kant.

Ele está certo, entretanto, que o entendimento pleno do indivíduo sobre o agir por dever somente será possível com o passar dos anos. E, sobre isso, Kant conclui que a obediência do adolescente é diferente da obediência da criança. Aquela consiste na submissão às regras do dever e, fazer algo por dever, equivale a obedecer a razão.

As crianças, mesmo não tendo ainda o conceito abstrato do dever, da obrigação, da conduta boa ou má, entendem que há uma lei do dever e que esta não deve ser determinada pelo prazer, pelo útil ou semelhante, mas por algo universal que não se guia conforme os caprichos humanos. (KANT, 2006, p.97).

Falar a respeito do dever às crianças é um trabalho incerto, segundo Kant. Elas geralmente, concebem o dever como algo cuja transgressão acarreta castigo. A criança poderia ser guiada apenas por seus instintos, mas na medida em que cresce vai necessitando da idéia do dever. Nesse sentido, torna-se fundamental o estágio da disciplina , ou seja, para formar um bom caráter, é preciso antes domar as paixões, o que já inicia com a disciplina. No

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que toca às tendências, os homens não devem deixá-las se tornar paixões, antes devem aprender a privar-se um pouco quando algo lhes é negado. Para se aprender a se privar de alguma coisa é necessária a coragem e certa inclinação. É preciso acostumar-se às recusas e à resistência.

Mas não é só com privações e disciplina que se forma um bom caráter. Kant assegura que este é formado também na sociabilidade. O educando deve manter relações de amizade e não viver sempre isolado. Esse é importante no que se refere em conciliar a submissão ao constrangimento das leis com o exercício da liberdade, isto é, que perceba a própria liberdade situada num contexto social, que a restringe para o bem de todos. “É necessário que ele sinta logo a inevitável resistência da sociedade, para que aprenda a conhecer o quanto é difícil bastar-se a si mesmo, tolerar as privações e adquirir o que é necessário para tornar-se independente” ( KANT, 2006, p.33).

Há em nossa alma algo que chamamos de interesse por nós próprios, por aqueles que conosco cresceram e pelo bem universal ( KANT, 2006, p.106). Enfim, com a educação moral é preciso fazer os jovens conhecerem tais interesses para que eles possam por eles se animar, com eles se estimular. Eles devem alegrar-se pelo bem geral mesmo que não seja vantajoso para si próprio, nem mesmo para a pátria, o que é considerado por Kant como sentimento cosmopolita.

Para que possamos solidificar firmemente o caráter das crianças, convém ensinar-lhes, através de exemplos e com regras, os deveres a cumprir. Esses deveres são aqueles do cotidiano, que as crianças têm em relação a si mesmas e aos demais ( KANT, 2006, p.89).

Os deveres para consigo mesmo consistem em conservar uma certa dignidade interior, a qual faz do homem a criatura mais nobre de todas; é seu dever não renegar em sua própria pessoa essa dignidade da natureza. Ora, renegamos esta dignidade quando, por exemplo, nos entregamos à embriaguez, ou a vícios contra a natureza, ou a qualquer sorte de intemperança.

A educação moral kantiana prevê que o dever para consigo mesmo consiste em que o homem preserve a dignidade humana em sua própria pessoa. O homem quando tem diante dos olhos a idéia de humanidade, critica a si mesmo. Nessa idéia ele encontra um modelo, com o qual compara a si mesmo.

O processo educativo kantiano deve visar sempre a vida em sociedade. Quanto maior a maturidade moral de cada indivíduo, melhor será a sociedade. Isso não cai do céu, nem é inspiração divina, mas deve ser tirado de dentro da pessoa. Para tal, não basta treinamento, ou querer começar na vida adulta, pelo contrário, Kant deixou claro que é preciso iniciar já na

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infância com o cuidado, depois, disciplina na adolescência e início da juventude, e, por fim, torna-se viável a instrução/esclarecimento na juventude e na vida adulta, quando a moralidade encontra o terreno preparado para lançar suas raízes profundas.

Parafraseando Kant: a falta de disciplina é a mais difícil de remediar no futuro, ela é mais difícil que superar a falta de instrução/cultura. Aqui, ele referia-se a possibilidade de querer reeducar moralmente um adulto, ou seja, uma vez que ele não passou por todo processo kantiano (cuidado, disciplina e instrução) será muito difícil refazer essas etapas mais tarde, ainda mais no que se refere à disciplina, pois o indivíduo já terá um caráter vicioso internalizado. Entretanto, também não ajudará querer deixar de lado esse problema e centrar a reeducação moral só na etapa da instrução. Tal seria como construir uma casa sem fazer a base, os fundamentos. Seguindo a analogia, poder-se-ia dizer que o processo educativo kantiano assemelha-se a construção de uma casa: o projeto equivale a etapa do cuidado, os fundamentos representam a questão da disciplina e a edificação propriamente dita seria a etapa da instrução.

Na etapa da disciplina, também temos questões intransferíveis e de enorme responsabilidade dos pais, como as primeiras relações afetivas com eles, ou seja, segundo Kant, dependerá da atitude dos pais perante o choro ou outras tentativas de dominação da criança, o início da formação do caráter, algo que poderá condicionar toda vida futura.

Pressupondo que a disciplina implica no domínio dos instintos e da selvageria presentes em cada ser humano, e que se refere mais ao período da adolescência, é notável perceber que nessa fase da vida, a maioria está em Escolas, de forma que a Escola pode influenciar muito sobre essa etapa. Não se deve esquecer, no entanto, que os pais e várias outras pessoas também influenciam na construção do caráter, que se destaca nesse período do desenvolvimento e é tão importante para a moralização quanto a razão segundo Kant.

O ser humano precisa progredir da animalidade à humanidade e para tanto a etapa da disciplina é vital. O desenvolvimento implica progresso, na medida em que busca a humanidade/maturidade ou, se não for assim direcionado, automaticamente irá em outra direção, isto é, manterá o ser humano na animalidade/imaturidade e, por sua vez, se radicará – criará raízes – no caráter da pessoa, o que, segundo Kant, será mais difícil de reverter do que a falta da instrução/cultura.

Mas, a questão da disciplina é geralmente apenas tratada enquanto necessidade de bom comportamento, o que não está errado, mas deveria ser tratada com mais seriedade e sistematicidade, dando-lhe a devida importância.

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Inúmeras vezes ouve-se falar que a criançada de hoje não tem mais limites e que os pais e os professores perderam a autoridade para exigir, ao menos, aquele bom comportamento de antes. Até as instituições repressoras do governo (judiciário, policias, prisões etc.) são diariamente questionadas quanto a sua competência e autoridade. E sem a autoridade a disciplina também fica limitada, pois, enquanto o indivíduo não tiver maturidade para se controlar (de dentro para fora), isso precisa ocorrer de forma inversa, isto é, ser imposto de fora para dentro. O problema é que essa dependência da autoridade externa durará até que a autoridade interior (a razão esclarecida) passe a guiar a pessoa. Porém, segundo Kant, quanto mais tarde se investir na disciplina mais difícil será seu desenvolvimento, chegando em alguns casos, a não ser mais possível.

É razoável supor que no futuro a sociedade possa enfrentar graves problemas, afinal, as crianças, adolescentes e jovens indisciplinados de hoje estarão no auge da vida amanhã. E a falta de autoridade interior, sobre si mesmo, acarretará a necessidade de muita autoridade externa (polícias, cadeias, câmeras filmadoras e/ou vigilância contínua e em todos os lugares), tudo necessário para tentar conter aquele ser que não se controla suficientemente para favorecer a constituição de uma sociedade moralizada, logo, verdadeiramente cosmopolita.

Referência

EIDAM, Heinz. Educação e Maioridade em Kant e Adorno. In: DALBOSCO, Claudio e KANT, Immanuel. Sobre a Pedagogia. Tradução de Francisco Cock Fontanella. 5ª ed. Piracicaba: Editora UNIMEP, 2006

_______. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2005;

_______. Idéia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004;

_______. Crítica da Razão Prática. Trad. Valério Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2003; ______. Resposta à Pergunta: o que é Esclarecimento? In: Textos seletos. Petrópolis: Vozes, 1985;

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PINHEIRO, Celso de Moraes. A Finalidade Ético-Política na Formação do Homem Ideal

em Kant. Tese de doutorado. PUCRS, 2003;

ROUSSEAU, Jean-Jaques. Emílio, ou da Educação; tradução Roberto Leal Ferreira. – 3 edição. – São Paulo: Martins Fontes, 2004.

Referências

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