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A CONSERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL, ENTRE VALOR DE USO E VALOR ECONÔMICO

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A CONSERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL,

ENTRE VALOR DE USO E VALOR ECONÔMICO

Cipriano, Dulcilei de Souza; pós-graduanda em Arquitetura e Urbanismo; Universidade de São Paulo; dulci.cipriano@usp.br

RESUMO

O presente trabalho busca compreender a relação do valor de uso e do valor econômico na conservação do patrimônio cultural e, para entendimento das questões relativas ao assunto, será necessário recorrer as teorias que abordam os valores aqui em estudo nos diversos campos relacionados à questão da preservação do patrimônio cultural.

O estudo aqui apresentado se faz necessário visto que muitas são as ressalvas por parte da população no que concerne à eleição de um imóvel como patrimônio cultural, posto que este terá seu direito de propriedade limitado e com isso, segundo atestam, será desvalorizado economicamente. Pretendemos ainda, com esse estudo, contribuir para o debate acerca da questão do uso no patrimônio cultural, posto que comumente um bem de interesse histórico tem seu uso alterado, quando não, prejudicado, como pressuposto para sua conservação.

PALAVRAS CHAVE: patrimônio; valor; conservação. 1.INTRODUÇÃO

A conservação de edifícios tombados é atualmente um tema recorrente no âmbito das discussões sobre patrimônio cultural. A preocupação com o estado físico do imóvel após sua eleição a patrimônio é um dos grandes entraves, no Brasil, para a aceitação do instrumento do tombamento pela população. E, considerando o fato do Estado disponibilizar ínfimos incentivos fiscais para auxiliar o proprietário estes optam pelo abandono do edifício para que este venha a ruir, apesar deste ser um ato punível com multa pela legislação, e assim disponibilizar o terreno para uma nova construção. Conservar antes de restaurar, pregavam e pregam grandes teóricos do campo da preservação. Contudo, conservar não significa, neste caso, armazenar, como se faz

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com um produto ao qual não se deseja que pereça, colocando-o no congelador. Aqui, conservar é, antes de mais nada, manter o bem em bom estado postergando a necessidade de se restaurar, pois o restauro demanda técnica apurada e mão-de-obra especializada o que se traduz, no sistema econômico atual, em custos elevados. E são estes custos que os proprietários de imóveis tombados querem evitar ao solicitarem que seus bens não sejam eleitos a patrimônio cultural.

A manutenção do uso em um imóvel tombado é uma forma de conservá-lo, primeiro porque a presença constante de pessoas contribui para a averiguação cotidiana das características físicas do bem e segundo, por contribuir com a valorização deste bem perante a sociedade pois, a visitação, seja ela feita por parentes, amigos ou clientes pode vir a cooperar com a criação de uma relação de pertencimento. Fato este que traz para o bem cultural o benefício da proteção.

Assim, esta produção textual tem como objetivo atestar a importância do valor de uso e do valor econômico para a conservação dos bens culturais. A partir da análise de textos e teorias que permeiam este assunto buscaremos demonstrar a importância destes dois valores quando da preservação do patrimônio cultural e, também, como ambos ao longo do tempo, tem sido negligenciados tanto por preconceito quanto por falta de conhecimento acerca de seus potenciais.

O presente artigo está dividido em três partes, sendo que na primeira são apresentadas algumas teorias que contribuíram para a área de estudo dos valores e como estas influenciaram os teóricos no campo do restauro e, também, a eleição de um bem a patrimônio cultural. Já a segunda parte do artigo busca demonstrar a importância do valor de uso e do valor econômico para a conservação do patrimônio cultural. E para finalizar procuramos afirmar a necessidade de discutir a conservação dos bens tombados sob o ângulo destes dois valores, atestando que ambos estão intrínsecos a preservação do patrimônio cultural.

2.A QUESTÃO DO VALOR E O PATRIMÔNIO CULTURAL

Os bens materiais e imateriais que constituem nosso patrimônio histórico e cultural, só tem razão de ser quando atribuímos a eles algum valor. Pois é pelo valor que nossa sociedade seleciona tais bens e os investe de uma significação especial. E, como o valor não é imanente aos bens, mas sim instituído a eles pelos homens em sociedade, para podermos entender o universo do patrimônio histórico e cultural, devemos antes de tudo, compreender as raízes do valor. (MENEZES, 1999)

Embora o termo “valor” tenha surgido no contexto das ciências econômicas com Adam Smith (1723-1790), denotando algo que é valioso e que se pode usar ou trocar, é Emannuel Kant (1724-1804) quem trabalha esse deslocamento da ideia de valor para o domínio da consciência pessoal e individual, onde os valores, caracterizados por forte caráter moral, são vazios de conteúdo, dependendo apenas de juízos de valor emitidos pela consciência e não pela apresentação da realidade. (PEDRO, 2014) Emannuel Kant estudou a questão do valor no âmbito das ciências humanas porém essa ainda necessitava de um enfoque mais objetivo, o qual só teve êxito com os

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estudos dos filósofos neokantianos, conhecidos assim por realizarem uma releitura da obra de Kant trazendo-a para a atualidade deles, responsáveis por buscar uma definição que reconhecesse os valores relacionando-os aos âmbitos da lógica e da ciência na tentativa de construir uma ponte entre o abstracionismo das ciências exatas e o relativismo sem rigor metodológico, caminhando para a construção da axiologia, ciência atualmente responsável pelo estudo dos valores. (WU, 2010)

Os neokantianos alemães dividiam-se em duas escolas: a escola de Baden, marcada pela tentativa de definir a história a partir de uma relação lógico-formal e, a escola de Marburg, cujos estudos filosóficos embasavam-se na matemática e nas ciências naturais para formular uma teoria do conhecimento. Baden teve como principais expoentes os filósofos Wilhelm Windelband (1848 – 1915) e Heinrich Rickert (1863 – 1936), que, em linhas gerais, declararam a valoração como responsável por conferir sentido histórico a um fato inicialmente singular, ou seja, a história existe por causa dos valores a ela atribuídos. (WU, 2010)

O pensamento neokantiano teve adeptos em vasta extensão da Europa e, a Áustria, país de origem de Alois Riegl (1858 – 1905) também foi um destes países. Essa linha de pensamento esteve presente no meio intelectual e cultural de Riegl, tendo este, em um de seus mais famosos livros, Spätrömische Kunstindustrie (Áustria, 1901), referenciado um artigo escrito por Carl Siegel[RY1]1, um dos mais representativos seguidores desta escola no

país. (EFAL, 2010)

É possível encontrarmos a influência de Siegel na obra de Riegl quando este formula o conceito de Kunstwollen, responsável por determinar o impulso humano inato de construir arte. Para Siegel espaço e tempo estariam radicalmente entrelaçados, como uniões objetivas da realidade e isso para Riegl se traduziria através da interrelação entre a intencionalidade estética no momento de criação da obra e a sua apreensão no presente histórico, ou seja, da tensão entre o momento passado e o presente é que surgiriam os valores desenvolvidos para o momento histórico. (EFAL, 2010)

Alois Riegl em sua obra “O Culto Moderno dos Monumentos”2, utiliza-se das ideias

acima expostas para formular um sistema de valores relativo aos monumentos históricos, onde enfatiza que somos nós, sujeitos do presente, quem fazemos a valorização de determinado momento histórico em detrimento de outro, atribuindo ao passado nosso juízo de valor formulado no momento atual. (RIEGL, 2008)

Este sistema de valores elaborado por Riegl considerava as diversas maneiras de recepção e percepção dos edifícios ponderando o momento histórico em que estavam inseridos. São duas as categorias de valores que estruturam o pensamento riegliano: o valor de rememoração, ligado à memória, e o valor de contemporaneidade, relacionado ao presente. (MAZIVIERO, 2015)

1 SIEGEL, Carl. Alois Riehl: ein Beitrag zur Geschichte des Neukantianismus. California: Leuschner & Lubensky, 1932.

2 Tradução de Der moderne Denkmalkultus. (O culto moderno dos monumentos). Neste trabalho será utilizada a tradução espanhola: RIEGL, Aloïs. El culto moderno a los monumentos. Tradução Ana Pérez López. Espanha, La Balsa de La Medusa, 1987. Todas as citações aqui apresentadas foram traduzidas do original pela própria autora.

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Através dos diferentes tipos de valor atribuídos aos monumentos históricos3 Riegl

demonstra que os meios para sua preservação dependem das variadas formas de percepção e recepção em cada momento e contexto específicos. Impondo ao sujeito da preservação a necessidade de fazer escolhas, as quais devem ser, necessariamente, baseadas num juízo crítico.

Cesare Brandi (1906 – 1988) outro importante teórico no campo do restauro, também foi influenciado por derivações do pensamento neokantiano. É possível perceber isso ao ler trechos de sua obra como este:

O reconhecimento da obra de arte é duplamente singular, seja pelo fato de dever ser efetuado toda vez por um indivíduo singular, seja por não poder ser motivado de outra forma a não ser pelo reconhecimento que o indivíduo singular faz dele. (BRANDI, 2013 apud KUHL, 2005, p.24)

Ou seja, o sujeito externo é o responsável por elevar o status de algo inicialmente comum a extraordinário, conferindo-lhe um sentido histórico, agregando-lhe valor. Para Brandi esse reconhecimento encontra-se também na intervenção de restauro em uma obra, pois aquela só é iniciada quando esta é reconhecida como obra de arte, sendo este procedimento guiado através de um juízo crítico de valor. Assim o autor deixa implícito que a restauração é um ato crítico-cultural do presente e, portanto, condicionado pelos valores do presente. (BRANDI, 2013)

Portanto vimos que, a atribuição de valor está intrinsicamente ligada a eleição do bem a patrimônio histórico e cultural, assim como para sua posterior conservação. E com isso, entendemos que qualquer assunto referente ao patrimônio deverá conter em seu bojo a discussão a respeito dos valores a ele atribuídos. Assim, [RY2]se a atribuição de valor depende de nós, sujeitos do presente, a discussão a respeito do valor de uso e do valor econômico do patrimônio histórico, a qual nos dispomos a realizar neste estudo, não vem a ser fruto do interesse de determinado sistema político-econômico, mas sim o reconhecimento do patrimônio nos assuntos da contemporaneidade.

3.VALOR DE USO X VALOR ECONÔMICO

Em 1789, na Revolução Francesa, como um dos primeiros atos jurídicos da Constituinte, os bens do clero, seguidos pelos bens dos emigrados e da Coroa, são colocados à disposição da nação, e os responsáveis pelo ato adotam, para designá-los e diferenciá-los, a metáfora espólio, o status das antiguidades nacionais são transformados[RY3]. Integrados agora aos bens patrimoniais nacionais, estes se metamorfoseiam em valores de troca, adquirindo assim valor econômico. (CHOAY, 2001)

Os monumentos nacionais passam assim a ser chamados de patrimônio, conceito forjado para designar os bens pertencentes à nação, trazendo consigo a forte

3 Em linhas gerais, Alois Riegl define que o monumento histórico é uma construção criada a posteriori, não-intencional, dependente dos olhares do amante de arte e do historiador para se elevarem a tal categoria.

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conotação que a palavra em si carrega. Patrimônio no sentido de algo herdado, um bem com valor de moeda. As antigas manufaturas, cujo valor é o econômico, deveriam ser preservadas pois geravam lucro à nação. Existia ainda, tendo sido iniciado àquela época na França, o turismo com enfoque nos monumentos, o que hoje comumente chamamos de turismo cultural, trazendo consigo os visitantes estrangeiros que contribuíam para a arrecadação monetária. (POULOT,2006)

A valorização econômica do patrimônio à época da Revolução Francesa teve como função arrecadar divisas para financiar a insurreição. Teve também papel atuante no que se refere à conservação dos bens, pois os que suscitavam maior poder de arrecadação eram mantidos intactos, o valor artístico da obra também era levado em consideração. Contudo um não estava associado ao outro, no que se tratava de espólios corporificados através de bens imóveis materiais, como no caso supracitado das manufaturas. (CHOAY, 2001)

O advento da era industrial como processo de transformação, e também de degradação do meio ambiente, contribuiu para uma inversão dos valores atribuídos aos monumentos históricos. A partir de 1820, temos a afirmação de uma nova mentalidade, responsável também pelo rompimento com a política da Revolução Francesa. Ao final do século XIX, podemos observar um grande questionamento, principalmente na Itália e na Áustria, dos valores e das práticas referentes ao monumento. Contudo este quadro teórico, e prático, permanece o mesmo até 1964, ano da assinatura da Carta internacional sobre a conservação e a restauração dos monumentos e dos sítios – Carta de Veneza. (CHOAY, 2001)

Tanto na França quanto na Grã-Bretanha, a era industrial contribuiu para a consagração do monumento. Contudo estes dois países tomaram rumos diferentes no que se refere aos valores atribuídos aos monumentos. Enquanto na França os valores do monumento eram determinados pela ideia de progresso, a evolução histórica e a perspectiva de futuro, a Inglaterra se manteria ligada às suas tradições, voltada para o passado, tendo o monumento histórico significados diversos e com mais influência

sobre o presente4. (CHOAY, 2001)

Em sua maioria, os franceses se interessavam pelo valor nacional e histórico, e tendiam

a promover uma concepção museológica5 deles, concebendo o monumento como

um precioso objeto concreto que merecia ser preservado, porém, julgando-o condenado pela ação do tempo com o passar dos anos. Já para grande parte dos estudiosos ingleses os monumentos do passado eram necessários à vida no presente, não como ornamento, nem objeto museológico, mas sim objetos que deveriam fazer parte do cotidiano.

Em oposição a esta visão inglesa, do monumento como parte do cotidiano, obtendo assim um valor terreno “de uso”6, os franceses criticavam determinadas reutilizações,

tendendo a favorecer a museificação como forma de proteção. Criticando o uso

4 “Para eles, os monumentos do passado são necessários à vida do presente...” (CHOAY, 2001. p.139)

5 “Confrontados com a industrialização, os franceses se interessam essencialmente pelo valor nacional e histórico dos edifícios antigos e tendem a promover uma concepção museológica deles.” (CHOAY, 2001. p.138)

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através do argumento de que este é um tipo de vandalismo que arruína o monumento lentamente. (CHOAY, 2001)

Há exemplos tanto na França quanto na Inglaterra a respeito de posturas conflitantes no que se refere ao valor de uso atribuído aos monumentos. Vitet (1803-1873), o primeiro inspetor dos monumentos históricos franceses, era a favor da museografia e elogiava os ingleses por deixarem suas igrejas vazias[RY4], porém na Inglaterra essa visão do monumento era compartilhada por uma minoria. Já Antoine Chrysostome, conhecido como Quatremère de Quincy (1755-1849) opunha-se vigorosamente a esta postura e à transformação do ambiente em monumento histórico.

A defesa acerca da obsolescência do monumento como forma de preservação vem de encontro a uma vontade de manutenção de todas as suas características e também, atualmente, de salvaguardar o bem de uma exploração econômica no sentido da espetacularização da cultura. Pois pensamos que os preservacionistas, como Vitet, entendiam que o valor de uso contribuiria para a descaracterização do objeto (se pensarmos num edifício), afinal o uso varia conforme os padrões de uma época e as adaptações necessárias a alteração e manutenção do uso não seriam, posteriormente, facilmente restauradas. Com isso o bem preservado perderia suas qualidades artísticas e até mesmo, em alguns casos, históricas ficando assim desvalorizado perante o rol dos monumentos.

Ainda sobre a ressalva em cultivar o valor de uso do patrimônio cultural, essa se fundamentaria no receio da mistura entre a natureza simbólica do bem e a questão econômica que o permeia. Contudo pensamos que, no âmbito da preservação e também conservação do patrimônio, estas duas dimensões sempre estarão presentes , porém a forma de utilização deste bem é que vai demonstrar se este se tornou uma mercadoria ou não.

No final do século XIX, Karl Marx, em seu livro O Capital, analisando a mercadoria7

afirma que, a utilidade desta a transforma num valor de uso, sendo esta utilidade determinada pelas propriedades inerentes à mercadoria e não existindo sem a mesma. Expõe ainda que o valor de uso só se realiza pelo uso ou consumo. Sendo assim, a utilidade constitui o valor de uso, vinculando-se como tal às propriedades físicas do objeto.

No capitalismo, o valor de uso é uma característica da mercadoria demonstrando que essa pode ser trocada por outras. Então se o patrimônio cultural, seja ele material ou imaterial, depende das trocas, sendo este o modo que os indivíduos desenvolveram para viver em sociedade, podemos dizer que o valor de uso se constitui numa das premissas para a manutenção do bem cultural e não que este valor atua como agente da mercantilização do patrimônio.

O valor de uso é um dos valores inerentes ao monumento, desde que este possua condições materiais de utilização, visto que a falta destas o faz pertencer ao rol das

7 “A mercadoria é, antes de mais nada, um objeto externo, uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenham do estômago ou da fantasia”. (MARX, 2013. p. 41)

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ruínas. Este valor não diminui a importância do monumento, mas sim agrega valor, pois o uso contribui para que um edifício possa ser apreciado a partir de seu valor de antiguidade. (RIEGL,1987)

A utilização como forma de contribuição para a apreciação do bem tombado pode ser observada na área do patrimônio industrial, onde a obsolescência é condição para um bem produtivo se transformar em bem cultural. Há também bons exemplos no campo do patrimônio ferroviário, onde alguns exemplares mantém o potencial de uso. Como outra via, existe aquele patrimônio cujo uso é continuado, porém servindo também como objeto museográfico. Onde a demonstração do método original de uso faz o papel didático, como é o caso da Casa da Boia na rua Florêncio de Abreu em São Paulo.

No campo do patrimônio ambiental urbano é mais fácil a compreensão da total inconveniência de vincular bens culturais a usos e funções “culturais”. Cidades como Ouro Preto e Paraty, cujo uso cultural é privilegiado em detrimento do uso cotidiano, perdem sua razão de ser como cidade, como bem, aquilo que é bom para a sociedade. Transformam-se num objeto para usufruto de turistas, ficando esvaziadas de seu sentido mais pleno.

Os valores de uso, como modalidade de valor cultural, devem ser percebidos como qualidades. De todos os valores são os mais marginalizados, por serem julgados pouco significativos ou nada “culturais”. Num mundo onde o imediatismo impera, onde não há tempo para o usufruto dos locais, onde o ser humano prefere ver através de, não existe lugar para o valor pragmático como qualidade. (MENEZES, 1999)

As doutrinas da arte pela arte contribuíram para a cisão entre arte e economia, a tal ponto, que os artesãos, ao contrário dos artistas, tentavam manter o equilíbrio entre a forma e a função. Levando alguns artistas a se concentrarem unicamente no trabalho da forma, para escapar a ditadura do conteúdo que poderia levar à dominação das lógicas de mercado. (GREFFE, 2015)

Podemos observar essa cisão entre arte e utilidade, quando um bem, após ser listado como de interesse para preservação, passa a abrigar outras funções mais “culturais”, que não interfiram ou agridam seu valor artístico. Pois como já citamos anteriormente, alguns preservacionistas entendem que, na maioria dos casos referentes a patrimônio, um bem cultural não deve se utilizar de funções cotidianas posto que isso o faria ser desvalorizado artisticamente.

Sendo assim, excetuando-se o caso dos museus, a valorização artística reflete a desvalorização econômica de um bem cultural. Visto que o uso, o valor de uso colocado aqui em segundo plano, poderia contribuir tanto para a manutenção do bem dentro do cotidiano da cidade quanto para gerar fundos monetários de suporte a sua conservação.

Não podemos negar que a cultura tenha se transformado em algum gênero de mercadoria. Porém existe uma crença de que algo especial envolve os produtos culturais e que devemos coloca-los a parte das mercadorias normais dispensando qualquer ideia que possa ser concebida a respeito destes produtos gerarem fundos monetários. Talvez façamos isso por alguma herança histórica que nos ensinou ser a

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arte algo de muito elevado e que jamais deve ser colocado no plano dos produtos feitos numa fábrica para o consumo de massa. (HARVEY, 2006)

Contudo, é inegável o valor econômico de uma catedral, construída nos primórdios da fundação de uma cidade, e para onde somente os noivos vindos de famílias abastadas podem realizar seus casamentos. É improvável que as características históricas e estéticas desta catedral estejam discriminadas como itens no comprovante fiscal quando da contratação do casamento. No entanto essas características, podem ser e, provavelmente são negociadas por meio das práticas de marketing da indústria de eventos e turismo (ou, pela igreja católica).

Singularidade e particularidade são indispensáveis para a definição de “qualidades especiais”, retomando o caso da catedral, e no sistema capitalista estes formam a base para o preço monopolista. Ou seja, estas duas características distinguem a catedral das demais, fazendo com esta tenha monopólio no ramo da indústria dos eventos e do turismo. A isso chamamos de valor econômico, pois se esta catedral tem uma vantagem em relação as outras do mesmo ramo, ela agrega um valor aquém [RY5]daquele que o simples culto religioso a designa. E se este valor advém de características históricas e estéticas podemos, sim, dizer que o patrimônio cultural é portador de valor econômico e que certas adversidades agregam, ou não, valor a determinado bem eleito. (HARVEY, 2006)

Cumpre salientar que a valoração econômica de um bem cultural nunca será total, dada a vasta gama de valores que sempre estarão atrelados ao patrimônio cultural. E também pela própria natureza subjetiva do valor, o que, certamente, irá influenciar a aferição do valor econômico. Devemos então admitir que o valor econômico obtido será sempre um valor associado ao patrimônio cultural, não representando a totalidade do valor por este bem agregado.

O valor econômico e o valor de uso estão intrinsicamente relacionados, desde sua concepção econômica até mesmo quando se refere aos valores atribuídos ao monumento. Ambos dizem respeito a materialidade de um objeto e, se pretendemos manter um bem cultural como objeto ativo em nossa sociedade, devemos prestar mais atenção a estes valores e trabalhar uma maneira de mantê-los agregados quando da preservação de um patrimônio histórico e cultural.

4.CONSERVAÇÃO

A não conservação de um bem cultural incorre em prejuízo não somente ao proprietário do imóvel, no caso desse bem ser de propriedade privada, mas de toda população. Visto que a falta de conservação consiste, também, em uma lesão aos interesses imateriais associados ao bem, que, no âmbito da economia corresponde ao valor de existência. A definição dos valores, o contexto, a dimensão conceitual e sua função socioeconômica é o novo modo adotado para a conservação do patrimônio histórico e cultural, sem esquecer da análise de sua forma e ideia. Pois a diversidade encontrada no mundo atual é baseada em uma sociedade de várias faces através de uma enorme riqueza cultural.

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A interpretação dos valores inerentes a um bem em seu processo de conservação é de suma importância, visto que medimos o valor de um monumento por sua proximidade às exigências do presente e estas variam constantemente de um momento a outro e de um sujeito a outro. Sendo assim a conservação dos monumentos há de contar com um valor de certo modo prático, do momento, e este exige uma maior atenção. (RIEGL, 1987)

Na teoria brandiana, o valor de uso, tratado como função, está diretamente relacionado com o sentido da restauração e com o reconhecimento da obra de arte. O conceito de uso está relacionado com a artisticidade da obra e é isso que irá diferenciar o restauro de uma obra de uma intervenção comum, onde a única prioridade é o restabelecimento da funcionalidade. (BRANDI, 2013)

Pontuamos ainda que, o trabalho de restauro só será iniciado a partir do reconhecimento do produto especial da atividade humana, a que se dá o nome de obra de arte, pela sociedade. E é através da consciência que este reconhecimento será realizado, e toda vez será efetuado por um indivíduo singular num momento singular e sempre levando em consideração a sua percepção do presente. (BRANDI, 2013)

É interessante ressaltar que o termo obra de arte é utilizado como sinônimo de produto especial da atividade humana na teoria brandiana, algo que interpretamos como o reconhecimento de que existiu trabalho ao ser efetuada a obra. E se existiu trabalho, segundo a teoria econômica, podemos atribuir um valor, nesse caso um valor econômico. Posto que, enquanto valor, a medida da característica da troca da mercadoria é determinada por ela mesma (isto é, pela quantidade de trabalho nela contido).

A ideia de atribuir valor econômico a uma obra de conservação para provar que a mesma não tem só custos, mas também benefícios, não é nova. Contudo normalmente só é determinado o custo da percepção recreativa e a quantidade de emprego que ela poderá promover. Porém este tipo de estudo sempre leva em consideração edifícios públicos, tidos como bens culturais, em detrimento de pequenas propriedades também objeto de preservação.

Enquanto falamos de valorização econômica do patrimônio histórico e cultural, jamais queremos dizer que este deveria se submeter às regras de mercado. Mas sim que há uma dimensão econômica que deve ser considerada, como no caso de uma obra de restauro, onde a dimensão econômica é perceptível no custo da mão-de-obra a ser empregada bem como nos materiais a serem utilizados. (GREFFE, 2003)

A conservação de um bem preservado tem um preço para a sociedade e, no caso dos imóveis privados, para os proprietários. O trabalho a ser realizado, por mais artístico que seja, tem um valor econômico agregado, visto que os valores se referem a necessidades e não existem necessidades “puras”, imunes a interesses e contingências. Pensamos que uma das formas de pagar o trabalho de conservação é através da manutenção do uso, como no caso de fábricas, hospitais entre outros, pois um local vazio não contribui para a cidade nem para a sociedade. (GREFFE, 2003)

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Compreendemos que toda ação de conservação é ditada pela atribuição de valor, num dado contexto social, com determinados recursos disponíveis e escolhas. Neste contexto, o valor de uso e o valor econômico são apenas dois nesta constelação de valores. A questão do uso das edificações entendidas como bem cultural deverá ser abordada sob perspectiva interna à disciplina de restauro, já a questão econômica deverá ser analisada sob o ângulo do desenvolvimento sustentável e das políticas públicas. (CAMARGO; RODRIGUES, 2010)

5.CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme apresentado, a questão dos valores está atrelada a diversas discussões teóricas no campo do patrimônio histórico e cultural. Com efeito, a conservação de um bem cultural está relacionada a diversos aspectos culturais, sociais, políticos, urbanísticos e econômicos, dos quais derivam os valores de uso e econômico. É necessária a avaliação de todas estas instancias para uma efetiva preservação dos bens de valor cultural.

Assim, conforme o valor econômico e o valor de uso são reconhecidos como valores primordiais inerentes ao patrimônio, estes devem ser avaliados na medida em que possam trazer mais contribuição ao campo da conservação patrimonial. Porém, o grande desafio se constitui em incorporar as necessidades da população com o patrimônio edificado. Essa efetiva valorização do patrimônio histórico e cultural deve ser entendida de modo integrado, através de incentivos concedidos pelo Estado aos imóveis tombados, do reconhecimento e utilização pela população, para que se realize sua efetiva preservação.

Este artigo pretendeu refletir a questão dos valores econômico e de uso do patrimônio histórico e cultural, reflexão esta que se faz necessária no contexto da contemporaneidade. Pois, o fato de tombar um bem, preservar, sem intentar pensar qual será sua destinação, seu custo e seus benefícios para a sociedade, é um fato que deve ser repensado. Preserva-se para que as gerações futuras tenham conhecimento do passado, mas não se conserva, não se pensa em um projeto de inserção deste patrimônio no mundo atual, valorizando-o tanto no sentido artístico quanto econômico.

REFERÊNCIAS

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Históricos. Revista CPC, 2005, v. 1, n.1.

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