Perséfone e Hécate na poesia grega arcaica Thais Rocha Carvalho
Orientadora: Profª Drª Giuliana Ragusa
Introdução
Medeia, ao imprecar contra Jasão e ao pedir que sua vingança seja bem sucedida, invoca os deuses ctônicos, os deuses do sombrio, do oculto, da magia. Marcadamente, há duas deusas que figuram frequentemente nas invocações mágicas: Perséfone e Hécate.
Há muitas imagens associadas a Perséfone: a virgem tomada à força da mãe, simbolizando o que é para as moças o ritual de casamento; as estações que se renovam; a fertilidade das romãs; a companheira de Hades e, portanto, principal deusa do mundo ínfero. A Hécate, por sua vez, foram consagradas as encruzilhadas, a possibilidade de caminhos diferentes, o lugar mais propício para trabalhos mágicos.
As duas deusas parecem estreitamente ligadas, já que, em alguns dos rituais mágicos registrados que chegaram até nós, suas imagens se misturam e confundem. Também é digno de nota que Hécate, no Hino Homérico a Deméter, é a única testemunha do rapto de Perséfone; ela avisa a Deméter sobre esse episódio acobertado por Zeus.
Para analisar a imagem dessas duas deusas e pensar como ficaram tão fortemente ligadas no imaginário grego, este trabalho se propôs a investigar a representação delas no epos hexamétrico do Período Arcaico (c. 800-480 a.C.) – especificamente, na Teogonia e no Hino Homérico a Deméter, os dois textos mais importantes quando pensamos em Perséfone e Hécate. A Teogonia, por sua descrição do Tártaro, o mundo dos mortos e morada das duas deusas, e pela parte chamada por muitos comentadores de “Hino a Hécate” (versos 404-452). Já o Hino a Deméter, por tratar, justamente, do rapto de Perséfone por Hades e suas consequências para sua mãe, Deméter, a deusa da colheita – rapto este testemunhado por Hécate.
Objetivos
O objetivo desta pesquisa, portanto, é investigar como as deusas Perséfone e Hécate eram vistas nos dois textos em que figuram na poesia hexamétrica arcaica, a
Teogonia, de Hesíodo, e o Hino Homérico a Deméter, buscando seus pontos de aproximação e observando suas diferenças. A poesia épica homérica não será aqui contemplada por não ter menções relevantes às duas deusas. O corpus de tradução, portanto, consiste nos versos 404-452, 767-773 e 912-914 da Teogonia, e no Hino Homérico a Deméter na íntegra.
A seguir, apresentarei breves considerações a respeito da figuração das duas deusas nestes dois poemas arcaicos.
Hécate
Apesar de não haver indícios de um culto específico à Hécate na Beócia, Hesíodo dedica um espaço especial em sua Teogonia à deusa (quase 50 versos), conferindo-lhe honras em praticamente todas as esferas da vida humana. Walcot (1958, pp. 12-4) destaca o “sentimento” pessoal que Hesíodo parece nutrir por Hécate como, provavelmente, a deusa cultuada em sua casa. À guisa de provas, o autor destaca o nome do pai divino de Hécate, Perses, que é o mesmo do irmão de Hesíodo (como explicitado em Os Trabalhos e os Dias) e, também, a ressalva que o poeta faz de que Hécate, embora filha única, mantém suas muitas honras, quando, em seu outro poema, Os Trabalhos e os Dias, faz um desejo secreto de ser também ele filho único, para que não precisasse dividir a herança com o irmão descrito como irresponsável.
No Hino Homérico a Deméter, no entanto, a deusa é apresentada quase sem qualquer timé própria. Hécate aparece morando em uma caverna entre o mundo dos vivos e dos mortos, sendo assim a única testemunha (além de Hélio) do rapto de Perséfone, embora afirme que apenas o ouviu:
Nenhum dos imortais, nem dos homens mortais ouviu a voz, nem as frutíferas oliveiras,
senão a delicada e sempre prudente filha de Perses, Hécate de véu brilhante, de sua caverna
e o soberano Hélio, reluzente filho de Hiperônio, da menina clamando pelo pai Cronida. Mas, ele longe
sentava-se, distante dos deuses, em um templo de muitos suplicantes recebendo belos sacrifícios dos homens mortais. (versos 22-29)
Ao fim do poema, depois que fica decidido que Perséfone dividirá seus dias entre a mãe e o marido, decide-se também que Hécate a assistirá neste processo de subida e descida, dando uma atribuição à deusa que, anteriormente, não parecia ter uma.
Os dois poemas, portanto, mostram duas concepções bastante distintas de Hécate. Para Hesíodo, a deusa tem influência em absolutamente tudo, enquanto o Hino, em sua conclusão, lhe dá uma timé antes inexistente.
Perséfone
Diferentemente de Hécate, Perséfone tem representação semelhante nos dois poemas escolhidos como corpus: a jovem menina raptada e também como a esposa de Hades. Apesar de o mito envolvendo o rapto de Perséfone ser considerado etiológico para a explicação das estações, não é assim que o Hino Homérico a Deméter se configura. Como argumenta Clay (2006, p. 205), o Hino trata, principalmente, da definição da timé de Perséfone, levantando a questão de que Zeus a teria dado a Hades para que ela fosse o elo que ligaria o Olimpo ao Mundo Inferior.
É perceptível que a Perséfone que se apresenta a nós nos dois momentos em que tem ação direta no poema são figuras distintas. No início, ela era a jovem virgem inocente, que corria pelos campos floridos, rindo, brincando e colhendo as flores que quisesse. Em sua segunda aparição, no entanto, seu casamento já foi consumado e a divisão de sua vida entre sua mãe e seu marido estava praticamente decidida. Suas duas aparições no poema de Hesíodo demonstram bem essas duas facetas:
Então, se dirigiu ao leito de Deméter nutriz,
que pariu Perséfone de brancos braços, a que Aidoneu
raptou de sua mãe com o consentimento do astuto Zeus. (versos 912-14)
Ali adiante, o palácio soante do deus ctônico, o vigoroso Hades, e da pavorosa Perséfone ergue-se, e diante dele o terrível cão vigia,
impiedoso, mantendo-o com habilidade e maldade; indo para dentro, abana igualmente o rabo e ambas as orelhas,
e não permite que saia mais uma vez, mas espreitando
O poema já explicita desde seus primeiros versos que Deméter é a provedora das estações e não se detém muito sobre esse aspecto, evidenciando este processo de certo “amadurecimento” de Perséfone, que deixa de ter um papel acessório e passa a ter uma função bem definida entre os deuses: ser a ligação entre o Olimpo e o Submundo.
Conclusão
Com a análise do corpus, portanto, foi possível avaliar a presença das duas deusas no epos hexamétrico arcaico. Perséfone parece possuir uma unidade de representação, embora em diferentes facetas: a da menina raptada, filha de Deméter; e a da esposa de Hades, “a pavorosa Perséfone” – sendo esta última a única faceta representada nos poemas épicos homéricos, nas poucas vezes em que ela é mencionada na Ilíada e na Odisseia. Como filha de Deméter, ela é a menina virgem que corre pelas campinas colhendo flores e brincando com suas amigas, mas, depois de ter sido raptada, passa a presidir também sobre a morte, tanto como rainha do mundo ínfero, quanto como tendo seu lugar junto de Deméter nos mistérios de Elêusis, que dizem respeito, ao que tudo indica, à articulação entre as esferas dos vivos e dos mortos para os homens e também para o Olimpo, como planejado por seu pai, Zeus.
Hécate, por sua vez, não apresenta essa unidade de representação. Enquanto no Hino Homérico a Deméter ela é tratada como uma deusa sem honras próprias que só as adquirirá ao final do poema, ao mesmo tempo em que Perséfone também adquire as suas, Hesíodo a retrata como uma deusa com influência sobre todas as esferas desde a antiga ordem dos Titãs, mantendo-a durante o novo regime de Zeus, e com pouquíssima ligação ao mundo ínfero, diferentemente do que se passa nas outras tradições. No entanto, mesmo com essa divergência, Hécate representa, em ambos os textos, a figura da mediadora, tanto como ajudante de Perséfone, em sua caverna que fica entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, quanto na interpretação de Hesíodo, em que sua mediação fica entre os novos e os antigos deuses, e entre deuses e mortais.
No corpus selecionado, as duas deusas estão representadas em seus sentidos mais primordiais, definindo (ou redefinindo, no caso de Hécate) suas funções na ordem do cosmos de Zeus. Considerando o caráter pan-helênico da Teogonia e dos Hinos Homéricos, essas representações seriam as mais básicas, e delas teriam se desenvolvido
quaisquer novas atribuições ou timai. É claro que, no politeísmo grego, cada região ou pólis podia ter um culto específico par cada deus, e que suas funções poderiam mudar radicalmente de uma para outra, mas, em se tratando de uma imagem geral, parece que o que aqui foi discutido resume um pouco das bases de Perséfone e Hécate, que se tornarão as mais proeminentes deusas da magia.
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