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II - Relação de pertinência com as atribuições institucionais da Defensoria Pública

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TESE 7 (ÁREA FAMÍLIA)

Autor: Danilo Mendes Silva de Oliveira

Súmula: “O entendimento exposto no Enunciado n. 309 do Superior Tribunal de Justiça, de restrição do rito da prisão civil para a inadimplência das três últimas prestações alimentares anteriores ao ajuizamento da execução de alimentos, é incompatível com a Constituição Federal, de tal modo que se mostra possível o processamento de execução de alimentos pelo rito da prisão civil para cobrança de débitos anteriores a tal período”.

I - Assunto

A presente proposta versa sobre execução de alimentos, cuidando-se da questão relativa às prestações alimentares que inadimplidas podem ensejar a prisão civil do devedor.

Embora haja jurisprudência no sentido de que somente a inadimplência das três últimas prestações alimentares anteriores ao ajuizamento da execução poderia ensejar a prisão civil do devedor, nos termos do Enunciado n. 309 do Superior Tribunal de Justiça, o fato é que referido enunciado deve ser analisado criticamente tendo em vista uma apreciação constitucional da matéria, sendo certo que o permissivo constitucional da prisão civil do inadimplente da obrigação alimentar não prevê a restrição presente no mencionado enunciado do STJ.

Desse modo, versa a proposta sobre a admissibilidade da utilização da execução de alimentos sob o rito da prisão civil para cobrança de todo o débito alimentar, e não somente para a cobrança das três últimas prestações anteriores ao ajuizamento do processo.

II - Relação de pertinência com as atribuições institucionais da Defensoria Pública

A pertinência da proposta é evidente, visto que quantitativamente a maior parte das demandas da população que procura a Defensoria Pública versa sobre Direito de Família, sendo que os pedidos de alimentos assumem especial destaque e relevo na atuação do Defensor Público na área do Direito de

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Família, pois retratam o maior número de demandas que são submetidos aos Defensores Públicos, em suas várias modalidades, inclusive as execuções de alimentos.

Nesse contexto, considerando que o pensamento institucional da Defensoria Pública há de estar umbilicalmente ligado a uma visão crítica e evolutiva do Direito, evidencia-se a necessidade da instituição analisar criticamente todo e qualquer entendimento que no plano da realidade venha a constituir obstáculo na efetivação dos direitos daqueles que são tutelados por normas legais e constitucionais, mas que por questões processuais ou procedimentais são prejudicados e não têm seus direitos efetivados, especialmente quando os prejudicados são componentes de uma imensa legião de pessoas que necessitam de prestação alimentar para sua sobrevivência digna.

A Defensoria Pública constitui instituição essencial ao sistema de Justiça, sendo seu público alvo os necessitados. Nesse sentido, observa-se que o maior número de necessitados que procuram a Defensoria Pública formulam pretensões relativas a alimentos, sendo certo que aquele que se dirige perante a Justiça para postular alimentos o faz em razão de necessitar de contribuição material para a manutenção da própria sobrevivência.

Nesse sentido, é justamente no momento do cumprimento forçado das obrigações, ou seja, durante o processo de execução, que emergem as maiores mazelas do ordenamento jurídico em vigor e do Sistema de Justiça, ambos deficientes na efetivação do direito do credor de alimentos.

A proposta guarda, portanto, relação de pertinência com as atribuições institucionais da Defensoria Pública, que tem a construção de uma sociedade solidária e a redução das desigualdades como alguns dos seus fundamentos de atuação (art. 3º da LC 988/2006).

III – Fundamentação jurídica e fática

A Constituição Federal em seu artigo 5º inciso LXVII dispõe que:

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“Não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”.

Como se verifica, o dispositivo constitucional transcrito

não faz qualquer ressalva à quantidade de prestações alimentares em inadimplência para fins de cabimento da prisão civil.

Ocorre que o Superior Tribunal de Justiça, através do seu Enunciado n. 309, firmou entendimento no seguinte sentido:

“O débito alimentar que autoriza a prisão civil do alimentante é o que compreende as três prestações anteriores ao ajuizamento da execução e as que vencerem no curso do processo”.

Necessário, portanto, uma releitura do entendimento jurisprudencial firmado, entendimento jurisprudencial este estabelecido após julgamentos que não realizaram análise constitucional sobre a matéria.

De fato, verifica-se pela leitura de todos os precedentes jurisprudenciais que ensejaram a edição do Enunciado n. 309 do STJ que nenhum dos julgados teceu considerações acerca da (in)compatibilidade, com a Constituição Federal, da restrição da execução de alimentos somente em relação às prestações consideradas atuais. Os julgados que resultaram na edição do Enunciado do STJ se apoiam no argumento de que a execução de alimentos pelo rito do art. 733 do Código de Processo Civil pressuporia situação de urgência, que não estaria presente em casos de cobrança de prestações alimentares pretéritas. A jurisprudência que se formou, assim, foi em torno da leitura de dispositivo legal (art. 733 do CPC), sem nenhuma consideração a dispositivos ou princípios constitucionais.5

Portanto, propõe-se, doravante, uma releitura da questão, agora com apreciação de normas e princípios constitucionais.

5

Fonte:http://www.stj.jus.br/SCON/sumulas/doc.jsp?processo=309&&b=SUMU&p=true&t=JURIDICO &l=10&i=1.

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Nesse sentido, invocam-se as normas do art. 1º, III e 227 da Constituição Federal. A primeira norma prevê o princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento de nosso Estado Democrático de Direito, e a segunda traz em si o mandamento constitucional da proteção integral e do melhor interesse da criança e do adolescente.

O princípio da dignidade da pessoa humana se reflete em um critério de hermenêutica jurídica, que deve orientar a aplicação de todo o ordenamento jurídico. Dessa maneira o princípio em questão deve servir para nortear a ação positiva do Estado, e não apenas como a representação de um limite para sua atuação6. Nas exatas palavras de José Afonso da Silva “a dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida.”7

E o princípio da dignidade da pessoa humana já é considerado pela jurisprudência com vistas a provocar efeitos concretos em decisões judiciais, conforme já anotava Luis Roberto Barroso antes mesmo de assumir cadeira em nossa Suprema Corte.8

Tal princípio há de ser considerado, assim, com vistas à proteção daquele que comumente se encontra em situação de penúria por não ter condições de prover o próprio sustento: o alimentário.

Com relação ao princípio do melhor interesse e da

proteção integral da criança e do adolescente, tem-se que, de acordo com a

Convenção Internacional dos Direitos das Crianças, que tem força de lei no Brasil desde 1990 (Decreto n. 99.710/90), toda criança e adolescente deve ter seus interesses tratados

6 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2007, p. 59.

7

Comentário Contextual à Constituição. 4. ed. São Paulo: Malheiros. 2007, p. 38.

8 In Constituição da República Federativa do Brasil Anotada. BARROSO, Luis Roberto, 5ª edição. São

Paulo: Saraiva. 2006, pág. 13, com transcrição dos seguintes julgados:

“A dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, ilumina a interpretação da lei ordinária” (STJ, DJU 26.3.01, p. 473, HC 9.892-RJ, Rel. orig. Hamilton Carvalhido, Red. Para o acórdão Min. Fontes de Alencar).

“Vivemos o momento da valorização da dignidade humana (art. 1º, III, da CF) e todo o esforço interpretativo da legislação infraconstitucional é canalizado para a vitória deste principio, que é sustentáculo da felicidade existencial do homem (TJSP, ADV 19-01/299, nº 97046, AC 115.978/0, Rel. Des. Ênio Santarelli Zuliani).”

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com prioridade, pelo Estado, pela sociedade e pela família, tanto na elaboração quanto na aplicação dos direitos que lhe digam respeito, como pessoa em desenvolvimento e dotada de direitos. Este princípio também vem consagrado no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069, de 1990), em seus artigos 4° e 6°.

Deve ser salientado que este princípio já foi reconhecido até mesmo internacionalmente, na Convenção de Haia, quando esta tratou da proteção dos interesses da criança. 9

O princípio do melhor interesse da criança e do adolescente nada mais é do que o reflexo do caráter integral da doutrina dos direitos da criança e da estreita relação com a doutrina dos direitos humanos em geral. Tal princípio é pertinente em razão da circunstância de fato de que a imensa maioria dos pedidos judiciais de alimentos, e, consequentemente, dos processos de execução de alimentos, possui crianças e/ou adolescentes em seu pólo ativo.

Mas também há outro relevante público alvo de normas constitucionais de proteção e que comumente se vê na necessidade de postular alimentos: os idosos.

Os idosos têm direito a amparo, conforme previsto no art. 230 caput da Constituição Federal, nos seguintes termos:

“Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.”

A defesa da dignidade dos idosos, como visto, constitui mandamento constitucional, seguido pelo Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/2003), que inclusive inovou nosso ordenamento jurídico ao estabelecer a solidariedade da obrigação alimentar estabelecida em favor dos idosos (art. 12).

9

MARQUES, Suzana Oliveira. Princípios do Direito de Família e Guarda dos Filhos. 1. ed. Belo Horizonte: Del Rey. 2009, p. 41.

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É de se considerar, assim, que uma interpretação constitucional que venha a considerar referidos princípios e normas constitucionais certamente não deixará os exequentes desamparados.

A propósito, conforme doutrina de Rolf Madaleno,10 “no que diz respeito com a interpretação dos direitos fundamentais da pessoa humana, ao credor dos alimentos, justamente pela relevância extrema do seu direito, deve ser oportunizada a pronta e integral satisfação judicial de seu direito alimentar ameaçado, selecionando o operador jurídico os ‘os meios executivos que se revelem necessários à prestação integral da tutela executiva, mesmo que não previstos em lei, desde que observados os limites impostos por eventuais direitos fundamentais’” Portanto, para analise da questão sobre a aplicabilidade do rito do art. 733 do CPC, faz-se necessária a devida aplicação das normas constitucionais pertinentes, que consubstanciam os princípios da dignidade da pessoa humana, da proteção integral da criança e do adolescente e da proteção do idoso, sob pena de infringência ao princípio da força normativa da Constituição e ao princípio da

máxima efetividade das normas constitucionais, princípios estes que já extrapolaram

as teses acadêmicas para serem expressamente reconhecidos pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.11

Ultrapassada essa premissa de necessidade de análise do caso com vistas a uma interpretação constitucional, verifica-se que o texto do Enunciado n. 309 do STJ é conflitante com o texto constitucional, e, nesse sentido, é o pronunciamento de vários juristas, dentre os quais Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald12, que concluem o seguinte:

10 A execução de alimentos pela via da dignidade humana. In Alimentos no Código Civil. Coord. Francisco José Cahali e Rodrigo da Cunha Pereira. São Paulo: Saraiva. 2007, p. 237.

11 A propósito: Agravo Regimental no Agravo de Instrumento n. 555.806/MG, 2ª Turma, Rel. Min. Eros Grau (data do julgamento: 01/04/2008).

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FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das Famílias. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p. 677-682.

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“O entendimento jurisprudencial – assentado na Súmula 309 do STJ – termina favorecendo o inadimplemento, frustrando as garantias constitucionais”.

Conforme estudo procedido por mencionados juristas, é possível verificar as várias críticas que a doutrina vem formulando contra o entendimento que restringe o cabimento da prisão civil do devedor de alimentos nos termos do entendimento do STJ.

Nesse sentido, os seguintes argumentos sintetizados pelos mencionados autores, apoiados em estudos publicados por outros juristas, sobre a incompatibilidade do entendimento do Enunciado n. 309 do STJ com a Constituição Federal:

“(...) é preciso chamar a atenção para o fato de que tratar distintamente a dívida alimentícia – diferenciando o período novo (relativo ao trimestre recente) e o período velho (relativo ao período vencido há mais de três meses) – constitui violação frontal ao Texto Constitucional, merecendo repulsa e afastamento do ordenamento jurídico.” 13

“(...) com esteio na legalidade constitucional e realçando os valores mais pertinentes abraçados pela Lex Fundamentallis, é de ser admitida a prisão do devedor de alimentos pela dívida pretérita, como forma de proteger os interesses do credor, viabilizando a sua própria dignidade”.14

“Nessa linha de intelecção, patrocinar a tese da impossibilidade de prisão do devedor de alimentos pela dívida pretérita atenta contra o Texto Constitucional,

13 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das Famílias. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p. 679.

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FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das Famílias. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p. 681.

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violando valores que fundam o próprio sistema jurídico, como a dignidade humana e a solidariedade social. Impende uma compreensão mais social, moderna e humanizada da norma legal, reclamando-se providência enérgica contra tudo que servir ao aniquilamento da dignidade do homem”.15

O Enunciado n. 309 do STJ foi fruto de precedentes que não consideraram princípios ou normas constitucionais. O entendimento adotado se apoiou na ideia de que a execução de alimentos pelo rito do art. 733 do CPC pressupõe situação de urgência, que não estaria presente em casos de cobrança de prestações alimentares pretéritas.

O entendimento subjacente ao referido enunciado é bem sintetizado no voto do Relator Min. Ari Pargendler, no julgamento do Recurso Especial n. 278.734, 3ª Turma, julgamento de 17/10/2000, nos seguintes termos:

“Se o credor por alimentos tarda em executá-los, a prisão civil só pode ser decretada se as prestações dos últimos três meses deixarem de ser pagas.

Isso tem duas justificativas: uma, a de que a inércia do credor por mais de três meses autoriza a presunção de que as necessidades do alimentando não eram urgentes, podendo aguardar a respectiva cobrança pelos meios comuns; outra, a de que o devedor não pode ser surpreendido pelo acúmulo de prestações, situação que poderia ser aproveitada para vinditas.”16

Tais argumentos, todavia, em uma análise detida da realidade, não se sustentam.

15 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das Famílias. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p. 682.

16

No corpo do acórdão é possível inferir ressalva de posicionamento pessoal da Ministra Nancy Andrighi, tendo em vista que no julgado constou a seguinte passagem:

“A ministra Nancy Andrighi se posicionou da seguinte forma:

Voto com a Turma, porém quero deixar ressalvado o meu entendimento de que somente o pagamento de toda a dívida alimentar afastaria o decreto de prisão e não apenas três parcelas com mora.”

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Conforme bem exposto por Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald:

“Formula-se equivocado raciocínio ao sustentar que não reclamar alimentos significaria não precisar deles. Não raro, a dívida não é cobrada por falta de informações, pela dificuldade de acesso à justiça e de assistência jurídica gratuita.17

Na verdade, a pressuposição de que as prestações alimentares se acumulam por inércia do credor e que daí delas a necessidade delas já não se faz premente constitui ideia afastada da realidade social.

A verdade é que tanto este quanto outros entendimentos jurisprudenciais se mostram equivocados em razão de terem surgido sem uma apreciação concreta da realidade, e, nesse caso, não há profissional que possa obter uma apreciação mais concreta da realidade do que o Defensor Público.

De fato, somente com a atuação em massa, com realização de atendimentos pessoais de um contingente de pessoas tão necessitadas, humildes, desinformadas e fragilizadas é que se verificam as inúmeras dificuldades que se colocam diante do jurisdicionado e que o impedem de promover imediata execução de alimentos. Nesse sentido, as dificuldades vão desde o acesso à Justiça, considerando que milhões de brasileiros se encontram desamparados por falta de Defensorias Públicas em suas comunidades, até as dificuldades causadas por alimentantes que fazem de tudo para se esquivar de suas obrigações alimentares, desde desaparecerem para não serem encontrados pela Justiça até proferirem ameaças de mal injusto e grave contra os alimentários ou suas representantes legais como meio de evitar ajuizamento de processo.

E, mesmo nos casos em que o jurisdicionado tem acesso aos serviços da Defensoria Pública e tenha vencido outros tantos obstáculos, como os mencionados, ainda assim surgem outros, sendo comum o atendimento de pessoas que pretendem cobrança de pensão alimentícia mas que não possuem cópia do título

17

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das Famílias. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p. 679.

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executivo, documento este que, não raras vezes, demora meses para ser providenciado, mormente quando o título executivo judicial tenha sido resultado de sentença proferida em Juízo de comarca diversa, e, o que é pior, em Comarca de outro Estado da Federação.

Diante desse cenário, que não é visto das janelas dos luxuosos gabinetes dos Tribunais, tem-se a certeza do equívoco em que se procede na afirmação de que é em razão da inércia do credor que as prestações alimentares se avolumam.

No tocante às dificuldades subjetivas, ínsitas ao jurisdicionado, especialmente aos carecedores de alimentos, é de se levar em consideração, também, que não se pode exigir muito esclarecimento e compreensão do credor de alimentos ao passo em que o sistema legal de estabelecimento e cumprimento de obrigações alimentares se mostra flagrantemente irracional.

De fato, basta ver a peleja pela qual passa o credor de alimentos para que se vislumbre a irracionalidade do sistema.

De início, é necessário que se promova ação de conhecimento para formação do título executivo. Segundo o rito estabelecido em lei (Lei n. 5.478/1968 – Lei de Alimentos), ao receber a petição o juiz já fixa os alimentos provisórios, determinando-se a intimação do requerido para pagamento e para comparecimento em audiência. Ocorre que a realidade demonstra que são excepcionais os casos de cumprimento espontâneo do pagamento dos alimentos provisórios... A regra é que quando da realização da audiência já há meses de pensão alimentícia em débito. Proferida sentença, seja em audiência ou seja posteriormente, ainda assim pode o devedor, regularmente intimado, relutar em cumprir a obrigação (e geralmente reluta...). Daí que, para a cobrança das prestações alimentares não pagas, o ordenamento jurídico exige ajuizamento de outro processo: execução de alimentos.

Esta exigência legal, de promoção de ação de conhecimento e posterior processo de execução, já absorvida como natural para os operadores do direito, não deixa de ser irracional para o jurisdicionado, para o qual se apresenta a seguinte situação: “Oras... o devedor já foi intimado uma vez para realização dos pagamentos (intimação dos alimentos provisórios); já foi intimado pela segunda vez

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quando da sentença (alimentos definitivos); e, agora, tenho que promover outro processo, para que seja intimado, pela terceira vez (!), para realizar os pagamentos de que já tem ciência de que deveria estar efetuando, e, ainda assim, poderá, nesta ocasião, oferecer nova contestação?”

O sistema, em uma análise crítica, não é racional, porque afronta a racionalidade ver que o devedor de alimentos vai sendo sucessivas vezes intimado do teor da obrigação alimentar sem que tenha de cumpri-las. Se o sistema fosse racional, ele determinaria a auto-executoriedade já da primeira decisão que fixa os alimentos provisórios, de modo que o devedor haveria de ser intimado para iniciar o cumprimento da obrigação alimentar em prazo assinalado no instrumento intimatório, ou justificar a impossibilidade de cumprimento, sob pena de prisão.

Por essas e por outras é que se verifica, na prática forense, que o processo de execução de alimentos constitui verdadeiro calvário para o credor, circunstância esta descrita por Rolf Madaleno, em seu artigo intitulado “O calvário da execução de alimentos”.18

As ciências jurídicas não devem ser consideradas um fim sem si mesmo, mas sim um instrumento de realização da Justiça, de tal modo que há de se formatar os instrumentos processuais em busca da efetivação dos direitos, o que somente se faz possível quando é considerada a realidade concreta à qual quais as normas jurídicas devem se aplicar. Nesse sentido, a realidade concreta demonstra o desacerto do entendimento do Enunciado n. 309 do STJ, que, no mais das vezes, privilegia o devedor, conferindo a este alternativas de se esquivar do cumprimento da obrigação alimentar e servindo como um estímulo à inadimplência.

Conforme bem exposto por Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, em citação de outros juristas:

“Até porque, como enfatiza LEONARDO GRECO, anuindo à possibilidade de prisão do devedor de alimentos pela integralidade da dívida, ‘o argumento de que o débito de pensão antiga não deve ensejar a prisão é um estímulo a

18

Disponível em:

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não pagar pensão nenhuma’. Disso não discrepa ARNALDO RIZZARDO, para quem “a intellectio adotada vem a desprestigiar o instituto dos alimentos, favorecendo a inadimplência e impondo a inconveniência de constantes ações de alimentos. Proporciona-se o crescimento da irresponsabilidade do devedor em desconsideração do direito à vida”.19

Já o outro argumento utilizado na defesa do Enunciado n. 309 do STJ, “de que o devedor não pode ser surpreendido pelo acúmulo de prestações, situação que poderia ser aproveitada para vinditas”, não se sustenta pelo fato de que não é lógico crer que o devedor, sabedor do descumprimento de sua obrigação, venha a ser “surpreendido” pelo acúmulo da pensão alimentícia que já sabe não estar pagando. Oras... o primeiro sabedor do descumprimento da obrigação é o próprio devedor, de tal modo que não se sustenta o argumento de que este poderia vir a ser “surpreendido” com a cobrança de dívida que sabe existir. Se as prestações se acumulam, tal fato se dá por ato do devedor, e não do credor, de tal modo que este não pode ser responsabilizado pelo descumprimento da obrigação do devedor. Por outro lado, eventuais situações das quais se emergirem má-fé por parte do credor, ou manifesto intuito vingativo deste, sempre poderão ser arguidos pelo devedor em sede de justificativa de inadimplência. O que não se mostra admissível é que a presunção de ocorrência de situações excepcionais venha a justificar a elaboração de uma regra.

Por fim, o argumento de que “se os alimentos pretéritos não foram cobrados seria porque deles o credor não precisou” também não se sustenta. A vingar tal raciocínio, haveria de se considerar, por coerência, que os credores a rigor não necessitariam de alimentos algum. Sim, porque não há notícia de credor que tenha falecido em razão de não ter recebido a pensão alimentícia do devedor... Desse modo, e utilizando uma expressão coloquial: “já que ninguém morre por falta de pensão”, significaria que esta não seria urgente e necessária a ninguém. Daí poder-se-ia abolir não só a prisão civil, mas qualquer meio coercitivo de cumprimento da obrigação alimentar, tendo em vista que não será por falta da pensão alimentícia que o credor sucumbirá...

19

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das Famílias. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p. 681.

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Ocorre que o fato a ser considerado é o seguinte: com a falta da pensão alimentícia o necessitado sobrevive, é verdade; mas o princípio da dignidade da pessoa humana outorga a qualquer pessoa o direito de não apenas sobreviver, mas também o de viver. E àquele que falta a pensão alimentícia não faltará a vida, mas faltará o mínimo necessário a uma sobrevivência digna. Faltará aquilo que lhe é garantido pela Constituição Federal, e que é negado pelo alimentante.

Portanto, a análise detida da realidade demonstra, infelizmente, que o credor, além de ter de atravessar calvário da execução de alimentos (nas palavras de Rolf Madaleno), vem a ser vítima de todos: do devedor, do ordenamento jurídico e da jurisprudência... Triste realidade esta que há muito merece ser alterada. Triste realidade esta que uma multidão de necessitados espera seja alterada por seus Defensores Públicos...

Desse modo, de acordo com os argumentos jurídicos expostos, e conferindo-se plena eficácia ao artigo 5º, inciso LXVII da Constituição Federal, conclui-se pela inconstitucionalidade do entendimento que restringe o cabimento da execução de alimentos pelo rito da prisão civil aos três últimos meses inadimplentes, devendo ser admitida a prisão do devedor também por dívida pretérita, não cabendo tratamento diferenciado, tendo em vista que ambas as dívidas (tanto a pretérita quanto a referente às três últimas prestações) possuem a mesma natureza.

Pretende-se, assim, com a arguição da

inconstitucionalidade do conteúdo da Súmula 309 do STJ, que o seu entendimento seja reavaliado pelo Poder Judiciário, e eventualmente, considerado superado, inclusive pelas instâncias superiores.20

20 Sabe-se que Direito é ciência: ciência jurídica. E, como toda ciência, estará sempre fadada a ser continuamente superada por si mesma, ou seja, sempre haverá evolução e superação de premissas que anteriormente eram consideradas como corretas.

A evolução da ciência jurídica é facilmente percebida, no Brasil, com a observação da evolução da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. São vários os exemplos, dentre os quais são mencionados os seguintes:

- HC 82.959/SP – Rel. Min. Marco Aurélio de Mello, j. 23/02/2006: após mais de uma década de reiterados pronunciamentos do STF acerca da validade de norma legal que proibia a progressão de regime a condenados por crimes hediondos, o Ministro Relator, verificando a alteração da composição do Tribunal, levou a questão a Plenário, e o STF superou o entendimento até então adotado;

- Recurso Extraordinário 349.703 e 466.343 e HC 87.585: desde o julgamento do RE 80.004 o Supremo Tribunal Federal sempre reiterou o entendimento de que a hierarquia dos Tratados Internacionais era

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Considerando a proposta de reavaliação da questão sob uma ótica constitucional, natural que se espere futuro pronunciamento do Supremo Tribunal Federal, sendo de se registrar que, antes da cisão de competências estabelecida pela Constituição Federal de 1.988, que retirou do STF a competência de pacificação da jurisprudência referente à legislação infraconstitucional, transferindo-a ao STJ, nossa Suprema Corte já havia se manifestado no sentido de que as prestações alimentares pretéritas não perdem sua natureza alimentar, e, assim, não perdem o instrumento processual da prisão civil como instrumento de coerção do devedor em busca do adimplemento da obrigação (entendimento, portanto, contrário ao Enunciado n. 309 do STJ).21

equiparada à hierarquia das leis ordinárias. Três décadas após, o STF revisitou o assunto para assentar que as normas de Tratados Internacionais de Direitos Humanos não possuem hierarquia legal, mas sim supralegal.

- Mandados de Injunção 670, 708 e 712: durante o período de vigência da Constituição Federal o Supremo Tribunal Federal adotou entendimento de que o Judiciário não poderia atribuir efeitos concretos ao mandado de injunção (teoria “não concretista”), quando, em julgamento do Pleno de 25/10/2007, houve alteração do entendimento do Tribunal, atribuindo-se eficácia concreta ao mandado de injunção decidindo pela extensão da Lei de Greve dos trabalhadores do setor privado (Lei n. 7783/1989) também aos servidores públicos.

Verifica-se, portanto, ser comum na evolução da ciência jurídica a superação de entendimentos até então assentados.

21

Nesse sentido o parecer do SubProcurador-Gral da República Adalberto Nóbrega, exposto no julgamento do Recurso Especial n. 57.579-6/SP (3ª Turma, Rel. Min. Nilson Naves, j. 12/6/1995), do qual se extrai o seguinte trecho:

“(...) construção jurisprudencial a que chegou juízo monocrático, corroborada pelo juízo colegiado, sob o argumento de que relegando o pedido de decretação de prisão civil nos termos do art. 733 do CPC, a autora deveria ter incluído somente débitos correspondentes à soma dos seis últimos meses, e as prestações vencidas até a citação do réu, é manifestamente contrária à lei federal.

Nosso Pretório Excelso entende que a natureza da obrigação de prestar alimentos não se descaracteriza pelo decurso do tempo, ao contrário do que preconizou o acórdão hostilizado. Vejamos:

‘Os débitos atrasados, valor de pensões alimentícias, não perderam, por força do inadimplemento de obrigações de prestar alimentos, o caráter da causa de que provieram. Os efeitos, quaisquer que sejam, têm o mesmo caráter ou natureza da causa. No caso, a dívida continuou sendo de alimentos; não do outro caráter ou natureza. Nenhuma ilegalidade há no decreto de prisão do alimentante, que é a medida constritiva, legalmente prevista, para que este cumpra sua obrigação alimentar.’ ( STF, 2ª Turma 05/03/82, RTJ 101/179)”.

O mencionado parecer do Ministério Público Federal, por fim, conclui pela necessidade de provimento do recurso do credor, nos seguintes termos:

“Assiste ao autor a possibilidade de pedir ou não a decretação da prisão civil do inadimplente, optando entre o rito do art. 733 e dos arts. 732 e 735 todos do CPC. Se o credor pede que se estabeleça o rito do art. 733 e o Juiz o modifica incorre no erro de prolatar uma decisão ultra petita, incompatível com os princípios do Direito. Também aqui a decisão atacada contrariou a lei.

(...)

Ante o exposto, opina o Ministério Público Federal através de seu representante o Subprocurador-Geral da República, que este subscreve, pelo provimento do recurso.”

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IV – Sugestão de operacionalização

A operacionalização da presente proposta requer a adoção do entendimento nela exposto, com sua defesa em todas as fases do processo e instâncias judiciais.

Procedendo-se desta forma, o Defensor Público, no atendimento das pretensões de execução de alimentos, procederá de forma a apurar todo o período do débito alimentar, e, desse modo, verificar a viabilidade de se propor execução de alimentos pelo rito do art. 733 do CPC para a cobrança de prestações alimentares tanto recentes quanto pretéritas, desconsiderando a limitação exposta no Enunciado n. 309 do STJ.

A operacionalização da proposta requer, em suma, que o(a) Defensor(a) Público(a) adote e defenda o entendimento proposto no ajuizamento e condução do processo de execução de alimentos, promovendo cobrança de prestações alimentares pelo rito do art. 733 do CPC (rito da prisão), ainda que referentes a prestações alimentares consideradas pretéritas pelo Enunciado 309 do STJ.

Referências

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