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Teoria Geral das Obrigações na sistemática brasileira

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Academic year: 2021

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Teoria Geral das Obrigações na sistemática brasileira

Dever jurídico é conceito amplo onde se encontra inserido o conceito de obrigação. Francisco Amaral ensina que o dever jurídico se contrapõe ao direito subjetivo, sendo o primeiro constituído de uma situação passiva que se caracteriza pela necessidade de o devedor observar certo comportamento compatível com o interesse do titular do direito subjetivo.

O dever jurídico é comando imposto pelo direito objetivo e dirigido a todas as pessoas para que observem certa conduta, sob pena de receberem uma sanção pelo não cumprimento do comportamento prescrito pela norma jurídica.

O dever jurídico abrange não apenas o direito obrigacional ou o direito pessoal, mas também os de natureza real, relacionados com o direito das coisas

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, o direito de família, sucessões, o direito de empresa e os direitos de personalidade.

      

1 O Direito das Coisas é o conjunto de normas jurídicas que rege a atribuição das coisas com eficácia  real. Apesar de ser ramo do direito privado, projeta‐se juridicamente no âmbito do direito público posto  que o regime dos direitos reais sofre interferência de institutos próprios do direito público, como por  exemplo,a função social da propriedade. A questão terminológica sobre o direito das coisas sempre  acarretou dúvidas infindas se confrontada com a expressão “direitos reais”.  Direito das coisas é ramo  do Direito Civil cujo conteúdo é formado de relações jurídicas entre pessoas e coisas determinadas ou  ao menos, determináveis. Entendendo‐se que coisa é tudo que não seja humano. O que é radicalmente  contestado pela teoria personalista que reafirma claramente serem os direitos reais, as relações entre  pessoas porém intermediadas por coisas. A teoria personalista nega a realidade metodológica aos  direitos reais e ao direito das coisas, sendo estes entendidos como meras extensões metodológicas. 

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Pela doutrina tradicional, a obrigação

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é uma relação jurídica, do lado passivo do direito subjetivo, consistindo no dever jurídico de observar certo comportamento exigível pelo seu titular, e que tem como característica ser transitória, o que às vezes não é observado no dever jurídico.

A relação jurídica obrigacional não é integrada por qualquer espécie de direito subjetivo. Somente aqueles dotados de conteúdo econômico (direitos de crédito

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), passíveis de circulação jurídica, poderão participar de relações obrigacionais, o que descarta, de plano, os direitos da personalidade.

Como bem ressaltam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, no mundo contemporâneo a estrutura da obrigação apresenta-se marcada por grandes desigualdades sociais e jurídicas, tendo o direito o primado de lutar e garantir o império da igualdade e da dignidade humana, além de servir de mecanismo para a efetivação dos direitos sociais já previstos constitucionalmente.

Também as relações obrigações não fogem à incidência da legalidade constitucional, exigindo-se que estejam sintonizadas com a valorização da cidadania. Portanto, a obrigação é vista como um processo, ou seja, uma série de atividades exigidas de ambas as partes para consecução de uma finalidade, que é o adimplemento, evitando-se os danos de uma parte à outra nessa trajetória, de forma que

      

2 A palavra obrigação decorre do verbo latino obligare, composto de ligare, dando significado de ligar, 

atar, amarrar. Já o substantivo obligatus significa aquele que se obriga, obrigado. O recurso etimológico  foi igualmente prestigiado por Caio Mário da Silva Pereira que aponta que a expressão latina traz a ideia  de vinculação, liame, cerceamento de liberdade de ação em benefício de pessoa determinada ou  determinável. 

3 Conveniente frisar que o direito de crédito corresponde ao dever de prestar, que é de natureza 

essencialmente pessoal, não se confundindo, portanto, com os direitos reais em geral.  

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o cumprimento se faça da forma mais satisfatória ao credor e ao mesmo tempo menos onerosa ao devedor.

Desta forma, nessa ótica dinâmica da obrigação há o reconhecimento e imposição de outros deveres às partes, além daqueles tradicionalmente descritos pela vontade e com o fito de permitir que a relação alcance seu término natural e normal, preservando-se a liberdade dos parceiros, impedindo-se, assim, que no curso da relação jurídica um sujeito seja reificado pela superioridade econômica do outro.

Portanto, o conceito da obrigação como um processo enfatiza a noção de pluralidade, aduzindo à dinâmica da relação jurídica e instituindo a relação de cooperação entre as partes.

O direito das obrigações exerce notável influência na vida econômica, principalmente em face da alta frequência das relações jurídicas obrigacionais no mundo consumerista.

É através das relações obrigacionais que se estrutura o regime econômico, retratando a estrutura econômica social e traduzindo as projeções da autonomia privada na esfera patrimonial.

Com razão lecionou Josserand

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ao aludir que a teoria das obrigações situa-se na base, não somente do Direito Civil,

      

4 Ettiénne Louis Josserand (1868‐1941) foi advogado francês e coautor do projeto de Código de  Obrigações e Contratos libaneses. Era o decano da Faculdade de Direito de Lyon, conselheiro do  Tribunal de Cassação francês em 1938. Criticou veemente a noção de quase contrato, sendo o primeiro  doutrinador a cogitar de contrato forçado. Foi principalmente por iniciativa da teoria do risco de  Raymond Saleilles que obrou um dos fundamentos da responsabilidade civil, tratando de princípio geral  a responsabilidade das coisas, conforme prevê o art. 1.384, primeiro parágrafo, do Código Civil francês. 

Foi crítico da evolução do direito privado francês após a Primeira Guerra Mundial, e, de acordo com ele,  fora do direito comum criada uma "classe direita" levando à guerra civil. Foi autor da seguinte assertiva: 

“A liberdade é o estoque comum de direitos e deveres, é uma possibilidade, uma potencialidade de  direitos, nada menos e nada mais". 

 

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mas de todo o Direito, não sendo exagero afirmar que o conceito de obrigação constitui a armadura e o substractum do direito, e mesmo, de um modo mais geral, de todas as ciências sociais (In: Josserand, Louis. Cours de droit civil positif français, v. 2, p. 2).

Os direitos obrigacionais ou jus ad rem diferem em linhas gerais dos direitos reais ou ius in rem, vejamos: a) quanto ao objeto, posto que exigem o cumprimento de determinada prestação, embora incidam sobre uma coisa;

b) quanto ao sujeito, porque o sujeito passivo é determinado ou determinável, enquanto nos direitos reais é indeterminado (todas as pessoas do universo devem abster-se de molestar o titular). De acordo com a escola clássica, o direito real não apresenta apenas dois elementos: de um lado, uma pessoa, sujeito ativo de um direito, e de outro, uma coisa, objeto desse direito.

Para a teoria personalista e anticlássica, o direito real não passa de uma obrigação passiva universal. Coube a Planiol opor-se à bizarra concepção e sustentar a inviabilidade da afirmação que concebia uma relação entre a pessoa e a coisa.

A relação jurídica é sempre entre duas pessoas, entre dois sujeitos, o ativo e o passivo. Desta forma, nunca poderia existir entre pessoa e coisa. Foi também Planiol quem alertou que no direito real há uma obrigação passiva universal, uma obrigação de abstenção de todas as pessoas.

Assim, analisando a relação jurídica em si, o poder jurídico

é exercitável diretamente contra os bens e coisas em geral,

independentemente da participação de um sujeito passivo.

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No fundo, a abstenção coletiva

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não representa a verdadeira essência do direito real, senão apenas uma simples consequência do poder direto e imediato do titular do direito sobre a coisa.

c) quanto à duração, posto que são transitórios e se extinguem pelo cumprimento ou por outros meios, enquanto os direitos reais são perpétuos, não se extinguindo pelo não uso, mas somente nos casos expressos em lei (desapropriação, usucapião em favor de terceiro etc.);

d) quanto à formação, posto que podem resultar da vontade das partes, sendo ilimitado o número de contratos inominados (numerus apertus) ao passo que os direitos reais só podem ser criados por lei, tendo seu número limitado e regulado por esta, daí serem chamados de numerus clausus;

e) quanto ao exercício, porque exigem uma figura intermediária, que é o devedor, ao passo que os direitos reais são exercidos diretamente sobre a coisa sem necessidade da existência de um sujeito passivo, que pode existir apenas potencialmente;

f) quanto à ação, que é dirigida somente contra quem figure na relação jurídica como sujeito passivo (ação pessoal), ao

      

5 A concepção dos direitos reais como absolutos e erga omnes pressupõe que é um fato jurídico  fundamental oponível a qualquer pessoa que não seja titular da coisa. Noutros termos, o proprietário  poderá fazer uso da coisa como bem entender desde que atue na forma da lei e não cometa nenhum  ato ilícito, e as demais pessoas têm o dever de não interferir no direito real do proprietário. A expressão  latina erga omnes significa, literalmente, "para todos", e é particularmente usada no meio jurídico para  indicar os efeitos de algum ato, lei ou direito que atingem a todos os indivíduos. Em alguns processos é  conhecido também o efeito erga omnes, tal como nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade, onde se  ataca um ato normativo que, a princípio, teria validade contra todos, como se fosse uma lei. Também no  caso de a inconstitucionalidade ser reconhecida em ação à qual não seja conferido o efeito erga omnes,  como no caso de recurso extraordinário contra decisão judicial interposto junto ao STF, a esta decisão  poderá ser dado o efeito erga omnes por meio de resolução do Senado Federal, conforme prevê o art. 

53, inciso X, da Constituição Federal. 

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passo que a ação real pode ser exercida contra quem quer que detenha a coisa.

É certo, porém, que por vezes os direitos de crédito têm certos atributos próprios e peculiares dos direitos reais, como acontecem com certos direitos obrigacionais que facultam o gozo da coisa, os chamados direitos pessoais de gozo: os direitos do locatário e os do comodatário, por exemplo.

Assim, a lei pode atribuir eficácia real a certos contratos, que normalmente são constitutivos de simples direitos de crédito, como, por exemplo, o direito do promitente- comprador ou o direito de preferência presente no contrato de locação e deferido ao locatário.

Ônus jurídico é definido pela necessidade de observar determinado comportamento para a obtenção ou conservação de uma vantagem para o próprio sujeito, e não para a satisfação de interesses alheios.

Um típico exemplo é o ônus processual presente no art.

333, I, do CPC, de provar o que se alega.

Então, a obrigação visa a obter comportamento para satisfazer interesse do titular do direito subjetivo, ao passo que o ônus satisfaz o próprio interesse do agente. A lei não o impõe, apenas faculta a sua imposição.

Segundo Orlando Gomes, o ônus jurídico é a necessidade de agir de certo modo para a tutela de interesses próprios.

O não atendimento do ônus gera consequências apenas

para a parte que não o atendeu. Outro exemplo: levar um

imóvel a registro.

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Direito potestativo

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é o poder que a pessoa tem de influir na esfera jurídica de outrem, sem que este possa fazer algo para não se sujeitar.

Na obrigação a sanção é estabelecida para a tutela de interesse alheio, já na sujeição não se cogita de sanção para quem não observar o comportamento determinado, mas este suportará os efeitos da vontade do titular do direito.

Exemplificando: quem ajusta contrato por prazo indeterminado está sujeito a vê-lo denunciado a qualquer momento pelo outro contratante; quem recebe o mandato se subordina à vontade do mandante de cassar a outorga a qualquer momento; o condômino se sujeita à pretensão de divisão de qualquer dos outros comunheiros.

O estado de sujeição, por sua vez, constitui um poder jurídico do titular do direito (por isso é denominado potestativo) não havendo correspondência a qualquer outro dever.

Resumindo, diferem substancialmente entre si os direitos subjetivos dos chamados direitos potestativos, eis que àqueles contrapõe-se um dever, enquanto a estes corresponde apenas o estado de sujeição.

A propósito, a prescrição está relacionada com os direitos subjetivos, logo está relacionada também com o dever, com a obrigação e com a correspondente

      

6 É um direito que não admite contestações. É o caso, por exemplo, do direito assegurado ao  empregador de despedir um empregado, no âmbito do Direito do Trabalho, cabe a este apenas aceitar a  condição; como também num caso de divórcio, uma das partes aceitando ou não, o divórcio será  processado. Observa Francisco Amaral que o direito potestativo atua na esfera jurídica de outrem, sem  que este tenha algum dever a cumprir. Os direitos potestativos podem ser constitutivos, como por  exemplo, o direito do dono de prédio encravado (aquele que não tem saída para via pública) de exigir  que o dono do prédio dominante lhe permita a passagem. 

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responsabilidade

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. Desta forma atinge as ações condenatórias (tais como ações de cobrança e de reparação civil).

Atinge, pois, a pretensão condenatória e a executória. Por outro lado, a decadência está relacionada com os direitos potestativos, e nesse caso, haverá estado de sujeição. Por essa razão, relaciona-se às ações constitutivas positivas e negativas (um bom exemplo é o da ação anulatória de um ato ou negócio jurídico).

Porém, em alguns casos um direito potestativo e um estado de sujeição estarão relacionados com a imprescritibilidade, ou melhor, a não subordinação à prescrição ou decadência, conforme acontece nos impedimentos matrimoniais e nulidade absoluta de negócio jurídico.

Enfim, a obrigação em sentido técnico pertence, portanto, à categoria dos deveres jurídicos especiais ou particulares.

A obrigação deve ser afinal visualizada sob o prisma dual, onde haverá inicialmente o débito, debitum ou schuld, e em caso de inadimplemento surgirá a responsabilidade ou haftung

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.

      

7 A responsabilidade por dívida alheia pode nascer da vontade das partes, constituindo garantia  contratual ou mesmo por imposição legal (garantia legal). Pode‐se confirmar pela dicção do art. 818 do  C.C., segundo o qual pelo contrato de fiança, uma pessoa garante satisfazer ao credor uma obrigação  assumida pelo devedor, caso este não a cumpra. Não se trata de dívida própria, mas de responder por  obrigação  de  terceiro.  Para  o  dever,  vige  a  obrigação  civil  completa,  em  que  há  dívida  e  responsabilidade. Já para o fiador, há tão somente a responsabilidade de pagar integralmente a dívida,  ficando sub‐rogado nos direitos do credor (art. 831 do C.C.). E também responderá o devedor perante o  fiador por todas as perdas e danos que este pagar, e pelos que sofrer em razão da fiança (art. 832 do  C.C.), tendo o fiador direito aos juros do desembolso pela taxa estipulada na obrigação principal, e, não  havendo taxa convencionada, aos juros legais da mora (art. 833 do C.C.). 

8 Em geral, o haftung e o schuld, ou seja, a responsabilidade e o dever estão relacionados ao débito e  repousam sobre o devedor. Sendo o patrimônio do devedor que deve responder por suas dívidas. Mas,  por vezes, a responsabilidade sobre o débito pode recair sobre outra pessoa, como por exemplo, o  fiador. Bem explica Judith Martins‐Costa que a teoria dualista proposta por doutrinadores alemães do  final dos anos oitocentos, notadamente, Bekker e Brinz, e aperfeiçoada no início do século XX por Von  Gierke que decompunha a obrigação em dois momentos: o schuld, como um dever legal em lato sensu, 

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Em face dessa dualidade é ainda possível identificar schuld sem haftung

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ou débito sem responsabilidade, conforme ocorre na obrigação natural

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ou incompleta, que não pode ser exigida.

Também é identificável haftung sem schuld

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, ou seja, responsabilidade

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sem débito, conforme ocorre com a fiança.

       mas em sentido estrito significa a dívida autônoma em si mesma e que tem por conteúdo um dever  legal. Já haftung consiste na submissão ao poder de intervenção daquele a quem não se presta o que  deve ser prestado. 

9 É comum no português ouvirmos referências ao schuld e ao haftung, o que revela per si um equívoco  posto que em alemão as referidas palavras são femininas. 

10  É  bom  destacar  que  os  deveres  morais  não  são  e  nunca  foram  deveres  jurídicos  e  seu  descumprimento ou cumprimento não gera efeitos senão no campo social. O dever de urbanidade que  existe normalmente em saudar uma pessoa com “bom dia, boa tarde ou boa noite”, é puramente moral. 

Caso não seja feito, poderá ser moralmente punido, ou ainda angariar a pecha de mal‐educado. Por  outro lado, a obrigação natural gera efetivos efeitos jurídicos, posto que uma vez feito o pagamento  voluntariamente não pode ser repetido, ou seja, pedir de volta. De sorte que a obrigação natural não é  moral, pois se o fosse, a repetição do pagamento indevido seria possível. 

11  Leciona  José  Carlos  Moreira  Alves  que  são  duas  importantes  distinções  entre  a  dívida  e  a  responsabilidade. A primeira decorre em momentos diversos: a dívida desde a formação da obrigação e  a responsabilidade posteriormente quando o devedor não cumpre a prestação devida. A segunda é que  o debitum é elemento não coativo (o devedor é livre para realizar ou não a prestação) já a obligatio é  um elemento coativo (In: MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano. v. 1, p. 5). 

12 Inicialmente a responsabilidade recaía sobre o corpo do devedor e veio a sofrer fortes modificações  com o decorrer dos anos. Sublinhe‐se que no Império Romano não se tolerava que um cidadão romano  fosse escravo de outro e, por isto, o devedor era considerado servorum loco, ou seja, tinha uma  condição especial pela qual não poderia ser ultrajado impunemente pelo senhor e poderia adquirir sua  liberdade mesmo contra a vontade do senhor. Concluiu Bonfante que a condição imposta aos devedores  foi motivo de longa luta entre os patrícios credores e os plebeus devedores, conforme noticiam algumas  histórias tumultuadas. Mas teria a Lex Poetelia Papiria efetivamente acabado com a possibilidade de  prisão do devedor? A questão é bem polêmica. Charles Demangeat afirmava que a lei suavizava a  condição do devedor porque o credor ficava proibido de acorrentá‐lo, mas isto não impedia que fosse  aprisionado (Cours élémentaire de droit romain. 3. ed. Paris: A. Maresq Ainé, 1876, v. 1. p. 153). 

Bonfante afirmava que a possibilidade de manter‐se preso o devedor ou quem se oferecesse em seu  lugar fora então, proibida, salvo exceções, desaparecendo o caráter penal do vínculo obrigatório  segundo o qual o objeto do direito de crédito era, em primeiro lugar, o corpo do devedor. Foignet e  Dupont, por outro lado, afirmavam que a lei apenas impediu o exercício da manus iniectio sem um  prévio julgamento do devedor e este foi o motivo de conduzir o nexum ao desuso (Le droit romain des  obligations. 5. ed., Paris, Rousseau e Cie, 1945, p. 38). Já Alexandre Correia e Gaetano Sciacia entendem  que ocorrera a supressão da própria manus iniectio (Manual de direito romano, 2. ed. São Paulo: 

Saraiva, 1953, v. 1, p. 277). E, ainda, na opinião de Charles Maynz a lei aboliu o próprio nexum ( MAYNZ,  Charles. Courses de droit romain, v. 1, p. 85). Note‐se que a responsabilidade é sempre maior que a  dívida nas hipóteses de solidariedade e de indivisibilidade. 

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O Direito das obrigações no Código Civil de 1916, elaborado no final do século XIX (1899), refletia uma sociedade estável, agrária e conservadora, além de recém- saída da escravidão.

Desta forma é justificável o posicionamento do Livro das Obrigações colocado após o Direito de Família e o Direito das Coisas e, por essa razão, não contemplava aspectos importantes da economia capitalista como, por exemplo, a correção monetária, as indenizações por danos extrapatrimoniais, as cláusulas de escala variável ou indexadores, além de tratar de forma insuficiente dos juros compensatórios e moratórios.

O Código Civil de 2002, Lei nº 10.406/2002, alterou alguns aspectos do Livro de Obrigações.

Primeiramente, posicionou-o logo após a Parte Geral, abrindo, portanto, a sua Parte Especial. Tal modificação veio a atender tanto ao pedido da doutrina como a um entendimento lógico.

Apesar de não ter operado mudanças substanciais na teoria geral das obrigações, alguns institutos ganharam assento privilegiado em título específico, como é o caso, por exemplo, da cessão de crédito e da assunção de dívida.

O referido diploma legal reconheceu, ainda, em diversos pontos a correção monetária como efeito da desvalorização da moeda.

Outras características relevantes também são importantes, como:

        

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a) a conservação da sistemática tradicional das modalidades de obrigações, deixando-se, de se referir, por ser trabalho da doutrina, sobre o problema das fontes das obrigações;

b) aceitação da revalorização da moeda nas dívidas de valor;

c) no campo da responsabilidade civil, a matéria mereceu tratamento em título próprio (o Título IX), consagrou-se a responsabilidade objetiva, além de expresso reconhecimento do dano extrapatrimonial;

d) alteração da medida determinativa da indenização, relativizando-se o critério da extensão do dano, ao se permitir a redução do quantum indenizatório, a critério do juiz, e por equidade, se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano (art. 944, parágrafo único, do C.C.).

Seguindo o vetor traçado pelo Código Civil suíço, a teoria geral das obrigações, unificou as obrigações civis e comerciais, perfazendo uma unificação parcial do Direito Privado, com a absorção, inclusive, de regras gerais de Direito Cambiário, em seu Título VIII – Dos Títulos de Crédito.

No Brasil, o doutrinador Clóvis do Couto e Silva pondera

que o tratamento da relação obrigacional como totalidade

define uma ordem de cooperação em que credor e devedor

não ocupam posições antagônicas. Hodiernamente, não

mais prevalece o status formal das partes, mas a finalidade

à qual se dirige a relação dinâmica. É precisamente a

finalidade que determina a concepção da obrigação como

processo.

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Por isso, concluímos que as obrigações emanadas de negócios jurídicos são complexas e acresceram às obrigações principais os chamados deveres anexos ou laterais.

Seriam obrigações de conduta honesta e leal entre as partes, vazadas em deveres de proteção, informação e cooperação, a fim de que não sejam frustradas as legítimas expectativas de confiança dos contratantes quanto ao fiel cumprimento da obrigação principal derivada da autonomia privada.

O regramento contratual contemporâneo é resultado de heteronomia de fontes, principalmente por acrescentar à autonomia privada os deveres impostos pela boa-fé objetiva.

Para além da perspectiva tradicional de subordinação do devedor ao credor, existe o bem comum da relação obrigacional, voltada ao adimplemento da forma mais satisfatória ao credor e menos onerosa ao devedor

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.

O bem comum na relação obrigacional traduz a solidariedade mediante a cooperação dos indivíduos na

      

13 O art. 5º, LXVII, da CF/1988 prevê a possibilidade de prisão do responsável pelo inadimplemento  voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel. Quanto ao depositário infiel,  deve‐se frisar que a prisão restou inviabilizada pela Súmula Vinculante nº 25 do Supremo Tribunal  Federal, bem como pela Súmula nº   419 do STJ. As súmulas decorrem do entendimento do Supremo  Tribunal Federal pelo qual “diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais que  cuidam  da  proteção  dos  direitos  humanos, não  é difícil  entender  que  a  sua internalização  no  ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na Constituição, tem o condão  de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela  conflitante. Nesse sentido, é possível concluir que, diante da supremacia da Constituição sobre os atos  normativos internacionais, a previsão constitucional da prisão civil do depositário infiel (art. 5º, inciso  LXVII) não foi revogada pela ratificação do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e da  Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), mas deixou  de  ter  aplicabilidade  diante  do  efeito  paralisante  desses  tratados  em  relação  à  legislação  infraconstitucional que disciplina a matéria, incluídos o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e o Decreto‐ 

Lei nº 911, de 1º de outubro de 1969” (REx. 466.343‐1). 

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busca de satisfação de interesses patrimoniais recíprocos, sem comprometimento dos direitos de personalidade e da dignidade de credor e devedor.

A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato, eis que a cláusula geral previsto no art. 421 do C.C. indica que a funcionalidade da relação obrigacional reside na preservação da harmonia de seus participantes.

A intervenção da sociedade sobre o contrato é benévola principalmente por estimular o adimplemento da relação obrigacional, mediante a cooperação dos contratantes, para que seja possível o resgate da liberdade que fora cedida em razão da contratação.

Justamente pela tutela da liberdade

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, as obrigações serão efêmeras, de natureza puramente transitória. Lembremos que o Código Civil de 1916, de feição marcadamente individualista, visualizava a obrigação apenas pelo olhar do credor, pois o devedor era mero coadjuvante.

Atualmente, percebemos a ideia de solidariedade e responsabilidade, até mesmo perante a sociedade, pois esta demanda o cumprimento da obrigação como forma de pacificação do tecido social e incremento do tráfico negocial.

O conteúdo da relação obrigacional é dado pela autonomia privada e integrado pela boa-fé. Os deveres principais da

      

14 Antes da preocupação atual com a liberdade e com a dignidade humana, no Direito Romano já  apontava Menezes Cordeiro que a ideia de prisão do devedor por inadimplência estava contida na  Tábua III e confirmava que o período de cárcere privado era de sessenta dias, podendo, inclusive, o  credor acorrentar o devedor, havendo, contudo, o dever do primeiro alimentá‐lo. Informa que o  devedor era conduzido a três feiras consecutivas, trans Tiberium (fora de Roma) ou matá‐lo, partes  secanto (cortando em postas) sendo as partes proporcionais às dívidas, no caso de concurso de  credores. In: Tratado de direito civil português, II, Tomo III, Coimbra: Almedina, 2010, p. 298. 

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prestação constituem o núcleo dominante, a alma da relação obrigacional.

Daí que sejam estes que definem o tipo de contrato.

Exemplificando, a compra e venda (art. 481 do C.C.) consiste em intercâmbio de obrigações de dar coisa certa e quantia certa, com base na autonomia negocial dos contratantes.

Todavia, outros deveres impõem-se na relação obrigacional, completamente desvinculados da vontade de seus participantes. Trata-se dos deveres de conduta, também conhecidos como deveres acessórios, anexos ou laterais ou instrumentais.

Tais deveres de conduta são conduzidos pela boa-fé ao negócio jurídico, destinando-se a resguardar o fiel processamento da relação obrigacional em que a prestação integra-se.

Estes incidem tanto sobre o devedor como sobre o credor, a partir de uma ordem de cooperação, proteção, informação, em via de facilitação do adimplemento, tutelando-se a dignidade do devedor, o crédito do titular ativo e a solidariedade entre ambos.

Arnoldo Wald

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aduz que, mormente o contrato se transformou em bloco de direitos e obrigações de ambas as partes, sendo certo que a plasticidade do contrato transforma a sua própria natureza, fazendo com que os interesses divergentes do passado sejam convertidos numa verdadeira parceria, com maior ou menor densidade.

      

15 Arnoldo Wald é doutor, Livre‐Docente, Professor Catedrático de Direito Civil da UERJ, Doutor Honoris 

Causa da Universidade de Paris II, ex‐Procurador do Estado, ex‐Procurador‐Geral da Justiça, ex‐membro  do Conselho Federal da OAB por mais de vinte anos, membro da Comissão de Revisão do Projeto do  Código Civil, Presidente da Academia Internacional de Direito e Economia, Membro do Comitê Executivo  da Câmara Internacional do Comércio e Advogado. 

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Visualiza-se o contrato como relação jurídica dinâmica, total e contínua, que nasce, vive e morre. E, como os doutrinadores germânicos costumam aduzir que as relações obrigacionais formam uma fila de deveres de conduta, vistos no tempo, ordenados logicamente por uma finalidade, consistente na realização dos interesses legítimos das partes.

É consagrada a relevância da boa-fé como princípio, cláusula geral e especialmente geradora de deveres de conduta destinados à exata satisfação dos interesses globais envolvidos na relação complexa, não deixando de lembrar sobre a centralidade da vontade na determinação do objeto do negócio jurídico.

A própria neodimensão da autonomia privada a traduz como poder dos particulares de criação da norma individual nos limites dados pelo ordenamento, visa justamente a proteger e reforçar a volição, a fim de que seja real, fiel e equilibrada. Uma vontade das partes, e não apenas do credor.

Se a dogmática

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do século XIX fora guiada pelo império da vontade, que fizera com que os juristas apontassem unanimemente que todos os deveres derivassem da vontade e, não necessariamente da lei.

      

16 Dogmática é palavra que deriva de dokein, que significa ensinar, doutrinar. O conceito é trazido por  Tércio  Sampaio como  o  enfoque  zetético,  que  vem de  zetein, significando  perquirir,  pesquisar,  questionar e indagar. O enfoque dogmático releva o ato de opinar e ressalva algumas das opiniões. O  zetético, ao contrário, desintegra, dissolve as opiniões, pondo‐as dúvida. Questões zetéticas têm uma  função especulativa explícita e são infinitas. As questões dogmáticas têm função diretiva explícita e são  finitas. Nas primeiras, o problema tematizado é configurado com um ser (que é algo)? Nas segundas, a  situação nelas captada configura‐se como um dever‐ser (com dever‐ser algo?). Por isso, o enfoque  zetético vai saber o que é alguma coisa. Enquanto o enfoque dogmático preocupa‐se em possibilitar  uma decisão e orientar a ação. 

 

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Deu-se um giro de cento e oitenta graus, onde se conclui que todos os deveres emanam atualmente do princípio da boa-fé. Devendo o equilíbrio apontar a existência de deveres que resultem da vontade e outros decorrentes da boa-fé e da proteção jurídica e social do contrato.

Há um novo direito para uma nova economia descortinada pela sensível evolução dos contratos e do Código Civil de 2002.

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