• Nenhum resultado encontrado

DECADÊNCIA E REGENERAÇÃO NA HISTORIOGRAFIA PORTUGUESA (1842-1942)

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2019

Share "DECADÊNCIA E REGENERAÇÃO NA HISTORIOGRAFIA PORTUGUESA (1842-1942)"

Copied!
40
0
0

Texto

(1)

30

U

MA ÉPOCA DE GRANDEZA

:

I

DADE

M

ÉDIA

,

DECADÊNCIA E REGENERAÇÃO

NA HISTORIOGRAFIA PORTUGUESA

(1842-1942)

1

Dr. Pedro Alexandre Guerreiro Martins pagmartins@hotmail.com Instituto de História Contemporânea FCSH/NOVA

Texto recebido em/Text submitted on: 29/03/2017 Texto aprovado em/Text Approved on: 10/06/2017

RESUMO

Largamente menosprezada como um período de declínio civilizacional durante a Época Moderna, a Idade Média foi em grande medida reabilitada pelo Romantismo. Em Portugal, autores como Alexandre Herculano representaram o período medieval como uma época de progresso e grandeza capaz de inspirar uma nação considerada decadente.

É o objetivo deste artigo fazer um balanço da historiografia portuguesa sobre a Idade Média no período entre 1842 e 1942 à luz dos debates sobre a decadência nacional. Para tal, faremos uso dos trabalhos de autores de diferentes escolas historiográficas e campos ideológicos que representaram o período medieval numa perspetiva positiva, contrastando com uma Modernidade marcada pelo declínio moral e material da nação. Demonstraremos assim como uma visão romântica da história persistiu na cultura portuguesa até muito depois do período normalmente associado ao Romantismo, influenciando várias tentativas de regeneração nacional.

Palavras-chave: Idade Média, medievalismo, Romantismo, decadência, historiografia

Abstract

Widely underestimated as a period of civilizational decline during the Modern Age, the Middle Ages were largely rehabilitated by Romanticism. In Portugal, authors such as Alexandre Herculano represented the medieval period as a time of progress and great-ness capable of inspiring a decadent nation. It is the purpose of this article to take stock of the portuguese historiography about the Middle Ages in the period between 1842 and 1942 in the light of the debates about a national decadence. To this end, we will use the works of authors from different historiographical schools and ideological fields that rep-resent the medieval period from a positive perspective, contrasting with a modernity marked by the moral and material decline of the nation. We will demonstrate how a ro-mantic view of history persisted in portuguese culture until quite long after the period normally associated with Romanticism, influencing several attempts to national regen-eration.

Keywords: Middle Ages, medievalism, romanticism, decadence, historiography

1Este artigo é o resultado de uma tese de doutoramento financiada pela Fundação para a Ciência e

(2)

31 “O que são, as revoluções politicas do nosso tempo? São um protesto contra o renascimento; uma regeição da unidade absoluta; uma renovação das tentativas para organisar a variedade. Hoje os povos da Europa atam o fio partido das suas tradições da infancia e da mocidade. O seculo XIX é o undecimo do que exclusivamente se-póde chamar socialismo moderno. Os tres que o precederam foram uma espécie d'hybernação, em que o progresso humano esteve, não suspenso, mas latente e concentrado nas intelligencias, que íam acumulando forças para o traduzir em realidades sociaes. Eis d'onde procedem as analogias

dos seculos chamados bárbaros com a épocha em que vivemos.”

HERCULANO, Alexandre. Cartas sobre a Historia de Portugal - Carta V. Revista Universal Lisbonense, Lisboa, n.7, p.78, Nov. 1842.

Introdução

A 27 de janeiro de 1842, ano em que o texto em epígrafe era publicado na Revista Universal Lisbonense, o ministro da Justiça António Bernardo da Costa Cabral proclamava no Porto a restauração da Carta Constitucional de 1826. Era apenas mais um entre os muitos golpes de estado, pronunciamentos militares, revoltas e insurreições que marcaram o processo de instauração do liberalismo em Portugal durante a primeira metade do século XIX. Como membro da intelligentsia liberal moderada, o historiador, escritor e jornalista Alexandre Herculano (1810-1877) aclamava a chegada ao poder do

“cabralismo”, vendo nele um fator de regeneração de uma nação vergada por três séculos de atavismo, decadência e opressão. Para Herculano e muitos historiadores seus contemporâneos ou que o sucederam, não era a Época Moderna nem mesmo a Antiguidade que representariam uma fonte de inspiração para as suas utopias políticas e sociais. Este lugar de eleição cabia à Idade Média.

(3)

32

representando a Idade Média como uma época de grandeza material, moral e espiritual em oposição a uma modernidade identificada com a decadência.

Socorrendo-nos da terminologia usada pelos historiadores Sérgio Campos Matos e David Mota Álvarez (2008, p.341-342), focar-nos-emos em duas “estratégias

narrativas” que vigoraram na historiografia portuguesa durante o período em causa: o “modelo liberal-laicista” – representado por autores como Alexandre Herculano, Teófilo Braga, Joaquim Pedro de Oliveira Martins, Alberto Sampaio, António Sérgio e Jaime Cortesão – e o “modelo católico-conservador” – representado por figuras ligadas ao integralismo e ao monarquismo contrarrevolucionário nas décadas de 10 a 30 como António Sardinha, Alfredo Pimenta e João Ameal. Como veremos, estas duas estratégias narrativas, apesar divergentes ao nível ideológico, tiveram também importantes pontos de contacto, nomeadamente na sua quase unânime apreciação do período medieval e no seu olhar crítico sobre a Época Moderna.

Tendo como base estas duas “estratégias narrativas”, abordaremos um conjunto de temas relacionados com a história do Portugal medieval e através dos quais é possível compreendermos os debates em causa. Entre estes temas destacamos as origens da nacionalidade e da consciência nacional portuguesa, as raízes étnicas da portugalidade, a existência (ou não) do feudalismo, o municipalismo, a economia nacional durante a primeira dinastia (1143-1383), o papel da Igreja e do cristianismo, a génese do absolutismo régio, e as motivações e consequências da expansão ultramarina.

Estado da arte e conceitos-chave

Nas últimas décadas, a relação entre medievalismo e Romantismo tem sido objeto de numerosos estudos incidindo principalmente nos contextos anglo-saxónico, francófono e germânico2. Embora a produção literária constitua o objeto principal da

(4)

33

maioria destes trabalhos, a historiografia tem também merecido alguma atenção, como o demonstram as obras de autores como Michael Glencross (1995), Walter Kudrycz (2011) ou Ian Wood (2013)3. No contexto português, não obstante a existência de alguns estudos importantes sobre a historiografia contemporânea sobre a Idade Média4, praticamente o único autor do período romântico que tem merecido suficiente atenção é Alexandre Herculano5. Esta situação é explicável pelo papel pioneiro deste historiador ao nível da introdução das metodologias da moderna historiografia e dos estudos sobre a história medieval em Portugal.

No que toca ao conceito de decadência, destacamos os trabalhos de Koenraad W. Swart (1964) sobre o contexto francês, bem como os de Peter Burke (1976) e Matei

Călinescu (1987). Todos eles procuram situar o conceito de um ponto de vista histórico e mostrar os seus diferentes significados e usos em diferentes contextos culturais. A

obra de Călinescu é de particular interesse aqui pois demonstra a relação dialética entre progresso e decadência à luz dos discursos românticos. No contexto português, são de assinalar os trabalhos de António Bettencourt Machado Pires (1980), Sérgio Campos Matos (1995) e Pedro Calafate (2006) sobre o conceito de decadência e os seus usos historiográficos no século XIX.

Camelot. French Romantic Medievalism and the Arthurian Tradition. Cambridge: D. S. Brewer, 1995; DURAND-LE GUERN, Isabelle. Le Moyen Âge des romantiques. Rennes: Presses Universitaires, 2001.

3 Sobre historiografia romântica e medievalismo em vários contextos nacionais europeus, ver também

EVANS, R. J. W.; MARCHAL, Guy P. (ed.). The Uses of the Middle Ages in Modern European States. History, Nationhood andthe Search for Origins. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2011.

4

MATTOSO, José. Perspectivas actuais da investigação e da síntese na historiografia medieval portuguesa (1128-1383). Revista de História Económica e Social, Lisboa, n.9, p.145-162, Jan-Jun. 1982; HOMEM, Armando Luís de Carvalho. A Idade Média nas universidades portuguesas (1911-1987). Legislação, ensino, investigação. Revista da Faculdade de Letras – História, Porto, v.10, p.351-361. 1993; SOUSA, Bernardo Vasconcelos; BOISSELLIER, Stéphane. Pour un bilain de l‘historiographie sur le Moyen Âge portugais au XXe siècle. Cahiers de civilization médiévale, Poitiers, n.195, p.213-256, Jul-Sep. 2006. Sobre a segunda

metade do século XX, ver MATTOSO, José (dir.). The Historiography of Medieval Portugal c.1950-2010. Lisboa: IEM, 2011.

5Alexandre Herculano. Ciclo de conferências comemorativas do I centenário da sua morte.1877-1977. Porto:

(5)

34

Podemos assim dizer que, não obstante a relativa abundância de estudos de cariz internacional sobre historiografia sobre a Idade Média, Romantismo e decadência, no contexto português eles são em muito menor número. Com exceção de uma recente tese de doutoramento que serve de base a este artigo (MARTINS, 2016), estamos perante a inexistência de estudos que cruzem o olhar romântico sobre o período medieval e os debates sobre a decadência portuguesa. Este artigo tem como objetivo colmatar esta lacuna, demonstrando a importância de estudar a historiografia sobre a Idade Média em Portugal em conjunto com os debates mencionados.

De forma a melhor entendermos os tópicos analisados, é necessário antes de mais darmos uma definição dos conceitos-chave deste artigo: medievalismo, Romantismo e decadência/ regeneração.

Começando pelo conceito de medievalismo, este pode assumir três significados diferentes, se seguirmos as definições do pai-fundador da “disciplina” Leslie J. Workman:

o estudo da Idade Média num contexto académico; a representação ou uso de factos, temas, conceitos, trabalhos e personagens medievais no período pós-medieval; e o estudo destas mesmas representações (WORKMAN, 1979, p.1, Idem, 1986, p.378). Embora a segunda definição seja a que constitui o objeto deste artigo ou seja, como a

Idade Média foi representada e simultaneamente “usada” por um conjunto de autores da

Época Contemporânea –, é preciso termos em conta que a separação entre esta e a primeira definição é apenas aparente. Como argumenta o académico inglês David Matthews, autor de uma recente obra sobre o tema, o estudo da Idade Média é sempre, por definição, pós-medieval, ou seja, pode ser considerado uma “representação” ou “uso”

desta, faz parte do “processo contínuo de criação” da própria Idade Média (MATTHEWS, 2006, p.13; Idem, 2015, p.168-169; WORKMAN, 1996, p.1).

Relativamente ao segundo conceito, o de Romantismo, seguimos a definição proposta por Michael Löwy e Robert Sayre na sua obra Revolta e melancolia: o Romantismo na contramão da modernidade. Segundo estes autores, o Romantismo pode

ser definido como uma “crítica da modernidade” e uma “reação contra o modo de vida

(6)

35

a religião, o particularismo, a imaginação, o sentimento ou a intuição); eram também vistos como a “época dourada” dos povos europeus, quando as suas línguas, estados e

territórios se haviam formado e as suas caraterísticas originais e mais puras podiam ser encontradas.

No que diz respeito ao conceito de decadência, socorremo-nos de um dos capítulos da obra de Matei Călinescu The Five Faces of Modernity. De acordo com

Călinescu, “decadência” é uma noção comum a todas as civilizações antigas, bem como ao mundo cristão medieval. Em todos estes contextos, os tempos presentes eram identificados com um declínio civilizacional, moral e espiritual que contrastaria com um estádio anterior de prosperidade, felicidade e harmonia (entre Deus e os homens). Com a emergência das ideias de modernidade e progresso, esta noção começou a ser questionada e a dar lugar a outra que via a história humana como uma linha ascensional.

Contudo, Călinescu explica que, com a emergência do discurso romântico no final do

século XVIII, a relação entre decadência e modernidade se tornou mais dialética do que propriamente contraditória. Para os românticos, um elevado grau de desenvolvimento ou progresso (tecnológico, civilizacional) não implicava necessariamente uma maior prosperidade, felicidade ou harmonia social e espiritual – pelo contrário, poderia implicar um sentimento de declínio, perda ou alienação. Assim, decadência e modernidade poderiam ser concebidas em termos análogos e não opostos (CĂLINESCU, 1987, p.151-156).

O uso de metáforas naturais ou biológicas para descrever a noção de decadência (crepúsculo, outono, velhice, morte, putrefação) leva Călinescu a concluir que o termo

que melhor se lhe opõe é o de regeneração (Ibid., p.155-156). De facto, foram metáforas associadas a regeneração (alvorecer, primavera, infância, juventude, nascimento, germinação) que os românticos usaram para descrever a Idade Média como época de emergência do Volksgeist dos povos europeus.

Não é por isso surpreendente que o termo “Regeneração” tenha sido escolhido

pelos liberais portugueses para designar o caráter “refundador” do seu movimento

(7)

36

golpes de estado e guerras civis envolvendo diferentes fações liberais e apoiantes do absolutismo. À luz da intelligentsia liberal portuguesa, “Regeneração” pressupunha um

“renascimento” (RIBEIRO, 1993, p.121), uma refundação da vida nacional depois de um longo período de declínio. No contexto da propagação do movimento romântico em Portugal, a Idade Média foi assim um dos períodos mais invocados para legitimar as aspirações de regeneração das novas gerações liberais.

Alexandre Herculano: o municipalismo medieval contra o absolutismo moderno

Em 1842, o ano do texto em epígrafe, passavam dez anos desde que Alexandre Herculano havia voltado do exílio a que fora votado pela sua participação numa insurreição militar contra o absolutismo em 1831. Nesses meses, Herculano vivera por um curto período de tempo em Inglaterra e depois em França, onde pôde aprofundar o seu conhecimento da obra de escritores como Walter Scott e Victor Hugo e historiadores como François Guizot e Augustin Thierry, conhecidos pelas suas obras situadas no período medieval. Depois da vitória dos liberais em 1834, Herculano iniciou a sua obra literária, historiográfica e política, desempenhando diversos cargos de relevo (redator principal da revista O Panorama, da qual foi fundador, bibliotecário-mor das Reais Bibliotecas das Necessidades e da Ajuda, Presidente da Câmara Municipal de Belém) e colaborando com várias revistas de cariz cultural, como a Revista Universal Lisbonense,

onde foram publicadas as suas “Cartas sobre a História de Portugal” (1842).

É na “Carta V”, donde foi extraída a epígrafe deste artigo, que podemos encontrar

aquela que é provavelmente a primeira teorização sobre o lugar da Idade Média numa explicação geral da decadência nacional portuguesa. Como refere o historiador e filósofo Luís Ribeiro Soares, Herculano foi provavelmente não apenas o primeiro historiador português a utilizar a expressão “Idade Média” mas também o primeiro a introduzi-la como “problema” na historiografia nacional (SOARES, 1978, p.34)6. Para Herculano, a história dos portugueses como povo diferenciado e independente não remontava ao

6É de notar que embora a expressão “Idade Média” já fosse utilizada por Herculano, o adjetivo “medieval”

(8)

37

tempo dos lusitanos, mas sim aos séculos XI e XII, altura em que se haviam separado do reino leonês. A partir daí, a história de Portugal dividir-se-ia em “dois grandes cyclos”: o

da constituição e “virilidade moral” da nação, correspondendo à Idade Média; e o da sua

“velhice” e “decadência como corpo social”, que corresponderia ao “Renascimento”

(HERCULANO, 1842, p.42-43). Com esta metáfora organicista, Herculano iniciava uma longa tradição historiográfica que considerava o período medieval a época dourada da história nacional, em contraste com um período de decadência inaugurado pela modernidade. Como veremos, a analogia entre a nação portuguesa e um corpo/ ser (masculino) que nasce, cresce, atinge a idade adulta, envelhece e morre, foi constantemente invocada por diversos autores durante as décadas seguintes.

Para Herculano, a Idade Média representaria assim uma época de origens, nascimento, infância, juventude e idade adulta para Portugal. Mas que fatores teriam contribuído então para o seu declínio? No mesmo texto, o historiador dá algumas respostas. Durante o período medieval (séculos XII ao final do século XV), teria existido uma tensão constante entre três elementos sociopolíticos: o “monárquico” (a coroa), o

“aristocrático” (ou “feudal”) e o “democrático” (ou “municipal”). Com o passar do tempo,

mercê das transformações políticas que se operaram na Europa renascentista, o elemento monárquico teria gradualmente anulado os outros dois elementos como forças políticas. Na visão de Herculano, o elemento monárquico visaria a restauração do

princípio da “unidade absoluta” e do despotismo que haviam caraterizado o Império

Romano, em oposição à “variedade” e “liberdade” associadas à época medieval. Em Portugal, este processo teria culminado nas medidas administrativas, jurídicas e fiscais dos reinados de D. Duarte, D. Afonso V e D. João II (1433-1495), sobretudo nas resoluções das cortes de Évora de 1482 – momento que para Herculano assinala o

(9)

38

apoio popular contra os desmandos das classes privilegiadas (o alto clero e a nobreza). Para Herculano, em finais do século XIII o território nacional estava já “coberto de concelhos” cuja “prosperidade e importância” atestavaa “independência” que o “povo português havia atingido na Idade Média. Este processo teria culminado na crise de 1383-85, a partir da qual o “povo” atingiria uma preeminência política sem precedentes (Idem, 1843, p.356-357; Idem, 1844, p.172).

Podemos assim ver como Herculano, na senda de autores como Augustin Thierry, traçava as origens do “povo” (identificado com o Terceiro Estado) ao período medieval, associando-as à expansão dos municípios. Na visão de ambos os historiadores, as modernas revoluções liberais haviam sido precedidas pela grande revolução comunal da Idade Média, garante da independência do povo face aos abusos das classes privilegiadas. Como historiador liberal moderado que era, Herculano argumentava no terceiro volume da sua Historia de Portugal que, graças às instituições municipais, se teria atingido no período medieval uma espécie de síntese ou “equilíbrio entre a

desigualdade e a liberdade” que nem a Antiguidade nem a Época Moderna haviam

conseguido. Em vez de negar as diferenças entre os homens, esta “democracia da idade media” tê-las-ia aceitado e, por isso mesmo, estaria suficientemente preparada para evitar a sua degeneração numa tirania popular, num despotismo individual ou numa oligarquia (Idem, 1849, p.221-223).

À luz destas perspetivas, teria sido então o crescimento do poder da monarquia que teria causado a dissolução deste aparente equilíbrio sociopolítico. No caso português, Herculano identificava duas dimensões nas quais se poderia observar especialmente este processo: a expansão ultramarina e o estabelecimento da Inquisição.

No primeiro caso, o historiador considerava que havia sido D. João II quem havia substituído as “logicas” e “justas” tentativas de os portugueses conquistarem as praças do norte de África por viagens de descoberta com fins meramente egoístas e

mercantilistas. Com a transformação da “monarchia primitiva” em “absoluta”, o

(10)

39

(Idem, 1846, p.413-414)7. Já no que respeita ao estabelecimento da Inquisição, o historiador também via D. João II e especialmente os seus sucessores D. Manuel I (1495-1521) D. João III (1521-1557) como os responsáveis pela instauração de um clima de terror e perseguição religiosa que culminaria com a expulsão ou conversão forçada de todos os judeus portugueses (Idem, 1855, p. 84-118, 172-173).

Encontramos aqui já esboçados alguns dos argumentos que serão retomados uns anos mais tarde pelos autores da chamada “Geração de 70”. A ideia de que a Época Moderna fora sobretudo uma fase de declínio para Portugal, marcada pela ascensão do absolutismo, a perda de importância das liberdades concelhias, os efeitos nefastos da expansão ultramarina e a propagação da intolerância religiosa, foi um tema caro a autores que, como Herculano, se reivindicavam de uma tradição liberal. Para todos eles, a Idade Média representava uma fonte de modelos capazes de inspirar uma regeneração do Portugal atual. Porém, como veremos mais adiante, esta visão idealizada do passado medieval seria também usada com propósitos ideológicos bem opostos aos dos autores de matriz liberal.

A “Geração de 70”: a explicitação das causas da decadência

Em 1867, Alexandre Herculano mudava-se para a sua quinta em Vale de Lobos, perto de Santarém, retirando-se assim definitivamente da vida política. Apenas um ano depois, em 1868, o então jovem Joaquim Teófilo Fernandes Braga (1843-1924) defendia a sua tese de doutoramento em Direito na Universidade de Coimbra, intitulada Historia do Direito Portuguez. Os Foraes. Neste trabalho, o futuro lente de literatura e líder republicano retomava alguns dos argumentos de Herculano em relação à evolução histórica dos municípios no contexto português desde o período medieval.

Teófilo Braga começa por defender uma ideia semelhante à que Herculano tinha da Idade Média. Para Teófilo, esta teria sido não um “periodo tenebroso e anómalo”, como os autores do Iluminismo haviam sugerido, mas sim uma época de progresso

civilizacional, um “estado nascente”, do qual teriam brotado as línguas, costumes e

7 Sobre a visão crítica da expansão ultramarina portuguesa por parte de vários autores dos séculos XIX e

(11)

40

alicerces mentais, sociais e culturais da civilização moderna. Teófilo, que seria um dos principais introdutores da teoria positivista no contexto português, faz uma analogia entre a civilização europeia e um organismo vivo, na qual o período medieval é apresentado como um estado emergente e caótico, que posteriormente dará origem à ordem (BRAGA, 1868, p.ix, 24).

Embora partilhando com Herculano uma ideia essencialmente positiva da Idade Média e da evolução das instituições municipais durante este período, Teófilo divergia do seu predecessor em vários pontos. O primeiro destes dizia respeito à origem e o desenvolvimento dos municípios portugueses. Enquanto Herculano considerava os concelhos uma instituição romana restaurada pelos monarcas ibéricos durante a Reconquista, Teófilo defendia que estes haviam sido uma criação do “genio” dos povos germânicos que entraram na Península no século V d.C. (Ibid., p.12). O futuro líder republicano fazia assim eco das mais recentes teorias de antropologia racial que concediam um papel determinante às raças germânicas no desenvolvimento da civilização europeia.

Três anos depois, na sua obra Epopêas da raça mosárabe, Teófilo explicava que, entre os vários povos germânicos que haviam passado pela Península Ibérica, os visigodos ocupavam um lugar de destaque, pois eram eles que constituíam o “elemento

primário” da futura nacionalidade portuguesa (Idem, 1871, p.7). Porém, os godos não eram um povo homogéneo, estando divididos em “duas classes distinctas”: os nobres, de origem asiática, desligados dos costumes, língua e religião ancestrais, imitadores dos

hábitos e degenerados pelo contacto com a civilização romana; e o “baixo povo” que,

pelo contrário, teria mantido os costumes locais e conservado todas as “qualidades do genio germanico”. De acordo com Teófilo, a invasão árabe da Península teria criado uma separação geográfica entre estes dois grupos, com a fuga da classe aristocrática para as Astúrias (onde viria a fundar os reinos cristãos) e a permanência da classe popular nos territórios sob controlo muçulmano. Assim se teria formado a raça moçárabe, “essencia da nação portugueza” e criadora da sua organização municipal (Idem, 1868, p.xi; Idem, 1870, p.50; Idem, 1871, p.2-3)

(12)

41

já se encontrava em declínio na Europa. Para Teófilo, o principal obstáculo ao fortalecimento do poder da coroa teria sido assim o Terceiro Estado, estabelecido como tal após durante o reinado de D. João I. A partir daí, os monarcas portugueses teriam procurado consolidar o seu poder, auxiliados pelos juristas oriundos da burguesia e legitimados pela ideia da origem divina do poder régio e pelo renascimento do direito romano que então se verificava nas universidades europeias. Este processo teria culminado com a legislação de D. Manuel I, que transformaria as cartas de foral em

meras “escrituras de obrigação enfiteutica dos povos para com a coroa”, fazendo assim

os concelhos perderem as suas garantias locais (Idem, 1868, p.13, 99-100, 115-116).

Além da origem dos concelhos e da questão do feudalismo, outro tema sobre o qual Teófilo discordava de Herculano dizia respeito ao papel da Igreja Católica na decadência de Portugal. Enquanto o velho historiador considerava a intolerância religiosa e o estabelecimento da Inquisição fenómenos que teriam sustentado a ascensão do absolutismo a partir do final do século XV, Teófilo entendia que, desde o início dos tempos medievais, a Igreja havia sido um fator de opressão moral e obscurantismo e o maior adversário do movimento comunal. No contexto português, o catolicismo fora responsável, juntamente com a monarquia, pela aniquilação das crenças, costumes e superstições do povo moçárabe, praticante de uma “forma pura do christianismo, não viciada pelo instincto auctoritario e temporal do catholicismo romano” e inspirada pela antiga doutrina arianista. Mais tarde, o “catholicismo intolerante” impediria o

desenvolvimento do espírito do Renascimento italiano em Portugal, condenando assim a nação ao obscurantismo científico e cultural perante as suas congéneres europeias. Este processo teria culminado com o Concílio de Trento, através do qual a Igreja teria rompido completamente com o verdadeiro cristianismo e cujas decisões teriam sido seguidas como lei vigente em Portugal (Ibid., p.22; Idem, 1870, p.64-66, 87, 264-265, 274).

(13)

42

Seria esta mesma visão que inspiraria a conferência do poeta Antero de Quental (1842-1891) Causas da decadencia dos povos peninsulares nos ultimos tres seculos, uma

das célebres “Conferências Democráticas” realizadas no Casino Lisbonense em 1871 por iniciativa de vários elementos da “Geração de 70”. Neste discurso, influenciado pelos ideais iberistas então em voga, Antero elabora aquela que seria a mais famosa explicação das causas da decadência portuguesa e que serviria de base a várias obras de cariz historiográfico durante o século XX.

Mas é também neste discurso que podemos encontrar um dos retratos mais elogiosos do período medieval feitos por autores portugueses. Retomando a ideia de Herculano de uma Idade Média marcada pela variedade e pelo localismo, Antero descreve a Península Ibérica medieval como uma agremiação de reinos e condados soberanos nos quais as comunas e os forais manifestavam o espírito independente,

autonómico e “democrático” das populações. Tal como Herculano, o poeta considerava

que os povos peninsulares haviam escapado ao jugo feudal que subjugara a restante Europa dessa época; embora existisse nobreza, esta seria de fácil acesso pelas classes populares, havendo união de interesses e sentimentos entre as várias camadas sociais. Também ao nível religioso a Idade Média havia sido um momento alto da história

peninsular: o génio “criador e individualista” dos povos ibéricos, juntamente com a falta de coesão e disciplina da Igreja Católica nesse período, haviam contribuído para que as igrejas peninsulares fossem independentes perante Roma; por outro lado, a caridade e a tolerância para com as restantes religiões eram altamente valorizadas. Por fim, também ao nível científico e cultural o período medieval havia sido uma época de glória para os povos peninsulares. Em resumo, Antero considerava que durante a Idade Média a

Península brilhara “na plenitude do seu genio, das suas qualidades naturaes” (QUENTAL,

1871, p.7-10).

(14)

43

depravação dos costumes, etc. Para Antero, a história dos povos peninsulares entre meados do século XVI e o seu tempo havia sido marca pela miséria, pelo atraso, pelo obscurantismo, pela opressão e pela corrupção (Ibid., p.11-15).

Que fatores explicariam este processo? Antero é o autor que melhor os sistematiza, indo buscar elementos já antes enunciados por Herculano e Teófilo Braga e dividindo-os em três tipos: moral, político e económico. No primeiro caso, a transformação do cristianismo numa religião despótica e intolerante; no segundo, a ascensão do absolutismo e a perda das liberdades locais; por fim, o curso da expansão ultramarina. A cada um destes três fatores de decadência, Antero contrapõe três fatores que teriam contribuído para a prosperidade dos restantes países europeus: a liberdade moral (conquistada pela Reforma Protestante e pelas novas tendências filosóficas), a ascensão das classes médias e o desenvolvimento da indústria. Na visão do poeta, o catolicismo intolerante teria impedido o desenvolvimento da liberdade moral; o absolutismo, a ascensão das classes médias; o curso da expansão ultramarina, o desenvolvimento da indústria (Ibid., p.19-20).

Os argumentos utilizados por Antero são sensivelmente os mesmos dos seus predecessores, embora com um maior grau de elaboração e sistematização. Em relação à religião, a Idade Média é entendida como uma época de transição ou equilíbrio entre o

“sentimento christão” e a “instituição catholica”. Embora já tivessem havido tentativas por parte de Roma de uniformizar as várias igrejas nacionais, estas teriam mantido uma relativa independência em matérias de disciplina e liturgia. Esta situação fazia com que os dogmas cristãos fossem aceites de forma não-coerciva e houvesse tolerância para

com mouros e judeus, “raças intelligentes, industriosas, a quem a industria e o pensamento peninsulares tanto deveram. Até ao século XVI, foi esta a atitude geral do cristianismo peninsular. Com a Reforma Protestante tudo mudou: não obstante as tentativas de conciliação por parte das autoridades episcopais, o papado quis impor a sua vontade e transformou a Igreja numa instituição autocrática e opressiva. No contexto peninsular, a Inquisição, a expulsão e perseguição de judeus e mouros e os jesuítas contribuíram para um clima de medo e obscurantismo que condenou estas nações a séculos de declínio civilizacional (Ibid., p.21-23).

(15)

44

municípios e as comunas). As Cortes, “aonde todas as classes sociaes tinham representantes e voto”, eram convocadas com regularidade e a “liberdade era então o estado normal da Peninsula”. No século XVI, tudo muda: o poder régio sobrepõe-se à

nobreza e às instituições locais; “a vida municipal afrouxa gradualmente”; o povo perde

a liberdade; o absolutismo corrompe os monarcas levando-os a cometer verdadeiras loucuras. Porém, enquanto em França e na restante Europa o absolutismo ainda permitira a emergência de uma burguesia forte e empreendedora, na Península Ibérica as monarquias ter-se-iam subjugado aos interesses de uma aristocracia que não soube desenvolver a agricultura, a indústria e o comércio nacionais (Ibid., p.34-37).

Por fim, em relação à expansão ultramarina, Antero recupera alguns dos argumentos avançados por Herculano duas décadas antes para criticar as consequências nefastas dos descobrimentos e conquistas na economia peninsular. Citando diversas obras de autores dos séculos XVIII e XIX (entre as quais se destaca a Memoria sobre a população e a agricultura de Portugal de Luís Augusto Rebelo da Silva, publicada apenas três anos antes), o poeta oferece um quadro altamente positivo da vida económica de Portugal durante a primeira dinastia e o início da segunda. Desenvolvimento agrícola, aumento das exportações, crescimento demográfico, prosperidade económica haviam caraterizado esta fase da história nacional. A partir do século XVI ter-se-ia dado a situação inversa: abandono do trabalho agrícola; êxodo rural; aumento das importações; dissipação da riqueza adquirida no Oriente; fome e miséria; declínio demográfico; corrupção dos costumes. Em resumo, Antero via a expansão ultramarina dos povos peninsulares como uma empresa económica e moralmente nociva, manchada por um

“espirito guerreiro” inapropriado a uma modernidade na qual só as nações produtivas e industriosas como a Inglaterra haveriam de triunfar (Ibid., p.37-45).

Este olhar contrastante sobre a história nacional antes e depois da expansão ultramarina, herdado de historiadores como Herculano ou Rebelo da Silva, teria um profundo impacto em outros dois nomes da “Geração de 70”: Joaquim Pedro de Oliveira Martins (1845-1894) e Alberto Sampaio (1841-1908).

(16)

45

face à Antiguidade. O único mérito da Idade Média teria sido o de ter desenvolvido a civilização clássica de forma extensiva, alargando-a a povos que até aí haviam tido pouco ou nenhum contacto com ela (MARTINS, 1873, p.1). Mais tarde, na sua Historia de Portugal (1879), Martins iria criticar a representação ingénua, sentimental e heroica da Idade Média (“essa Edade-Media das operas”) que, no seu entender ofuscaria o lado mais cínico, frio e bárbaro desta época (Idem, 1882, p.62-63).

Outro aspeto sobre o qual Martins discordava de Herculano, Teófilo e Antero era o papel do absolutismo como elemento de decadência nacional. Contrariamente a estes autores, Martins via de forma positiva o processo de fortalecimento do poder régio nos estados peninsulares a partir do século XV em vez de um elemento desagregador de um prévio equilíbrio de poderes, este representaria a coesão nacional e a modernidade política face ao confuso e incoerente sistema de privilégios do clero, da nobreza e da burguesia que haviam caraterizado o período medieval. Como exporia na sua Historia da Civilisação Iberica (1879), teria sido a precocidade deste processo no contexto peninsular que teria dado a necessária coesão de ideias e instituições para que portugueses e espanhóis se lançassem à descoberta e conquista do mundo (Idem, 1879, p.158-160, 175-177).

Que fatores explicariam então a decadência nacional na visão de Oliveira Martins? Logo no início da sua Historia de Portugal, o autor culpa o “imperio oriental” e a “educação dos jesuitas” pela perda da coesão nacional adquirida ao longo da primeira

dinastia. Martins ecoava assim duas das causas da decadência enunciadas por Antero: a expansão ultramarina e o catolicismo. Mais adiante nesta obra, Martins, tal como Antero, atribui um grande relevo ao fracasso dos portugueses como colonizadores, mercê da sua

falta de “genio mercantil”, da corrupção de costumes provocada pela crise do catolicismo renascentista, da "influência dissolvente do clima, do luxo, da sensualidade oriental”, e da incompetência dos governantes (Idem, 1882, p.10, 285-289). Já na Historia da Civilisação Iberica, o autor afirmava que a expansão ultramarina havia criado uma classe

nova, a “aristocracia do dinheiro”, que teria substituído a aristocracia guerreira e abafado o “desenvolvimento normal” da sociedade peninsular, com base no trabalho (Idem, 1879, p.228).

(17)

46

causas da decadência de Portugal seriam assim as mesmas da sua grandeza. Para Oliveira Martins, os descobrimentos e conquistas constituiriam uma espécie de destino ou fatalidade, sem os quais Portugal não teria cumprido o seu desígnio histórico (Idem, 1882, p.175).

Porém, oito anos depois, Martins apresentava já um olhar algo diferente sobre as causas da decadência nacional. No seu “Projecto de lei de fomento rural”, apresentado ao

parlamento em 1887, o então deputado pelo Partido Progressista ia buscar as raízes da decadência ao que ele designava como a “questão rural portuguesa”. Martins começa por demonstrar os esforços de colonização do território e de desenvolvimento agrário durante os quatro primeiros séculos da história nacional, fazendo uso dos estudos económicos de Herculano e Rebelo da Silva. De acordo com estes autores, a população do reino teria demonstrado um aumento sustentado graças à política inteligente dos reis de conceder privilégios e garantias (doações, aforamentos coletivos, forais) àqueles que quisessem criar novos centros populacionais. Os problemas teriam começado a surgir no final do século XIV, com o início do abandono das terras do Alentejo e a escassez cerealífera. Para Martins, esta situação seria o resultado da criação no sul do país, durante a primeira dinastia, de um regime de latifúndios (concedidos sobretudo às ordens militares), gerador uma classe de camponeses sem-terra que teria emigrado em massa para as cidades e, a partir dos séculos XV e XVI, para os territórios ultramarinos (Idem, 1956, p.25-28, 34-43). Não obstante os efeitos negativos da expansão ultramarina, os problemas da economia nacional remontariam assim à própria Idade Média, ao contrário do que Herculano e Antero de Quental haviam sugerido.

As teses de Oliveira Martins seriam utilizadas de um modo particular pelo seu

amigo Alberto Sampaio, que o havia auxiliado na redação do “Projecto de lei”. No seu

(18)

47

absorção das gentes do Sul (predominantemente compostas de “elementos ethnicos extra-europeus”) pelas mais numerosas gentes do Norte (SAMPAIO, 1892, p.125-126).

No entanto, não foi isto que aconteceu. Segundo Sampaio, o advento da dinastia de Avis inauguraria um rumo completamente diferente na administração do reino, concentrada na cidade de Lisboa, com a sua “classe superior cosmopolita”, a sua

população de origem “sarracena” e os “escravos africanos importados depois em escala desproporcionada”. Se a situação geográfica da capital fazia dela a base ideal para as navegações, o seu “dualismo ethnico” dava-lhe a possibilidade de governar sobre as duas raças antagónicas que habitavam o território nacional. Na visão do historiador, teria sido este antagonismo racial e desenraizamento de tradições que teria levado as classes dirigentes a cometerem graves erros governativos, manifestados durante a época da expansão ultramarina. Para Sampaio, as consequências nefastas dos descobrimentos e conquistas seriam apenas o resultado de uma sociedade que nunca chegara a ser um

“organismo collectivo” com um “ideal politico commum” (Ibid., p.126-128, 140-141)8. Nas narrativas históricas de Oliveira Martins e Alberto Sampaio, assistimos assim a uma complexificação das causas da decadência nacional. Ao contrário de Herculano, Teófilo Braga e Antero de Quental, que haviam salientado os elementos políticos e religiosos, estes autores privilegiavam os económicos, nomeadamente a perda de capacidade produtiva da nação. Embora discordando nas causas, com Martins salientado a desigual distribuição da propriedade fundiária e Sampaio uma suposta dualidade étnica, ambos lançaram as bases do que seria uma futura interpretação das causas da decadência portuguesa à luz da moderna história económica e do materialismo histórico. Por outro lado, embora mantendo um olhar essencialmente elogioso sobre a política económica durante o período medieval, eles contribuiriam para mitigar a ideia de uma Idade Média homogeneamente próspera. Tornava-se assim mais complicada a busca de uma “época dourada” ou de um momento original onde as virtudes nacionais mais puras pudessem ser encontradas.

8 Na sua identificação de um suposto dualismo racial entre os povos do Norte de Portugal, descendentes

(19)

48 A questão da Modernidade: a Idade Média dos integralistas e seus opositores

A proclamação da República no dia 5 de outubro de 1910 marcou um corte abrupto com uma das instituições mais antigas em Portugal, cuja origem remontava à própria Idade Média: a monarquia. Alguns meses depois, aquela que é considerada a instituição mais antiga, a Igreja, sofreria um revés igualmente importante com a

promulgação da “Lei de separação do Estado das igrejas” (Decreto de 20 de Abril de 1911). Aos olhos dos republicanos, o novo regime representaria para o país uma rutura ao nível político, social, cultural e religioso, um passo importante para a sua modernização e uma possibilidade de ultrapassar o estado de declínio descrito por vários intelectuais pelo menos desde o século anterior. Porém, para muitos jovens republicanos, ele representou também um motivo de desapontamento perante as suas aspirações de regeneração nacional. Um destes jovens era António Sardinha (1887-1925), então estudante de Direito na Universidade de Coimbra, poeta, futuro deputado e líder doutrinário do movimento monárquico tradicionalista conhecido como

“Integralismo Lusitano”, fundado em 1913.

Em junho de 1914, já depois de concluído o curso universitário, Sardinha publicava um artigo na recém-criada revista Nação Portuguesa, órgão do Integralismo Lusitano. O texto, curiosamente intitulado “Teófilo, Mestre da Contra-Revolução”, fazia uma teorização da ligação entre monarquia e catolicismo. De acordo com Sardinha, durante a Idade Média a fé católica teria conferido às monarquias o sentido de “utilidade colectiva” e “bem comum”, restringindo assim a sua conceção “opressiva e senhorial” do poder e formando a base de um “contrato social” entre reis e súbditos. Os reis medievais eram governantes moderados e não omnipotentes que governavam “com as classes e

não contra” elas. Teria sido esta “norma moral” que teria levado os monarcas europeus a

abraçar a noção de Republica Christiana, uma comunidade de nações católicas unidas por princípios comuns, tendo o papa como pacificador e líder espiritual (SARDINHA, 1914, p.93-95).

Com o advento da Época Moderna, porém, todo este sistema ruiria. Ao introduzir

(20)

49

solidariedade entre os povos e indivíduos e libertando as monarquias europeias de constrangimentos religiosos, o que teria também contribuído para o desenvolvimento

de um “absolutismo frio e calculista” (Ibid.). Este processo, que Sardinha mais tarde

designaria como “a grande Revolução”, teria conduzido aos excessos revolucionários de 1789 e da contemporaneidade (Idem, 1940, p.134). Como escreveria noutro artigo, publicado em 1923 também na Nação Portuguesa, o Renascimento representara o

“início dos grandes desarranjos sociais e morais, de que hoje, na paranoia irremediável

em que a Europa estrebucha, encontram o seu desfecho fatal e lógico” (Idem, 1923,

p.607).

Podemos assim ver como Sardinha vai recuperar uma visão romântica sobre o período medieval de autores críticos da Revolução Francesa como Novalis ou Chateaubriand. Tal como eles, o escritor integralista fazia uma apologia do papel da Igreja Católica durante a Idade Média e denunciava uma Modernidade marcada pela divisão e pelo conflito. Embora divergindo de autores portugueses da tradição “liberal -laicista” como Herculano, Teófilo Braga ou Antero em relação às revoluções contemporâneas, Sardinha recuperava também a sua crítica do absolutismo régio como elemento dissolutivo do equilíbrio político inerente à época medieval. Além disso, ia buscar alguns elementos da visão destes sobre a história nacional.

O primeiro e mais importante destes elementos é o que respeita ao carácter municipal do Portugal medieval. Na sua obra O Valor da Raça, publicada em 1915, Sardinha argumentava que o substrato étnico do povo português fora conservado pelas

“mancomunidades agrícolas” que viriam a dar origem aos concelhos durante a Idade Média. De acordo com o autor, o concelho seria a “célula-mãe da Pátria”, que expressaria

a “aptidões localistas” da raça portuguesa e lhe teria garantido a independência face às ameaças externas. Tal como Herculano, Sardinha considerava que o feudalismo não teria vigorado em Portugal e que o sistema político durante o período medieval teria sido uma combinação quase perfeita entre liberdade (representada pelos concelhos) e autoridade (representada pelo rei). Porém, o autor integralista atribuía um papel muito maior à monarquia e à Igreja Católica que o seu predecessor, considerando que teriam sido estas duas instituições os garantes do equilíbrio do sistema (Idem, 1915, p.ii- xiv, 161-162).

(21)

50

oitocentista e a dos integralistas é o olhar crítico sobre a expansão ultramarina. Tal como Herculano, Antero, Oliveira Martins e Alberto Sampaio, Sardinha considerava o

império oriental uma “bebedeira doirada” que corrompera os costumes e desviara as

forças produtivas da nação para um lucro fácil e passageiro (Ibid., p.107, 112-113). Também outros autores integralistas como Hipólito Raposo e Luís de Almeida Braga partilhavam esta visão negativa dos descobrimentos e conquistas, culpando-os pelo afastamento do curso normal da história nacional seguida durante o período medieval (RAPOSO, 1914, p.171-172; BRAGA, 1916, p.53-54). Porém, para estes autores, os erros da expansão ultramarina não haviam sido apenas o resultado de más políticas, mas uma consequência do “individualismo dissolvente da Renascença” (SARDINHA, 1915, p.107),

do “espírito universalista” dos povos peninsulares (RAPOSO, 1914, p. 171) e da perda do

ideal religioso que conduzira a pátria durante os primeiros séculos (BRAGA, 1916, p.48-53).

Podemos assim concluir que, para além de anti-liberal, a visão integralista sobre a decadência nacional era profundamente crítica da modernidade no geral. À crítica de Herculano ao Renascimento como momento de emergência do despotismo régio e da centralização administrativa, os integralistas acrescentavam um olhar pessimista sobre a Época Moderna, representada como uma fase de dissolução progressiva da ordem política, religiosa e moral que caraterizara a Idade Média e que culminaria nas nefastas ideologias políticas contemporâneas. A decadência de Portugal seria assim uma consequência mais deste processo do que propriamente de uma evolução política interna ou de erros na administração do reino.

Contra a visão integralista do período medieval e das causas da decadência nacional insurgiram-se dois historiadores republicanos durante este período: António Sérgio (1883-1969) e Jaime Cortesão (1884-1960). Inicialmente ligados ao movimento cultural Renascença Portuguesa, fundado na cidade do Porto em 1911, Sérgio e Cortesão faziam parte de um grupo de intelectuais que, inspirados pela tradição garrettiana, se apresentavam como uma reação contra o suposto ceticismo, pessimismo e amargura da “Geração de 70” (CORTESÃO, 1960, p.12-13). De acordo com um dos seus membros, o escritor Raul Proença, a “Renascença Portuguesa” propunha remediar os males da sociedade portuguesa através do “contacto com o mundo moderno, (…) sem

(22)

51 “Renascença Portuguesa” encontrava-se assim uma atitude claramente cosmopolita e apologista da modernidade que contrastava com os pressupostos ideológicos do Integralismo.

Esta mesma atitude é observável em dois artigos publicado por António Sérgio no boletim A Vida Portuguesa em agosto de 1913 e que serviriam de base à sua obra O problema da cultura e o isolamento dos povos peninsulares (1914). Nestes textos, o

historiador argumentava que o “grande pecado português” seria a falta de espírito empreendedor que caraterizava as nações europeias mais avançadas e que conduzira os

povos peninsulares a um “viver parasitário”. Porém, ao contrário de Antero de Quental, Sérgio considerava que este parasitismo não teria resultado das conquistas ultramarinas ou da ascensão do absolutismo e do catolicismo intolerante, mas sim das “tendências

guerreiras” que haviam conduzido os reinos cristãos ibéricos desde os tempos da ocupação árabe. Para Sérgio, enquanto na restante Europa medieval o “burguesismo

industrial” se teria desenvolvido, na Península Ibérica a população cristã teria recebido

uma educação essencialmente guerreira, deixando as funções produtivas para os mouros e judeus. Com a expulsão destes nos séculos XVI e XVII, as atividades produtivas, em especial a agricultura, teriam caído na mais completa ruína, pois a restante população apenas se dedicava à guerra e à ociosidade. No entender do historiador, só aprendendo os hábitos e formas de trabalho das nações europeias mais avançadas é que os povos peninsulares, em particular os portugueses, poderiam abandonar este modo de vida e tornar-se um povo empreendedor e próspero (SÉRGIO, 1913, pp.121-124, 154).

Tal como Oliveira Martins e Alberto Sampaio, António Sérgio identificava assim as causas da decadência no próprio período de formação da nacionalidade, ou seja, na Idade Média. Embora a Época Moderna correspondesse a um período de agravamento dos problemas já existentes, Sérgio considerava que o problema de Portugal não estava na Modernidade em si, mas no isolamento nacional face às correntes culturais europeias a partir do século XVI. Como descreveria em O problema da cultura e o isolamento dos povos peninsulares e na sua conferência “O Reino Cadaveroso ou o problema da cultura

em Portugal” (1926), até ao final deste século Portugal teria sido uma grande potência, mantendo-se, em termos culturais, na vanguarda do “melhor espírito europeu”. Porém,

num curto período de tempo, esta grandeza teria colapsado. Por ação do absolutismo régio, da Inquisição e dos jesuítas, a nação teria sido conduzida para uma “política de

(23)

52

moderno que vigorara até aí e a faria regressar ao espírito dogmático, acrítico e autoritário que caraterizara a Idade Média (Idem, 1914, p.20-27; Idem, 1929, p.19-22, 41-42)9.

A visão de António Sérgio sobre as causas da decadência nacional não podia assim ser mais oposta à defendida pelos integralistas. Enquanto estes viam na Modernidade a causa dos males que haviam afligido a sociedade portuguesa a partir do século XVI, Sérgio, tal como Antero, argumentava que teria sido o isolamento desta mesma Modernidade que teria causado o declínio e o atraso português desde esse período. Portugal deveria assim abraçar o espírito da Modernidade de forma a recuperar o seu lugar entre os povos civilizados da Europa. Para o conseguir, os jovens portugueses deveriam receber uma educação cosmopolita, baseada na preparação técnica e na cultura europeia, elementos que dos quais a nação se havia separado durante a Época Moderna.

O tema do cosmopolitismo surge de forma recorrente na obra historiográfica de António Sérgio. Em Considerações historico-pedagogicas (1915) e Bosquejo da História de Portugal (obra que serviria de introdução ao Guia de Portugal editado pela Biblioteca Nacional em 1924), o autor explicava que a “criação de Portugal” havia sido uma “obra de estrangeirismo” conduzida por elementos não-espanhóis: mercadores do norte e do sul da Europa, nobres francos, cruzados e colonos de várias partes da Europa, monges de ordens religiosas (nomeadamente a de Cluny). De acordo com Sérgio, “a influência do

elemento franco” na colonização do território nacional havia sido muito mais importante que no reino de Leão, onde a maioria dos estrangeiros de além-Pirenéus pertenciam às classes altas. Para o autor, havia sido esta influência de elementos provenientes do norte da Europa que, juntamente que os “laboriosos e flexíveis” judeus e os “civilizados e

instruídos” mouros, havia promovido o “progresso económico” durante a primeira dinastia, progresso este que fora elogiado por autores como Rebelo da Silva, Antero de Quental, Oliveira Martins ou Alberto Sampaio (Idem, 1916, p.11-13; Idem, 1923, p.13). Ao dar uma perspetiva transnacional da formação do território português, Sérgio divergia assim das explicações tradicionais que concediam um papel primordial a fatores meramente internos, fossem eles de cariz voluntarista (Herculano) ou etnogenético (Teófilo Braga, António Sardinha).

(24)

53

Outro contributo importante nesta matéria foi o do historiador Jaime Cortesão,

com os seus ensaios “A formação democrática de Portugal” (1928) e “Os factores

democráticos na formação de Portugal” (1929). Escritos e publicados aquando do seu exílio em França na sequência da participação na intentona republicana de fevereiro de 1927 contra a recém-instaurada ditadura militar, estes dois textos inserem a emergência da nacionalidade portuguesa no contexto económico e social mais geral da Europa dos séculos XI e XII. Baseando-se nos recentes estudos do historiador belga Henri Pirenne, Cortesão explica como a colonização do território português e a formação da nacionalidade se teriam relacionado com a transição da economia europeia para um sistema monetário e capitalista durante este período. De acordo com Cortesão, a nacionalidade portuguesa teria resultado do lento processo de ascensão social e política das antigas classes servis que, estimuladas pelas novas condições económicas da Europa e por um conjunto de fatores geográficos (proximidade com o mar, abundância de portos e rios navegáveis, clima temperado), se teriam estabelecido nos estuários dos rios, desenvolvido novas atividades económicas e dado origem à classe dos mercadores e oficiais mecânicos. Para o historiador, este processo teria resultado na formação de

verdadeiras “democracias urbanas” de cariz cosmopolita – as comunas , cuja atividade económica se baseava no comércio marítimo de longa distância (CORTESÃO, 1928, p.343-345; Idem, 1929, p.14-61).

Nestes textos de Cortesão podemos já encontrar um esboço do que serão as futuras interpretações da história nacional com base no materialismo histórico. A importância atribuída a fenómenos de cariz económico mais geral, bem como a ênfase no papel das classes burguesas como veículo do progresso histórico contrastam com as interpretações exclusivistas baseadas em elementos políticos ou étnicos que haviam caraterizado a anterior historiografia sobre a Idade Média.

Porém, na obra de Cortesão podemos encontrar também temas que expressam uma continuidade em relação a autores como Herculano, Teófilo Braga ou Antero de Quental. Um deles é o papel dos concelhos ou comunas na emancipação política e social das classes populares durante o período medieval. Inserindo-se na mesma tradição ideológica dos seus predecessores e como autor republicano que era, Cortesão fazia remontar as modernas lutas do povo português pela democracia ao próprio movimento comunal da Idade Média. Outro elemento comum aos autores mencionados dizia

(25)

54

como Herculano, Cortesão entendia que as circunstâncias específicas da Reconquista haviam levado os reis portugueses a conceder direitos comunais que, noutros contextos europeus, tiveram que ser adquiridos pela via revolucionária. Assim se teria formado uma aliança entre a coroa e as cidades contra as classes privilegiadas, uma verdadeira

“monarquia popular” baseada no poder dos concelhos e não no dos senhores feudais

(Ibid., p.14-15, 79-80).

Também no que respeita às causas da decadência Cortesão seguiria em grande medida as teses dos seus predecessores. Em várias das suas obras publicadas entre a fase da “Renascença Portuguesa” e a partida para o seu segundo exílio (1940), o historiador denunciava a intolerância religiosa, a Inquisição, a opressão do pensamento crítico, a educação jesuítica, os efeitos da expansão ultramarina na economia nacional e a macrocefalia de Lisboa como fatores que haviam contribuído para a decadência de Portugal. Porém, mercê das transformações políticas operadas a partir de 1926, muitos destes temas passaram a ser alvo de censura prévia, pelo que surgem de forma cada vez mais esporádica e menos sistematizada não apenas na obra de Cortesão, mas também na de Sérgio.

Por outro lado, as transformações operadas no meio historiográfico nacional, com a introdução de novas metodologias e conceções oriundas da história económica e social, fariam com que as tradicionais narrativas focadas meramente no contexto nacional entrassem progressivamente em declínio. Defender a ideia romântica de um período medieval harmónico e próspero face a uma modernidade de desagregação e declínio era assim, no mínimo, cada vez mais historiograficamente problemático. Porém, estas narrativas teriam uma versão final sob a alçada da ditadura militar e do regime do Estado Novo instituído em 1933. Como veremos, esta versão baseava-se em vários dos pressupostos defendidos pelos integralistas, embora inserindo-os numa conceção bem mais triunfalista da história de Portugal.

Um regresso à Idade Média? Cerejeira, Ameal e Pimenta

Em 1927, ano da referida revolta republicana contra a ditadura militar, a revista

(26)

55

Gonçalves Cerejeira (1888-1977), então docente de História na respetiva Faculdade de Letras. Nesses artigos, intitulados “O conceito de ‘Idade Média’” e “A noite de 10 séculos”, o futuro cardeal-patriarca de Lisboa e líder da Igreja Católica portuguesa utilizava vários dos argumentos expostos numa tese por ele orientada dez anos antes cujo objetivo tinha sido desconstruir a ideia negativa sobre o período medieval propagada desde o Renascimento10.

Embora considerasse que os românticos haviam de algum modo exagerado na sua reapreciação da Idade Média, Cerejeira não deixava também de reconhecer o seu importante contributo para a reavaliação desta época ao nível histórico, artístico, literário e filosófico. Graças a eles, podíamos hoje ter uma visão mais completa do que teria sido o período medieval, que surgiria hoje aos olhos da historiografia como uma

“época de fecundíssima actividade, em que mergulham as instituições fundamentais da civilização moderna”. Para o sacerdote, a tradicional divisão tripartida da história (Antiguidade-Idade Média-Modernidade) deveria mesmo ser questionada em favor de outros modelos explicativos nos quais o período medieval fosse entendido como uma época de rutura e transformação (CEREJEIRA, 1927, p.112-131).

De todas as fases do período medieval, aquela que Cerejeira mais apreciava e elogiava era a que compreendia os séculos XI a XIII: o chamado período católico-feudal”.

No seu entender, esta fase constituía o “coração” da Idade Média e seria aquela em que

os elementos essenciais da civilização europeia se teriam formado através uma

“grandiosa síntese” operada pela Igreja Católica. Esta síntese manifestar-se-ia a três níveis: internacional – a constituição de uma cristandade unida por ideais comuns sob a liderança do papa; político-social cooperação entre o Estado e a Igreja, entre os suseranos e os vassalos, entre os habitantes das comunas e entre os artesãos nas guildas e corporações de ofícios; e interior – predomínio da teologia sobre as restantes ciências e da fé cristã sobre os interesses institucionais e individuais (Ibid., p.126-133). Podemos assim ver como Cerejeira, apesar de aparentemente procurar distanciar-se de uma Idade Média romantizada e oferecer um olhar mais complexo sobre esta época, no fundo acabava por meramente transpor uma visão altamente idealizada desta para um período cronológico mais curto.

(27)

56

A mesma visão romântica perpassa na descrição que Cerejeira faz da Época Moderna. Entendida como um tempo de turbulência política, social, filosófica e religiosa, a Modernidade representa o contrário daquilo que, no seu entender, caraterizara o

“período católico-feudal”: guerras entre os estados europeus; enfraquecimento do

“sentimento de unidade cristã”; destruição da harmonia entre a teologia e a filosofia. Para o sacerdote, três fatores haviam contribuído para esta situação: a Reforma Protestante, a ascensão do absolutismo e a divulgação dos ideais humanistas (Ibid., p.133-134). No fundo, Cerejeira apenas repetia, porventura de uma forma mais sistematizada, os argumentos enunciados pelos integralistas uns anos antes.

Apesar deste olhar negativo sobre a Modernidade, o futuro cardeal-patriarca opunha-se à ideia de que a Idade Média tivesse sido uma “idade de oiro” à qual se devesse retornar. Embora o período medieval tivesse sido uma “grande época” na

história da civilização, o seu lado indisciplinado, brutal e supersticioso, faziam com que Cerejeira mostrasse bastantes reservas em relação à recuperação de modelos e instituições medievais (Ibid., p.448-449, 555-556). Ao contrário dos integralistas, Cerejeira não construía uma utopia política a partir da Idade Média, embora veiculasse vários dos seus pressupostos.

Neste período, o autor que mais apelaria a um “retorno” ao período medieval foi

sem dúvida João Ameal (1902-1982). Escritor e jornalista ligado ao movimento monárquico integralista Acção Realista Portuguesa, Ameal ficaria conhecido como o

“historiador do Estado Novo” devido à sua identificação com os valores defendidos pelo regime (tornar-se-ia deputado na Assembleia Nacional nos anos 40 e 50) e ao apoio claro que a sua extensa obra mereceu por parte deste (PINTO, 1993, p.125). Em diversos trabalhos publicados entre o período da ditadura militar e o começo da Segunda Guerra Mundial, Ameal apelava a uma recuperação dos valores morais e espirituais medievais – uma “Nova Idade Média” – e da filosofia de São Tomás de Aquino como remédio para os males do presente.

(28)

57

antropocêntrica, individualista e materialista que teria culminado com as catastróficas revoluções liberais e socialistas. Tal como os chamados “integralistas da primeira geração”, Ameal fazia assim remontar aquilo que ele considerava serem os desarranjos morais, sociais, filosóficos e político-ideológicos do seu tempo ao início da Época Moderna. À semelhança dos seus predecessores, o escritor monárquico integrava um olhar romântico sobre a história europeia numa ideologia contrarrevolucionária e eminentemente anti-moderna.

No entender de Ameal, seria precisamente este caráter anti-moderno ou

medieval que explicaria a “coesão moral” e o papel proeminente que Portugal havia

desempenhado até ao século XVI. Na sua História de Portugal publicada no contexto do duplo centenário de 1940, Ameal argumentava que a expansão ultramarina não teria sido uma empresa essencialmente motivada por interesses económicos ou políticos (como afirmavam vários autores desde Herculano), mas pelo “espírito de Cruzada” caraterístico do período medieval (Idem, 1940, p.202-203, 315). Ao contrário de autores como António Sérgio ou Jaime Cortesão, Ameal considerava que a medievalidade ou anti-modernidade portuguesa não representaria assim um fator de atraso ou decadência, mas, pelo contrário, um fator diferenciador e valorativo da história nacional.

Além deste olhar essencialmente positivo sobre a expansão ultramarina, Ameal não atribuía qualquer importância a outros fatores identificados pelos primeiros

(29)

58

Não é por isso de admirar que o escritor monárquico considerasse Salazar uma espécie de figura messiânica, salvadora de Portugal depois de mais de cem anos de

declínio. Para Ameal, o ditador era uma “figura da estirpe dos grandes da Idade de Oiro”

(a sua alegada semelhança com uma das figuras dos Painéis de S. Vicente é mesmo

considerada um “sinal revelador”), alguém que reatava “o fio partido da História” nacional e permitia o ressurgimento do “Portugal histórico” (Ibid., p.796-797). Se a

nação havia desempenhado um “papel de primeiro plano” durante a Idade Média e o

início do Renascimento, também agora voltava a desempenhá-lo, ao recuperar as suas

“diretrizes espirituais e cívicas” e apresentar-se como um modelo de ordem, trabalho e paz para toda a Europa (Idem, 1942, p.141).

Ameal não estava sozinho na sua tentativa de legitimar o novo regime no passado medieval português. Nesta altura, também o escritor e historiador monárquico Alfredo Pimenta (1882-1950), então diretor do Arquivo Municipal de Guimarães, procurava estabelecer uma analogia entre as Cortes medievais e os órgãos representativos do Estado Novo. Na sua obra Elementos de História de Portugal, publicada em 1934 e adotada como livro único do ensino secundário em 1936, o autor argumentava que as cortes medievais correspondiam àquilo que “hoje, conhecemos como a instituição formada pelos representantes das fôrças vivas da Nação” (i.e., a Câmara Corporativa).

Porém, contrariamente ao que os historiadores liberais haviam afirmado, estas nunca teriam limitado o poder do rei e seriam antes uma espécie de órgão consultivo que aconselhava e esclarecia o monarca (PIMENTA, 1934, p.40, 53-54). Já na sua conferência

“A Fundação e a Restauração de Portugal”, proferida em Guimarães dois dias antes do início das comemorações de 1940, Pimenta salientava as semelhanças entre a estrutura

política do Estado Novo e a da monarquia medieval, ambas possuindo uma “Assembleia

política, reduzida ao mínimo, no tempo, e nas funções; quase só consultiva e

esclarecedora” (Idem, 1940, p.35). Com estas afirmações, o historiador procurava assim minar uma das ideias através das quais a historiografia liberal havia procurado legitimar o constitucionalismo: a da origem medieval do sistema representativo português.

Referências

Documentos relacionados

Parágrafo Segundo – A Assembleia Geral será instalada na data e horário estabelecido com a maioria dos associados, ou 30 minutos após com pelo menos um quinto (1/5)

Com os resultados obtidos foi determinado um modelo empírico que obtém a quantidade de polímero mais próxima do produzido experimentalmente, e um modelo fenomenológico que

•  componentes presentes em vários tipos de aparelhos eletrônicos   Bosch •  assistência de direção   Siemens •  controle de radiologia 31 II SCIENTEX

Figura 2 – País de Prioridade dos Pedidos de Patente depositados no mundo relacionados aos inseticidas, fungicidas e herbicidas no período compreendido entre 1996

(8) Em especial, deverá ser atribuída competência à Comissão para estabelecer os procedimentos, ensaios e requisitos específicos para a homologação dos veículos a

O juramento que tinham dado e, mais do que isso, a lealdade de guerreiros godos não lhes consentiam abandonarem a irmã do seu capitão; não lho consentiria o fero cavaleiro negro,

bovis in milk from cows in the state of Paraíba in Northeastern Brazil suggests that humans are at risk of contamination by ingestion.. This reinforces the need for

O objectivo primordial deste estudo empírico foi a identificação das expectativas parentais em relação à escola pública básica dos segundo e terceiro ciclos, no Distrito do