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Propostas de proteção jurídica aos conhecimentos tradicionais associados

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Academic year: 2018

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FACULDADE DE DIREITO

LAURA RIBEIRO MACIEL

PROPOSTAS DE PROTEÇÃO JURÍDICA AOS CONHECIMENTOS TRADICIONAIS ASSOCIADOS

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PROPOSTAS DE PROTEÇÃO JURÍDICA AOS CONHECIMENTOS TRADICIONAIS ASSOCIADOS

Monografia apresentada ao Curso de Direito da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Dr. William Paiva Marques Júnior.

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Federal do Ceará

Biblioteca de Direito

___________________________________________________________________________

R369p Ribeiro Maciel, Laura.

Propostas de proteção jurídica aos conhecimentos tradicionais associados / Laura Ribeiro Maciel. – 2017. 89 f.

Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Direito, Curso de Direito, Fortaleza, 2017.

Orientação: Prof. Dr. William Paiva Marques Júnior.

1. Biodiversidade. 2. Conhecimento tradicional. 3. Regime sui generis. I. Título.

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PROPOSTAS DE PROTEÇÃO JURÍDICA AOS CONHECIMENTOS TRADICIONAIS ASSOCIADOS

Monografia apresentada ao Curso de Direito da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Dr. William Paiva Marques Júnior.

Aprovada em: ___/___/______.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________ Prof. Dr. William Paiva Marques Júnior (Orientador)

Universidade Federal do Ceará (UFC)

_________________________________________ Profª. Drª. Tarin Cristino Frota Mont’Alverne

Universidade Federal do Ceará (UFC)

_________________________________________ Profª. Drª. Theresa Rachel Couto Correia

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A Iracy, minha mãe.

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A Deus e a Nossa Senhora Auxiliadora, por tudo que me proveram, especialmente por toda a proteção.

Aos meus pais, Jonas e Iracy, por todo o esforço e dedicação de uma vida que me fizeram chegar até aqui.

Aos meus irmãos, Joice e Jonas Júnior, por acreditarem na minha capacidade e por se fazerem presentes nos últimos anos, mesmo a mais de dois mil quilômetros de distância.

A toda a minha grande família, em especial minha avó, Maria Antonieta, por

sempre esperar o melhor de mim e dizer que esta neta “nem parece uma caçula”. Sua

inteligência e sinceridade nunca deixam de me surpreender.

Ao meu orientador, Prof. Dr. William Paiva Marques Júnior. Tenho orgulho de ser sua orientanda e de nossos caminhos acadêmicos terem se cruzado há tanto tempo, lá no meu segundo semestre da faculdade. Muito obrigada pela paciência, dedicação e capacidade não somente com seus orientandos, mas também com qualquer aluno que busque seu auxílio.

Às professoras participantes da banca examinadora, Profª. Drª. Tarin Cristino

Frota Mont’Alverne, e Profª. Drª. Theresa Rachel Couto Correia, por terem aceitado meu convite, pelo tempo dispensado, pelas valiosas colaborações e sugestões.

À Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, especialmente àqueles professores e funcionários que me marcaram ao executar suas funções com excelência, respeito e dedicação. Meu tempo aqui foi incrível também graças a vocês. Obrigada.

Aos meus amigos da faculdade, pelas inúmeras horas que passamos juntos nos bancos, nas salas de aula e nos corredores. Foi uma aventura viver esta experiência, e vocês a tornaram mais divertida e instigante.

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“Nós seremos julgados pela coragem de nossos corações”.

(Sense8)

“Resistance to biopiracy is a resistence to the ultimate colonization of life itself – of the future of evolution as well as the future of non-Western traditions of relating to and knowing nature. It is a struggle to protect the freedom of diverse species to evolve. It is a struggle to protect the freedom of diverse cultures to evolve. It is a struggle to conserve both cultural and biological diversity”.

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Os conhecimentos tradicionais associados são uma importante riqueza biológica e cultural, construídos por várias gerações de diversas comunidades tradicionais. Estas, em contato com o meio ambiente que as cerca, desenvolveram uma relação de simbiose com a biodiversidade, de forma a protegê-la e expandi-la, gerando os referidos conhecimentos, os quais são visados por grandes empresas e corporações farmacêuticas e de cosméticos que encontraram nesses saberes um mapa para explorar a rica biodiversidade de diversos biomas. O acesso dessas companhias aos conhecimentos, entretanto, muitas vezes ocorre sem a devida anuência da comunidade detentora, a qual também não recebe os benefícios advindos dessa apropriação indevida. Há, então, uma urgência no estabelecimento de formas de proteção a esses conhecimentos, cuja produção é distinta das tuteladas pelo atual sistema de patentes, que limita sua proteção às invenções com finalidade industrial e às quais é possível a individualização dos responsáveis pela invenção. Por meio de pesquisas em diversos artigos científicos, trabalhos de conclusão de curso, teses, dissertações, legislações internacionais e nacionais, foi possível observar diversas possibilidades de proteção para esses conhecimentos, como a parceria entre universidades e empresas, a atuação de agências que assistam às comunidades, a tutela penal e o regime sui generis. Observa-se, entretanto, que todas essas medidas devem atuar conjuntamente com a cooperação internacional, pois sem a colaboração dos diferentes países – com seus diversos interesses – nenhuma legislação nacional, regime sui generis ou tutela penal vai impedir que os conhecimentos tradicionais sejam apropriados indevidamente.

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several generations of different traditional communities. Those, in contact with the environment that surrounds them, develop a symbiotic relation with biodiversity, in a way to protect and expand it, generating the aforementioned knowledge. That knowledge is aimed by big pharmaceuticals and cosmetics companies and corporations, which have found in it a map

to explore the rich biodiversity of different biomes. However, these companies’ access to the knowledge frequently happens without the communities’ consent, and without sharing the

benefits with the communities whose knowledge has been misappropriated. There is an urgency in establishing ways to protect this knowledge, whose production is different from that pupiled by the current patenting system, which limits its protection to inventions with industrial purposes, and to those whose responsibility for the inventions can be individually appointed. By researching various scientific articles, theses, dissertations, international and national laws, it was possible to observe different possibilities of protection to that knowledge, like the partnership between universities and companies, the work of agencies that can assist those communities, criminal protection and the sui generis regime. It is important to notice, however, that all those measures must work together with international cooperation, because without the collaboration from the different countries – with their own different interests – no national law, sui generis regime or criminal protection will stop the misappropriation of traditional knowledge.

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ABS Acess and Benefit Sharing

CDB Convenção sobre Diversidade Biológica CGEN Conselho de Gestão do Patrimônio Genético DPI Direitos de Propriedade Intelectual

FUNAI GATT MP OMC ONU PNUMA STJ TRIPS

U.S EPA

Fundação Nacional do Índio

Acordo Geral de Tarifas e Comércio Medida Provisória

Organização Mundial do Comércio Organização das Nações Unidas

Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente Superior Tribunal de Justiça

Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio

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1 INTRODUÇÃO... 11

2 BIOPIRATARIA: DELIMITAÇÃO CONCEITUAL, CONHECIMENTO TRADICIONAL E BIODIVERSIDADE... 13

2.1 Biodiversidade e sua relação com o conhecimento tradicional associado... 13

2.2 Definindo conhecimento tradicional associado e seu caráter especial... 19

2.3 A problemática da biopirataria dos conhecimentos tradicionais associados... 24

3 A IMPORTÂNCIA DO CONHECIMENTO TRADICIONAL E O PROBLEMA DE SUA MERCANTILIZAÇÃO... 29

3.1 Importância do conhecimento tradicional... 29

3.2 A mercantilização do conhecimento tradicional associado... 32

3.3 A questão das patentes ante os conhecimentos tradicionais associados... 35

3.4 Casos de biopirataria... 39

4 PROTEÇÃO DO CONHECIMENTO TRADICIONAL ASSOCIADO: ANÁLISE PROPOSITIVA... 44

4.1 Protocolo de Nagoia... 44

4.2 A regulamentação do acesso aos conhecimentos tradicionais associados no Brasil: Lei Nº 13.123/2015 e considerações... 47

4.3 O princípio de vedação ao retrocesso dos Direitos Humanos... 53

4.4 Análise de ideias que induzam a novas possibilidades... 54

4.4.1 Experiências de outros países... 54

4.4.1.1 Costa Rica... 55

4.4.1.2 Comunidade de Países Andinos... 56

4.4.1.3 Equador... 56

4.4.1.4 Filipinas... 57

4.4.1.5 Austrália... 57

4.4.2 Biopirataria: possibilidades de combate... 58

4.4.3 Regime Jurídico sui Generis... 61

4.4.3.1 Pontos essenciais... 61

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1 INTRODUÇÃO

Na realidade contemporânea existem diversas comunidades denominadas tradicionais. Estas se caracterizam por manterem práticas e modos de vida seculares, tendo muitas vezes um sistema político e uma organização social própria. No Brasil existem diversos exemplos de comunidades tradicionais, sendo mais conhecidos os povos indígenas e os quilombolas. Essas comunidades possuem conhecimentos e práticas desenvolvidos por meio de diversas gerações que construíram coletivamente e em contato simbiôntico com o ecossistema em que vivem. Este conjunto de informações e práticas é chamado de conhecimentos tradicionais.

Os saberes tradicionais têm os mais diversos conteúdos e funções. Podem se referir a histórias, rituais e músicas da comunidade, processos artísticos próprios e também conhecimentos associados à biodiversidade. Os saberes associados à diversidade biológica têm várias finalidades: são conhecimentos adquiridos com o contato e o manejo da diversidade presente no ecossistema em que a comunidade está inserida, e possuem utilidades medicinais, alimentares e culturais retiradas da flora e da fauna.

A utilização dos recursos naturais atraiu a atenção de várias empresas e corporações, especialmente da indústria farmacêutica e de cosméticos, que perceberam nesses conhecimentos um guia para suas pesquisas, uma forma de torná-las mais baratas e, consequentemente, gerar mais lucros para si próprias. O interesse econômico fez com que os conhecimentos tradicionais se tornassem mercadoria, e, em consequência, as comunidades detentoras também, gerando apropriações indevidas por parte de empresas e de outros países.

Para combater as mais diferentes formas de apropriação indevida, diversas discussões têm sido travadas na busca por uma regulamentação, tanto em nível internacional quanto nacional, para o acesso a esses conhecimentos. A regulamentação é essencial para evitar acessos ilegítimos, atingindo os direitos coletivos das comunidades, além de propiciar proteção adequada aos conhecimentos.

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Neste sentido, o primeiro capítulo define os principais conceitos deste trabalho, bem como apresenta já alguns pontos sensíveis envolvendo estes conceitos. O segundo capítulo demonstra como os conhecimentos tradicionais estão sendo visados e reflete sobre a insuficiência do sistema de patentes atual na proteção destes saberes. Por fim, o terceiro capítulo discute as propostas de proteção em diversas esferas.

É importante frisar que na busca por formas de regulamentação é necessário observar propostas de autores nacionais e estrangeiros, documentos internacionais, experiências já implementadas no Brasil e em outros países, bem como a legislação nacional. Além disso, importante examinar casos concretos de biopirataria, os quais ocorreram em razão da falta de regulamentação de acesso ou à revelia da vigente.

O tipo de pesquisa efetuado neste trabalho foi o exploratório, com o objetivo de chamar a atenção para a proteção dos conhecimentos tradicionais. Para tanto foi necessária a leitura de diversas fontes, tais como livros, artigos científicos, trabalhos de conclusão de curso, dissertações de mestrado e teses de doutorado ligados à proteção do conhecimento tradicional. Ademais, foram estudados vários documentos e instrumentos internacionais, legislação nacional e estrangeira, bem como casos concretos de biopirataria.

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2 BIOPIRATARIA: DELIMITAÇÃO CONCEITUAL, CONHECIMENTO TRADICIONAL E BIODIVERSIDADE

Ao estudar os conceitos de biopirataria, conhecimento tradicional e biodiversidade, nota-se o quanto são amplos e o quanto podem significar. Muitos pensam que a biopirataria se restringe ao furto de uma planta ou animal, mas ela pode significar muito mais que um crime patrimonial. Quando se relaciona a biopirataria ao conhecimento tradicional, o que se encontra é a apropriação do conhecimento e da cultura de um povo. Esse saber foi construído por meio de diversas gerações daquela comunidade, sendo de produção coletiva e ancestral, características com as quais o Direito não está acostumado a lidar.

Entre a biopirataria e o conhecimento tradicional ainda há um fator determinante que é a biodiversidade. Esta possui um caráter de simbiose com o conhecimento tradicional; ao mesmo tempo em que a biodiversidade oferece uma série de possibilidades para as comunidades tradicionais, em seus habitats, são as comunidades tradicionais que potencializam essas mesmas possibilidades por meio da utilização sustentável praticada de forma intergeracional. Tais práticas são um foco de alto interesse para corporações científicas, fomentando a biopirataria.

2.1 Biodiversidade e sua relação com o conhecimento tradicional associado

A biodiversidade é uma das maiores riquezas do planeta Terra. Ela é definida pela variedade de organismos vivos de toda sorte de origens, compreendendo os sistemas terrestre, aéreo e aquático1, além dos diversos biomas, como o Cerrado e a Amazônia. Sua existência provê uma série de benefícios aos seres humanos, que a utilizam de diferentes formas, sendo considerada de fato uma riqueza em sentido econômico, social e científico.

A diversidade biológica tem o seu berço na região entre os trópicos de Capricórnio e Câncer2, na qual boa parte do Brasil se encontra. Não é surpresa observar que o país tem mais de 20% do número total de espécies da Terra, o que o torna, entre os 17 países denominados megadiversos3, o mais rico em biodiversidade4. Essa riqueza se torna ainda mais

1SANTOS, Antônio Silveira R. dos. Biodiversidade bioprospecção, conhecimento tradicional e o futuro da vida. Disponível em: <http://www.ccuec.unicamp.br/revista/infotec/artigos/silveira.html>. Acesso em: 21 abr. 2017.

2SHIVA, Vandana. Biopiracy: The Plunder of Nature and knowledge. Califórnia: North Atlantic Books, 2016.

p.65.

3Esse termo é usado para determinar os 17 países que em conjunto tem mais de 70% da diversidade do planeta.

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especial ao se analisar conjuntamente com a sociobiodiversidade única do país, representada por mais de 200 povos indígenas e por diversas comunidades tradicionais, como quilombolas, seringueiros, ribeirinhos, dentre outros. Tais comunidades têm papel fundamental na existência e na manutenção da biodiversidade.

Ocorre que, assim como o meio ambiente, a diversidade biológica do planeta sofre sérios abalos com a existência humana pautada em um desenvolvimento econômico sem limitações e precauções socioambientais. Vale salientar que neste trabalho não será discutida vertente frequentemente utilizada por outros autores, que muitas vezes polarizam o problema do meio ambiente entre os chamados países desenvolvidos e os em desenvolvimento. Apesar de considerar esta discussão pertinente, especialmente no que concerne aos acordos internacionais, o foco deste trabalho será outro.

Independentemente de serem países do Hemisfério Sul ou do Norte, de primeiro ou terceiro mundo – classificação problemática e defasada– todos os países precisam observar com grande atenção os diversos problemas ambientais e suas consequências: poluição, desmatamento, aquecimento global, refugiados ambientais, bioprospecção exagerada, destruição e apropriação de conhecimentos tradicionais, entre outros. Todos esses problemas atingem, direta ou indiretamente, a biodiversidade; flora e fauna são perdidas, ecossistemas inteiros desaparecem, conhecimentos são esquecidos ou apropriados e a rica biodiversidade vai se perdendo.

As perdas podem ser observadas de diversas formas, como no Cerrado brasileiro5, em desastres ambientais como o de Mariana6, e do Golfo do México7, que derramou mais de

República Democrática do Congo, Indonésia, China, Papua Nova Guiné, Índia, Malásia, Filipinas e Austrália. Alguns dos critérios usados para classificar estes países em megadiversos são: o número de plantas endêmicas - aquelas que só existem em um país e em nenhum outro lugar -, o número total, de mamíferos, pássaros, répteis e anfíbios, além da presença de ecossistemas marinhos, os quais possuem uma gigantesca diversidade. OS 17 PAÍSES da megadiversidade. Revista ECO 21, Rio de Janeiro. Disponível em: <http://www.eco21.com.br/textos/textos.asp?ID=975>. Acesso em: 21 abr. 2017.

4BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Dados do Ministério do Meio Ambiente sobre biodiversidade brasileira. Disponível em: <http://www.mma.gov.br/biodiversidade/biodiversidade-brasileira>. Acesso em: 21 abr. 2017.

5Estudo observa que em trinta anos o Cerrado brasileiro pode ter a maior extinção de plantas da sua história: “O

cerrado perdeu 46% de sua vegetação nativa, e só cerca de 20% permanece completamente intocado, segundo os pesquisadores. Até 2050, no entanto, pode perder até 34% do que ainda resta. Isso levaria à extinção 1.140 espécies endêmicas - um número oito vezes maior que o número oficial de plantas extintas em todo o mundo

desde o ano de 1500, quando começaram os registros”. EM 30 ANOS, cerrado brasileiro pode ter maior extinção de plantas da história, diz estudo. BBC Brasil, São Paulo, 2017. Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/brasil-39358966 >. Acesso em: 23 abr. 2017.

6O Ibama classificou o desastre ambiental de Mariana como o maior do Brasil. Observou que cerca de 400

espécies podem impactadas e que ao menos duas espécies de peixes endêmicas do Rio Doce podem ser extintas. DESASTRE em Mariana ameaça quase 400 espécies de animais: Um mês após o rompimento das barragens da Samarco, laudo técnico do Ibama classificou o caso como "maior desastre ambiental do Brasil. Revista Época,

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<http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/blog-do-100 milhões de barris de petróleo no mar8. Outra ameaça real, segundo Mgbeoji, são os efeitos da bioprospecção desenfreada, identificados como responsáveis pela extinção de espécies inteiras: há o caso do Taxol, por exemplo, droga usada no combate ao câncer. Para se produzir um quilo do medicamento é necessário extrair de 2.500 a 4.000 cascas de Teixo do Pacífico9. O consumo de produtos também gera demanda e a consequente valorização dos insumos, sendo este processo relacionado como responsável pela extinção da Vinca-de-Madagascar da natureza10, bem como a extinção dos elefantes em consequência da busca pelo marfim11.

Importante ainda lembrar o alerta feito pelo então secretário da Convenção sobre Diversidade Biológica da ONU, Oliver Hillel, no Ano Internacional da Biodiversidade, em

2010: “‘Estamos perdendo essa biodiversidade a uma taxa mil vezes maior do que a taxa

normal na história da terra. Então, de acordo com as previsões dos cientistas, até 2030 poderemos estar com 75% das espécies animais e vegetais ameaçadas de extinção. Hoje esse número é de 36%”12.

Vandana Shiva destaca em seu livro duas causas primárias para a ruína da biodiversidade: primeiramente, a destruição de habitats causado por megaprojetos financiados internacionalmente, como represas e minas, em áreas de grande diversidade biológica13. Além do exemplo citado pela autora, da chamada Revolução Azul14, no caso de áreas com rica

planeta/noticia/2015/12/desastre-em-mariana-ameaca-quase-400-especies-de-animais.html>. Acesso em: 22 abr. 2017.

7 Os estudos acerca do impacto do derramamento de petróleo no Golfo do México ainda estão feitos, afinal

impactos ambientais podem ser de curto, médio e longo prazo. Certo é que o grupo responsável por estes estudos já publicou conclusões que indicam que a morte em massa de golfinhos no Golfo do México foi causado pelo vazamento de petróleo em 2010. FLEUR, Nicholas ST. Study Links Dolphin Deaths to Deepwater Horizon Oil

Spill. The New York Times, 20 maio 2015. Disponível em:

<https://www.nytimes.com/2015/05/21/science/dolphin-deaths-in-gulf-of-mexico-linked-to-deepwater-horizon-oil-spill.html>. Acesso em: 22 abr. 2017.

8DEEPWATER Horizon Natural Resources Damage Assessment. Disponível em:

<http://www.gulfspillrestoration.noaa.gov/sites/default/files/wp-content/uploads/statement-from-EC-to-BP-5-yr-3_16_15_with_contact.pdf>. Acesso em: 22 abr. 2017.

9BEXIGA, Caio Augusto Zouain. A proteção do conhecimento tradicional tendo como instrumento chave os certificados de conformidade do protocolo de Nagoia e da legislação brasileira. 2016. 79 f. Monografia (Graduação em Direito), Faculdade de Direito da Universidade Brasília, Brasília, 2016. Disponível em: < http://bdm.unb.br/bitstream/10483/14495/1/2016_CaioAugustoZouainBexiga_tcc.pdf>. Acesso em: 06 maio 2017.

10Ibid.

11MARFIM e morte o fim dos elefantes está próximo. Exame, São Paulo, 2016. Disponível em: <

http://exame.abril.com.br/mundo/marfim-e-morte-massacre-poe-elefantes-a-beira-da-extincao/>. Acesso em: 06 maio 2017.

12COM 150 espécies extintas todo dia, 2010 discute biodiversidade. Folha de São Paulo, São Paulo, 2010.

Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/ambiente/ult10007u677495.shtml>. Acesso em: 22 abr. 2017.

13 SHIVA, op. cit., p. 65.

14O rápido desenvolvimento da aquacultura nos últimos anos tem sido chamado Revolução Azul, em referência

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diversidade marinha que estão sendo destruídas em razão de criação de camarões, é possível citar um exemplo bastante próximo, a usina Hidrelétrica de Belo Monte, no sudoeste do estado do Pará15. Segundo estudo realizado16, “as grandes represas invariavelmente reduzem a

diversidade pesqueira”, ao alterar a conexão entre diversas populações fluviais e bloquear o

ciclo de vida regular de espécies migratórias. Além disso, Belo Monte afetaria, especificamente, cinquenta espécies de peixes que são encontradas apenas no Brasil.

A segunda causa da destruição da biodiversidade, de acordo com a autora, é a pressão tecnológica e econômica de substituir diversidade por homogeneidade nas florestas, na agricultura, na pesca e na criação de animais. Após a chamada Revolução Verde17 é comum se observar o crescimento das monoculturas, o que degrada a biodiversidade. Diversos estudos já foram feitos demonstrando a interferência da monocultura na diversidade biológica18,19,20. A diminuição da biodiversidade causa uma reação em cadeia: quando uma espécie desaparece pode causar a extinção de outras que estão relacionadas na cadeia alimentar. Mas a preocupação com a diversidade biológica não deve ser relacionada apenas ao

Revolução Azul, primeiro na China, e agora em várias outras partes do mundo. A produção da aquacultura cresceu de cerca de 2 milhões de toneladas métricas em 1950 para quase 50 milhões hoje.REVOLUÇÃO azul: A aquacultura poderá manter a qualidade de vida e evitar a destruição dos oceanos. Scientific American Brasil, São Paulo. Disponível em: <http://www2.uol.com.br/sciam/artigos/a_promessa_da_revolucao_azul.html>. Acesso em: 23 abr. 2017.

15 USINA Hidrelétrica de Belo Monte: Cartografia das controvérsias sobre a construção da usina hidrelétrica de

Belo Monte. Disponível em: <https://usinabelomonte.wordpress.com/imagens/mapa-da-localizacao-da-usina-de-belo-monte/>. Acesso em: 02 jun. 2017.

16BELO Monte ameaça 50 espécies de peixes únicas no mundo. El País, São Paulo, 09 jan. 2016. Disponível

em: <http://brasil.elpais.com/brasil/2016/01/08/ciencia/1452249996_241713.html>. Acesso em: 23 abr. 2017. 17“[...] a Revolução Verde foi um amplo programa baseado em ações de pesquisa e desenvolvimento, idealizado para aumentar a produtividade agrícola no mundo por meio melhoramento genético de sementes e do melhoramento do ambiente, com o uso intensivo de insumos agrícolas ou industriais.[...] Os primeiros passos da Revolução Verde foram dados em 1943, quando o governo mexicano convidou a Fundação Rockefeller, com sede nos Estados Unidos, a desenvolver trabalhos sobre as causas da fraqueza de sua agricultura. Para isso, foi solicitado o assessoramento de agrônomos, que visitaram as regiões agrícolas do México e constataram o estado de estagnação delas: variedades fracas de cultivares, solos esgotados e grande disseminação de pragas e doenças. Diante disso, ao longo dos anos 1940 e 1950, especialistas conseguiram desenvolver sementes mais produtivas e resistentes de trigo.” REVOLUÇÃO Verde foi um

programa de expansão da produtividade agrícola. Disponível em: <http://redeglobo.globo.com/globoecologia/noticia/2012/09/revolucao-verde-foi-um-programa-de-expansao-da-produtividade-agricola.html>. Acesso em: 23 abr. 2017.

18 MACHADO, L. M. et al. Impacto de uma monocultura de eucalipto sobre a comunidade de anfíbios (anuros) no município de Luziânia – GO Brasil. Enciclopédia Biosfera, Goiânia, v. 7, n. 12, p.1-16, 2011. Disponível em:

<http://www.conhecer.org.br/enciclop/2011a/biologicas/o%20impacto%20de%20uma%20monocultura.pdf>. Acesso em: 24 abr. 2017.

19 CUNHA NETA, Angélica Manina de Moraes. Modelagem de impactos ambientais causados pela monocultura do eucalipto. In: SIMPÓSIO BRASILEIRO DE SENSORIAMENTO REMOTO, 15., 2011, Curitiba -PR. Anais... Curitiba: INPE, 2011. p. 5632-5637. Disponível em: <http://www.dsr.inpe.br/sbsr2011/files/p0300.pdf>. Acesso em: 24 abr. 2017.

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desaparecimento de espécies, mas também à ruína de comunidades que dependem da biodiversidade para sobreviver21.

Além da perda da biodiversidade existe outro ponto fundamental a ser discutido: a falta de capacidade, e muitas vezes de interesse de alguns países em descobrir, catalogar e, desta forma, proteger sua própria biodiversidade. Muito se fala na riqueza sociobiológica brasileira, mas a falta de esforços para a utilização e proteção desta, por parte do Estado, é bastante criticada pela comunidade acadêmica. A potencialidade da sociobiodiversidade brasileira certamente é enorme, mas na realidade ela se torna, na maior parte do tempo, apenas isto: um potencial. Algo que pode ser produzido, mas ainda não existe, por falta de interesse em regulamentar o acesso dos pesquisadores, os quais afirmam que não podem determinar se esse recurso irá contribuir com o desenvolvimento do país, quando é quase impossível ter sequer acesso, de forma legalizada, à biodiversidade brasileira22.

Entretanto, no que concerne ao Estado brasileiro, houve uma certa evolução na relação com o meio ambiente que deve ser observada. O país evoluiu da visão inicial de soberania da riqueza de seus recursos naturais, o que o deixava afastado das discussões, para uma posição ativa no debate internacional. Criticado por ativistas internacionais na década de 1980, classificado como vilão do desmatamento da Amazônia e contribuidor do efeito estufa, o Brasil passou a ser um país que reverteu posições e desenvolveu visões cooperativas para uma agenda construtiva do tema ambiental no final da década de 1980 e início da década seguinte. Relacionou valores e interesses nacionais de um país em desenvolvimento a uma agenda internacional complexa e formada por múltiplas visões em relação ao tema ambiental23.

Foi neste contexto que o Brasil se propôs a ser a sede da Eco-9224, conferência que foi um marco para o Direito Internacional Ambiental. Foi o maior evento organizado pela ONU até aquele momento, reunindo delegações de 172 países e trazendo ao Rio de Janeiro

21SHIVA, op. cit., p.66.

22CLEMENT, Charles Roland. Um pote de ouro no fim do arco-íris? O valor da biodiversidade e do

conhecimento tradicional associado, e as mazelas da lei de acesso – uma visão e proposta a partir da Amazônia.

Amazônia: Ciência & Desenvolvimento, Belém, v. 3, n.5, p.7-28, 2007. Disponível em: < http://repositorio.inpa.gov.br/bitstream/123/4565/1/umpote.pdf>. Acesso em: 24 abr. 2017.

23SARAIVA, José Flávio Sombra. O Brasil e o meio ambiente. [S.l.]: Thesaurus editora, 2009. Disponível em: <http://funag.gov.br/loja/download/569-Livro-Na-Rua-22-O-Brasil-e-o-Meio-Ambiente.pdf>. Acesso em: 03 maio 2017.

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108 chefes de Estado ou de Governo25. Seu objetivo era formular estratégias e medidas de parar reverter os efeitos da degradação ambiental, focalizando na promoção do desenvolvimento sustentável e ambientalmente adequado em todos os países26. Além de conseguir trazer um número inédito de chefes de Estado e Governo para a conferência, a Eco-92 teve o mérito de ser realizada em um país em desenvolvimento, indicando que os temas ambientais não são mais considerados um “luxo” dos países ricos, mas um assunto que exige engajamento coletivo da comunidade internacional27. A conferência aconteceu em julho de 1992, e fortaleceu o socioambientalistmo brasileiro, bem como aprovou diversos documentos, como a Agenda 21, a declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e o Desenvolvimento, a Convenção sobre Mudanças Climáticas, a Declaração de Princípios sobre as Florestas, e a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB)28. Este último é peça-chave nas discussões sobre biodiversidade e conhecimento tradicional.

A aludida convenção foi incorporada ao ordenamento interno brasileiro pelo Decreto nº 2.519, de 16 de março de 199829, de forma que o Brasil se comprometeu a implementar diversas medidas previstas na convenção30, havendo ainda a regulamentação de partes pela Lei nº 13.123, de 20 de maio de 201531,32. Os objetivos estão dispostos em seu artigo inicial como a:

conservação da diversidade biológica, a utilização sustentável de seus componentes e a repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da 'utilização dos recursos genéticos, mediante, inclusive, o acesso adequado aos recursos genéticos e a transferência adequada de tecnologias pertinentes, levando em conta todos os direitos sobre tais recursos e tecnologias, e mediante financiamento adequado. 33

25 LAGO, André Aranha Corrêa do. Conferências de desenvolvimento sustentável. Brasília: FUNAG, 2013. Disponível em: <http://funag.gov.br/loja/download/1047-conferencias-de-desenvolvimento-sustentavel.pdf>. Acesso em: 03 maio 2017.

26GENERAL Assembly, A/RES/44/228. Disponível em: <http://www.un.org/documents/ga/res/44/ares44-228.htm>. Acesso em: 03 maio 2017.

27 LAGO, op. cit.

28 SANTOS, op. cit.

29ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 851. 30 Ibid., p. 800.

31BRASIL. Lei nº 13.123, de 20 de maio de 2015. Regulamenta o inciso II do § 1o e o § 4o do art. 225 da Constituição Federal, o Artigo 1, a alínea j do Artigo 8, a alínea c do Artigo 10, o Artigo 15 e os §§ 3o e 4o do Artigo 16 da Convenção sobre Diversidade Biológica, promulgada pelo Decreto no 2.519, de 16 de março de 1998; dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, sobre a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado e sobre a repartição de benefícios para conservação e uso sustentável da biodiversidade; revoga a Medida Provisória no 2.186-16, de 23 de agosto de 2001; e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13123.htm>. Acesso em: 24 abr. 2017.

32 Anteriormente a esta legislação houve a Medida Provisória 2.186-16/2001.

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Os referidos objetivos são essenciais para a preservação e utilização da biodiversidade, bem como o estabelecimento de um tratamento justo para os detentores de conhecimentos tradicionais. É interessante observar que em seu artigo 3º, a CDB afirma que os estados têm o direito soberano de explorar seus próprios recursos, assim como têm a obrigação de assegurar que atividades sob sua jurisdição ou controle não gerem dano ao meio ambiente de outros estados ou áreas que não estejam sob sua jurisdição34. Antes da CDB havia um entendimento, capitaneado pelos países desenvolvidos, de que os recursos naturais eram de livre apropriação, ou seja, outro país poderia se assenhorar de recursos de outro país sem a autorização deste, ou mesmo qualquer tipo de contraprestação35. Essa concepção não mais se aplica, de forma que não se pode tratar a biodiversidade em cada país como patrimônio comum da humanidade, pois se essa tese fosse aceita seria decorrente dela o estabelecimento de certo mecanismo internacional que se encarregasse de geri-lo, o que, como se sabe, não existe36. Entretanto, considerando que a diversidade biológica é interesse de toda a humanidade, e como foi exposto no artigo 3º da CDB, não é um direito dos estados destruí-la. Ela deve ser utilizada à luz da ideia de desenvolvimento sustentável37.

2.2 Definindo conhecimento tradicional associado e seu caráter especial

O conhecimento tradicional associado à biodiversidade é um elemento primordial na discussão sobre a biodiversidade e, por isso, também um alvo da biopirataria. Esse conhecimento é definido por ser uma cadeia de troca de informações, muitas vezes seculares, entre pessoas de uma mesma comunidade ou comunidades distintas que refinaram informações sobre a utilização da flora e da fauna de seus habitats. Nos termos da lei brasileira, pode ser dividido em dois grandes grupos: os de origem identificável e de origem não identificável; a classificação será definida de acordo com a possibilidade ou não de se vincular a origem do conhecimento a, pelo menos, uma população indígena, comunidade tradicional ou agricultor tradicional38.

A Lei nº 13.123/2015 trouxe os conceitos normativos para conhecimento tradicional associado e comunidade tradicional. O primeiro é a “informação ou prática de

34 Ibid.

35PEREIRA, Vanesa Carlisa Andrade. O acesso à biodiversidade brasileira: as principais medidas no combate à biopirataria pós-Nagoya. 2013. Monografia (Graduação em Direito) - Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2013.

36 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 805. 37 Ibid., p. 805.

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população indígena, comunidade tradicional ou agricultor tradicional sobre as propriedades ou

usos diretos ou indiretos associada ao patrimônio genético”, enquanto o segundo significa: […] grupo culturalmente diferenciado que se reconhece como tal, possui forma própria de organização social e ocupa e usa territórios e recursos naturais como condição para a sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas geradas e transmitidas pela tradição.39

O conceito normativo de conhecimento tradicional associado não é de fácil compreensão ou mesmo de simples aplicação. A questão é que o sujeito de direito que se pretende tutelar não é uma pessoa física ou jurídica, mas sim uma comunidade que vive de forma tradicional ou mesmo diferente da sociedade envolvente40. Isso torna sua aplicação mais complexa, em razão de os aplicadores de jurisdição não estarem acostumados a lidar com esse tipo de sujeito de direito. A produção do conhecimento tradicional é coletiva, logo o seu sujeito deve ser coletivo. Mesmo em casos em que apenas uma pessoa – o pajé, por exemplo – tem o conhecimento ou exerce as práticas, referidas sabedorias foram criadas de forma coletiva, passadas por gerações e, certamente, o pajé irá transmiti-lo a outro sujeito da comunidade41.

Importante ressaltar, entretanto, que apesar de ser complexa a aplicação da jurisdição, já existem casos que demonstram essa possibilidade. A Corte Interamericana de Direitos Humanos tem jurisprudência no sentido de defender a propriedade indígena coletiva e seus territórios em razão da relação cultural, espiritual e material que esses povos têm com suas propriedades42. Esse reconhecimento ocorre baseado em um critério de ocupação tradicional, de acordo com o qual os territórios dos povos ancestrais são definidos em razão da memória coletiva das gerações presentes que ainda se encontram física, cultural, afetiva e espiritualmente ligadas às terras reivindicadas43. Apesar de não falar especificamente sobre a

39 BRASIL, op. cit.

40ANTUNES, op. cit., p. 904.

41ANTUNES, op. cit., p. 904.

42Em um desses casos, Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni VS. Nicarágua, trecho do voto

fundamentado dos juízes: “Consideramos necessário ampliar este elemento conceitual com uma ênfase na dimensão intertemporal do que nos parece caracterizar a relação dos indígenas da Comunidade com suas terras. Sem o uso e gozo efetivos destas últimas, eles estariam privados de praticar, conservar e revitalizar seus costumes culturais, que dão sentido à sua própria existência, tanto individual como comunitária. O sentimento que se observa é no sentido de que, assim como a terra que ocupam lhes pertence, por sua vez eles pertencem à sua terra. Têm, pois, o direito de preservar suas manifestações culturais passadas e presentes, e de poder desenvolvê-las no futuro”. JURISPRUDÊNCIA da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Brasília: Ministério da Justiça, 2014. Disponível em: <http://www.sdh.gov.br/assuntos/atuacao-internacional/sentencas-da-corte-interamericana/pdf/direitos-dos-povos-indigenas>. Acesso em: 03 de maio 2017.

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produção coletiva de conhecimento, é notório o reconhecimento de um sujeito coletivo de direitos que tem relações comuns com um território, ligados por diversas tradições, o que pode ser ampliado para o conhecimento tradicional.

Fundamental, ainda, delimitar que outra importante comunidade tradicional no Brasil é a comunidade dos quilombolas, a qual é caracterizada, historicamente, não pelo isolamento e a fuga, mas pela resistência e pelos meios próprios e singulares de sobrevivência44. A comunidade indígena está protegida pelas disposições dos artigos 215, 216, 216-A, da Constituição da República, os quais afirmam o dever do Estado de garantir o pleno exercício dos direitos culturais, protegendo as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, além de destacar que constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade

brasileira”45. Neste sentido, decisão do STJ:

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL.AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. TERRENO DE MARINHA. ILHA DA MARAMBAIA. COMUNIDADE REMANESCENTE DE QUILOMBOS. DECRETO N.º 4.887, DE 20 DE NOVEMBRO DE 2003, E ART. 68 DO ADCT. 1. A Constituição de 1998 (SIC), ao consagrar o Estado Democrático de Direito em seu art. 1º como cláusula imodificável, fê-lo no afã de tutelar as garantias individuais e sociais dos cidadãos, através de um governo justo e que propicie uma sociedade igualitária, sem nenhuma distinção de sexo, raça, cor, credo ou classe social. 2. Essa novel ordem constitucional, sob o prismado (SIC) dos direitos humanos, assegura aos remanescentes das comunidades dos quilombos a titulação definitiva de imóvel sobre o qual mantém posse de boa-fé há mais de 150 (cento e cinquenta) anos, consoante expressamente previsto no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. [...] 4. Advirta-se que a posse dos remanescentes das comunidades dos quilombos é justa e de boa fé. Nesse sentido, conforme consta dos fundamentos do provimento supra, a Fundação Cultural Palmares, antiga responsável pela identificação do grupo, remeteu ao juízo prolator do decisum em comento relatório técno-científico contendo [...] "todo o histórico relativo à titularidade da Ilha de Marambaia, cujo primeiro registro de propriedade fora operado em 1856, junto ao Registro de Terras da Paróquia de Itacuruçá, em nome do Comendador Joaquim José de Souza Breves, que instalou no local um entreposto do tráfico negreiro, de modo que, ao passar para o domínio da União, afetado ao uso especial pela Marinha, em 1906, já era habitado por remanescentes de escravos, criando comunidade com características étnico-culturais próprias, capazes de inseri-los no conceito fixado pelo artigo 2° do indigitado Decreto 4.887/03". 5. A equivocada valoração jurídica do fato probando permite ao STJ sindicar a respeito de fato notório, máxime no caso sub examinem, porque o contexto histórico-cultural subjacente ao thema iudicandum

44DURÃES, Marilene Gomes; SIQUEIRA, Henrique Flausino. A expropriação do conhecimento tradicional das comunidades remanescentes de quilombos: estudo do caso do beiju do sapê do norte no Espírito Santo. In: ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI - UFS. 24., 2015, Sergipe. Anais... Florianópolis: CONPEDI, 2015. p. 27-48. Disponível em: < http://www.conpedi.org.br/publicacoes/c178h0tg/phc1kv31/gY9EZa372fCI8w50 >. Acesso em: 26 abr. 2017.

45 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 05 de outubro de 1988. Disponível em:

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permeia a alegação do recorre de verossimilhança. 6. Os quilombolas têm direito à posse das áreas ocupadas pelos seus ancestrais até a titulação definitiva, razão pela qual a ação de reintegração de posse movida pela União não há de prosperar, sob pena de por em risco a continuidade dessa etnia, com todas as suas tradições e culturas. O que, em último, conspira contra pacto constitucional de 1988 que assegura uma sociedade justa, solidária e com diversidade étnica. 7. Recurso

especial conhecido e provido”. (STJ- REsp 931060 / RJ, Relator: Min. Benedito Gonçalves, julgamento: 17/12/2009.)46

Dentre os conhecimentos das comunidades tradicionais, os conhecimentos associados à biodiversidade47 perpassam por diversos temas, como técnicas de manejo de recursos naturais, métodos de caça e pesca, discernimento sobre os diferentes ecossistemas e sobre propriedades farmacêuticas, alimentícias e agrícolas de espécies, e as próprias categorizações e classificações de espécies de flora e fauna utilizadas pelas populações tradicionais48.

É importante que seja destacada a simbiose entre homem e meio ambiente como traço marcante do conhecimento tradicional. Há uma indissociabilidade entre o ser humano e os recursos da biodiversidade, originada na visão de mundo a partir da integração com a natureza que se complementa com o fator de hereditariedade nas noções ancestrais e a forma coletiva de interação com o meio ambiente, produzindo os saberes tradicionais.49 A convivência integrada com a natureza tem como característica o respeito aos seus ciclos, através da utilização sustentável dos recursos, o que possibilitou a milenar continuidade da reprodução biológica e cultural das populações indígenas.50

Neste sentido, há diversos estudos que demonstram serem os povos indígenas e as populações tradicionais responsáveis, em grande parte, pela diversidade biológica dos

46 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 931060 RJ 2007/0047429-5. Relator: Ministro Benedito Gonçalves. Rio de Janeiro, 2007.

Disponível em: <https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/8568718/recurso-especial-resp-931060-rj-2007-0047429-5/inteiro-teor-13667954>. Acesso em: 03 maio 2017.

47 É necessário fazer tal distinção porque as comunidades tradicionais produzem conhecimentos e inovações em

diversas áreas. “Como exemplo podemos citar suas criações artísticas, literárias e centíficas, tais como desenhos, pinturas, contos, lendas, músicas, danças, etc., que devem ser tutelados por meio do reconhecimento de seus

direitos autorais coletivo.”SANTILLI, Juliana Ferraz da Rocha. Conhecimentos Tradicionais Associados à Biodiversidade: elementos para a construção de um regime jurídico sui generis de proteção. Disponível em: <http://www.anppas.org.br/encontro_anual/encontro2/GT/GT08/juliana_santilli.pdf>. Acesso em: 25 abr. 2017. 48 Ibid.

49 SEGER, Juliano Dos Santos; STEINMETZ, Wilson Antônio. Os conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade e sua proteção no sistema jurídico brasileiro. In: ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI –

UFS. 24., 2015, Florianopólis. Anais... Florianopólis: Conpedi, 2015. p. 40-60. Disponível em:

http://www.conpedi.org.br/publicacoes/c178h0tg/xtuhk167/Mq517U3ZQ4N1XSA9.pdf>. Acesso em: 26 abr. 2017.

50 SEGER; Juliano dos Santos. O papel da constituição na tutela de bens comuns: proteção aos saberes das comunidades indígenas brasileiras. Revista de Direito, inovação, propriedade intelectual e concorrência,

Minas Gerais, v. 1, n. 2, p.181-209, jul./dez. 2015. Disponível em:

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ecossistemas, resultado da interação e do manejo da natureza em moldes tradicionais51. O projeto Biodiversidade e Comunidades Tradicionais no Brasil, realizado pelo NUPAUB – USP, em 1999, teve como resultado conclusões semelhantes: as populações tradicionais da Amazônia construíram, no decorrer das gerações, conjunto considerável de conhecimentos e práticas sobre os ecossistemas e a biodiversidade, a qual tem um conceito diferente para os cientistas naturais e para as comunidades tradicionais. Para aqueles o termo significa longas listas de espécies de plantas e animais, enquanto para as comunidades envolve o domínio cultural, algo construído e apropriado, material e simbolicamente, pelas populações tradicionais. Citando as conclusões do projeto:

Vários estudos analisados ao longo do referido projeto (BALÉE 1993; BALICK E COX 1996; ANDERSON, MAY E BALICK 1991; DESCOLLA 1997) sugerem que a diversidade de espécies, de ecossistemas e genética não é somente fenômeno natural, mas também é cultural, isto é, seria resultado da ação humana. De acordo com estes estudos, as populações humanas não somente convivem com a floresta e conhecem os seres que aí habitam, mas também a manejam, ou seja, manipulam seus componentes orgânicos e inorgânicos. Portanto, como salienta RIBEIRO (1990), o manejo das espécies naturais por populações amazônicas resulta no aumento de comunidades vegetais e na sua integração com espécies animais e com o homem.52

As comunidades locais são consideradas guardiãs da riqueza biológica, por serem elas quem a usaram, desenvolveram e preservaram. Um dos caminhos para a preservação da biodiversidade é o fortalecimento do seu controle e a valorização dos seus saberes e dos seus direitos, o que tem que ser feito através de ações locais, nacionais e globais53. É importante salientar que há uma espécie de parceria na relação das comunidades tradicionais com os ecossistemas onde elas vivem. Para que consigam produzir conhecimento e proteger a biodiversidade eles dependem de um modo de vida estreitamente relacionado à flora e à fauna local; logo, a continuidade da produção desses conhecimentos depende de condições que assegurem a sobrevivência física e cultural dos povos tradicionais54.

51 SANTILLI, Juliana Ferraz da Rocha. Biodiversidade e conhecimentos tradicionais associados: novos avanços e impasses na criação de regimes legais de proteção. Revista Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, Brasília, v. 20, p. 50-74, jul./dez. 2002. Disponível em: <http://www.escolamp.org.br/arquivos/20_03.pdf>. Acesso em: 26 abr. 2017.

52 BIODIVERSIDADE na Amazônia Brasileira: avaliação e ações prioritárias para a conservação, uso sustentável e repartição de benefícios da biodiversidade nos biomas brasileiros. Brasília: MMA/SBF, 2002. Disponível em: <http://www.mma.gov.br/estruturas/chm/_arquivos/Bio5.pdf>. Acesso em: 26 abr. 2017.

53 SHIVA, Vandana. Monoculturas da mente. Perspectivas da biodiversidade e da biotecnologia. São Paulo: Gaia, 2003.

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Ressaltando a relação do homem com o meio ambiente, é observado que houve certa evolução, ao passar do antropocentrismo puro para o antropocentrismo intergeracional. O primeiro considera que o único propósito da natureza não humana é servir aos homens, sendo estes os únicos que possuem real valor. Já o segundo, embora ainda possua um caráter utilitarista, se aproxima mais de reconhecer a natureza como um sujeito de direito, e não como simples res e objeto de direito: propõe a conservação da natureza para as gerações futuras, objetivando perpetuar a espécie humana com os mesmos ou superiores padrões de qualidade de vida hoje existentes. A ideia do antropocentrismo intergeracional é atualmente o paradigma dominante nos países, e essa solidariedade intergeracional é um dos pilares da ideia de sustentabilidade, considerando a preocupação com as gerações seguintes55.

2.3 A problemática da biopirataria dos conhecimentos tradicionais associados

O termo pode surgir como uma novidade ou como algo que surgiu nos últimos vinte anos, mas a verdade é que se por um lado o termo é novo, a prática, por outro lado, é centenária. O primeiro caso que remonta ao Brasil é visto nas aulas iniciais de história. Não parece ter implicações maiores a retirada da planta pau-brasil das terras brasileiras. Quando os portugueses aqui chegaram foi notório seu interesse pela planta, a qual era utilizada como corante e tinha madeira de grande resistência. Nos anos iniciais da chegada dos portugueses, entre 1500 e 1535, a principal atividade econômica foi a extração do pau-brasil, obtida principalmente mediante troca com os índios. Os índios forneciam a madeira e através do escambo recebiam peças de tecido, facas, canivetes e objetos de pouco valor para os portugueses56.

Outro famoso caso de biopirataria na história do Brasil é a do inglês Henry Wickham, que, inclusive, teve sua biografia escrita por um jornalista americano, a qual foi eleita um dos dez melhores livros de 2008, pela revista TIME57. Entre 1880 e 1913, a Amazônia viveu tempos dourados, e a razão principal de tal prosperidade foi a seringueira Hevea brasiliensis, que produzia uma borracha de qualidade singular. Conhecido como o

55 BENJAMIN, Antonio Herman. A natureza no direito brasileiro: coisa, sujeito ou nada disso. Revista de Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará, v. 31, n.1, 2011. Disponível em: <

http://www.periodicos.ufc.br/index.php/nomos/article/view/398>. Acesso em: 06 maio 2017.

56 FAUSTO, Boris. História do Brasil. 10. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002.

p.42.

57HENRY Wickham , o inglês que se tornou o “pai” da biopirataria. Revista Época, São Paulo,

2009.Disponível em:

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ciclo da borracha na história brasileira, foi um período em que a borracha era tão importante quanto o petróleo é atualmente, pois seu uso era essencial para o transporte, a comunicação e a indústria58.

Referido ciclo foi encerrado após o contrabando de setenta mil sementes da seringueira por Wickham, em 1876, para o Royal Botanic Gardens de Kew, uma instituição britânica famosa com mais de dois séculos de estudo de botânica. Do total de sementes que estavam escondidas dentro de cestos trançados, sob folhas de banana, apenas duas mil germinaram, mas as mudas foram transplantadas para o sudoeste asiático e trinta e sete anos depois encerraram o ciclo da borracha brasileira, que não conseguiu competir com a alta qualidade e o preço baixo do látex britânico. É interessante observar, ainda, o contexto mundial do fim do século XIX e começo do século XX, quando o imperialismo britânico ainda era a potência dominante. Neste sentido, ter acesso ao látex brasileiro deu à Inglaterra monopólio global sobre um produto que foi estratégico até a Segunda Guerra Mundial, além de ter popularizado a borracha sintética59. Wickham passou a ser chamado “pai da indústria da

borracha”, mas atualmente ele é mais conhecido como “pai da biopirataria”, por ter sido

responsável pelo primeiro grande caso de apropriação ilegal de patrimônio genético.

Existem diversos casos de biopirataria recentemente documentados, como os do açaí, do cupuaçu e da rapadura60, do jaborandi, da copaíba e da andiroba61; do nim, ayahuasca62. No Brasil, a biopirataria movimentou 100 milhões de reais em 200763, e o mercado mundial da indústria farmacêutica de produtos derivados da biodiversidade movimenta cerca de US$ 300 bilhões por ano64.

Biopirataria é a apropriação de certa substância ou conhecimento relacionado à flora ou fauna, de forma ilegal e que não gere benefícios para o sujeito originante de tal conhecimento ou substância, seja este um país ou uma comunidade tradicional. Há quatro dimensões que a caracterizam, que são inter-relacionadas: 1) recurso genético obtido sem a

58 HENRY, op. cit. 59 HENRY, op. cit.

60IPIRANGA, Maria Ludmila Costa. Biopirataria e seus reflexos na propriedade intelectual. 2015.

Monografia (Graduação em Direito) - Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2015.

61PIEDADE, Flávia Lordello. Biopirataria e direito ambiental: Estudo de caso do cupuaçu. 2008. 154 f.

Dissertação (Mestrado em Ecologia Aplicada) - Universidade de São Paulo, Piracicaba, 2008. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/91/91131/tde-01102008-150551/en.php>. Acesso em: 29 abr. 2017.

62SANTILLI, Juliana Ferraz da Rocha. Sociambientalismo e novos direitos: proteção jurídica à diversidade

biológica e cultural. [S.l.]: Editora Petrópolis, 2005.

63BEXIGA, Caio Augusto Zouain. A proteção do conhecimento tradicional tendo como instrumento chave os certificados de conformidade do protocolo de Nagoia e da legislação brasileira. 2016. 79 f. Monografia (Graduação em Direito), Faculdade de Direito da Universidade Brasília, Brasília, 2016. Disponível em: < http://bdm.unb.br/bitstream/10483/14495/1/2016_CaioAugustoZouainBexiga_tcc.pdf>. Acesso em: 06 maio 2017.

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autorização do detentor; 2) benefícios alcançados por meio da utilização do recurso genético e do conhecimento tradicional associado não repartidos de forma justa e equitativa entre estados, comunidades e corporações; 3) conhecimento tradicional associado obtido sem consentimento prévio fundamentado; e, ainda, 4) recursos biológicos protegidos em claro desrespeito aos critérios de patenteabilidade, ou seja, recursos que são tratados como uma invenção, uma novidade, quando na verdade não o são65.

Na primeira dimensão encontra-se uma das consequências do estabelecimento, pela CDB, de que a biodiversidade de cada país apesar de ser importante para toda a humanidade, pertence àquele país, de forma que não pode ser retirada sem os devidos trâmites legais. A grande dificuldade, além da falta de legislação interna e internacional, é a dificuldade de fiscalizar adequadamente a retirada de recursos genéticos. Referidos recursos podem ser contrabandeados de diversas formas – uma semente, uma folha, a unha de um animal ou mesmo o insumo de uma planta podem ser facilmente escondidos em vestuário e em malas de viagem – dificultando o controle contra a prática desse tipo de biopirataria.

Na segunda dimensão exposta há a seguinte questão: como repartir os benefícios originados da utilização do recurso genético e/ou do conhecimento tradicional associado de forma justa? Imagine-se o caso de uma corporação farmacêutica americana que, em contato com uma comunidade tradicional brasileira, descobre que a raiz de determinada planta endêmica alivia dores de cabeça se for cozinhada, auxilia na cicatrização se for triturada e espremida e, se for ingerida em determinada quantidade propicia uma sensação de bem-estar em pessoas que estejam com o sistema digestivo irritado. Os farmacêuticos americanos então levam a folha dessa planta para laboratórios americanos e isolam os componentes genéticos responsáveis pelos tratamentos acima relatados. Eles acabaram de economizar milhões de dólares em testes e pesquisa, já que foram direcionados pelo conhecimento tradicional e agora irão produzir drogas baseadas na planta que foi retirada do Brasil. Neste sentido, como serão divididos os benefícios advindos deste trabalho, tanto econômicos como sociais? Tais benefícios deveriam ser divididos entre o país originário do patrimônio genético, a comunidade detentora do conhecimento e a empresa que por fim isolou

os componentes genéticos e “criou”66 uma nova droga. Toda a questão gira exatamente em como efetuar tal divisão.

65PANCHERI, Ivanira. Biopirataria: Reflexões sobre um tipo penal. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 108, p. 443-487, jan./dez. 2013. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/67993/70850>. Acesso em: 29 abr. 2017.

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A terceira dimensão é importante para este trabalho, já que trata especificamente da necessidade de o consentimento prévio fundamentado ser fornecido pelas comunidades tradicionais a fim de que haja legalidade na utilização do seu conhecimento. Na situação descrita acima, imagine-se que a comunidade não foi informada de que sua prática com aquela planta seria estudada e utilizada em laboratórios. Se ela sequer foi informada, como irá prover um consentimento fundamentado? Ou seja, para que o processo seja feito de acordo com a CDB e com a Lei nº 13.123/2015, é necessário que, previamente, ao início da utilização do conhecimento, a comunidade seja informada do que está acontecendo, de maneira que possa concordar justificadamente ou não com a proposta.

Por fim, a quarta dimensão traz à tona o embate entre biodiversidade, conhecimento tradicional associado à biodiversidade e patentes. Com o desenvolvimento da tecnologia de ponta e o que se chama de 4ª. Revolução Industrial67 ocorreu um grande interesse por parte das corporações na biodiversidade, resultando na chamada biotecnologia.

Segundo o instituto de tecnologia ORT, biotecnologia “é o conjunto de conhecimentos que

permite a utilização de agentes biológicos (organismos, células, organelas, moléculas) para

obter bens ou assegurar serviços” 68. Assim, utilizando-se de tecnologias e conhecimentos de ponta, houve o desenvolvimento de pesquisas tendo como pilar a biodiversidade; pesquisas de alto investimento, mas que também eram bastante rentáveis. Essa rentabilidade deu forte impulso ao desenvolvimento do sistema de direito de propriedade intelectual, no sentido de aplicá-lo à matéria viva69.

Assim surgiu a ideia de patentear o patrimônio genético de plantas e animais de

forma a gerar lucros e proteger essa “invenção”, além da patenteabilidade do próprio

conhecimento tradicional. Em síntese, uma das preocupações ao se estudar biopirataria é que esta ocorra através de patentes que não estão cumprindo sua função original, que seria proteger invenções e criações, mas sim se apropriando de patrimônio genético e de conhecimentos que não poderiam ser privatizados, patenteados, justamente por serem algo que não foi de fato criado por alguém ou que foi criado por um conjunto de pessoas, não

67 O QUE é a 4ª revolução industrial - e como ela deve afetar nossas vidas. BBC Brasil, São Paulo, 2017.

Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/geral-37658309>. Acesso em: 29 abr. 2017.

68 ORT INSTITUTO DE TECNOLOGIA. O que é Biotecnologia? Disponível em:

<http://www.ort.org.br/biotecnologia/o-que-e-biotecnologia/>. Acesso em: 29 abr. 2017.

69 RÊGO, Patrícia de Amorim. A conservação da biodiversidade, a proteção do conhecimento tradicional associado e a formação de um regime internacional de repartição de benefícios no âmbito da

Convenção da Diversidade Biológica (CDB). 2008. 170 f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2008. Disponível em:

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sendo cabível a patente que coloca uma terceira pessoa como criadora desse patrimônio ou conhecimento.

No que concerne especificamente aos conhecimentos tradicionais associados, estes têm sido alvos das empresas, mais especificamente farmacêuticas e de cosméticos, por ser considerados um mapa da mina. Segundo Vandana Shiva, o uso de conhecimento tradicional aumenta em 400% a eficiência na busca por plantas medicinais, afirmando ainda a autora que dos 120 princípios ativos atualmente isolados de plantas e utilizados de forma abrangente pela medicina, 75% têm utilidade conhecida por comunidades tradicionais. Menos de doze são sintetizados quimicamente de forma simples, sendo o resto deles extraído diretamente de plantas e purificados70. Tais dados demonstram a atratividade que o conhecimento tradicional tem para as empresas, o que estimula a prática da biopirataria.

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3 A IMPORTÂNCIA DO CONHECIMENTO TRADICIONAL E O PROBLEMA DE SUA MERCANTILIZAÇÃO

O conhecimento tradicional associado à biodiversidade é um patrimônio imaterial construído por meio de diversas gerações de uma comunidade tradicional, a qual, exposta a um determinado ambiente, conheceu, explorou e se relacionou com este, desenvolvendo técnicas únicas de utilização e manejo dos seres vivos ao seu redor. Sua importância, além de biológica, é cultural, considerando-se que tais conhecimentos se tornam parte de uma determinada comunidade e de sua história.

Este conhecimento, dotado de características singulares, chama a atenção de muitas empresas, especialmente as farmacêuticas e de cosméticos, as quais tem amplo interesse em acessar este conhecimento. Referido interesse gera uma mercantilização deste patrimônio imaterial, ameaçando o modo de viver dessas comunidades, além de gerar diversos problemas, como o lucro causado por esse conhecimento sem a devida participação das comunidades tradicionais.

3.1 Importância do conhecimento tradicional

A importância do conhecimento tradicional é extraordinária, não apenas para a cultura e a história da comunidade, mas também para o Estado em que a comunidade está inserida, bem como para o mundo. É um conhecimento rico, transmitido de geração em geração, e que passou por diversas etapas e acumulações de experiências para ser construído. Sua riqueza cultural é indubitável, mas é a sua riqueza sociobiológica que vem recebendo mais atenção nos últimos anos.

A riqueza sociobiológica se deve à biodiversidade relacionada com as comunidades tradicionais que se relacionam com o meio ambiente. É fundamental ressaltar a relação dessas comunidades com os seus habitats, as consequências e benefícios que tal relação estabelece, os quais devem ser analisados além da dimensão econômica.

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Há estimativas que propõem que cerca de 18% da biodiversidade do mundo estão nessa área71.

Esse exemplo apresenta um dos aspectos mais interessantes no que concerne à atuação das comunidades tradicionais na proteção da biodiversidade. Embora não seja, a priori, seu principal objetivo, a conservação da biodiversidade e sua ampliação torna-se uma das principais consequências da prática do conhecimento tradicional que seleciona, cultiva, aplica e manipula o meio ambiente ao seu redor de forma sustentável. Neste sentido, Vandana Shiva enfatiza72:

Diferentes culturas têm emergido em harmonia com o legado das espécies de ecossistemas variados. Elas encontraram diversas maneiras de conservar e utilizar a riqueza biológica de seus habitats. Novas espécies têm sido introduzidas nos seus ecossistemas por meio de cuidadosa experimentação e inovação. A biodiversidade não simboliza meramente riqueza da natureza; ela incorpora diferentes tradições culturais e intelectuais (tradução livre).

A habilidade das comunidades tradicionais em se utilizar da biodiversidade de forma sustentável chama a atenção, em razão de, nos últimos anos, ter crescido a ideia de que a conservação do meio ambiente não precisa ser um obstáculo ao desenvolvimento. A habilidade de utilizar os recursos naturais em seus habitats sem colocar em risco o meio ambiente representa uma nova proposta, a qual tem a sustentabilidade ecológica como fundamento para o desenvolvimento sustentável. Este é encarado em uma política ambiental e social capaz de gerir de forma racional os componentes da biodiversidade, conservando o meio ambiente para gerações presentes e futuras 73, o que remonta à ideia, já discutida, de antropocentrismo intergeracional.

Em estudo que analisou o colapso do sistema ambiental de pesca artesanal, nos últimos vinte anos, do polo pesqueiro artesanal no estuário da Lagoa dos Patos, extremo sul do Brasil, os autores concluíram que:

71 NAGAN, Winston P. et al. Misappropriation of Shuar Traditional Knowledge (TK) and Trade Secrets: A Case Study on Biopiracy in the Amazon. Journal of Technology Law and Policy, v. 15, n. 9, 2009. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=1722823>. Acesso em: 11 maio 2017.

72 Different cultures have emerged in accordance with different endowments of species in varied ecosystems. They have found diverse ways to conserve and utilize the rich biological wealth of their habitats. New species have been introduced into their ecosystems with careful experimentation and innovations. Biodiversity does not merely symbolize nature's richness; it embodies diverse cultural and intellectual traditions. SHIVA, op. cit., p.120.

Referências

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