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Revista de Letras Dom Alberto

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LITERATURA E PSICANÁLISE: FINGIMENTO E ESTRANHAMENTO EM

FERNANDO PESSOA

__________________________________________________________________ Letícia Sangaletti1

RESUMO

Este artigo tem como objetivo fazer uma análise dos poemas “Autopsicografia” e “Isto”, de Fernando Pessoa, que tratam do tema das sensações. O método utilizado para o trabalho baseia-se numa comparação entre os textos, buscando entender como se dá o estranhamento que o poeta está a chamar de fingimento, de forma que se estabeleça um diálogo entre os poemas, observando os elementos comuns e díspares. Como base teórica para o nosso estudo, utilizaremos o artigo psicanalítico “O estranho”, de Freud, e estudos sobre o Sensacionismo de Fernando pessoa.

Palavras-chave: Estranho. Sensacionismo. Fernando Pessoa.

ABSTRACT

This article aims to analyze the poems "Autopsychography" and "This", Fernando Pessoa, who deal with the subject of sensations. The method used for the study is based on a comparison between the texts, trying to understand how is the strangeness that the poet's calling of pretense, so to establish a dialogue between the poems, noting the common elements and disparate. As a theoretical basis for our study, we use the psychoanalytic article "The stranger", Freud, and studies on the sensationalism of Fernando person.

Keywords: Strange. Sensationalism. Fernando Pessoa.

É possível para o ser humano se dividir em duas ou mais psiquês em seu íntimo? Essa pergunta nos conduz ao estudo de fragmentação do ‘eu’, em que o ‘fingir’ ser outro alguém, colabora para a construção literária, revelando-se através da possibilidade de fragmentação do eu literário, poético ou narrativo.

Fernando Pessoa é o poeta de maior expressão do mal-estar que contaminou o pensamento ocidental moderno decorrente da crise sofrida pelo conceito de sujeito e da

1 Mestranda em Letras, área de concentração Literatura Comparada, pela Universidade Regional Integrada do

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consequente problemática da identidade. Em um contexto de mundo em que se questiona as garantias metafísicas, o sujeito sente também em si a desagregação dos seus limites, sofrendo uma ruptura interior que o condena a ser “um doido que estranha sua própria alma” (PESSOA, 1992).

De acordo com Branco (2010), essa perda da unidade da consciência, da pertença de si a si, se alastrou e trouxe o sentimento da perda não apenas do laço que unia o homem ao mundo, mas também, em geral, a perda da noção de uma realidade fixa, una e estável. Na literatura, Pessoa é exemplo deste tipo de produção, pois elabora narrativas e formas em que o ‘eu’ fragmenta-se, sem experimentar o verdadeiro choque de múltiplas essências, além de trabalhar psicanálise em versos.

Analisar textos literários que abordam fingimento, fragmentação do sujeito e duplicidade humana, com base na psicanálise, implica também uma reflexão sobre o valor estético e não apenas temático dessas produções. Tal reflexão mostra-se necessária para que possamos entender e perceber de que forma foram construídos e como seus autores utilizaram mais psiquês na elaboração dos textos. Além disso, este estudo é importante para que sejam reconhecidos como textos que apresentam valor estético em associação à pertinência da temática que desenvolvem.

Os temas abordados por Pessoa são os mesmos tratados na modernidade, eles vão além de temas cotidianos, com aprofundamento em questões emocionais, em que há a despersonalização poética, com vários ‘eus’ e não somente um. Dessa forma, procuramos analisar narrativas que tematizam sensações. Para tanto, selecionamos para o corpus deste trabalho, os poemas Autopsicografia e Isto, de Fernando Pessoa, para evidenciar como o poeta utiliza este tópico.

A proposta do artigo é de pesquisar através da linguagem utilizada, como se dá o estranhamento que Pessoa chama de fingimento, de modo que se estabeleça um diálogo entre os textos, fixando-se nos elementos comuns e díspares. Como base teórica para o nosso estudo, utilizaremos o artigo psicanalítico “O estranho”, de Freud, e estudos sobre o Sensacionismo de Fernando Pessoa.

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Nesse sentido, entendemos que a importância da pesquisa se dá pela necessidade de se discutir, no contexto dos estudos literários, o valor literário das produções que utilizam psicanálise na linguagem utilizada, já que uma das funções da crítica literária é avaliar, com critérios de ordem estética e social, o valor dos textos no contexto em que estão inseridos.

Para realizar a análise dos textos de Pessoa, este artigo está dividido em três seções. Primeiramente, conceituaremos a abordagem sobre o estranho, para entendermos como ela pode ser utilizada em pesquisas de literatura. Em seguida, apresentaremos o nosso objeto de análise, seu autor e o estilo literário do sensacionalismo, a que fazem parte os poemas estudados.

O ESTRANHO DE FREUD NA LITERATURA

O Estranho (Das Unheimliche) foi publicado por Sigmund Freud no ano de 1919, e trata da estética do estranho, um campo bastante remoto, já que existe pouca literatura especializada sobre o assunto. Para isso, o psicanalista utiliza o conto “Homem de areia”, de Hoffman para explorar a vinculação da noção de estranho, com algo familiar, conhecido, e até mesmo assustador, tendo em vista os processos psíquicos que o originam.

A história utilizada como exemplo, possui elementos em comum com situações que causam a impressão de estranheza, como a dúvida sobre a vida do ser humano, ou de um ser inanimado, que parece vivo, sem sê-lo, e que se manifesta também, quando se testemunha processos automáticos e mecânicos das pessoas, como ataques epiléticos e manifestações de insanidade.

Para Freud raramente um psicanalista mostra interesse por uma matéria de caráter estético, mas acredita que este o estranho é um ramo deste tema, e relaciona-se indubitavelmente com o que é assustador, com o que provoca medo e horror. Nesse sentido, deve-se analisar o que justifica pensar um termo especifico ‘estranho’ para

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determinar coisas que estão dentro do grupo do amedrontador, já que, em geral, os tratados de estética tratam somente a respeito do belo, do que é sublime.

De acordo com Freud, a primeira tentativa de explicar o ‘estranho’, foi do médico-psicológico Jentsch, em 1906. “Em seu estudo do ‘estranho’, Jentsch destaca com muita razão o obstáculo apresentado pelo fato de que as pessoas variam muito na sua sensibilidade a essa categoria de sentimento.” (FREUD, s/d, p. 2)

O médico encontra então, dois rumos para o estudo do estranho. O primeiro, estuda os significados atribuídos a palavra estranho e o segundo é uma reunião das propriedades de que nos traz a sensação do estranho. Ambos levam a uma resposta: “O estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar”.

Freud questiona então, como algo familiar pode se tornar estranho e parte dos termos do alemão: ‘unheimlich’ X ‘heinlich’ (FREUD, s/d, p.3), onde o primeiro é tomado como oposto ao segundo, onde encontramos duas vertentes, o familiar versus o novo, e o Estranho versus o não familiar. O psicanalista faz uma longa analise dos termos que indicam o ‘estranho’ em diversas línguas. Bem como, os diferentes sentidos tomados pela palavra heimlich em um dicionário alemão.

O que mais nos interessa nesse longo excerto é descobrir que entre os seus diferentes matizes de significado a palavra ‘heimlich‘ exibe um que é idêntico ao seu oposto, ‘unheimlich‘. Assim, o que é heimlich vem a ser unheimlich. (...) Em geral, somos lembrados de que a palavra ‘heimlich‘ não deixa de ser ambígua, mas pertence a dois conjuntos de idéias que, sem serem contraditórias, ainda assim são muito diferentes: por um lado significa o que é familiar e agradável e, por outro, o que está oculto e se mantém fora da vista. (FREUD, s/d, p.4-5)

Nesse sentido, entendemos que ‘Unheimlich’ é habitualmente usado apenas como o contrário do primeiro significado de ‘heimlich‘. Freud explica que Schelling diz algo que dá um novo esclarecimento ao conceito do Unheimlich, em que o termo significa tudo o que deveria ter permanecido secreto e oculto mas veio à luz. (Apud FREUD, s/d)

Dessa forma, heimlich é uma palavra cujo significado se desenvolve na direção da ambivalência, até que finalmente coincide com o seu oposto, unheimlich. Unheimlich é,

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de um modo ou de outro, uma subespécie de heimlich. Tenhamos em mente essa descoberta, embora não possamos ainda compreendê-la corretamente, lado a lado com a definição de Schelling do Unheimlich. Se continuarmos a examinar exemplos individuais de estranheza, essas sugestões tornar-se-ão inteligíveis a nós.

Freud passa então, a analisar tudo o que nos traz a sensação de estranho. Para isso procura o exemplo utilizado por Jentsch, que refere-se à impressão causada por figuras de cera, bonecos e autômatos engenhosamente construídos. Endente portanto, o estranho efeito dos acessos epiléticos e das manifestações de insanidade, pois excitam no espectador a impressão de processos automáticos e mecânicos, operando por trás da aparência comum de atividade mental.

Para tanto, Jentsch comenta o efeito de estranheza produzido por E.T.A Hoffmann em “O homem de areia”. O tema principal da história é, pelo contrário, algo diferente, algo que lhe dá o nome e que é sempre reintroduzido nos momentos críticos: é o tema do ‘Homem da Areia’, que arranca os olhos das crianças.

O sentimento de algo estranho está ligado diretamente à figura do Homem da Areia, isto é, à ideia de ter os olhos roubados, e que o ponto de vista de Jentsch, de uma incerteza intelectual, nada tem a ver com o efeito. A incerteza quanto a um objeto ser vivo ou inanimado, que reconhecidamente se aplica à boneca Olímpia, é algo irrelevante em relação a esse outro exemplo, mais chocante, de estranheza.

Freud entende que o escritor de Homem de Areia cria uma espécie de incerteza no leitor, porém a princípio, sem deixa-lo saber propositalmente, se está sendo conduzido pelo mundo real ou por um outro puramente fantástico, de sua própria criação. Sobre isto, o psicanalista postula:

Na história, elementos como estes e muitos outros parecem arbitrários e sem sentido, na medida em que negamos toda ligação entre os medos relacionados com os olhos e com a castração; mas tornam-se inteligíveis tão logo substituímos o Homem da Areia pelo pai temido, de cujas mãos é esperada a castração. Arriscar-nos-emos, portanto, a referir o estranho efeito do Homem da Areia à ansiedade pertencente ao complexo de castração da infância. Contudo, uma vez atingida a idéia de que podemos tornar um fator infantil como este responsável por sentimentos de estranheza, somo encorajados a

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verificar se podemos aplicá-la a outros exemplos do estranho. (FREUD, s/d, p.9-10)

O psicanalista relaciona também ao texto literário a questão dos mitos, medos e sonhos e afirma que para os homens, ficar cego é muitas vezes relacionado ao medo de ser castrado. Também explica que todos os temas que trazem a estranheza e que são relacionados a causas infantis estão na ordem do duplo – a volta de algo há muito superado.

Freud situa o núcleo central da estranheza do Homem da Areia no complexo de castração, na medida em que qualquer afeto que seja de um impulso reprimido transforma-se em ansiedade. “Algo que indique seu retorno - como o cegamento, no presente exemplo - poderia então ser vivido como o assustador angustiante acrescido da peculiaridade do estranho” (FERREIRA, 1983, p. 8).

Nesse sentido, Freud propõe uma investigação das condições que geram ou causam o surgimento do estranho, tendo em vista o retorno de algo que fora reprimido, independente de qual tenha sido o seu afeto original. Dessa forma, a estranheza se deve ao retorno em si, e à secreta familiaridade do fenômeno, indicando que algo originalmente conhecido que deveria ter permanecido oculto e que estaria afastado pela repressão, retornou. Essa ideia vai ao encontro com a ideia de ambiguidade etimológica das palavras unheimlich e heimlich.

Nesse sentido, se a psicanálise está realmente correta e somando-se o fato de que os sentidos de heimliche estenderam-se para unheimliche a teoria é de que esse ‘estranho’ não é nada novo ou alheio, mas algo que é familiar, que foi há muito tempo estabelecido na mente, e que somente se alienou desta, através do processo da repressão. Essa referência ao fator da repressão permite-nos compreender a definição de Schelling do estranho como algo que deveria ter permanecido oculto, mas veio à luz, algo que retornou.

Para Martins (2011), na definição do estranho está contida a ideia de repetição, onde algo reprimido retorna. Para Luiz Alfredo Garcia-Roza, da mesma forma que para Freud, “só há Unheimlich se houver repetição. O estranho é algo que retorna, algo que se

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repete, mas que, ao mesmo tempo, se apresenta como diferente”(GARCIA-ROZA, 1986, p. 24).

Desse modo, a repetição não deve ser entendida como reprodução, mas como algo que retorna de forma diferente, novo, como se fosse, paradoxalmente, o estranho familiar. Se notarmos retorno como repetição de algo, podemos pensar o “o fator da repetição da mesma coisa não apelará, talvez, para todos como fonte de uma sensação estranha”, já que toda sensação estranha poderá ser acessada sob a ótica da repetição.

É quando situa-se o fenômeno do duplo enquanto duplicação, divisão e intercâmbio do eu, que ocorre com personagens idênticos, processos mentais telepáticos revelando uma vida psíquica em comum, dúvidas sobre quem é o verdadeiro eu, substituição do eu por um estranho, reflexos em espelhos, sombras, espíritos guardiães, crença na alma, medo da morte.

Nesse sentido a criação do duplo acontece para que o ‘EU’ defenda-se da morte, assegurando que o ego não seja destruído, o que conota uma presumível proteção. Após passar desse ponto, sua função torna-se oposta, pois passa a relembrar a presença da morte, o que provoca o efeito de estranheza. Desse modo:

A compulsão à repetição forneceria a impressão de estranheza ao evidenciar especialmente seu caráter de destino inescapável, prevalente até mesmo sobre o princípio do prazer, algo como um instinto das pulsões, e também com um caráter demoníaco. O estranho estaria inscrito em sua mensagem compulsiva e repetitiva; esse modo de operar despertaria a impressão, mais que a própria situação repetida. (FERREIRA, 1983, p. 7)

Seguindo esta perspectiva, entendemos que o fato de o homem ter capacidade de auto-observação - torna possível investir a velha idéia de ‘duplo’ de um novo significado, atribuindo-lhe uma série de coisas - sobretudo aquelas coisas que, para a autocrítica, parecem pertencer ao antigo narcisismo superado dos primeiros anos, como a superstição, o mau-olhado e a onipotência do pensamento.

É como se cada um de nós houvesse atravessado uma fase de desenvolvimento individual correspondente a esse estádio animista dos homens primitivos, como se ninguém houvesse passado por essa fase sem preservar certos resíduos e traços dela, que são ainda capazes de se manifestar, e que tudo

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aquilo que agora nos surpreende como ‘estranho’ satisfaz a condição de tocar aqueles resíduos de atividade mental animista dentro de nós e dar-lhes expressão. (FREUD, s/d, p.20)

Freud explica que o estranho se manifesta frente a elementos que nos remetem a morte, a magia, a bruxaria, ao animismo, a onipotência do pensamento, a repetição involuntária e ao complexo de castração. Além disso, elementos como pessoas vivas com poderes e intenções malignas, pessoas epiléticos ou loucas que vem do mesmo lugar, membros arrancados que se movem e a idéia de ser enterrado vivo, também causam estranheza.

É a imaginação versus a realidade.

O psicanalista se questiona por que elementos colocados como causadores de estranhamento não os causam em determinados contextos? Além disso, mostra que mais dos que foram citados, outros elementos podem trazem o estranhamento, como por exemplo o estranho que surge de crenças antigas versus o estranho que surge dos complexos infantis.

Quando o estranho se origina de complexos infantis, a questão da realidade material não surge; o seu lugar é tomado pela realidade psíquica. Implica numa repressão real de algum conteúdo de pensamento e num retorno desse conteúdo reprimido, não num cessar da crença na realidade de tal conteúdo. Poderíamos dizer que, num caso, o que fora reprimido é um determinado conteúdo ideativo, e, no outro, a sua realidade (material). (FREUD, s/d, p.21)

Dessa forma, podemos entender que o que é estranho na vida real pode não o ser na ficção. O contraste entre o que foi reprimido e o que foi superado não pode ser transposto para o estranho em ficção sem modificações profundas; pois o reino da fantasia depende, para seu efeito, do fato de que o seu conteúdo não se submete ao teste de realidade.

Freud finaliza o texto afirmando que a partir do estranho, o escritor pode escolher seu mundo de representação, em que o cenário pode ser mais real ou mais fantasioso, podendo criar uma atmosfera de mistério sobre a realidade que escreve. Assim, o estranho dependerá de onde o foco de atenção será dado.

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PESSOA E O SENSACIONISMO

Poeta fingidor, de inúmeros ‘eus’, Fernando Pessoa seduz seus leitores através de um estranho, que envolve a complexidade de sua obra. Isso acontece pois o poeta está inserido na problemática do sujeito moderno, o que, conforme Gonçalves, provoca a sua “multifacetação em sujeitos poéticos” (GONÇALVES, 1995). Nesse sentido, entendemos que a despersonalização de Pessoa é o que mais tem influência em sua inserção no período Modernista em Portugal, quando desenvolveu um estilo melancólico e depressivo. Fatores que favoreceram a escritura de suas obras, já que acaba tornando-se mais reflexivo no que diz respeito à situação da sociedade.

De acordo com Gonçalves, o estranhamento em sua obra e a descontinuidade do sujeito, são características que apontam para a grandiosidade do poeta, que criou inúmeros heterônimos2, e participou da criação de alguns projetos estéticos, como Paulismo, Intertesccionismo e Sensacionismo. Esta última deve nortear nosso estudo, já que as poesias selecionadas fazem parte deste estilo literário, que propõe a intercalação dos sujeitos.

Criado por Fernando Pessoa, o Sensacionismo é uma estética literária que procura ser a síntese de tudo, unindo em si, todas as formas de arte: uma arte-todasas-artes. Não chega a ser uma escola literária, já que não se posiciona criticamente em relação a nenhuma outra, conforme o próprio criador, “a uma arte assim cosmopolita, assim universal, assim sintética, é evidente que nenhuma disciplina pode ser imposta, que não a de sentir tudo de todas as maneiras” (PESSOA, 1966, p. 124).

Esta estética literária surgiu a partir da vontade do grupo da revista Orpheu de “criar uma arte cosmopolita no tempo e no espaço” (PESSOA, 1966, p. 113.). O grupo estabeleceu então, um vínculo entre o clássico, o simbolismo e o moderno. Para Fernando Pessoa:

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A verdadeira arte moderna tem de ser maximamente desnacionalizada – acumular dentro de si todas as partes do mundo. Só assim será tipicamente moderna. Que a nossa arte seja uma onde a dolência e o misticismo asiático, o primitivismo africano, o cosmopolitismo das Américas, o exotismo ultra da Oceania e o maquinismo decadente da Europa se fundam, se cruzem, se interseccionem. E, feita esta fusão espontaneamente, resultará uma arte-todas-as-artes, uma inspiração espontaneamente complexa... (PESSOA, 1966, p. 114)

Essa arte-todas-as-artes, busca sintetizar tudo o que já foi produzido nos mais diferentes tempos e lugares, com uma única regra, que é ser a síntese de tudo, sem ser construída sobre qualquer base:

O Sensacionismo difere de todas as atitudes literárias em ser aberto, e não restrito. Ao passo que todas as escolas literárias partem de um certo número de princípios, assentam sobre determinadas bases, o Sensacionismo não assenta sobre base nenhuma. Qualquer escola literária ou artística acha que a arte deve ser determinada coisa; o sensacionismo acha que a arte não deve ser determinada coisa. (PESSOA, 1966, p. 159)

Sob esta perspectiva, a arte deve transpor as sensações para uma forma harmônica de expressão, de modo a criar objetos que se transformarão em sensações para o leitor. Dessa forma, ao tomar consciência da sensação o poeta pode lhe dar valor artístico, já que, ela não possui valor artístico nem sentido por si só. A partir disso, Pessoa estabelece como princípios do Sensacionismo:

1. Todo o objeto é uma sensação nossa;

2. Toda a arte é a conversão de uma sensação em objeto;

3. Toda a arte é a conversão de uma sensação em outra sensação. (PESSOA, 1966, p. 137-138)

Matos explica que de acordo com tais princípios, o poeta deve transformar uma sensação sua em objeto – que é a própria palavra – para comunicar o valor do que se sente a um interlocutor, tendo em vista que o que se comunica é o valor do que se sente, e não o que sente. Como explica o poeta:

Sentir é criar. [...] Só o que se pensa se pode comunicar aos outros. O que se sente não se pode comunicar. Só se pode comunicar o valor do que se sente. Só

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se pode fazer o que se sente. Basta que o outro sinta da mesma maneira. [...] (Pessoa, 1966, p. 216-217)

Na mesma perspectiva, a arte, é considerada a conversão da sensação em palavra (poema), para gerar novas sensações no leitor. Porém, cada ideia ou sensação deverá ser exprimida de modos diferente uma das outras (MATOS, 2007). Nesse sentido, Pessoa (1966), definiu regras para expressar a sensação:

1. Toda a arte é criação; [...]

2. Toda a arte é expressão da vida psíquica; [...]

3. Toda a arte tem papel social diferente do artista: é a consciência da sensação. (PESSOA, 1966, p. 159-161)

Sobre essas regras, Matos (2007, p. 3) explica que:

“Toda arte é criação” porque todo poema é como um ser vivo: necessita de harmonia, precisa fazer sentido. A “arte é expressão da vida psíquica” porque consiste na adequação da expressão, da palavra, à sensação que se quer exprimir. Como, segundo Pessoa (1966), a arte não tem fim social para o artista, e, sim, “um ‘destino social”, o papel social da arte é, conseqüentemente, diferente do artista. Desta forma, para poder expressar uma sensação, o poeta precisa primeiro tomar consciência dela, a fim de que possa exprimi-la da maneira mais adequada.

Lind (apud MATOS, 2007) avalia que a consciência das sensações deve ser explorada ao máximo. Além disso, o teórico entende que no Sensacionismo, o texto é concebido como uma colagem de imagens, resultante das diversas sensações. Nesse sentido, podemos entender que ser sensacionista é demonstrar plenamente uma sensação, para que ela evoque o maior número de sensações possíveis e que a produção final, pareça com um ser organizado.

Além disso, podemos compreender que nesta estética, a arte é a convenção de uma sensação em outra sensação. Tese melhor representada por Caieiro, já que só lhe interessava vivenciar o mundo que captava pelas sensações, recusando o pensamento metafísico. Desse modo, entendemos ser interessante buscar semelhanças e diferenças

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nos poemas sensacionistas de Pessoa, já que o mesmo busca o prazer em sua criação literária:

“Neste sentido, é que se alude ao “ato poético”como forma de presentificar o sujeito e sua falta de objeto pela alusão à fantasia, que conforma as relações do sujeito com o mundo e sua realidade, além de proporcionar ao sujeito sua sublimação frente à causa inomeável do desejo”. (GONÇALVES, 1995,p. 12/13).

FINGIMENTO E ESTRANHAMENTO EM FERNANDO PESSOA

A partir das considerações feitas por Freud sobre o estranhamento na literatura e sobre o Sensacionismo, sob o viés de alguns estudiosos, analisamos através da linguagem, em Autopsicografia e Isto, de Fernando Pessoa, a questão do fingimento poético, tratada por Freud como estranhamento.

Em Autopsicografia, – poema apresenta forma regular e tradicional, com três quartetos em rimas interpoladas e com a estrutura marcada pela regularidade nas três estrofes –, Fernando Pessoa contrapõe realidade, o que ele passa, e ficção, seu fingimento:

Autopsicografia

O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente. E os que lêem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm. E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda

Que se chama coração. (PESSOA, 1996, p. 98-99)

O tema do texto literário é a questão do fingimento poético, em que, podemos observar, a criação poética é envolvida em uma dor sentida pelo autor e racionalizada ao

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ato de escrever. Ideia que já fica explícita na primeira estrofe, mas que acaba alastrando-se por todo o poema.

O adjetivo fingidor, permite vários sentidos diferentes, como ocultar um sentimento ou dissimular, aparentar ou simular, exprimir sem sinceridade, inventar. Porém, entendemos que Pessoa utiliza fingidor no sentido de fantasiar, supor o que não é, de modo a possibilitar outra interpretação, a de chegar a um outro sentido possível, relacionado ao trabalho abstração da realidade.

Desse modo, podemos dizer que o vocábulo fingidor é utilizado pelo sujeito para declarar o fato de ser uma criação do poeta, algo como um produto empírico. Ao lermos respectivamente o primeiro e o segundo versos, ‘O poeta é um fingidor / finge tão completamente’, percebemos a afirmação do poeta, que se passa no tempo verbal do presente do indicativo, denotando a ideia de permanência e afirmando que a criação poética é um trabalho de ficção, uma racionalização do sentir.

Nos versos a seguir, o terceiro e o quarto versos, o eu lírico aparece em um jogo de palavras que associam o adjetivo fingidor e o substantivo dor, utilizado para demonstrar a dor do poeta e a dor do mundo. Desse modo, podemos perceber que o poeta finge a dor, que é real, embora não seja sentida, mas sim criada, da qual o poeta se vale para esquematizar a estática do poema. 3

Ao observarmos o sentido dos quatro versos da primeira estrofe, notamos, a intenção do poeta de mostrar que ficção e realidade se complementam, já que a realidade funciona como forma de demonstrar a criação ficcional, ou seja, o poeta se reporta à sua dor sentida, que é real, para criar a dor do poema, que é ficcional.

Na estrofe a seguir, o sujeito poético faz referência ao leitor e aos efeitos que a leitura causa, qualificando a dor ficcional como apreensível e afirmando que ela, não lhe pertence. Desse modo, no primeiro e segundo versos da segunda estrofe: “E os que lêem o que escreve [ele, o poeta] / Na dor lida sentem bem”, notamos um estranhamento,

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O esse poema é uma ruptura, marca exatamente a fase dos heterônimos, aqui Pessoa declara-se como uma pessoa que sente dor, mas que finge não sentir. Ele está um passo a frente de toda sociedade, seu poder de questionar a sociedade o transforma, o que ocorre também com a sua mente, que não acompanha a maioria das pessoas, por isso ele sente dor e finge que não sente, para tentar enquadrar-se em um mundo que não é seu.

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como é possível sentir-se bem com a dor? Assim, podemos entender que a dor é traduzida pelo poeta a partir da dor real, e a torna uma dor ficcional, intelectualizada.

Já no terceiro verso, o poeta vai explicar as dores real e ficcional. O quarto verso introduz um outro tipo de sentimento, que destaca a dor lida, que não é de ninguém: “Mas só a que eles não têm”. Os leitores lêem, porém sua dor não é real, nem a ficcional, a dor lida também não é a que lhes pertence.

Razão versus emoção é o tema que encerra a terceira estrofe, e pode ser observado através de duas metáforas: “E assim nas calhas de roda / Gira, a entreter a razão, / Esse comboio de corda / que se chama coração”. As calhas de roda correspondem

à metáfora que qualifica a razão e a trata como algo de que não se pode fugir, mas que está ligada à flexibilidade, à sinuosidade, ou à irregularidade, quando do comboio de corda, que é o coração.

Dessa forma, pode-se entender que o poeta necessita tanto da razão quanto da emoção para conceber o poema. O coração possui a função de entreter o poeta, fornecer sentimentos à ele. Já a razão deve reunir essas emoções e organizá-las em versos e estrofes. Portanto, o coração abriga as sensações, imprescindíveis para a produção do poema, porém é através da razão que acontece a composição do texto, em que o poeta racionaliza o que é imaginado, a partir de suas sensações.

Em Autopsicografia, instala-se um ‘ele’ no discursos, que seria o poeta, sob papel de fingidor. Como explica Saraiva( SARAIVA, 2011, p. 60):

“Na qualidade de fingidor, o “poeta” é comparável ao sujeito da enunciação, ou seja, ao sujeito responsável por criar, no ato enunciativo, a si mesmo e a “dor” enunciada que, uma vez despregada da “dor” efetivamente vivida, incomunicável por natureza, só pode ser simulada em discurso”.

Desse modo, a enunciação poética causa uma proximidade, que faz o leitor entender uma “verdade” da “dor” enunciada. O poeta se qualifica, então, como aquele que quer, sabe e pode-fazer-crer na verdade enunciada. É o sujeito da enunciação, o centro gerador do “real” do discurso.

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Da mesma forma que em ‘Autopsicografia”, o poema “Isto”, possui a temática do contraponto entre razão e emoção, através do fingimento poético, explicado por meio da metalinguística. A estrutura do poema se dá de modo regular e tradicional, já que possui três quintilhas, em rimas misturadas, sendo que há regularidade na repetição de rimas interpoladas, entre os três primeiros versos de cada estrofe e de rimas emparelhadas entre os dois últimos versos de cada estrofe. Neste poema, Pessoa demonstra outra forma de racionalizar e sentir a dor e o fingimento poético:

Isto

Dizem que finjo ou minto Tudo que escrevo. Não. Eu simplesmente sinto Com a imaginação. Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo, O que me falha ou finda, É como que um terraço Sobre outra coisa ainda. Essa coisa é que é linda. Por isso escrevo em meio Do que não está ao pé, Livre do meu enleio, Sério do que não é. Sentir? Sinta quem lê!

No que diz respeito à estrutura, a regularidade também aparece nas estrofes, em que encontramos, na primeira, a tese que serve de base para todo o poema, plantando uma ideia que se estenda para a segunda, se fecha e envolve a terceira. Mesmo com semelhanças estruturais, as diferenças entre Isto e Autopsicografia podem ser observadas já na introdução dos poemas. Enquanto o primeiro inicia com uma afirmação, o segundo supõe e nega: “Dizem que finjo ou minto / Tudo que escrevo. Não”. Notamos que o sujeito indeterminado do verso é vago e conota uma incerteza que sugere uma dúvida, possibilitando ao leitor, que decida se é verdade que o sujeito finge, ou ele está mentindo ao escrever.

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Dúvida que é encerrado com o advérbio de negação, que finaliza o verso, e antecipa a resposta que segue nos próximos versos. “Eu simplesmente sinto / Com a imaginação. / Não uso o coração”. O estranhamento está no fato de não sentir com o coração, mas com a imaginação. Foge àquilo que é normal, em que o sentimento está no coração, e a razão na cabeça, nesse caso, na imaginação. Ambos os versos são exemplos do sensacionismo pessoano, e acabam por reforçar a ideia de que o poeta finge. Este estilo sensacionista do poeta, é marcado pelas sensações, exatamente o tema dos dois poemas, porque para lidar com as dores o poeta precisa fingir, e fingir é uma sensação.

Nesse caso, sentir com a imaginação como se estivesse criando um sentimento não existente, mas que serve como criação poética. O verbo usar, aparece no presente do indicativo e sugere que os sentimentos, não participam do processo de criação poética. Desse modo, a poesia é um processo racional, imaginativo, e não sentimental.

Já na segunda estrofe, percebemos uma necessidade de utilizar a imaginação, fato que vem da estrofe anterior, quando o poeta acrescenta que pretende o superar aquilo que lhe falha, para atingir outra coisa. “É como que um terraço / Sobre outra coisa ainda. / Essa coisa é que é linda”. Podemos deduzir que o objetivo do poeta é atingir algo invisível aos olhos, algo oculto, mas que mesmo assim, mostra-se belo.

As ideias desenvolvidas nas estrofes anteriores completam-se na terceira estrofe, que encerra o poema concluindo que é, o acabamento de um círculo. “Por isso escrevo em meio/Do que não está ao pé,”. Esses versos parecem continuar sugerindo a busca por aquilo que é inédito. Além disso, sugere uma justificativa, uma certeza plena: “É certo que escrevo, embora digam que finjo ou minto”.

Neste ponto, entendemos que o sujeito poético se sente livre de tudo que inibe sai liberdade, de modo a aceitar a verdade: “Livre do meu enleio, / Sério do que não é”. Esse excerto do poema parece esclarecer o suposto fingimento e a mentira, mencionados no início do poema e também quanto à postura mental do poeta durante a criação poética. O texto literário é finalizado com um questionamento, que de súbito parece deixar o leitor desnorteado.

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Se observarmos atentamente, notamos que a pergunta do poeta provoca o leitor a chegar a uma conclusão frente à suposição impregnada no texto. Desse modo, o leitor recebe na função de interpretar se o poeta é um fingidor e mentiroso, isso porque ele, ao contrário do poeta, lê e sente.

Em "Autopsicografia", o próprio título estabelece uma intenção racional da poesia, já que o poeta fala sobre como funciona sua mente enquanto cria. A dor que deveras sente, é descrita como um processo de fingimento, pois transforma-se através da imaginação do poeta.

Pessoa utiliza o mesmo processo de transformação em Isto, materializando o fingimento, e estabelecendo a criação como uma ideia clara, não como mentira, mas como uma aproximação da realidade. Desse modo, o elemento que podemos estabelecer entre o fingimento de Pessoa, e o estranhamento de Freud, é a questão da repetição, que atribui uma configuração ao imaginário em que a realidade que se repete, se transforma e causa um efeito.

Pois é possível reconhecer, na mente inconsciente, a predominância de uma “compulsão à repetição‟, procedente dos impulsos instintuais e provavelmente inerente à própria natureza dos instintos – uma compulsão poderosa o bastante para prevalecer sobre o princípio do prazer, emprestando a determinados aspectos da mente o seu caráter demoníaco, e ainda muito claramente expressa nos impulsos das crianças pequenas; (...) Todas essas considerações preparam-nos para a descoberta de que o que quer que nos lembre esta íntima „compulsão à repetição‟ é percebido como estranho. (FREUD s/d)

Nesse contexto, Martins (2011) explica que o estranho não seria apenas efeito da predisposição supersticiosa à repetição, trazendo novamente à tona uma concepção antiga e superada de destino. “A repetição, quando ocorre, é sentida/ percebida como “traço” de uma compulsão primária controlada (nunca superada) e comportaria-se, então, em nosso limitado campo de estudo, como “os complexos infantis que haviam sido reprimidos (e) revivem uma vez mais por meio de alguma impressão”. (MARTINS, 2011, p. 211).

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Em “Autopsicografia”, a ‘dor’ é a realidade repetida no poema e fingida no papel pelo poeta. Porém, essa repetição, vai produzir um imaginário e repassar para que os leitores também a sintam, mesmo que não seja mais a que o poeta sentiu, ou que ele repetiu no texto. Nesse sentido, entendemos que os dois primeiros versos de “Isto” vão ao encontro com os de “Autopsicografia”, tendo em vista que Fernando Pessoa seleciona o elemento que vai fingir e o transforma em arte.

Não finge uma mentira, pois está em uma situação que não pertence nem ao positivo, ou a negativo, deixa no ar, para que o leitor decida em que pólo ele se encontra. Conforme explica Eduardo Lourenço( 2011, p. 11) “mito...que se oferece a todas as sensações, a todos os sentimentos, a todas as ideias, a todos os fantasmas de um mundo em mutação vertiginosa e que voluntariamente se crucificou nas suas contradições, redimindo-as pela invenção do poema”.

Desse modo, percebemos mais ainda a aproximação do fingimento com o estranho, pois renova-se a lembrança passada, é como se sacrificasse o antigo, para cria-lo novamente, e não reproduzi-la. Como explica Freud:

O fator da repetição da mesma coisa não apelará, talvez, para todos como fonte de uma sensação estranha. Daquilo que tenho observado, esse fenômeno, sujeito a determinadas condições e combinado a determinadas circunstâncias, provoca indubitavelmente uma sensação estranha, que, além do mais, evoca a sensação de desamparo experimentada em alguns estados oníricos. (FREUD, s/d)

Seguindo a perspectiva de repetição, entendemos que o poeta utiliza a dor como repetição, para demonstrar o processo doloroso que é o fingir do criador poético. Desse modo, na poesia, a dor sentida pelo poeta desfalece e renasce repetida no texto. Esta, por sua vez, morre também, para reviver na imaginação de cada leitor, possibilitando inúmeras vidas para o poema.

De acordo com Costa (2010), por meio repetição, aparecem escopos que não pertencem à realidade repetida, assim sendo, o fingir provoca a repetição do real no texto sem se exaurir nessa repetição. É importante ressaltar que o fingir não pode ser deduzido da realidade repetida, tampouco é idêntico ao imaginário. Nesse sentido,

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entendemos que os elementos escolhidos pelo poeta, e repetidos no texto, são avaliados diferentemente, e recebem um novo valor.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Baseada nas considerações feitas acima, podemos considerar que os poemas de Fernando Pessoa “Autopsicografia” e “Isto” possuem em comum a temática do fingimento poético, além de partilharem, de alguma forma, do estranhamento descrito por Freud, em O Estranho.

Em “Autopsicografia”, a criação poética é descrita por um eu lírico, que sente uma dor e a racionaliza ao escrevê-la. O sujeito poético afirma que a criação, mesmo sendo ficcional, não pode existir sem uma realidade. Desse modo, o poema precisa tanto da razão quanto da emoção para ser concebido, mas que há um predomínio da emoção sobre a razão.

Já em “Isto”, coração e razão são contrapostos, e manifestam pretensões do poeta com relação ao processo de criação da poesia, deixando aos olhos do leitor a responsabilidade de qualificar, através dos próprios sentimentos, o produto poético. Neste caso, o eu lírico assume a premissa de que apenas o leitor poderá afirmar se o poeta é ou não um fingidor e mentiroso ao escrever.

Como observamos, o sentimento, racional ou emocional, se fez presente em ambos textos analisados, afirmando a premissa de que fazem parte do estilo literário Sensacionista, de Fernando Pessoa. Além disso, questões como a repetição de situações, elementos e linguagem, nos remete ao texto de Freud, sobre estranhamento.

Concluímos, então, que há, de alguma forma, uma ligação entre o que Pessoa chama de ‘Fingimento’, em seus textos sensacionistas, e o que Freud vem conceituar como ‘Estranho’, algo familiar, que por vezes nos distancia de alguma forma, mas que através da repetição retorna de maneira diferente, com outra intensidade e outro sentimento. Da mesma forma que acontece com a dor, a razão e o sentimento nos poemas de Fernando Pessoa.

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REFERÊNCIAS

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SARAIVA, José Américo Bezerra. Sujeito do discurso, crise de identidade e poéticas contemporâneas. Casa, v. 9, n.2, dez. 2011.

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