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OS ASPECTOS DA VIOLÊNCIA, DO SAGRADO E A HIEROFANIA EM AUGUSTO MATRAGA, NA OBRA SAGARANA

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Academic year: 2021

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OS ASPECTOS DA VIOLÊNCIA, DO SAGRADO E A HIEROFANIA

EM AUGUSTO MATRAGA, NA OBRA SAGARANA

THE ASPECTS OF VIOLENCE, OF THE SACRED AND THE HIEROPHANY IN AUGUSTO MATRAGA, IN SAGARANA

Adenilson Moura Vasconcelos1

RESUMO: Considerando as pesquisas sobre

o sagrado como fonte da compreensão do texto, este artigo analisará os aspectos relacio-nados ao religioso, à violência e ao sagrado no conto A hora e a vez de Augusto Matraga, a partir da origem e do caráter da personagem, passando por todo seu sofrimento, sua mu-dança de pensamento e conduta até chegar ao momento da sua decisão de salvar a própria alma. Toda a analise é baseada em conceitos já estudados e defendidos por estudiosos como René Girard e Mircea Eliade.

ABSTRACT: Considering research on the

sa-cred as the source of understanding of the text, this article will review the aspects related to religion, violence and the sacred in the narrative A hora e a vez de Augusto Matraga, from the origin and character of the protagonist, going through all his suffering, his change of thinking and behavior until you reach the time of his decision to save his soul. The entire analysis is based on concepts already studied and defended by scholars such as René Girard and Mircea Eliade.

PALAVRAS-CHAVE: violência, sagrado,

conversão, sacrifício, estrutura textual. KEYWORDS: violence, sacred, converting, sacrifice, textual structure.

No conto A hora e vez de Augusto Matraga, da obra Sagarana2, de João Gui-maraes Rosa, o protagonista, na procura pela salvação da sua alma, experimentará um pro-cesso de conversão presente na maioria das religiões, em especial no cristianismo, embasa-do em provações e sacrifício. O filósofo francês Gené Girard, preeminente voz no campo dos estudos sociológicos sobre a literatura e autor de obras primordiais como A violência e o

Sagrado (1990), nos explica, na referida obra, que o sacrifício segue dois modelos, sendo um

algo bastante sagrado, do qual a pessoa não poderia se abster, ou ainda como um tipo de crime que seria incapaz de ser cometido, sem se expor a crimes graves.

Guimarães Rosa, neste conto, parece resolver optar pelo modelo de sacrifício do qual a pessoa não pode abnegar-se, na história da sua personagem. É o próprio Nhô Au-gusto que vai se oferecer ao sacrifício, ainda que inconscientemente, primeiro rejeitando a ideia e depois aceitando.

1 Doutorando em Literatura pelo Programa de Pós-graduação da Universidade de Brasília.

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Gostaríamos de iniciar nossa análise trabalhando primeiramente a questão das eti-mologias dos nomes próprios que aparecem no conto. E o primeiro aspecto sacro que ob-servamos na narrativa está no nome do protagonista. O nome Augusto, escolhido pelo autor, vem do latim Augustus e significa “sagrado”, “sublime”, “elevado”, “aquele que é digno de ser venerado”, de acordo com o Dicionário de Nomes Próprios, disponível na internet. 3

O narrador já começa explicando que o nome Matraga não é importante: seu nome é Nhô Augusto, e é assim que ele vai ser identificado por todo o conto, voltando a fazer referência a Matraga apenas nas últimas linhas, na finalização da trama.

Naturalmente o nome da personagem por si só não justifica um sacrifício nem tampouco faz dela uma pessoa santa, mas, evidentemente, desperta no subconsciente do leitor uma ligação desta personagem com algo verdadeiramente sacro, justificando assim a sua saga e engrandecendo o caráter literário da obra.

Para engrandecer e explicitar o sentido do que René Girard considera sagrado é im-portante nos atentarmos às considerações do filósofo e professor de religiões Mircea Eliade (1992) sobre esse assunto. Para Eliade não há uma definição exata do que é sagrado, mas uma manifestação do sagrado, o que é definido como hierofania:

O homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se mostra como algo absolutamente diferente do profano. A fim de indi-carmos o ato da manifestação do sagrado, propusemos o termo hierofa-nia. Este termo é cômodo, pois não implica nenhuma precisão suple-mentar: exprime apenas o que está implicado no seu conteúdo etimoló-gico, a saber, que algo de sagrado se nos revela. Poder-se-ia dizer que a história das religiões – desde as mais primitivas às mais elaboradas – é constituída por um número considerável de hierofanias, pelas manifesta-ções das realidades sagradas. A partir da mais elementar hierofania – por exemplo, a manifestação do sagrado num objeto qualquer, urna pedra ou uma árvore – e até a hierofania suprema, que é, para um cristão, a encar-nação de Deus em Jesus Cristo, não existe solução de continuidade. (ELIADE, 1992, p.12)

De acordo com essa teoria de Eliade, podemos afirmar que Nhô Augusto, de forma inconsciente, a princípio, se submeterá a uma demonstração da hierofania dentro da narra-tiva, motivo pelo qual ele aceita o sacrifício como penhor da sua salvação.

3 Dicionário online disponível no site: <www.dicionariodenomesproprios.com.br>. Acessado em:

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Já nas páginas seguintes ficará claro que essa aceitação não é necessariamente vo-luntária, porém, é necessária, partindo do pressuposto que Nhô Augusto experimentará um processo de conversão, e essa hierofania requer, em algum grau, algum sacrifício. É claro que ao falar de sacrifícios devemos nos ater aos ensinamentos de Girard, que nos explica que os dois tipos de sacrifícios e as formas como eles são executados variam de acordo com a cultura, época e o objetivo. Nesta obra de Guimarães Rosa, o sacrifício vai se apro-ximar dos conceitos do cristianismo, mas precisamente na doutrina católica, da qual a per-sonagem fazia parte. Para Girard “Não há nada no sacrifício que não se encontre rigida-mente fixado pelos costumes. A incapacidade de adaptação a novas condições é caracterís-tica dos fenômenos religiosos em geral” (GIRARD, 1990, P. 54).

Curiosamente, mas não despretensiosamente, os sinais da representação religiosa dão-se já no início, em um ambiente religioso, no caso, uma quermesse de igreja. Nesse ambiente, os acontecimentos estão dentro da normalidade, até a chegada do protagonista Nhô Augusto, que vai gerar uma intriga naquele cenário, ao arrematar uma mulher por uma alta quantia de dinheiro:

“(...) E aí de repente, houve um deslocamento de gentes, e Nhô Augusto, alteando, peito largo, vestido de luto, pisando pé dos outros e com bra-ços em tenso, angulando os cotovelos, varou a frente da massa, se enca-rou com a Sariema, e pôs-lhe o dedo no queixo. De, com voz de meio dia, berrou para o leiloeiro Tião:

— Cinquenta mil réis. (ROSA, 1984, p. 342)

Guimarães Rosa nos apresenta Nhô Augusto como uma figura poderosa, respeitá-vel, com postura forte e também detentor de um grande poder aquisitivo, elementos que fazem dele um potencial herói, e ao mesmo tempo um vilão. Claro que essa diferenciação vai ficar por conta do leitor ao analisar o seu caráter, mas é preciso frisar que, ao mesmo tempo em que a personagem é aclamada pela sociedade ─todos dão viva quando ele se mostra poderoso arrematando o leilão─, Nhô Augusto desperta nos mesmos (ou na maio-ria deles), um desejo de estarem no seu lugar, de desejar o que ele está desejando.

Esse desejo, Girard nos ensina, é considerado desejo mimético. Tal qual uma crian-ça desejando um brinquedo dispensado anteriormente só porque outra criancrian-ça se mostra feliz brincando com ele, os adultos daquele lugar viam no Augusto Matraga o homem que eles queriam ser, pelo menos naquele momento, e isso já é motivo para uma possível vio-lência. Girard faz essa distinção entre o desejo mimético nas crianças e nos adultos:

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O mimetismo do desejo infantil é universalmente reconhecido. O desejo adulto não tem nada de diferente, a não ser pelo fato de que o adulto, especialmente em nosso contexto cultural, tem muitas vezes vergonha de modelar-se a partir de outrem; ele tem medo de revelar sua falta de ser. (GIRARD, 1990, p. 184)

Para o autor, qualquer mimese relacionada ao desejo vai, necessariamente, conduzir a um conflito, circunstância que não vai tardar a acontecer no conto em questão.

Nhô augusto vai se tornar responsável por uma desordem que vai acontecer naque-le lugar, em torno da qual desenrolar-se-á a trama.

O personagem já é, por natureza, um homem rústico, bruto e autoritário, caracterís-ticas que não foram alteradas nem com o esforço ou a as orações de sua esposa Dionóra.

Aliás, quando Dionóra resolve abandoná-lo e ir embora com outro homem, ela tem a certeza de que uma tragédia será iminente, mesmo sabendo que ele nunca fora um marido dedicado, conforme Rosa narra a relação de ambos:

Dela, Dionóra, (ele) gostava, às vezes; da sua boca, das suas carnes. Só. No mais, sempre com os capangas, com mulheres perdidas, com o que tivesse de pior. Na fazenda ─ no Saco-da-Embira, nas Pindaíbas, ou no retiro do Morro Azul ─ outras mulheres, o jogo do truque e as caçadas. (ROSA, 1984, P. 346 grifos nossos)

Nesse momento que Dionóra, rejeitada pelo marido, acha conforto nos braços de Ovídio e resolve ir embora com ele, ela sabe que nhô Augusto não aceitaria pacificamente outro homem desejando a sua mulher, ainda que o desejo que Augusto sentia fosse total-mente limitado, como já explicitado anteriortotal-mente. Porém, isso não importa. Aqui vai gerar o conflito do mimetismo, de acordo com as explanações de Girard: “O desejo liga-se à violência triunfante; ele se esforça desesperadamente para dominar e encarnar esta violência irresistível”. (GIRARD, 1990, p. 190). Para esse autor, se o desejo segue a violência como sua sombra, é porque ela significa o ser e a divindade, e, portanto, toda violência em detri-mento a isso será justificada.

Se as orações de Dionóra não foram elementos capazes de mudar o gênio de Au-gusto, talvez a última instância fosse unicamente o sacrifício, e Dionóra também tinha co-nhecimento que a sua fuga com o amante, e ainda levando a filha dela com Nhô Augusto era uma razão para uma reação violenta, e essa violência, através de outros meandros, con-duzirá o herói ao conhecimento dos aspectos do sagrado, mas antes ele passará por

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diver-sas peripécias, as quais o conduzirão ao sacrifício próprio e à experimentação da hierofania. Girard nos explica que quando a violência tem como base o sacrifício, ela se apresenta sob a forma de vingança de sangue. Para o autor esse desejo de vingança afeta a pessoa a tal ponto que: “o desejo da violência produz certas mudanças corporais que preparam os ho-mens para a luta” (idem, p.12). Sendo a assim Dionóra, tendo ciência do caráter vingativo de Augusto, e possivelmente já conhecendo o comportamento de Ovídio, seu amante, um homem também destemido, não vai interceder junto a este para que o sangue não seja der-ramado.

Vale ressaltar aqui, que Dionóra tem conhecimento de que ela é o objeto de desejo e a razão para a violência entre esses dois homens, embora eles assim não assumam publi-camente e tentam justificar o conflito como uma luta em defesa da honra, e não do desejo. Mesmo que a luta fosse em defesa unicamente da honra, ainda assim haveria derramamen-to de sangue, porque a honra, para aqueles homens, também recebe o caráter de sagrado.

A prova de que aquele povo cuida da honra como algo sagrado é a passagem da narrativa onde o garoto Quim Recadeiro avisa Nhô Augusto da fuga da esposa e eles têm o seguinte diálogo:

─ Levanta e veste a roupa, meu patrão Nhô Augusto, que eu tenho uma novidade meia ruim, p´ra lhe contar.

E tremeu mais, porque Nhô Augusto se erguia de um pulo e num átimo se vestia. Só depois de meter na cintura o revólver, foi que interpelou, dente em dente:

─ Fala tudo!

Quim Recadeiro gaguejou suas palavras poucas, e ainda pode acrescen-tar:

─ ...Eu podia ter arresistido, mas era nogócio de honra, com sangue só p´ra o dono, e pensei que o senhor podia não gostar...

─ Fez na regra, e feito! Chama os meus homens! (idem, p. 349)

Quim Recadeiro está convicto de que um ato de violência se faz necessário para a lavagem da honra, e Nhô Augusto concorda plenamente com o mensageiro, além de estar convencido de que esse sacrifício deve ser feito por ele próprio que é o responsável pelo objeto que foi maculado, no caso sua própria honra. Essas duas figuras, Nhô Augusto, no papel do patrão, do homem que tem poder sobre os demais, e Quim recadeiro no papel do subalterno, do homem sem muita voz numa sociedade, representam, ao terem a mesma linha de pensamento e percepção nesse ponto, o pensamento de todas aquelas pessoas que

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compunham aquela comunidade, independente da sua posição social. Para eles, a honra era indubitavelmente sagrada.

Esse caráter de sagrado que a honra dos personagens recebe aqui, se explica, de acordo com a teoria de Eliade, pois por mais que o homem, em especial o ocidental, como é o caso das personagens deste conto, costuma ter dificuldade em aceitar a condição de sagrado diante de uma algo que não está diretamente relacionado às escrituras, ainda que este dê valores e preste reverência como se faz com lugares e objetos comumente conside-rados sagconside-rados. Para Eliade:

O homem ocidental moderno experimenta um certo mal estar diante de inúmeras formas de manifestações do sagrado: é difícil para ele aceitar que, para certos seres humanos, o sagrado possa manifestar-se em pedras ou árvores, por exemplo. Mas, como não tardaremos a ver, não se trata de uma veneração da pedra como pedra, de um culto da árvore como ár-vore. A pedra sagrada, a árvore sagrada não são adoradas com pedra ou como árvore, mas justamente porque são hierofanias, porque “revelam” algo que já não é nem pedra, nem á arvore, mas o sagrado, o ganz

an-dere. (ELIADE, 1992, p.18)

Mais uma vez, Eliade deixa claro que, quando o homem dá um caráter religioso a um elemento estranho às figuras típicas da religião, ele não está convicto de que ele trans-formou esse objeto em algo sagrado, mas o seu comportamento denuncia o subconsciente do indivíduo, que está dando a esse elemento um lugar de sagrado. No subconsciente de Nhô Augusto e dos demais personagens a luta pela preservação da honra justifica um sacri-fício, e quanto maior a violência utilizada na configuração desse sacrisacri-fício, mais pura se tornará a alma.

Porém, o calvário de Nhô Augusto não vai se resumir à vingança pela fuga de Dio-nóra, e o sacrifício em nome da honra. Àquela altura, Nhô Augusto tem muito mais pro-blemas para resolver, o que vai fazer dele uma figura ideal para ser eliminada e resolver muitos dos problemas daquele lugar que agora passa por turbulências causadas, em parte, por este personagem.

Arruinado financeiramente, Nhô Augusto está com muitas dívidas e até jurado de morte. Aqui ele se torna responsável definitivamente pelos problemas que toda aquela soci-edade enfrenta, e a chance de dias de paz passa a existir com a sua morte, justificando, pe-rante aquele povo, ser ele merecedor de toda a violência da qual será vítima. Para Girard “não há nada no sacrifício que não se encontre rigidamente fixado pelos costumes. A

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inca-pacidade de adaptação a novas condições é característica dos fenômenos religiosos em ge-ral” (Girard, 1990, p.55).

Nessa parte da narrativa, a personagem vai deixar, por força das circunstâncias, de cometer a violência, no caso o assassinato de Dionóra e o seu amante em nome da honra, para ser instrumento de uma causa maior. Augusto vai assumir o papel de bode expiatório daquela situação.

Qualquer comunidade às voltas com a violência, ou oprimida por uma desgraça qualquer, irá se lançar, de bom grado, em uma caça cega ao “bode expiatório”. Os homens querem se convencer de que todos os seus males provêm de um único responsável, do qual será fácil livrar-se. Aqui lembramos imediatamente das formas de violência coletiva que se desencadeiam espontaneamente nas comunidades em crise, de fenôme-nos do gênero linchamento, progom,”julgamento sumário” etc. (GI-RARD, 1990, p.105, grifos do autor)

Mesmo na iminência de ser assassinado, Nhô Augusto não vai se entregar por intei-ro. Aqui ele não aceita o sacrifício em nome dos outros. Ele não representa o Cordeiro, como prega o cristianismo, que vai para o matadouro ser imolado em silêncio. Ele é um homem valente e não quer em hipótese alguma se submeter a essa condição.

Guimarães Rosa narra a personalidade de Augusto da seguinte Forma:

Mas Nhô Augusto era couro ainda por curtir, e para quem não sai, em tempo, de cima da linha, até apito de trem é mau agouro. Demais, quan-to em tem que pagar o gasquan-to, desembesta até ao fim. E, desse, jeiquan-to, achou que não era hora para ponderados pensamentos,

Nele, mal-e-bem, por debaixo da raiva, uma ideia resolveu por si: que an-tes de ir à Mombuca, para matar Ovídio e Dinorá, precisava de cair com o Major Consilva e os capangas. Se não, se deixasse rasto por acertar, perdia força. (ROSA, 1984, p.50).

Fica evidente, nesse período, que Nhô Augusto prefere ele mesmo, com sua va-lentia e sua temeridade, sacrificar seu desafeto e resolver o seu problema, mesmo estando ciente de que poderia morrer nesse embate. Porém, Nhô Augusto ainda não se despojou de suas características de homem poderoso e arrogante.

Quando a narrativa fala em não se entregar aos “ponderados pensamentos”, está, de certa forma, falando na possibilidade de aceitar a derrota, ideia que instantaneamente é repudiada por Nhô Augusto, e ele fica disposto a matar aqueles que lhe causaram algum mal, incluindo a esposa e o major Consilva, de quem ele é devedor.

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É interessante notar como nesses primeiros trechos que o autor tem a preocupa-ção de moldar sua escrita com a representapreocupa-ção de elementos que vão justificando a ocor-rência dos fatos. Há uma simbologia relacionada a objetos religiosos desde a primeira cena narrada que se passa na igreja, até na fala das personagens, como nos diálogos ente Dionó-ra, seu amante e o jovem capataz de Augusto, Quim Recadeiro.

─ Nhô Augusto é capaz de matar gente, Seu Ovídeo... Mas eu vou com o senhor, e fico, enquanto Deus nos proteger... (...) Volta você, e fala com seu patrão que Siá Dona Dionóra não quer viver mais cm ele, e que ela de agora por diante vai viver comigo, com o querer dos meus paren-tes todos e a bênção de Deus! (ROSA, 1984, p.348).

Esses elementos que aproximam palavras como “matar” e “proteção de Deus” corroboram a ideia de violência e sagrado que cerceia toda a obra, e à medida que se apro-xima o possível sacrifício a linguagem também vai moldado a narrativa e vão aparecendo elementos que trazem o leitor para esse universo compreendido entre o sagrado, a violência e o profano que, segundo Eliade, é o nosso mundo natural “purificado de toda pressuposi-ção religiosa” (ELIADE, 2002, p.18).

Eliade nos fala ainda sobre a importância da simbologia dentro dos estudos da reli-gião, para o estudioso romano: “A mais pálida das existências está repleta de símbolos, o homem mais ‘realista’ vive de imagens” (p.12-13). Partindo desses ensinamentos, podemos concluir que dentro da literatura a simbologia vai ter um papel muito importante para compreensão do texto pelo leitor, uma vez que as imagens serão criadas por ele, e nesse ponto Guimarães Rosa é muito astucioso ao enriquecer a narrativa com símbolos, tais co-mo martírio, arrependimento, e a própria violência que que estão ligados à hierofania.

Após a decisão de Nhô Augusto de ir à procura de seus desafetos para matá-los, vai acontecer, talvez, a parte mais reveladora da história da personagem que é um atentado para a sua eliminação e apaziguamento daquele vilarejo, mas vai surgir aí também a chance de salvação do próprio Augusto e justificar a etimologia do seu nome, que é sagrado.

A narrativa da parte em que Augusto sofre o ataque é de grande riqueza de detalhes e símbolos, que além de engrandecerem a obra nos levam a refletir sobre as relações entre a dor e a purificação da alma.

Já os porretes caíam em cima do cavaleiro, que nem pinotes de matrin-chãs na rede. Pauladas na cabeça, nos ombros, nas coxas. Nhô Augusto desdeu o corpo e caiu. Ainda se ajoelhou em terra, querendo firmar-se

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nas mãos, mas isso so lhe serviu para poder ver as caras horríveis dos seus próprios bate-paus, e no meio deles, o capiauzinho mongo que amava a mulher-atoa Sariema. (...) E, seguro por mãos e pés, torcido aos pulsos dos capangas, urrava, e estrebuchava tanto, que a roupa se estra-çalhava, e o corpo parecia querer partir-se em dois, pela metade da barri-ga. Desprendeu-se, por uma vez. Mas outros dos homens desceram os porretes. Nhô Augusto ficou estendido, de bruços, com a cara encostada no chão. (ROSA, 1984, P. 351-352)

Em meio a toda essa violência desferida contra Nhô Augusto, é importante obser-var a figura do “capiauzinho” que amava a mulher que Augusto arrematou no leilão da igreja, no seu momento de apogeu. Naquele momento todos aplaudiram Augusto, mas aqueles aplausos não significavam que todas as pessoas o admiravam. Na verdade, muitos tinham vontade de estar no lugar de Augusto quando ele era poderoso e naquele momento, sadicamente, aprovam a sua execução, mostrando que essa vontade mimética é um cami-nho para a violência. Aquelas figuras ali, não estavam apenas participando da tortura da personagem, elas estavam sentindo prazer fazendo aquilo. Era como se Augusto não fosse merecedor daquele momento de glória dos tempos idos e por isso ele deveria ser morto com todos os requintes de crueldade possíveis.

Depois de tanta violência, os capangas do Major Consilva ─ que também se vê no lugar de assumir a posição de Augusto naquela sociedade ─ acreditam que mataram Nhô Augusto, e isso feito, estariam resolvidas as pendências deixadas por ele, e quem sabe até o próprio Augusto seria lembrado como uma pessoa boa, visto que morreu por um problema que afetava o coletivo. É exatamente neste momento que aparece a oportunidade de Au-gusto se converter e assim salvar ele mesmo a sua própria alma.

No lugar em que Augusto teria morrido, foi fincada uma cruz. A cruz que aparece no texto também é uma simbologia. Sob o ponto de vista dos cristãos ela significa o maior sacrifício já oferecido à humanidade, que é a morte do Cristo. Os assassinos de Nhô Au-gusto sabiam que com a morte daquele homem, ele seria, de alguma forma, lembrado por aquele povo, pois a vítima sacrificada, no consciente popular, recebe absolvição.

Outro elemento simbólico nessa parte da narrativa se refere a um buraco onde Au-gusto, supostamente morto, é jogado. Ser jogado no buraco nos remete à descida ao infer-no, que conforme relatam o antigo testamento da bíblia, é o lugar para onde vão os mortos. Inclusive o próprio Cristo teria descido ao inferno para depois subir ao céu. Esse buraco também simboliza um caminho para a purificação, e nele encontramos novamente a analo-gia entre a violência e a plenitude. Não se alcança a conversão sem sacrifício, e quando

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maior a violência do sacrifício, mais a vítima se purifica, visto que a violência, segundo Gi-rard, é um desejo momentâneo e quase incontrolável, que só acaba saciado como sacrifício da vítima.

Afirma-se frequentemente que a violência é “irracional”. No entanto, não lhe faltam razões: ela consegue inclusive encontrar algumas muito boas quando quer irromper. Mas por melhores que sejam, estas razões nunca devem ser levadas a sério. A própria violência vai deixa-las de la-do, assim que o objetivo inicialmente visado sair de seu alcance e conti-nuar a provoca-la. A violência não saciada procura e sempre acaba por encontrar uma vítima alternativa. A criatura que excitava sua fúria é re-pentinamente substituída por outra, que não possui característica alguma que atraia sobre si a ira do violento, a não ser o fato de ser vulnerável e de estar passando a seu alcance. (GIRARD, 1990, p.18)

Para aquele povo, Nhô Augusto está morto. A morte nesse momento também pas-sa a ser um elemento simbólico, porque fisicamente ele ainda não morreu, mas espiritual-mente sim. Simbolicaespiritual-mente morre o homem velho para o nascimento de um homem novo.

Quem encontra Nhô augusto e cuida dele é um casal. E mesmo ele implorando a morte, ainda vai sobreviver porque ainda não chegou sua hora. A figura do casal também é providencial para essa nova fase do período de conversão de Augusto, pois eles vão ajudá-lo nesse processo de transformação em um novo homem. Rudolf Otto (2007) nos ensina que a manifestação do sagrado ocorre por duas vias: pela via racional e a irracional e que o racional só não pode descrever nem apreender o senso e sentido do Sagrado que é termo fundamentalmente religioso. Também não se pode negar a existência do numinoso, que para Para Rudolf Otto (2007) é a característica essencial e exclusiva da religião. Ele usa esse termo para identificar o sagrado no seu cunho não racional, ainda que este possua também o cunho racional. Portanto, naquele momento os cuidadores do enfermo não haviam en-tendido a essência do numinoso presente naquele homem e só enxergam nele, a princípio, o profano, tanto que a mulher faz o seguinte discurso:

Deus que me perdoe, (...) mas este homem deve ser ruim feito cascavel barreada em buraco, porque está variando que faz e acontece, e é só bra-veza de matar e sangrar... E ele chama por Deus, na hora da dor forte, e Deus não atende, nem para um fôlego, assim num desamparo como eu nunca vi! (ROSA, 1984, p. 353-354).

Apesar das descrenças, Augusto consegue melhorar. Quando ele volta a si, vir-lhe-á uma tristeza, uma retomada de consciência, uma sensação de remorso, mas agora já é tarde,

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sua missão é outra e já não fazem mais sentido a família e as coisas que ficaram para trás. Tudo que essa nova consciência trouxe para Augusto foi a possibilidade de ser perdoado dos seus pecados, para subir ao céu e cumprir a sina do seu nome, e para isso Augusto está agora disposto a enfrentar a morte física e não só a espiritual.

É importante frisar que durante toda a narrativa, Guimarães Rosa não abre mão, em momento algum, dos elementos simbólicos e religiosos, porém, nesse novo momento da personagem eles aparecem com mais frequência e podem ser evidenciados na própria mudança de discurso de Nhô Augusto, que agora fala sem ser autoritário e quer ir para o céu a todo custo, mesmo sendo ciente do seu passado devastador. Na sua conversa com um padre que passa por aquela localidade, com quem ele faz uma confissão, que é prática da doutrina católica da qual Augusto pertence, e chega a dizer: “Será que Deus vai ter pena de mim, com tanta ruindade que fiz, e tendo nas costas tantos pecados mortais?” (Idem, p. 356). Após ouvir os conselhos do padre, o novo homem acredita que vai para o céu, e tenta convencer a si mesmo disso:

Ao sair, Nhô Augusto se ajoelhou, no meio da estrada, abriu os braços em cruz, e jurou:

─Eu vou para o céu, e vou mesmo, por bem ou por mal.. E a minha vez há de chegar... P´ra o céu eu vou nem que seja a porrete. (Idem, p. 356-357)

Há nesse período muitos elementos simbólicos, como o martírio, mais uma vez representado pela cruz, e o gesto de ajoelhar que está diretamente ligado à humildade. O todo poderoso Augusto agora é um homem capaz de dobrar seus joelhos perante a sua própria pequenez. Também estão presentes o caráter não-racional do sagrado, já explanado por Otto (2007), que ainda o faz acreditar que se pode chegar ao céu por bem ou por mal, este último por meio da violência representada pelo porrete.

Nhô Augusto sai daquele lugar onde foi cuidado durante os ferimentos, pois sua missão ali também já fora terminada, e se dirige ao povoado do Tombador, onde passará alguns momentos de provação até a chegada da sua hora. O nome Tombador também é um elemento simbólico na narrativa. É o lugar ondem tombam os viventes e Augusto tam-bém experimentará essa experiência de ser tombando, de cair, de morrer.

Desse momento para frente Augusto já não é mais um homem mundano, ele terá ainda de viver de forma renovada por mais alguns anos até a hora do sacrifício final, para enfim chegar ao céu. Durante esse tempo, pouco resta do velho homem: Ele não sente

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mais desejos carnais, não sente mais saudades, não se importa com as notícias de sua terra ou sua gente, e após seis anos vai se entregar ao derradeiro sacrifício, o que, ele acredita, o levará para o céu.

Para que seu destino se cumpra de vez, era preciso que o caminho de Augusto se cruzasse com o de Joãozinho Bem-Bem, homem valente e destemido, que lembra em mui-tos aspecmui-tos o antigo Nhô Augusto. Joãozinho logo que viu Augusto gostou do seu jeito, pois sabia que havia nele alguns mistérios que os uniam.

No primeiro encontro de Nhô Augusto com Joãozinho Bem-Bem, antes de sua ida para o Tombador, houve uma simpatia mútua, pois quando toda a população da aldeia ficou espantada e com medo do bando comandado por Joãozinho, Augusto caminhou e sua direção e Jõaozinho repreendeu um capataz que zombou do anfitrião: “Não debocha, companheiro, que eu estou gostando do jeito deste homem andar” (ROSA, 1984, p.365), o que foi retribuído por Augusto:

─ A pois, se o senhor não se acanha de entrar em casa de pobre, eu lhe convido para passar mal e se arranchar comigo, enquanto for o tempo de querer ficar por aqui... E de armar sua rede debaixo do meu telhado, que vai me dar muita satisfação!

─ Eu aceito sua bondade, mano velho. Agora, preciso é de ver quem é mais, desse povinho assustado, que quer agasalhar o resto da minha gen-te...

─ Pois eu gostava era que viessem todos juntos para o meu rancho... ─ Não será abuso, mano velho?

─ É não... É de coração.

─ Pois então, vamos, que Deus lhe pagará! (Idem, p.366)

O fato de ambos se darem bem também pode ser um indício de que Joãozinho Bem-Bem também precisasse de Nhô Augusto para cumprir a sua própria sina. Fato é que a proximidade dos dois faz Augusto relembrar muita coisa do seu passado, e enxergar até o que restava da essência do homem velho no homem agora novo, como no momento em que Nhô Augusto pega na winchester: “Bateu na winchester, do jeito com que um gato poria a pata num passarinho. (...)E os seus dedos tremiam, porque essa estava sendo a mai-or das suas tentações” (idem, p. 381).

Mesmo depois da despedida, os dois saíram com a impressão de que algo ainda os mantinha ligados, tanto que não custaram a se encontrar novamente, desta vez no Tomba-dor. ”Joãozinho Bem-Bem se sentia preso a Nhô Augusto por uma simpatia poderosa, e

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ele nesse ponto era bem-assistido, sabendo prever a viragem dos climas e conhecendo por instintos as grandes coisas” (idem, p.383).

Curiosamente, mas não despretensiosamente, quando os dois reencontraram, por instinto ambos sabiam que a sua hora era aquela, tanto que Joãozinho Bem-Bem diz:

[...] Eu gostei da sua pessoa, em desde a primeira hora, quando o senhor caminhou para mim, naquele lugarejo... Já lhe disse, da outra vez, na sua casa: o senhor não me contou coisa nenhuma de sua vida, mas eu sei que já deve ter sido brigador de ofício. Olha: eu, até de longe, com os olhos fechados, o senhor não me engana: juro como não há outro homem p´ra ser mais sem medo e disposto para tudo. É só o senhor mesmo querer... (Idem, p. 380)

Finalmente acontece o último sacrifício, que na verdade acaba sendo dois: Augusto e Joãozinho travam uma luta corporal onde ambos serão sacrificados, tanto que Augusto alerta Joãozinho antes da morte deste: “se arrepende dos pecados, que senão vai sem con-trição, e vai direitinho p´ra o inferno, meu parente seu Joãozinho Bem-Bem” (idem, p.384). Esse diálogo em meio à tamanha violência justifica e corrobora mais uma vez a ideia de atingir a sacralidade através do sacrifício. Em nenhum momento as personagens esquecem-se disso, tanto que mesmo ferido e já quaesquecem-se morrendo perante o público, o herói ainda suplica ao povo que queria vilipendiar o cadáver de Joãozinho: “ pára com essa matinada, cambada de gente herege!... E depois enterrem bem direitinho o corpo, com muito respeito e em chão sagrado, que esse aí é o meu parente seu Joãozinho Bem-Bem! (Idem, p386). Agora Nhô Augusto está pronto para chegar ao céu, pelo menos como ele mesmo acredita, e por isso morre feliz, levando consigo seu amigo Joãzinho Bem-Bem.

Considerando os aspectos do sagrado e da violência no processo de hierofania de-fendidos por Girard, assim como os conceitos de bodes expiatórios e percebendo a pre-sença dos mesmos nesse conto de Guimarães Rosa, concluímos que o personagem Augus-to Matraga viveu as experiências da hierofania na sua essência e que a narrativa de Guima-rães nos fornece elementos para reflexão de assuntos relacionados não só ao campo da literatura, mas da religião e da vida cotidiana, uma vez que, segundo Eliade, o sagrado e o profano são duas maneiras de ser no mundo, duas situações existenciais assumidas pelo homem ao longo da história. Para este filósofo e estudioso da religião: “os modos de ser sagrado e profano dependem das diferentes posições que o homem conquistou no Cosmos e, assim, interessam não só ao filósofo, mas também a todo investigador desejoso de

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co-nhecer as dimensões possíveis da existência humana” (ELIADE, 1992, p.14), o que parece ser a intenção de Rosa ao escrever A hora e a vez de Augusto Matraga.

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REFERENCIAS:

BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. Direção editorial: Paulo Bazaglia. São Paulo: Paulus editora, 1998.

ELIADE, Micea, Imagens e Símbolos: Ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. Tradução: Sonia Cristina Tamer. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

_____ O sagrado e o profano. Tradução: Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

GIRARD, René, A violência e o Sagrado. Tradução: Martha Conceição Gambine. São Paulo: Editora Universidade Paulista, 1990.

OTTO, Rudolf. O sagrado: os aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o racional. Tradução: Walter O. Schlupp. São Leopoldo: Sinodal/EST; Petrópolis: Vozes, 2007. ROSA, Guimarães: Sagarana. Coleção Mestres da literatura contemporânea. Rio de Janei-ro/ São Paulo: Record/Altaya, 1984.

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