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Montero, Paula (org) 2006 Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural (ocr)

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(1)

P a u l a M o n t e r o ( o r g . )

D E U S N A A L D E I A

M i s s i o n á r i o s , í n d i o s

e m e d i a ç ã o c u l t u r a l

Q

EDITOR» G0OBO

(2)

C o p y r i g h t © 2 0 0 6 by Acione Agnolin, A r a m i s L u i s Silva, A r t i o n k a C a p i b e r i b e , C r i s t i n a P o m p a , J o s é M a u r í c i o P. A. A r r u t i , M a r c o s Pereira R u f i n o , M a r t a Amoroso, M e l v i n a A f r a M e n d e s d e A r a ú j o ,

N i c o l a G a s b a r r o , Paula M o n t e r o e R o n a l d o d e A l m e i d a Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida - em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia, gravação etc. - nem apropriada

ou estocada em sistema de bancos de dados, sem a expressa autorização da editora.

Preparação: O t a c í l i o N u n e s Revisão: V a l q u í r i a D e l i a P o z z a

Capa: F e r n a n d a F i c h e r

Foto de capa: J e a n M a n z o n , Aldeia Xavante ( c . 1 9 4 4 ) , g e l a t i -n a ( c c ) , 4 0 x 4 0 , C o l e ç ã o F a m í l i a M a -n z o -n , S ã o P a u l o ( S P )

Ia e d i ç ã o , 2 0 0 6

A

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara BrasilgipvHn Lnrrq^SP, Brasil)

Deus na aldeia : m j ^ S ^ H t f S T í n d i o s e T i f e d ^ í ^ N f u l t u r a l / Paula Montero, (org.) . - f o a b

Vários autores Bibliografia

ISBN 85-250-4200-5

1 .Antropologia 2. Comunicação intercultural 3. índios da América do Sul - Brasil - Missões 4. Missionários - Brasil 5. Povos indígenas - Brasil I. Montero, Paula. II. Título.

06-4569 CDD-303.482 índice para catálogo sistemático:

1. índios e missionários : Mediação cultural : Sociologia 303.482 2. Missionários e índios : Mediação cultural: Sociologia 303.482

D i r e i t o s d e e d i ç ã o e m l í n g u a p o r t u g u e s a a d q u i r i d o s p o r E d i t o r a G l o b o S . A . Av. J a g u a r é , 1 4 8 5 - 0 5 3 4 6 - 9 0 2 - S ã o P a u l o , S P

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O "ENCONTRO" ENTRE OS MISSIONÁRIOS E OS ÍNDIOS DO BRASIL, INI-CIADO NO SÉCULO XVI, CONTINUA QUINHENTOS ANOS DEPOIS E NUM MUNDO GLOBALIZADO. ESTE LIVRO TRATA, DE UMA PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA, DESSA HISTÓRIA ACIDENTADA E DAS PROFUNDAS TRANSFORMAÇÕES QUE ESSE ENCONTRO PROVOCOU E PROVOCA EM TODOS OS ENVOLVIDOS, PARTICULARMENTE COM CONSEQÜÊNCIAS INÚMERAS VEZES TRÁGICAS PARA O GRUPO MAIS NUMEROSO - OS ÍNDIOS EM TODAS AS MANIFESTAÇÕES DE SUA HISTORICIDADE. E SE A ANTROPOLOGIA É DEVEDORA DA PRÓPRIA ATIVIDADE MIS-SIONÁRIA PARA CONSTITUIR O SEU OLHAR, ELA TAMBÉM AQUI PODE SE REVER CRITICAMENTE, TENDO COMO PALCO PARA ESSA AVALI-AÇÃO OS PROBLEMÁTICOS PROGRAMAS QUE, A PARTIR DOS ANOS 1970. SÃO POSTOS EM PRÁTICA JUNTO AOS ALDEAMENTOS INDÍGENAS P E U IGREJA CATÓLICA E PELOS PROTESTANTES HISTÓRICOS E PENTECOSTAIS.

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A S R E F L E X Õ E S Q U E O L E I T O R C I K O U Ir(]i <1 a q u i s.io s111 pi e e n d e n t es. S e u o b j e t o , (1 s , i I Í \ Í (1,1 (I (1S II 1 Í s s j o 11 J li < 1 s (Ol)l Os í n d i o s lio I ) I , 1 s i I (1 o S | ) | () | ) | (1II), 1 s | M l (11 ( 11 I I 111 ,1 i s ( j l I f' p r o d u z e s s e "'cm o n l i o , e n a o a p e n a s a t u a l , m e s m o s e n d o t.io .intimo, c o m o i g u a l m e n t e d m n i i i l K o, p o i ( ] u e a g o r a e s t a m o s e n v o l v i d o s n u m j o g o m u i t o m a i s g l o b a l d e o i d e IKK d o e p o s s í v e l ,111 K M ( a (Li d i \ e r s i d a d e, d a c u l t u r a e d<is p r a t i t a s r e l i g i o s a s . 1 p o r q u e e d e u m C I K o u t r o (]ue s e t i a t a , c o m t u d o o q u e p o s s a \ i r a s i g n i f i c a r par<i o l u t u r o d o s q u e s e t e i m e m , a c a d a v e z d e u n i a l o r n i a , n a s e n c r u z i l h a d a s d a h i s t o r i a , e n e c e s s á r i o s e m p r e re< o n s t i t u i r c o m n o v o s i n s t r u m e n t o s o s g e s t o s e a s a c o e s d o s p r o t a g o n i s t a s , t a n t o d o p r e s e n t e q u a n t o d o p a s s a d o , s e q u i s e r m o s d e p u t a r n o s s o m o d o d e \ ei e i n t e i p r e t a i o " o u l ro , ( a n u n h o o b n g a l o r i o p a i a ( o n h e < e i n i o s u n i a b o a j>ai te di1 " n o s m e s m o s . A a b o r d a g e m a<]iii p r e t e n d i d a e m o

v a d o i a s o h \ a i ios aspe< tos: a o l e l e i < i itic.i

m e n t e .1 h e r a i u a d a s l e l l e x o e s a n l i o p o l o g i

( a s sol)i e o s < o i 1 1 a I o s m t e i ( u l t u i ais, gi . m d e

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l l l i s s i o i l . i l ' i a s c í l l l a i " I Kl AllKM Íí d, C dl) |)(M's p e c t i v a r e s s e o l h a r a n t r o p o l o g i c o , a t e n t o .tos i n s t r u m e n t o s d a f i l o s o f i a d a l i n g u a g e m , .1 p a r t i r t a m b é m d o s p r o b l e m a s a b o r d a d o s p e l a h i s t o r i o g r a f i a a t u a l , s i t u a n d o s e n o q u e h o j e e u m d o s p o n t o s d e e n c o n t r o m a i s f e c u n d o s n a s c i ê n c i a s . s o c i a i s : a a n t r o p o l o g i a h i s t ó r i c a . Dtvssa f o r m a , e p o s s í v e l v i s u a l i / a r m e l h o r a s d i v e r s a s c a m a d a s d e s e n t i d o q u e v a o s e n d o d e p o s i t a d a s e 11 a n s l o r m a d a s n a a t i v i d a d e n i i s s i o n e i r a , p a r a r e v e l a r c o r n o m i s s i o n á r i o s e í n d i o s s e t r a n s f o r m a m m u t u a m e n t e n e s s e " e n c o n t r o " , m e s m o q u e c o m c o n s e q ü e n c i a s m u i t o d i s t i n t a s p a r a c a d a u m d e l e s . P o r i s s o , e f u n d a m e n t a l l e r e s s e l i v r o p a r a c o m p r e e n d e r m o s ( p i e a q u e l a s <H o e s m i s s i o n á r i a s , inic i a d a s n o s é c u l o X V I , d e s a t i n a m s o b n o v a s f o r m a s , n o v a s l o u p a g e n s , n o p r e s e n t e , e q u e n a s u a a t u a l n i u l t i p l i ( ' i d a d e , a t r a v é s d o s p r o g r a m a s i m p l e m e n t a d o s p e l a I g r e j a c a t ó l i c a e p e l o s p r o t e s t a n t e s ( h i s t o i i c o s e p e n t e c o s t a i s ) , e s t ã o e m ((Mia o s d e s t i n o s d e m i l h a r e s d e s e r e s h u m a n o s , o s í n d i o s , p r i m e i r o s h a b i t a n t e s d e s s a t e r i a.

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E S T E L I V R O , C O M P O S T O N A F O N T E F A I R F I E L D E P A G I N A D O P O R A L V E S E M l R A N D A E D I T O R I A L L T D A , F O I I M P R E S S O E M P Ó L E N S O F T 7 0 G N A P R O L E D I T O R A G R Á F I C A .

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S U M Á R I O

INTRODUÇÃO — Missionários, índios e mediação cultural . . 9

Paula Montero

1 - índios e missionários no Brasil: para u m a teoria da

mediação cultural 31 Paula Montero

2 - Missões: a civilização cristã em ação 6 7

Nicola Gasbarro

3 - Para uma antropologia histórica das missões 111 Cristina Pom^a

4 - Catequese e tradução:

Gramática cultural, religiosa e lingüística do encontro

catequético e ritual nos séculos XVI-XVII 143

Adone Agnolin

5 - A primeira missa:

Memória e xamanismo na Missão C a p u c h i n h a

de Bacabal (Rio Tapajós 1872-82) 209 Marta Amoroso

6 - 0 código da cultura: o Cimi no debate da inculturação 235 Marcos Pereira Rufino

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7 - Tradução e mediação: missões transculturais entre grupos indígenas

Ronaldo de Almeida

8 - Sob o manto do cristianismo: o processo

de conversões palikur 305

Artionka Capiberibe

9 - A cultura como um caminho para as almas 343

Aramis Luis Silva

10 - A produção da alteridade:

O Toré e as conversões missionárias e indígenas . . . . 381

Maurício R A. Arruti

11 - Natal na maloca 427

Melvina Afra Mendes de Araújo

Glossário 457

Notas 4 9 1

Bibliografia 547 Sobre os autores 581

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I N T R O D U Ç Ã O

M I S S I O N Á R I O S , Í N D I O S E M E D I A Ç Ã O C U L T U R A L

Paula Montero

O CONJUNTO DE TEXTOS que apresentamos ao leitor neste volume é o resultado de um esforço coletivo de enfrentar, através do estu-do da atividade missionária entre as populações indígenas no Brasil, os problemas da interculturalidade que esse tipo de relação impõe, Embora abordado a partir de diferentes perspectivas, este já é um tema clássico na antropologia, e em particular na antropo-logia brasileira, mas que se renova constantemente pelo recrudes-cimento dos ciclos mais recentes de globalização, cujas configura-ções muitas vezes inesperadas (tais como a inversão de processos de "assimilação" dados como certos até muito recentemente) nos obrigam a renovar os termos do debate sobre o tema.

O problema geral do encontro intercultural e de suas conse-qüências foi colocado pela literatura histórico-antropológica das mais diferentes maneiras; em grandes linhas podemos destacar os estudos que o trataram em termos de "aculturação" tais como a escola antropológica americana e a antropologia brasileira dos anos 1950; em termos de "hibridismos" na vertente historiográfica ins-pirada em autores como Serge Gruzinski; em termos das relações entre estrutura e história nos trabalhos inspirados por Marshall

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Sahlins; etc. Os desdobramentos desses diferentes posicionamen-tos para o trato da atividade missionária serão abordados detalha-damente no primeiro capítulo. De nossa parte, tendo em vista o objeto de pesquisa com o qual lidamos, que supõe a interconexão de sistemas simbólico-religiosos distintos, preferimos colocar o problema em termos de interpenetração das civilizações1 de modo a

podermos enfrentar a questão com o grau de generalidade que ele exige. Isso porque, por um lado, no plano das práticas e das repre-sentações dos próprios missionários, religião e civilização se consti-tuíram historicamente como categorias irmãs, como bem o demons-tra Cristina Pompa. No plano teórico, por outro, essa formulação rompe com uma sinonímia histórica entre a idéia de nação e a de

cultura, permitindo pensar atores cujo sentido da ação se decifra,

como sugere Nicola Gasbarro no capítulo 2, na sua disposição para articular diversidades culturais heterogêneas que visam a produzir unidades políticas cada vez mais abrangentes. A catego-ria civilização privilegia as relações entre os homens (e não entre culturas);2 além disso, ela nos ajuda a superar u m certo dualismo

irredutível ainda prevalecente na antropologia entre o nós e o

outro — que advém de uma análise centrada na decifração das

particularidades culturais como sistema e no suposto da sua incomensurabilidade —, ao voltar o foco de nossa observação para índios e missionários em relação, ou, dito de outro modo, para o jogo contingente de suas relações sociais e simbólicas em um dado contexto.

Esse modo de colocar o problema geral da interculturalidade também nos permite recuperar para o nosso problema os ganhos da tradição inaugurada pela escola francesa de estudos compara-dos da religião, em particular sua perspectiva histórica e seu com-parativismo. A atividade missionária foi, por excelência, como veremos neste trabalho, uma atividade de classificação e compara-ção das diferenças de modo a localizá-las em quadros universais. Assim, em vez de tomar o eixo da cultura como um dado — pers-pectiva que definiu, desde o início, o trajeto dos estudos de

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acul-turação —, nossa abordagem toma como objeto as representações nativas, ou o modo como a ação missionária comparou historica-mente civilizações de modo a evangelizá-las. Nosso foco voltou-se, assim, para a análise do 'religioso" como linguagem privilegiada das relações interculturais — linguagem que produziu as catego-rias por meio das quais nossos agentes procuraram responder às questões que as diversas situações de contato lhes suscitava ao longo da história — e do modo particular como ele permitiu a pro-dução de instrumentos simbólicos e práticos para as traduções culturais que as relações impunham como necessárias. O fato de que o religioso, em suas diversas dimensões, tenha sido (e, em parte, ainda o seja, como demonstramos neste livro) a linguagem preferencial do esforço de tradução dos agentes envolvidos nessas relações exigiu de nós uma atenção particular para as interações "realmente efetuadas",3 como diria Pierre Bourdieu (1983), a

par-tir dessa linguagem. A resultante dessa abordagem é, pois, um volume cujos capítulos dialogam intensamente entre si, de modo a caracterizar as diversas configurações que essas interações assu-m e assu-m no caso os jesuítas no século XVI, dos capuchinhos no sécu-lo XIX, dos salesianos, dos consolata, do Cimi e das missões evan-gélicas na contemporaneidade.

* XX

O desenho ^os capítulos aqui proposto supõe um diálogo silencio-so entre as partes que nos parece necessário explicitar para o lei-tor. Esse debate tem, a nosso ver, cinco dimensões principais, ou cinco conjuntos de problemas que podem nos servir de eixo para a apresentação deste empreendimento coletivo: o modo como pro-curamos enfrentar o problema metodológico das relações entre antropologia e história; o uso que fizemos dos principais conceitos — religião e cultura — utilizados nestes textos; a questão estraté-gica da tradução nas relações de mediação; o privilégio que demos à noção de rede na análise das relações sociais e simbólicas; e,

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finalmente, o modo como procuramos construir uma perspectiva teórica adequada ao problema da interculturalidade que enfatizas-se os enfatizas-sentidos produzidos nas relações. Vejamos, com mais aten-ção, cada uma dessas questões.

O ponto de partida — que faz da ação missionária um objeto privilegiado para a compreensão histórico-antrapológica dos meca-nismos simbólicos de alargamento das relações implícitos nos pro-cessos de interpenetração de civilizações — nos obriga a enfrentar a questão da aproximação, em um mesmo estudo, entre material his-tórico e observação antropológica dos fenômenos contemporâneos. Estamos, então, no terreno do vasto e delicado debate sobre as rela-ções entre antropologia e história, do ponto de vista seja das fontes, seja dos métodos ou dos campos de interlocutores. As análises pre-sentes neste livro estão todas mais ou menos explicitamente vincu-ladas a esse debate; mas, entre aquelas que o formulam mais expli-citamente, podemos dividi-las em dois modos complementares e relativamente espelhados de penetrar esse terreno.

De um lado temos os problemas trazidos pelo tratamento etnográfico da documentação histórica que nos obrigam a pensar as condições de possibilidade de realizar, por meio dela, uma antropologia simétrica do encontro missionários-indígenas. Não resta dúvida de que os processos da mediação cultural recebem um tratamento desigual em função da natureza particular das fontes históricas: tendo em vista que esses documentos são produzidos pelos próprios missionários, põe-se a questão da possibilidade e dos limites dessas fontes. O risco fundamental é, obviamente, o de utilizar as informações como dados objetivos, esquecendo os de-terminantes culturais que constituem os "filtros" através dos quais os europeus percebiam os índios. E esses "filtros" não são os mes-mos para todas as fontes: havia diferenças internas nesses olhares, pois havia percepções diferenciadas e estratégicas específicas de apreensão e transcrição do "outro". Essa uniteralidade da fonte documental tornaria inócua qualquer tentativa de apreender, atra-vés delas, relações? O índio ali retratado seria apenas o índio do

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civilizador? O que se pode reter das fontes históricas seria apenas o modo especular como o missionário fala do índio para, no final das contas, falar de si mesmo?

Na perspectiva aqui adotada, apontar a origem histórica das categorias apresentadas nas fontes não significa que elas só pos-sam transmitir um discurso ocidental. Se formos capazes de colo-cá-las em seu contexto de produção, definindo o lugar dos atores, seus interesses e conflitos, os textos nos dirão algo não sobre a "'ori-ginalidade" irremediavelmente perdida e impossível de reconsti-tuir, mas sobre o processo do encontro que é a matéria que aqui nos interessa. U m segundo risco, inerente ao uso desse tipo de documentação, é o de esquecer que os relatos se fixam no proces-so mesmo das relações entre índios e missionários e que, na maior parte das vezes, ele já se iniciara havia muito tempo. O conjunto das fontes deve, pois, ser tratado como uma narrativa na qual se depositam inúmeras vozes, em contraponto ou em uníssono, e em diferentes tempos. Nesse sentido, também a voz do indígena se apresenta como interlocutora. Assim, as fontes devem ser transcri-tas de uma forma suficientemente ampla para devolver, ao mesmo tempo, o contexto histórico em que se produziram determinados acontecimentos, o contexto narrativo em que se articulam as infor-mações e o contexto cultural a partir do qual os relatos foram escri-tos e ao qual eram destinados.

Nessas condições, a perspectiva indígena aparece de maneira muito sutil, nas entrelinhas e sempre filtrada pela ótica dos inte-resses de quem os documenta. Os capítulos de Cristina Pompa (3), Adone Agnolin (4) e Marta Amoroso (5) enfrentam essas ques-tões, cada um à sua maneira. Como bem observa John Monteiro em seu prefácio ao livro de Cristina Pompa sobre as relações entre missionários e os tupis no Brasil colonial (2003), pano de fundo da reflexão que ela empreende neste livro, a autora desafia as supos-tas limitações que a documentação histórica apresenta e insiste em que é possível ler o olhar indígena nela inserido. Trata-se, na verdade, de tentar apreender nos documentos o modo como os

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índios "tomam para si" as particularidades etnográficas reificadas pelas "linguagens particulares" dos missionários. O trabalho de Marta também mostra que as fontes estão longe de ser apenas o registro da experiência particular de um missionário: elas são, ao contrário modeladas, ao mesmo tempo, pelas experiências lidas e conhecidas de outros missionários em outros lugares e momentos e pelos conteúdos doutrinários e ideológicos do projeto civilizatório da Igreja católica que se acumularam ao longo da história. O pró-prio missionário representa sua ação em diálogo com outras expe-riências missionárias construindo-a muitas vezes sobre "os escom-bros" de assentamentos anteriores. A autora captura, assim, através dessa determinação estilística da fonte, ao mesmo tempo, a grade de leitura, a teoria que o missionário usa para descrever a si mesmo, a particularidade indígena mundurucu e as frestas por onde escapam as reações indígenas — a força política dos feiticei-ros e pajés que movem a vingança na missão descrita de um modo acusatório — e convergências de perspectivas entre índios e mis-sionários, tal como no caso do apoio missionário ao ritual da caça às cabeças contra os parintintins, ou na aproximação simbólica entre pajés (sacerdotes protocristãos ) e padres.

Já os catecismos jesuíticos, estudados por Adone Agnolin, são fontes documentais modeladas por retóricas teológico-políticas e metafísicas que precisam ser levadas em conta quando se procura ler através delas "as culturas indígenas"; esse é o esforço realizado pela análise de Agnolin neste livro. Além disso, a produção mesma desse tipo de documento exigiu a construção de um artefato cul-tural de enorme relevância: a gramatização da língua indígena, ins-trumento basilar do catecismo (e da evangelização). Essa grade de leitura que permite ler o sistema mítico-ritual indígena, ainda que na chave da religião, dá lugar a uma pragmática que está obrigada a selecionar, simplificar e adaptar, operações necessárias, segundo o autor, para que a mensagem cristã signifique algo para o índio. Ainda que não se pretenda alcançar a língua indígena "pura", isto é, aquela existente antes da chegada do missionário, os relatos

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sobre as dificuldades para normatizar a língua tupi nos dão acesso, ainda que parcial, às suas características próprias quando compa-radas às latinas, tais como seu caráter contextual e a ausência de convenções lingüísticas de gênero e número. Além disso, quando se leva em conta que o catecismo era uma prática de audição e memorização, torna-se mais clara sua permeabilidade para que nele se incrustassem a memória e a ritualidade indígena. O regis-tro das dificuldades para conregis-trolar o que os indígenas compreen-. diam e como compreendiam abre também aqui as frestas que nos dão acesso ao modo de ver indígena.

Assim, assumindo os devidos cuidados quanto ao contexto de produção dos textos missionários e a seu modo de produzir a reconstituição das culturas orais, essa operação permite recuperar nas fontes aquilo que interessa a todos os autores deste volume: o registro da "convergência de horizontes simbólicos"4 resultante das

relações históricas entre índios e missionários. E claro que esse modo de ler a documentação histórica não supera o problema do desequilíbrio entre o estudo histórico dessas relações e seu estudo no presente. Ainda assim, é preciso ter em mente que as popula-ções indígenas contemporâneas estudadas neste volume em suas relações com os missionários não são as mesmas "que estavam lá, no passado, e que sempre estiveram lá" para que as pudéssemos estudá-las no presente. Embora pouco se saiba, ainda, da história indígena, é consenso que essa história foi marcada por cisão, dis-pársão, fusão, desaparecimento e recomposição de muitos desses grupos, algumas vezes produto da própria situação colonial ou fora-gidos das missões e "retribalizados" (Cunha, 1998).

Os estudos históricos e os estudos antropológicos que com-põem este volume se enfrentam, pois, com problemas de ordem pro-porcionalmente inversa: os que trabalham o material documental precisam ler nas entrelinhas a dimensão etnográfica; os que traba-lham com o presente precisam decompor as evidências etnográficas de modo a perceber as várias "camadas históricas" depositadas na superfície enganosamente plana que se oferece ao olhar do

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obser-vador direto. O trabalho de José Maurício Arruti é especialmente revelador das possibilidades analíticas que se abrem quanto se lê a etnografia como uma porta de acesso à história, por um lado, e quando se pensa a história como objeto etnológico. Trabalhar his-toricamente com os dados etnográficos de campo coloca, entre outras questões, a necessidade de pensar a história não como um conjunto de fatos reais passados, mas como um dentre outros objetos etnológicos, fundamental na compreensão das relações missionários-indígenas e produto mesmo desse encontro. Obviamente não se trata de afirmar que a história se inaugura no seio daquelas "sociedades frias" por meio do "encontro", mas de reconhecer que as novas relações instauradas estão ligadas a uma série de mudanças na concepção de tempo (modelos de temporali-dade), nas formas de recuperar fatos passados (métodos mnemôni-cos), na atribuição de significados locais e/ou gerais a tais fatos (cor-pus memorial), na sua hierarquização (história indígena), na medida mesma em que tal memória é compatibilizada e ganha um lugar no seio de histórias mais amplas (regionais e nacionais).

Essa relação entre memória e história está no centro da análi-se do processo da indianidade xocó tal como descrita no capítulo

10, no qual a memória cabocla é tão fundamental quanto impedi-tiva do esforço missionário de construção de uma história indíge-na. A construção dessa história costurou memórias dissonantes enquadrando-as cronologicamente por meio do recurso à pesquisa documental, empreendida tanto por missionários quanto por antro-pólogos, sempre tendo em vista uma argumentação voltada para o Estado brasileiro. Mas o importante na análise de J. M. Arruti desse processo está em apreender, primeiro, quanto a "história indígena" é tributária (ou simples extensão) de uma história da terra indígena e, segundo, quanto tal construção discursiva teve profunda repercussão sobre a própria autopercepção da população que ela pretendia descrever: a história que pretendia recuperar para fazer justiça a uma memória indígena na verdade opera a

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con-versão de uma "memória cabocla" dispersa em uma "memória indí-gena" unificada, recriando-a em outros termos.

Na análise empreendida por Artionka Capiberibe no capítulo 8, uma exploração semelhante das relações de temporalidade é expressada em termos de camadas da presença das missões inci-dentes sobre o mesmo grupo indígena. As narrativas palikur sobre a sua conversão ao pentecostalismo evangélico são estruturadas por elementos do cristianismo com os quais conviveram em tem-pos distintos: dos jesuítas, no século X V I I I ; dos padres das prelazias

locais, nos séculos XIX e XX; do catolicismo que reunia festas aos santos e xamanismo praticado por eles em um passado recente e hoje presente nos outros povos da região. Essas diferentes tempo-ralidades são combinadas, como em um girar de caleidoscópio, no momento de explicar como e por que os palikur se converteram.

O segundo eixo importante de problemas é conceituai e diz respeito ao modo como estamos utilizando a noção de religião e

cultura neste volume. Como bem observou Oscar Calávia em seus

comentários ao nosso trabalho, a antropologia contemporânea enfrenta o problema das relações "incestuosas" entre o conceito de religião e o de cultura. As tentativas de demarcação esboçadas por Clifford Geertz não permitiram avançar muito (1978)5 nessa

dire-ção. Na raiz dessa dificuldade está o próprio processo de constitui-ção da disciplina antropológica, que, como já apontaram muitos autores, herda dos relatos missionários essa sinonímia implícita. Im^õem-se, portanto, os problemas relativos não só à historicida-de das categorias missionárias e do repertório analítico das ciên-cias sociais como, fundamentalmente, ao trânsito pouco controla-do (o "contrabancontrola-do", diria Bourdieu) de categorias, temas e problemas de um campo para outro,

Não se trata, portanto, de encontrar "antecipações" de orienta-ções antropológicas no pensamento missionário, mas de reconsti-tuir a dinâmica de certos conceitos, criados em determinados ambientes histórico-sociais (o "cristianismo" em oposição ao "paga-nismo" e, depois, a filosofia tomista como organização teológica do

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mundo) e reelaborados em outros. Como mostramos aqui, essa ree-laboração se dá tanto na apropriação do culturalimo antropológico pelo discurso missionário — através da suposta "reconstrução" de grupos ou no "resgate" de sua tradicionalidade — quanto na apro-priação, pelos próprios indígenas, dos discursos antropológicos e missiológicos para a produção de um discurso étnico.

Para que pudéssemos neutralizar os efeitos mais desconcertan-tes desses contínuos deslizamentos entre o campo antropológico, a pragmática missionária e a auto-representação indígena, procura-mos manter as noções de cultura e religião no plano do discurso nativo: não se trata, pois, nesta abordagem, de descrever "a cultura nativa", mas sim o modo como o "etno" (isto é, aquilo que é carac-terizado como sendo próprio do índio) aparece e é mobilizado pelos padres e pelos grupos indígenas. Homologamente, tampouco se trata de descrever "a religião indígena" (aquilo em que os índios "crêem"), mas o modo como usam e expressam o que os missioná-rios lhe apresentaram como a mensagem religiosa. Nesse tipo de abordagem, o problema antropológico da "conversão", tal como foi colocado em trabalhos já clássicos como o de Hefner (1993), perde substância analítica. Isso porque, se estamos situando a crença no plano do discurso nativo, e não no plano do discurso antropológico, a noção de conversão deve ser tomada como um dos instrumentos missionários para medir a qualidade da absorção de seus ensina-mentos — e é apenas nesse plano que a polêmica sobre a verdadei\ ra ou falsa conversão faz sentido —, ou, no caso indígena, para designar uma posição social em contraposição a outras possíveis.

Como já indicamos acima, no intuito de estruturar melhor o campo teórico onde se situa nossa abordagem, o trabalho de Cristina Pompa neste livro procura desvendar esse processo histó-rico no qual, desde a "conquista espiritual do Novo Mundo", a "religião" se constituiu no instrumento preferencial para descrever a cultura dos outros. A autora chama a nossa atenção para a apo-ria corporificada na antropologia, que, embora não compartilhasse do suposto da universalidade do homo religiosus, analisou fatos

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cognitivos e/ou simbólicos de outras culturas fazendo um uso uni-versal do conceito de religião. O problema dessa permeabilidade entre religião e cultura se torna ainda mais vertiginoso quando se considera que, por um lado, como revela a análise histórica, os missionários foram progressivamente se apropriando do conceito antropológico de "religião" particularmente em sua vertente feno-menológica formulada por autores com Mircea Eliade, para des-crever a cultura indígena e que, por outro, a observação antropoló-gica contemporânea mostra que muitos grupos indígenas se apoiam no culturalismo antropológico resultante desse processo como forma de expressar sua auto-representação.

A análise de J. M. Arruti sobre a relação entre as etnogêneses indígenas e a reificação de uma "religião indígena", substancializa-da no Toré, indica que operam nesses processos uma sinonímia entre as noções de religião, cultura e identidade. As configurações discursivas, missionárias, indígenas e antropológicas parecem entrar em uma espécie de sinergia na qual conceitos e categorias nativas se tornam intercambiáveis, transformando os objetos de nossa reflexão em auto-evidências empíricas. Mais do que um ma-peamento das categorias discursivas colocadas em ação pelos agentes, o autor buscou empreender uma verdadeira "arqueologia" dessas categorias em meio ao processo de negociação que levou o zrupo de caboclos (categoria local) a converter-se em grupo indí-gena t categoria trazida pelos missionários e legitimada pelos antro-pólogos), de modo a descrever, ao mesmo tempo, tanto sua função aeunenêutica quanto sua reapropriação como "verdade" pelos ügentes em mediação.

Também se pode acompanhar perfeitamente a lógica dessa espiral no texto de Aramis Silva (capítulo 9) sobre a criação ò t áois centros culturais na região do Meruri entre os bororo — JMH museu antropológico, que resulta de uma iniciativa missioná-SB® e centra a "valorização da cultura indígena" em seus aspectos

e ritualísticos espacializados na estrutura esquemática * uEia "aldeia tradicional"; uma "aldeia cultural", iniciativa

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pes-soai de uma liderança indígena que visa à edificação de uma aldeia "tradicional" em escala "real" para que visitantes possam conhecer "a cultura bororo" tal como fora codificada anteriormente pela antropologia salesiana.

O terceiro conjunto de problemas diz respeito à questão da "tradução". Descrever os diversos modos como a "religião" se cons-tituiu no instrumento preferencial para dizer e pensar a cultura dos outros foi, como dissemos, um dos principais esforços que empreendemos neste livro. Ritos, mitos, crenças foram reiterada-mente tomados como grade de leitura das religiões indígenas, estratégia para sua conversão, mas também reiteradamente reapro-priados pelos índios. Em seu empenho em produzir a comensura-bilidade entre as culturas, o esforço missionário de traduzir a lín-gua e a cultura nativa foi uma constante histórica que permanece viva até hoje. Pode-se afirmar que a tradução se constituiu, pois, em um dos principais instrumentos empíricos utilizados pelos mis-sionários para produzir a esperada passagem para a civilização (ou, mais recentemente, como mostram os textos de Aramis Silva e Melvina de Araújo, passagem para a cultura) que se daria no plano do religioso — pela conversão via a tradução da Bíblia tal como foi analisado por Ronaldo de Almeida (capítulo 7) — e no plano cul-tural — pela evangelização via a tradução dos "costumes", da lín-gua, e a padronização da gramática tal como aparece nos trabalhos de Adone Agnolin (capítulo 4), Aramis Silva (capítulo 9), José Maurício Arruti (capítulo 10) e Melvina de Araújo (capítulo 11). Embora de maneira menos sistemática, e menos preocupados com a comensurabilidade e a universalização das relações, os povos indígenas também praticam a tradução apropriando-se dos modos como os religiosos organizam os sistemas de diferenças no proces-so mesmo de tradução dos "costumes".

Mas a noção de tradução é utilizada neste volume também em um sentido mais analítico. Tendo em vista a importância estratégi-ca e polítiestratégi-ca desse instrumento de leitura e apropriação dos senti-dos do outro que a tradução supõe, a análise das operações

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simbó-lico-práticas de tradução nos pareceu constituir um locus privilegia-do para a observação privilegia-dos processos de produção dessa espécie de "convergência de perspectivas" que nossos atores percebem como da ordem da conversão. As análises aqui desenvolvidas indicam que »>> p n x e s s o s de tradução alimentam um movimento contínuo de crui^meniQ e reposição de "fronteiras" — territoriais, étnicas e polí-licas — que acaba por levar, como uma de suas principais conse-qüências. à fixação de novas diferenças. Diversos capítulos deste livro nos apresentam várias configurações possíveis desse processo: Marcos Rufino, por exemplo, nos mostra no capítulo 6 como, a par-tir dos anos 1970, se rompe a auto-representação histórica do traba-lho missionário catequético e se incorporam as diferenças indíge-nas a imagem genérica do "excluído" dando ao indigenismo católico uma dimensão nacional. Ela terá como contrapartida a produção de lideranças indígenas" que progressivamente terão de mobilizar diferenças étnicas para legitimar-se.

O quarto eixo é de natureza sociológica e diz respeito às redes sociais. Nesse caso, trata-se de dar atenção às relações sociais que constituem (sustentam, resistem, interferem, informam) o proces-so de mediação implicado na ação missionária, e por meio das quais se articulam diversos códigos culturais, diferentes estraté-i estraté-i estraté-i n d estraté-i v estraté-i d u a estraté-i s , coletestraté-ivas e estraté-instestraté-itucestraté-ionaestraté-is, assestraté-im como destraté-iferentes rimos de informações (mercadorias materiais e simbólicas).

No contexto dos grupos indígenas da região do Uaçá, no Amapá, .analisados por A. Capeberibe e R. de Almeida, por exemplo, a opo-r ã o entopo-re católicos e evangélicos, mais que expopo-ressaopo-r uma dispu-entre agências missionárias, acabou por traduzir disputas inter-a própriinter-a sociedinter-ade indígeninter-a: inter-as relinter-ações estinter-abelecidinter-as pelos Tzz^Kmànos evangélicos e católicos sobrepuseram-se de

diferen-iccrnas às redes de parentesco; a entrada de conhecimentos oucro os relativos à saúde, colocou em perspectiva, para 3* iiroo*. seu próprio acervo de conhecimentos tradicionais; a esoolha missionária de intérpretes locais, por privilegiar os indiví-duos de maior amplitude de visão sobre a sociedade e a tradição

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indígena, recaiu justamente sobre aqueles indivíduos que, por desempenharem papéis como os de xamã, cacique e anciãos, ocu-pam lugares de centralidade e transversalidade nas redes locais, assim como de conexão com redes translocais (ver Almeida, capí-tulo 7). Essas redes de relações estendem-se para além das fron-teiras da região do Uaçá e atingem populações indígenas das mesmas etnias na Guiana Francesa. Dessa forma, a própria rede de parentesco opera como veículo de difusão da religião evangé-lica na medida em que para esta é um dever evangelizar em pri-meiro lugar os parentes com a finalidade de torná-los também "-irmãos de fé".

Em um contexto absolutamente diverso, a análise de J. M. Arruti do processo de identificação étnica xocó, no sertão do São Francisco, mostra como esse processo não pode ser entendido fora da rede formada pelas outras (re)identificações étnicas da região e como o padrão dessas redes variou entre o início e o fim do sécu-lo: as do fim do século menos tributárias de redes de trocas rituais e de parentesco preexistentes do que as produzidas pela própria ação missionária. Nesse último caso, observa-se a construção de redes de informação e troca política por meio das quais as trocas rituais e de parentesco são reativadas ou simplesmente criadas, tendo por modelo as redes "tradicionais".

Assim, ainda que as missões procurem atuar preferencialmen-te sobre algumas dimensões da vida indígena (os mitos, os ritos, o comportamento moral etc.), os meios para intervir nessas dimen-sões extrapolam o que os missionários consideram de forma restri-ta como o universo da religião. Ainda que de forma menos eviden-ciada, isso está implicado em boa parte das outras análises sobre a ação missionária presentes neste volume, mostrando os planos de interação por meio dos quais circulam mercadorias, tecnologias e informações.

Finalmente, o quinto eixo, que podemos considerar a questão teórica central que orienta os trabalhos aqui apresentados, diz res-peito ao modo de compreender como se produz histórica e

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social-mente a "convergência de horizontes simbólicos" entre grupos indígenas e missionários. Talvez seja necessário pontuar melhor a viabilidade de tal proposta. Sabemos que a atividade missionária cristã é um empreendimento de longa duração e marcado por uma dimensão planetária. A literatura sobre o tema é vastíssima e se ali-nhava através de espaços disciplinares densos em sutilezas teóri-cas e conhecimentos empíricos tais como a teologia e a história e, mais recentemente, a etnologia indígena. Assim, a antropologia das missões que pretendemos, embora em diálogo com essas abor-dagens, procurou produzir um lugar teórico que tivesse como foco não a instituição religiosa em si mesma — como no caso dos his-toriadores da Igreja católica que estudam a missão ou as ordens religiosas (como Haubert, 1990) —, nem tampouco as culturas indígenas nelas mesmas — como no caso dos etnólogos que estu-dam os modos de pensar do indígena (Albert, 2002) —, mas o

espaço social e simbólico de suas relações nos momentos

determi-nados em que o esforço de generalização se impõe: a este locus de relações generalizadoras demos o nome de espaço da mediação

cultural.6 Seu programa de trabalho e suas implicações para a

aná-lise antropológica foram desenvolvidos mais detalhadamente, como dissemos, no capítulo 1 deste volume. No entanto, de modo a evitar a reposição do dualismo nós/eles que essa noção sempre parece suscitar quando personificada em agentes — pensados como "pontes" entre cosmologias distintas —, é preciso explicitar que estamos utilizando esse termo com o intuito de enfatizar o jogo das relações e processos de construção de sentido nas

"inte-rações realmente efetuadas" entre missionários e índios determi-nados. A ênfase se põe,vpois, nas lógicas práticas investidas nessas

relações e em seu modo de agenciar os sentidos para produzir um

acordo circunstancial sobre a ordem do mundo cujo formato não

pode ser antecipado de antemão. Para enfrentarmos essa questão, buscamos construir uma abordagem que colocasse no foco de nossa observação os processos de produção dessa convergência. Catecismos, memórias, etnografias, fotografias, rituais de toda

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sorte — de cura, xamânicos, missas, festas, leituras da bíblia — nos pareceram ser os topoi privilegiados onde esses processos ganhavam algum enunciado observável. Ao nos perguntarmos o que esses construtos simbólico/práticos querem dizer, nos indaga-mos sobre as regras que organizam sua significação para índios e missionários. Mas algumas explicitações dos posicionamentos teó-ricos implícitos nessa abordagem se fazem necessárias.

Em primeiro lugar, é preciso ter em mente que esse tipo de problema só pode ser construído quando se supõe uma situação, mais ou menos durável, de "encontro" cultural. O termo "encon-tro", usado em alguns textos, deve ser tomado apenas metaforica-mente para designar um espaço (não territorial, evidentemetaforica-mente) onde o jogo das mediações vai sendo permanentemente feito e refeito. Mobilizar a imagem do "encontro" tantas vezes reiterada pela literatura traz dois grandes riscos que gostaríamos, de ante-mão, de evitar:

a) supor que o historiador ou antropólogo está testemunhan-do o "primeiro" encontro entre diferenças radicais tidas como dadas e anteriores às relações. Sabemos bem, e os estudos deste livro mais uma vez demonstram isso, que os sistemas sociais em relação se constroem por sobreposições, a atividade missionária muitas vezes encontrando naquilo que descreve como memória indígena o que havia nela depositado no passado, e a memória mis-sionária se auto-representando como construção que se realiza, segundo a expressão de Amoroso, "sobre os escombros de outras missões". Assim, expressões tais como "encontro" e mesmo "zonas de contato" servem apenas para designar situações mais ou menos permanentes de interculturalidade que denominamos, no primei-ro capítulo, de "campo das relações interculturais". Essas situa-ções se materializam através de redes de relasitua-ções — reuniões polí-ticas, encontros rituais, publicações, viagens etc. — e também, em parte, na vida cotidiana no espaço físico das missões.

b) supor que o "encontro" se dá sem desigualdades. Como observamos no capítulo 1, a idéia de que esses "encontros" são

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fei-tos de violência e desigualdade de forças é para nós um ponto de partida (e não uma conclusão). É sobejamente conhecido que, para além da violência física, os saberes demográficos, etnológicos e geo-gráficos que os missionários produziram ao longo da história foram poderosos instrumentos de ordenação do mundo nativo para incor-porá-lo progressivamente na órbita do Estado.7 O que nos interessa

compreender são as realidades etnográficas que esses saberes ajuda-ram a construir e o poder simbólico (no sentido que Pierre Bourdieu dá ao termo) que advém da manipulação desses saberes. Como bem o demonstrou Bourdieu (1984), o poder simbólico é o poder de "dar a ver" e conseqüentemente "fazer crer". Ao produzir quadros de interpretação e de classificação de pessoas e coisas o poder sim-bólico produz, concomitantemente, realidades sociológicas — insti-tuições, redes de relações e agentes portadores das representações percebidas como legítimas. Os atos de nominação e de classificação têm, pois, intenção performativa. Embora os missionários desenvol-vam constantemente mecanismos de controle das interpretações possíveis e aceitáveis, eles não podem nomear sozinhos. Para que se torne convincente e verossímil, todo sentido depende de um acordo sobre o sentido dos signos, e portanto ele é necessariamente inter-subjetivo. A essa característica do acordo denominamos, inspirados em Clifford Geertz, de "códigos compartilhados". Procuramos de-monstrar ao longo deste volume como esse acordo se constrói e só pode ser lido no processo mesmo da experiência cotidiana de comu-nicação (ver detalhamento no capítulo 1).

Os trabalhos reunidos neste livro procuram responder a essa questão nos planos histórico e etnográfico. Ao longo dos diversos capítulos, descreveu-se o modo como o missionário se comunica com a diferença nativa — como ele imagina que o nativo é ou pensa e como incorpora certos modos interpretados como nativos; ao mesmo tempo, procurou-se descrever como o nativo se apropria em parte de algumas dessas representações de si e do missionário. Assim, a metáfora do "encontro" nos obrigou a supor que, apesar da diversidade de "línguas", os grupos em interação, naquilo que

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interessava à reprodução das relações de interação, desejavam (e pre-cisavam) comunicar-se. Para tanto, tornava-se necessário produzir algum tipo de acordo sobre o sentido do que estava sendo dito. Ora, esse só poderia ser construído no espaço mesmo da interação, isto é, no processo de ajuste e expansão da experiência comum e no exercício comum da linguagem. Mas como definir conceitual-mente essa noção e como descrevê-la como processo?

Ao comentar a leitura que L. Wittgenstein faz da teoria da magia de James Frazer, Stanley Tambiah observa que o autor colo-ca o problema da comensurabilidade das culturas não no plano histórico evolutivo de Frazer, mas no plano dos esquemas cogniti-vos. A significação transcultural se produziria, pois, pela intercone-xão de sentidos em um contexto configuracional.9 Tendo em vista

que versões contrastantes sobre o mundo são irredutíveis umas às outras, uma construção de mundo inter-relacional se produz nos jogos de linguagem.

Inspirados nesse equacionamento lógico que a filosofia da lin-guagem de Wittgenstein deu a essa noção de acordo, parece-nos oportuno explicitar algumas de suas implicações teóricas de modo a enquadrar com mais precisão o tipo de abordagem que aqui desenvolvemos.

Segundo o enunciado wittgensteiniano, o acordo resulta do aprendizado do uso de determinadas matrizes ou regras, elas mes-mas condição de significação. A produção desse acordo supõe, por-tanto, que as pessoas (ou grupos) em interação, embora pertençam a universos culturais distintos, estão dispostas a se comunicar e que só poderão se entender se compartilharem experiências comuns. "O comportamento comum a todos os homens é o sistema de refe-rência por meio do qual interpretamos uma linguagem desconheci-da" (Wittgenstein, 1975: 206). Assim, como observa o comentador Glock, "compreender uma linguagem que nos é estranha é algo que não pressupõe uma convergência de crenças, mas sim de padrões de comportamento que, por sua vez, pressupõem capacidades per-ceptuais, necessidades e emoções comuns" (1998: 177).

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N o plano da interpretação etnográfica da interação aqui pro-posta, traduzimos essa dupla exigência do processo de produção de um entendimento mútuo — disposição para estabelecer rela-ções de comunicação e compartilhamento de experiências comuns — através da idéia de descrição contextual das significações. Assim, como afirma P. Montero no capítulo 1, a produção de "códigos compartilhados" seria a resultante das estratégias da interação que mobilizam "sentidos que só podem ser descritos contextualmente". Pierre Bourdieu já havia antecipado esse tipo de apropriação da filosofia wittgensteiniana para a construção de sua teoria da práti-ca que colopráti-ca as regras do jogo e as estratégias dos agentes no cen-tro de sua reflexão. Bourdieu procura demonstrar que a prática não pode ser deduzida das regras (o jogo formal das estruturas); ela deve ser tomada, ao contrário, como uma improvisação regular na qual esquema (maneiras de ver) e contexto estão inextricavelmente associados e se implicam mutuamente.

Em decorrência desse primeiro delineamento, temos que, se é o ato de jogar juntos que produz a regra, se ela é contextual, a relação entre a regra e a sua aplicação estará sempre em aberto: isto é, definir uma regra e seguir uma regra não são dedutíveis um do outro. Aqui o autor está chamando para si Wittgenstein para criticar o intelectualismo estruturalista que "escorrega do modelo da realidade para a realidade do modelo" (1983: 59). Mas gostaría-mos de acrescentar uma outra dimensão importante nessa reflexão sobre a natureza da regra que interessa particularmente aos textos deste livro. Ao diferenciar a construção da regra de seu uso, a aná-lise dos jogos de linguagem permite discernir os objetos "reais" dos objetos tornados normas: estes últimos retêm apenas algumas pro-priedades do objeto "real" e estas, pragmaticamente, se tornam condutores relevantes do entendimento. Foi a partir dessa pers-pectiva que interpretamos alguns dos referentes que apareciam nos jogos de comunicação de grupos indígenas e missionários: rituais como a missa, ritos xamânicos, funerais emergem como

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identidades significativas em torno das potencialidades da força mágica, das relações com a sobrenatureza, do controle da violên-cia e da morte etc.10 A esses construtos simbólico-práticos que se

tornam referência nos jogos de comunicação, estamos chamando neste volume de código. Para que se possa ter uma compreensão mais clara da opção por esse conceito, em vez da noção corrente de cultura, algumas das propriedades que lhe imputamos precisam ser mais bem explicitadas.

Em primeiro lugar, partindo do suposto de que é sempre no exercício da experiência comum que os grupos em interação se põem de acordo em relação às situações possíveis que um código de referência designa, a "totalidade do sistema" permanece fora da interação. Assim, não é a "cultura" indígena ou cristã como um todo que é mobilizada nesses jogos de comunicação, mas, ao con-trário, alguns de seus elementos se tornam norma de juízo de uma situação.11 Quais são esses elementos, como eles se apresentam e

por que eles são particularmente aptos a se tornarem regra são algumas das questões que exploramos neste livro.

Em segundo lugar, se o código resulta de um acordo sobre o padrão para entendimento de certas situações, esse construto sim-bólico não tem, conseqüentemente, a mesma substância ontológi-ca que os objetos aos quais ele se apliontológi-ca. Desse modo, não há sen-tido em se perguntar da verdade ou falsidade da relação entre o código e as experiências culturais que ele designa.12 Experiências

culturais tais como a adesão ao cristianismo, por exemplo, se apre-sentam, certamente, para índios e missionários de maneira diferen-te; no entanto, para os dois a conversão como um código passa a servir como ponto de referência na medida em que agem em con-sonância com esse enunciado. Esse processo está muito bem des-crito no capítulo 8, sobre a conversão palikur. Dessa perspectiva, as análises que insistem nos mal-entendidos culturais inscritos nesse tipo de relação ("falsas traduções" ou "falsas conversões"), ao não fazerem a distinção entre ente e padrão, supõem a possibilidade de acesso a uma "verdadeira" totalidade cultural obtida através do

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escrutínio da experiência ou da construção abstrata da estrutura — as coisas "tal como elas são" —, totalidade esta que se tornaria medida da adequação entre significação e real. Para evitar esse tipo de problema preferimos manter noções tais como conversão, reli-gião, tradição, cultura no "plano do funcionamento dos códigos.

Finalmente, ao apresentar essas relações de comunicação como jogo, estamos enfatizando a indeterminação da significação, a

impor-tância dos agentes e de suas estratégias no processo de negociação dos sentidos, dos "critérios de ver". Na formulação de Bourdieu diríamos que no jogo os lances se adaptam a uma "infinidade de situações possíveis que nenhuma regra pode prever" (1987: 21). Isso quer dizer que no exercício prático do jogo da comunicação os agen-tes em interação, ao mesmo tempo, seguem as regras e ajustam a regra. Colocado o problema dessa maneira, o foco de nossa análise se desloca da regra para o jogo: interessa-nos compreender os enun-ciados que mobiliza (seus modos de representação), as condições de seu exercício (meios de apresentação-ritos, imagens, construções espaciais etc.), enfim, o processo simbólico e prático de "produção de certezas comuns" (Giannotti, 2004).13

* H- X

Agradecemos o apoio da Fapesp, sem o qual este empreendi-mento não teria sido possível. O suporte institucional do Cebrap, que acolheu generosamente este projeto, também merece um agradecimento especial. A todos aqueles que nos abriram as por-tas de seus arquivos, nos deram seu tempo em entrevispor-tas e se colocaram à disposição para nos ajudar, deixamos aqui o registro de nossa gratidão. As leituras atentas de Manuela Carneiro da Cunha, John Monteiro, Rita Segato, Oscar Calavia e Otávio Velho também foram valiosas. Suas críticas e sugestões nos ajudaram a explicitar melhor nossa abordagem e a prevenir eventuais mal-entendidos.

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1

Í N D I O S E M I S S I O N Á R I O S N O B R A S I L : P A R A U M A T E O R I A D A

M E D I A Ç Ã O C U L T U R A L

Paula Montero

O VASTO PROBLEMA DAS RELAÇÕES históricas, culturais e políticas entre índios e missionários cristãos tem a nosso ver, como pano de fundo, uma questão antropológica de fôlego e absolutamente con-temporânea: as redefinições da alteridade cultural que hoje se tra-ves te na linguagem da etnicidade. Se toda e qualquer cultura for-mula um modo de pensar o outro — como inimigo, como selvagem, como igual —, pensar antropologicamente o trabalho missionário nos parece constituir uma porta de entrada privilegiada para com-preender o estatuto simbólico e político da diferença no mundo pós-colonial que, a partir de meados do século passado, pôs em \ e q u e as categorias de definição do Outro e de organização das diversidades culturais herdadas do século XIX europeu.

O outro como problema filosófico e antropológico evidente-mente não é novo. Ele emerge sempre que sociedades diversas passam a estabelecer um conjunto de relações mais ou menos duradouras. Não é preciso retomar aqui as análises de um sem-número de autores que enfatizaram a importância da singularida-de americana para as especulações européias do século XV sobre o

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direito e a universalidade da condição humana. Mas, como se sabe, esse processo de definição do outro se realiza de maneiras muito diferente em função dos momentos históricos e da visão de mundo dos atores e culturas envolvidos nessas relações de alteridade. Não seria possível repertoriar, no escopo deste texto, os diferentes modos culturalmente situados de perceber o outro. No entanto, para as finalidades que interessam ao problema geral trabalhado neste livro — isto é, esboçar os termos de uma abordagem teórica que possa compreender, de maneira minimamente satisfatória, o esta-tuto da alteridade nas relações ideológico-políticas contemporâ-neas —, tomamos como referência, como dissemos na Introdução, um ator privilegiado, já que historicamente formado no trato das diferenças culturais: o missionário cristão. Com efeito, como bem observa Nicola Gasbarro no capítulo 2, a missão "é um trabalho con-tínuo de desconstrução e reconstrução dos códigos comunicativos" que usa como matéria-prima da vida intercultural o conhecimento ^ das culturas locais. Inspiradas pelas características particulares dessa atividade, propomos uma chave de leitura dessa relação — que estamos chamando de uma teoria da mediação cultural — cujos principais fundamentos procuraremos delinear neste capítulo.

A escolha desse personagem para a compreensão do problema político da alteridade no mundo contemporâneo já delineia, em diferentes níveis, a nossa maneira de abordar antropologicamente a questão.

Em primeiro lugar, ao colocar o missionário no foco da obser-vação os estudos contidos neste livro enfatizam a atuação desses agentes de mediação nos processos de produção de significação e o papel essencial que exerceram (e ainda exercem) na "indigeniza-ção da modernidade" (Sahlins, 1997).1 Trata-se de compreender o

modo como a ação missionária estimula a ressignificação da "tradi-ção" (indígena e não-indígena) para adaptá-la aos novos contextos de intercomunicação cultural.

Além disso, se consideramos a missão um trabalho contínuo de construção e reconstrução de códigos comunicativos, como propõe

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Gasbarro, nossa perspectiva privilegia a análise das práticas simbó-licas — práticas rituais, textuais etc. — ou práticas de representa-ção da alteridade, de modo a compreender como elas selecionam (e operam) os códigos capazes de produzir as "traduções" intelec-tualmente compreensíveis e afetivamente aceitáveis entre os vários níveis de diversidade entre nós e o outro (cosmológica, sociológica, antropológica, material etc.). Tem-se como adquirido pela antropo-logia contemporânea a constatação de que essas práticas simbóli-cas geralmente resultam na produção de configurações culturais à imagem dessas representações, não cabendo, portanto, reter no estudo desse tipo de problema, a oposição clássica entre "realidade e representação".

Finalmente, colocar nosso foco no trabalho de mediação nos obriga a enfrentar teoricamente a questão do poder implícito no trabalho de produção cultural subjacente à ação missionária. Temos como ponto de partida que o processo histórico de produ-ção de alteridades indígenas por parte dos missionários, ainda que se reconheça sua dimensão político-ideológica, não pode ser redu-zido a uma ferramenta pura e simples da dominação colonial. As configurações culturais que dele resultam merecem ser tratadas como um objeto propriamente antropológico, isto é, como "produ-ções culturais" que fazem sentido e dão sentido à experiência e às práticas culturais.

Ainda que as configurações culturais resultantes das relações de mediação entre índios e missionários devam ser consideradas em sua dimensão propriamente antropológica (em suas expressões culturais), faz parte do processo de produção de significações a produção de sua "autenticidade", isto é, das formas de convicção ^fue tornam possível a aceitação dessas configurações como "natu-rais"* e historicamente fundadas. A dimensão política da proble-mática da alteridade ganha, pois, aqui um novo estatuto. A in-corporação de "valores" ou categorias religiosas pelos indígenas, por exemplo, deixa de ser libelada como um processo puro e

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simples de "aculturação" — isto é, perda da cultura original pela imposição de valores ocidentais via evangelização; a "eficácia" da significação deve ser tratada, ao contrário, como o resultado de dis-putas simbólicas, mediadas por agentes índios e não-índios, pela apropriação de elementos disponíveis, considerados chave pelos ato-res envolvidos, nos repertórios culturais em relação. Esse posicio-namento nos leva a incluir em nossa análise uma preocupação com a dimensão política dos processos de significação, entendida aqui como o conjunto de motivações e interesses que orientam as escolhas dos agentes mediadores quando privilegiam certas práti-cas e significações em detrimento de outras. Veremos adiante que esses conceitos são chave para a teoria da mediação que estamos propondo.

Embora todas essas dimensões não possam ser separadas, para a economia deste texto, procuraremos tratar de cada uma delas, com mais detalhes, a seguir. Antes disso, vale a pena nos demorarmos um pouco no debate antropológico contemporâneo sobre o colonialismo de modo a compreender seu impacto sobre uma antropologia da atividade missionária.

A A N T R O P O L O G I A DA M I S S Ã O N O . D E B A T E D O P Ó S - C O L O N I A L I S M O

O que estamos chamando aqui de problemática da alteridade envolve, a nosso ver, dois planos de investigação: o plano empíri-co, no qual se observam os modos de produção do outro entre ato-res historicamente situados, tal como o fazem os estudos contidos neste livro; e o plano disciplinar, no qual a questão da alteridade emerge como objeto da reflexão antropológica.

E claro que esses dois planos estão inteiramente imbricados, tornando-se difícil compreender um sem esclarecer suas implica-ções para o outro (e vice-versa). No que diz respeito ao plano da teoria antropológica, ainda que esta fosse, certamente, uma tarefa

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necessária, não pretendemos empreender aqui um balanço crítico das teorias do contato, modo como nossa disciplina, desde Malinowski, formulou o problema da interculturalidade.2 Em

dife-rentes momentos do desenvolvimento de nossa disciplina a ques-tão do Outro foi posta em termos historicamente específicos. No caso da antropologia brasileira sobre o contato entre índios e bran-cos, essa problemática foi marcada, pelo menos até a década de

1970, pelo conceito de "aculturação".3 No interior desse

enqua-dramento, entretanto, a atividade missionária não ganha estatuto de problema antropológico próprio — ela é percebida como peri-férica, como prolongamento do poder do Estado ou simplesmente como ineficaz, ou, dito de outro modo, como simples subproduto do colonialismo interno.

As antropologias do contato foram, pois, marcadas, a partir da década de 1950, pela denúncia do sistema colonial. Embora não seja possível delinear neste texto uas principais transformações dessa problemática, é preciso notar que, ao longo do processo de descolonização que se inicia naquele período, a episteme civilizató-ria — que articulava categocivilizató-rias tais como a idéia de progresso téc-nico e a de individuação para f u n d a r a legitimidade da relação do O c i d e n t e com outros povos — perde seu poder de persuasão. O modo como esse movimento obrigou a disciplina antropológica a rever seus próprios pressupostos já foi analisado por uma vasta literatura.4 Os desdobramentos mais recentes desse processo de

reflexibilidade disciplinar levaram, como se sabe, à emergência de correntes de pensamento que passam a substituir a pergunta clássica da antropologia, "como conhecer o outro", por uma refle-xão mais auto-referida, cunhada de maneira bastante imprecisa como "antropologia pós-moderna", que indaga sobre os procedi-mentos metodológicos, analíticos e textuais utilizados pela antro-pologia em seu propósito de conhecer o outro.5

Mas o que nos parece importante ressaltar aqui é que uma antropologia da missão só pode emergir como tal no quadro da crí-tica recente ao sistema colonial. Vale a pena, pois, sumariar o

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modo como esses desdobramentos ideológicos modificaram o en-tendimento da atividade missionária como problema antropológi-co e antropológi-contribuíram para o empreendimento que aqui nos interessa: o de situar as narrativas missionárias da alteridade em uma teoria da mediação cultural.

Dissemos que o horizonte teórico-ideológico no qual as tenta-tivas de pensar o outro se desenvolveram a partir dos anos 1950 é bastante crítico quanto às relações entre a antropologia e o poder colonial. Nesse panorama político a própria antropologia é pensa-da como instrumento de opressão. Em resposta a esse contexto o colonialismo — ou o encontro colonial — se torna objeto cada vez mais central de uma certa corrente antropológica — voltada para os estudos africanos —, inaugurando uma nova tendência de pen-samento antropológico que alguns autores chamaram, n u m pri-meiro momento, de antropologia do colonialismo e, mais tarde, de antropologia pós-colonial. Vale a pena detalhar o modo como essas perspectivas colocam o problema das relações entre culturas euro-péias e nativas de modo a recuperar sua contribuição para a com-preensão antropológica da prática missionária.

* X X

Como parte de um empreendimento político maior que marcou os anos 1970, antropólogos (e historiadores), inspirados em autores como Immanuel Wallerstein, passaram a investigar como a política colonial havia afetado a teoria antropológica, seu método e a história dos objetos investigados. A crítica ao colo-nialismo que esses autores e m p r e e n d e r a m contribuiu para fragi-lizar, ao mesmo tempo, o modo de fazer antropologia até os anos 1960 e a legitimidade de atores, tais como o Estado e a Igreja, que produziam material e simbolicamente o quadro das articula-ções interculturais.

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Nesse ambiente de ruptura ideológica, antropólogos e missio-nários, sobretudo europeus, foram acusados de contribuir para a opressão colonial e a desestruturação das culturas nativas. O pró-prio ato de etnografar foi considerado por muitos intelectuais afri-canos como uma violação intrínseca do outro.6

Em resposta a esse estigma ideológico que contaminava a pes-quisa de campo, floresceu uma nova corrente antropológica, mar-cada pela tradição marxista, que se voltou para a denúncia do colo-nialismo e de seus modos de dominação; a análise produzia-se, pois, privilegiadamente na chave da política onde o par domina-ção/resistência relegava a cultura a u m plano subsidiário. Tratava-se, então, primordialmente, de analisar o impacto do colonialismo nos vários domínios da vida indígena africana (estrutura agrária, domesticidade, parentesco etc.). Autores como Eric Wolf (1959) podem ser considerados marco importante na construção dessa perspectiva. Pode-se afirmar que os estudos brasileiros sobre acul-turação desenvolveram-se nessa chave, que não favoreceu, como dissemos, uma leitura mais sofisticada da missão.

Segundo Ann Laura Stoler, os anos 1970 inauguram uma "se-gunda onda" de estudos que procuram distanciar-se do determinis-mo implicado na abordagem anterior, que resultava em uma com-preensão apenas instrumental da cultura e/ou tradições. A ação de "resistência" dos nativos contra as imposições coloniais marcou a lite-ratura dessa década. As práticas culturais nativas tornam-se o centro de uma reflexão que as considera não apenas funcionais ou úteis ao colonialismo, ou um desafio a ele, mas o produto de diferentes tem-poralidades historicamente "depositadas" ao longo do encontro colo-nial (Stoler, 1995: 320). Segundo a autora, essa nova abordagem, atenta às relações entre o processo colonial global e as mudanças das práticas locais, viu-se obrigada a deslocar a unidade de análise do nível da aldeia para as relações regionais, nacionais e até mesmo glo-bais (ver, por exemplo, Comaroff, 1985; Stoler, 1985). Nesse proces-so, categorias de análise tais como tribo, nação e cultura deixaram de ser compreendidas como internamente homogêneas e externamente

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distintivas. Apesar dessas inovações, observa Stoler, essa literatura tendeu a tomar o colonialismo e seus agentes como uma força abs-trata, como uma estrutura que se impunha como tal sobre as práticas locais. Com raras exceções, tais como os trabalhos dos Comaroff (1985, 1986) e de Beildeman (1982), que estudaram os agentes mis-sionários protestantes na África do Sul, as discrepâncias entre os interesses da metrópole e dos diferentes grupos europeus locais não eram levadas em conta e suas práticas e lógicas específicas quase não foram etnografadas. Porque os antropólogos tomaram a dicoto-mia colonizador/colonizado como uma evidência, conclui Stoler, e não como categorias historicamente constituídas a serem explicadas, o idioma cultural das relações de poder não foi examinado.7 Teria,

pois, permanecido em aberto na agenda da antropologia o estudo dessas "culturas coloniais", cuja matéria-prima seriam as "configura-ções e cria"configura-ções artesanais" dessas reconstru"configura-ções imaginárias da "europeidade" na colônia.

Em oposição à "política de resistência" implícita no binarismo colonizador/colonizado subjacente à antropologia do colonialismo, os anos 1990 começam a assistir ao desenho de um novo paradig-ma teórico que, inspirado em um debate que emerge no campo da literatura inglesa Commonwealth, se autodenomina teoria pós-colonial. Embora autores como Arif Dirlick (1997)8 tenham

reduzi-do a antropologia pós-colonial à antropologia que os estudiosos pro-venientes dos países periféricos fazem quando se instalam em universidades do centro, seus defensores tomam o conceito como um novo modo de "encenar os encontros" entre sociedades coloni-zadoras e seus "outros" cujo valor teórico está em sua releitura dos binarismos (aqui/lá, antes/depois etc.) em termos de tradução cul-tural, ou transculturação. Segundo Stuart Hall (2003) o paradigma pós-colonial pretende dar conta das novas configurações identitá-rias e culturais que emergem na reorganização das relações entre o local e o global implicada nessa fase do "capitalismo transnacional". Conseqüentemente, o conceito "pós-colonial" não se restringe a descrever uma certa sociedade ou época, mas enfatiza a análise das

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