28.°
Festival
de
Teatro de
Almada
começa hoje
0
Arlequim
morreu!
Viva
o
Arlequim!
Ferruccio
Soleri
é o
mais antigo,
e
o
mais famoso,
Arlequim
do
mundo.
Até
dia
18
é
possível
ver uma
exposição
sobre
o
seu
percurso
em Almada.
0
actor
vai
estar
em
cena
em
Lisboa,
Almada
e
Porto
Tiago Bartolomeu Costa
•
Quando Giorgio Strehler, encenador italiano, viu pela primeira vezFerruccio Soleri atentar interpretar apersonagem deArlequim, escreveu: "Ojovem Arlequim, Ferruccio Soleri, pouco apouco, tinha acabado por assimilar até certos hábitos de ensaio de Moretti; no fim de cada cena, limpava o pescoço e
imediatamente depois de comer limpava outra vez acara". Decorria oano de 1963. Hoje, Soleri jánão éumjovem actor de 34anos, que começava aaprender asubstituir
Marcello Moretti, que fazia de Arlequim desde 1947, mas um velho actor com 81anos e que ainda encarna amesma personagem. Arlequim éfigura principal dacommedia deVarte eStrehler trabalhou-a na mítica encenação deArlequim, servidor de dois amos, de Goldoni, escrita em 1745, onde
ocriado se sujeitava auma série de equívocos por aceitar servir simultaneamente dois senhores. A destreza física necessária, aargúcia intelectual, nunca deixando de ser inocente, e ainteligência para resolver os problemas marcaram esta figura como uma das mais simbólicas do teatro universal.
Conta Strehler: "Moretti, óculo atrás da máscara, cansado, desaparecia depois de terminada a sua cena. Mas não se refugiava no
seu camarim cálido esilencioso. Entrava num entre tantos camarotes escuros evazios do teatro eali, na penumbra, eu descobria-o tenso, seguindo os
movimentos do seu aluno. De vezem quando sacudia a cabeça erepetia um fragmento para si
mesmo; outras vezes, assentia com
acabeça. Ecreio que uma vez ou outra chegou adivertir-se com essa
vivacidade infantil que éaforça e afraqueza do homem de teatro. Depois, no final, encontrávamo-nos de novo nalguma esquina do palco eele falava com oArlequim jovem, instruindo-o, corrigindo-o com asuacostumada rudeza eo seu emotivo empenho".
"Aprendi muito, tive imensa sorte", confessa Ferruccio Soleri ao P2. "O que descobri
aproximou-me de qualidades que não sabia que tinha." Mas o que descobriu foi uma personagem que hoje reconhece não terjá
lugar. "No teatro contemporâneo, alguém como oArlequim, um
homem pobre eque sabe o que
éafome, já não existe". Figuras como ele, acrescenta, que "o que ambicionam conseguem-no apenas através da sua inteligência
eargúcia e na exacta medida do que necessita, deixaram os
palcos eaprópria vida". Eremata, sabedor de 81anos: "Hoje ninguém
consegue oque quer sem o ferrolho do dinheiro ouda política. E, por isso, hoje oArlequim não pode existir. Por isso oArlequim morreu".
Arlequim
há
48
anos
Soleri éArlequim desde 1963. Interpretou-o mais de 2500 vezes,
com duas passagens por Lisboa, em 1967, no Teatro da Trindade; em 1999, no Festival deTeatro deAlmada. Hoje éhomenageado nesse mesmo festival, com uma exposição sobre o seu percurso devida
-
na Escola D.António da Costa, em Almada-,
antecipando aapresentação do espectáculo Retratos da commedia deVarte, que apresentará dias 13no Teatro Nacional SãoJoão, no Porto; 14,no Centro Cultural deBelém, em Lisboa; ea18na Escola D.António da Costa, em Almada.
Se nesse espectáculo mostrará como, ao longo dos anos, asua versatilidade lhe permitiu viajar entre as diferentes personagens-tipo deste género teatral iniciado no século XVI ereconhecido pela UNESCO como Património Cultural
eImaterial da Humanidade, édeste ingénuo que se dizmais próximo. "Há duas coisas que nos são
comuns: aingenuidade eoamor
àvida. As outras personagens não existem dentro demim". As outras, diz, como Pantalone, "um velho,
libidinoso, avarento", ou IIDottore, "o falso intelectual", continuam
aexistir por aí, no dia-a-dia. "A intriga, feita apartir daambição
eda cobiça deobter não importa
oquê, derrubando os outros, é
comum."
No teatro da commedia deVarte, explica, "há uma força que vem da dimensão moral e dos valores que aspersonagens representam".
"Essas figuras são modelos e, para os espectadores, oArlequim representa aquilo no qual ainda acreditam, mas sabem não ser possível existir no mundo de hoje.
Os espectadores projectam nele o que gostariam, ainda, de fazer. O
interesse do público está, acredito, em tudo aquilo que oArlequim pode fazer ehoje já não tem lugar."
Quando Soleri esteve em Lisboa pela primeira vezpara apresentar Arlequim, servidor de dois amos, escreveu no programa do espectáculo que "Arlequim pode representar, tanto no plano psicológico como no mais estritamente emocional, não tanto um modelo mas um símbolo de uma determinada situação humana". Isso aprendeu-o com Strehler: "O meu Arlequim foi ganhando pouco apouco forma como obra pessoal, mergulhando nas minhas experiências da sociedade em que vivo".
Quando começou, "era outro omundo", recorda aoP2, com
outros valores: "O teatro escrito regista as relações quotidianas. Há muitos clássicos belos que hoje não têm nem significado nem valor". Mas quanto aArlequim, edesde sempre, "a personagem eraa mesma eas situações também". E, "se oteatro reflecte omomento da vida do Homem, no momento em que oautor o escreveu", também
isso acontece com as próprias personagens, mesmo asque o acompanham uma vida toda.
Por isso, eao longo dos anos, foi descobrindo uma faceta singular nesta personagem: "De um ponto de vista político, émaravilhoso, porque éum revolucionário". "O actor tem de fazer, com asua própria voz, o que quer, ecom
isso, eatravés da personagem,
resolver muitos dos problemas do mundo. Incluindo o de hoje. É possível pensar em Arlequim num campo mitológico, sobretudo porque não épossível julgá-lo como ele nos julga anós. Enão é
possível obter o que ele obtém. A cada representação percebo que opúblico fica espantado com o que aprende", revela. Efá-lo com
amais ardilosa das estratégias: "divertindo-se".
"O teatro éimportante para fazer o público reflectir enuma Europa que atravessa uma tamanha crise não creio que possa existir outro papel para oteatro que não seja esse. Ou, pelo menos, para um papel político activo para oteatro. É possível ambicionar, ou desejar, que o público pense como pensa o Arlequim, mas pouco mais do que isso. E isso, no mundo dehoje, é
tão difícil de obter."
Esta permanente insatisfação ganhou-a também de Strehler. Quando o mestre italiano ganhou o Prémio Europa para oTeatro, em 1990, Soleri falou do seu método de trabalho: "Strehler amava eodiava esta peça, tanto que amontou infinitas vezes. Ele pode ter sido
um encenador extraordinário mas tinha defeitos. Tinha uma personalidade terrível, era um egoísta eodiava ser contrariado. Precisava ser legitimado, admirado, louvado. Procurava sempre tirar o melhor de cada um dos actores".
Ao
P
lembra2
histórias dos que saíam, de rompante, achorar dos ensaios, achando que Strehler não os amava. "Era muito rígido e muitas vezes eu perguntava-me: mas que quer ele que eufaça? Masainsatisfação dele corria anosso favor. Com Strehler aproximei-me o mais possível deuma qualidade que não sabia que tinha. Não me dizia seiabem, ou mal, se era por
aquele caminho ou não. Era muito exigente. Enão exigia menos de nós. Queria que oactor fosse o mais longe do que oque próprio actor
sabia ir. Oque ele conseguiu foi fazer-me apaixonar ainda mais pelo que eudesconhecia saber fazer."
"Sou
tão
feliz"
Arlequim foi moldado aocorpo, e
àvoz, discreta, deFerruccio Soleri: "Naturalmente, omovimento da pessoa, de um actor, pode, ao seu modo, fazer mudar os
movimentos dapersonagem e, assim, ajudar achegar àprópria personagem". Em 1967, recordava como tinha aprendido a fazê-lo: "No palco, eu defendo-me. Vivo uma vida cheia de recursos, de compromissos; mas aminha alma de aldeão, de reflexos tão depressa vivos como torpes, acaba por sair dealgum modo incólume, ajudada por um ancestral instinto de conservação quejamais me abandona". Havia-o aprendido observando Marcello Moretti: "No palco, Arlequim perdia todos
os caracteres estereotipados e
convencionais damáscara para
se converter numa imensa obra humana, carnal, campesino, rústico, uma autêntica personagem popular. Desde então, vivendo material e psicologicamente perto deMoretti edo espectáculo, amadureci lentamente dentro de mim a lição que ao cabo de alguns anos seconverteria num facto determinante daminha vida de actor edehomem".
Hoje, Soleri tem um substituto que, duas ou três vezes por semana, quando o espectáculo está em cartaz, sobe ao palco. E, ao longo dos anos, foi acompanhando
avida deArlequim com ade outras personagens. "Não me sinto prisioneiro", diz, "mas esta éaquela que mais agrada ao público". "Qualquer personagem
aque damos vida éemocionante. Precisamos fazer crer ao outro que esta personagem existe. Mas "tive de fazer outras personagens para me sentir menos sozinho", confessa, falando deum tempo "onde jánão hátantos cúmplices". "Talvez as personagens o sejam." "Eu sou tão feliz afazer o que faço e,enquanto o for, continuarei
afazê-lo", diz, confessando que "ser actor éum trabalho". "Tentamos sempre fazê-lo da melhor forma possível, mas é
sempre um trabalho. Quando o fazemos, o máximo aque podemos ambicionar énão fazê-lo mal." Se
otornou num homem melhor, não
sabe: "Non so, come posso saperlo?".
Só os outros opodem ver esaber, atémesmo compreender.