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Largo da Banana, berço do samba paulista?

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Academic year: 2021

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Texto

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Largo da Banana,

berço do samba paulista?

Autor

Mário de C. Andrade Lamparelli

Orientador

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AGRADECIMENTOS

Agradeço ao professor Lizânias, por me orientar durante todo desenvolvimento do trabalho, ao meu avô Celso por auxiliar na elaboração de um roteiro a ser seguido na dissertação, aos meus pais por me apoiarem e enriquecerem o trabalho com muitas informações sobre a urbanização de São Paulo, além da participação em ricas descobertas. E à colega Mariana por sempre me confortar nos momentos complicados.

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SUMÁRIO

Introdução ... 1

I. A gênese: o samba rural paulista ... 5

II. Barra Funda e São Paulo do início do século XX ... 20

III. Núcleo do samba: o Largo da Banana e suas manifestações ... 27

Considerações Finais ... 36

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INTRODUÇÃO

O curso “História e Memória” traz à tona perguntas essenciais para aquele que deseja se aprofundar no que diz respeito à pesquisas antropológicas, históricas de cunho geral sobre qualquer que seja o objeto de estudo, uma data, manifestação, localidade, figura histórica, entre muitos outros que esbocem diálogo entre a Memória propriamente dita, inconsciente com sua subjetividade, dinâmica capacidade de evolução e manipulação, e sua reconstrução problemática e intelectual, a História. As questões oriundas dessa relação entre História e Memória abrem um leque ainda mais extenso de perguntas, que vão desde a interpretação histórico-científica do tempo até a subjetividade inerente a qualquer documento histórico, imposta por sua própria condição de documento.

Digo que tais perguntas são vitais pelo motivo de que as mesmas remetem à um campo de pesquisa no qual o atemporal reina simultaneamente com o temporal, questionamentos de caráter filosófico à tarefa histórica são necessários para a própria compreensão daquilo que o historiador produz e as problemáticas envolvidas nesse processo de produção de material histórico. Esses questionamentos se dão pela posição da História como ciência, e, como nos recorda Guarinello1, tal posição foi

atacada pela corrente pós-moderna, que acreditava não ser o conhecimento histórico

1 Norberto L. Guarinello, “Memória coletiva e história científica”, em Revista Brasileira de História (São

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mais que um mero estilo narrativo e retórico, incapaz de produzir verdades, apenas especular sobre um passado inatingível e caótico, sem sair do universo textual, onde impera o subjetivismo. Guarinello argumenta que tal visão de história pode perigosamente conduzir ao relativismo absoluto, à equiparação de todas as verdades e consequentemente o esvaziamento de todo o saber racional, visto que

[…] o passado que investigamos não é, por assim dizer, um processo onírico e indeterminado, aberto a todas as significações, mas a condição mesma, concreta e positiva, de nossa existência presente. Nem é o historiador livre para criar passados, como se traçasse sua trama por caminhos desimpedidos, mas deve falar através de documentos que são, também eles, bastante reais.[...] Mas não é só isso: a história liga-se à realidade também por ser parte dela, por ser um produto de um lugar socialmente determinado e historicamente constituído.[...] Se a história, enquanto disciplina, possui subjetividade, esta não é a subjetividade individual de cada historiador, nem aquela, sem sujeito, do texto, mas a subjetividade de um lugar, instituído como tal e custeado pela própria sociedade contemporânea.2

Ainda sobre essa subjetividade da história, levantada por Guarinello, e como já dito anteriormente, ela existe, também, na condição de os documentos e monumentos com que a História trabalha não serem

[…] o conjunto do que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer pelos que se dedicam à ciência do passado e do tempo que passa, os historiadores.3

Outro fator decisivo nessa subjetividade, e também aplicação dos documentos e monumentos, é a adoção de uma concepção sintática do tempo pela historiografia moderna, encarando-o como serial, numa cadeia de antes-e-depois. O tempo, porém, não é homogêneo, aliás, uma característica de culturas ameríndias é sua atemporalidade, em ritos onde os cultores experimentam uma regressão na temporalidade, a manifestação, em seu conceito mais geral, os abstêm desse tempo

2 Idem, Ibidem.

3 Jacques Le Goff, “Documento/Monumento”, em História e Memória (Campinas: Editora da UNICAMP,

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serial. Mesmo o diálogo com o passado, segundo Bosi4, faz torná-lo presente.

O reencontro do tempo antigo pelo moderno faz pensar em um fenômeno que tende a aprofundar-se e a estender-se em nossos dias: o convívio dos tempos. […] Essa convivência pode ser forçada, artificial, promovida pelo mercado cultural, moda parente da morte. Mas pode acontecer espontaneamente, sinal de que o tempo que se vive não é homogêneo.5

Também os vínculos estabelecidos entre Memória e História podem aparentar duas características distintas, citando Guarinello:

Podem ser vistos, em primeiro lugar, como uma relação positiva, pois a história produzida por historiadores, por especialistas da história, enriquece as representações possíveis da memória coletiva, fornece símbolos, conceitos, instrumentos rigorosos para que a sociedade pense a si mesma em sua relação com o passado. Mas podem também ser vistos sob um ângulo negativo, porque a história científica se volta contra as representações produzidas pela memória “espontânea” da sociedade, destruindo seus suportes, atacando seus princípios, seus pressupostos, seus símbolos.6

Assim, munido de ferramentas para uma análise crítica e histórica de qualquer objeto de estudo à disposição, não custou muito para que o próprio curso me levasse ao tema.

É de longa data meu interesse pelo samba como autêntica expressão popular, com toda sua riqueza folclórica, extravasando em muito os limites impostos pelo rótulo gênero, o qual por vezes me vejo obrigado a utilizar em prol de um maior didatismo, embora opte muitas vezes pelo uso do termo manifestação. Muito vulnerável como folclore, fora do eruditismo e intrinsecamente coletivo, como já dito, o samba reserva muitas características comuns à memória, e daí a interessante relação estabelecida entre o tema e o curso como um todo.

Neste universo de valorização da arte do povo, resistência à mercantilização e pasteurização da cultura popular, é quase impossível não esbarrar na figura maior do samba paulistano, o politizado Geraldo Filme, de apelido “Negrinho das marmitas”

4 Alfredo Bosi, “O tempo e os tempos”, em Adauto Novaes (org.), Tempo e História (São Paulo:

Companhia das Letras; Secretaria Municipal de Cultura, 1992)

5 Idem, Ibidem, p.30

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quando criança em meados de 1930. Encantado com o discurso e mesmo o lirismo que suas músicas carregavam, logo me vi imerso numa incansável busca a procura de mais músicas do artista. Com raras obras gravadas e parco material para um personagem do porte de Geraldo Filme, descobri a participação do renomado sambista em uma peça do dramaturgo Plínio Marcos, defensor de primeiríssima linha do samba paulista, posteriormente gravado em LP. “Plínio Marcos em Prosa e Samba – Nas quebradas do mundaréu” foi riquíssimo para minha pesquisa e principalmente para a elaboração do tema que abordo na presente monografia.

Citado na música “Vou sambar n'outro lugar” de Geraldo Filme, o Largo da Banana despertou imediatamente meu interesse, porque embora apreciador do samba, ouvia pela primeira vez referência à tal local ao qual era atribuída grande importância. A ponte entre o Largo da Banana e o curso “História e Memória” estabeleceu-se quase que instantaneamente, pois poucos textos tratavam com profundidade o largo, de suma importância para o desenvolvimento de um samba propriamente paulistano.

Interessante é, portanto, analisar a memória do que parece ser um local não de memória, mas esquecimento, apesar de seu valor cultural inestimável. A pretensão deste trabalho é de resgatar a manifestação extinta de um lugar já não mais existente num universo físico, mas que semeou experiências culturais ao longo do tempo na cidade de São Paulo, cujo samba próprio, apesar de pouco divulgado pela mídia de massa e muito desconhecido do grande público, sobrevive muito da memória cada vez mais restrita daqueles que o vivenciaram e esporádicos trabalhos acadêmicos, muitos não publicados.

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I. A GÊNESE

O samba rural paulista

Canto de negro dói, canto de negro mata Canto de negro faz bem e faz mal

Negro é como couro de tambor Quanto mais quente, mais toca Quanto mais velho, mais zoada faz.

Solano Trindade

O samba paulista, ao contrário do que muitos acreditam, não é uma vertente do samba tradicional carioca. O samba feito no estado de São Paulo tem sua raiz nas manifestações rurais feitas no interior do estado (jongo, catira, samba-de-bumbo, samba-lenço) que por sua vez têm sua mais remota origem no obscuro batuque, manifestação trazida por escravos africanos que, segundo a folclorista Raquel Trindade, deu origem a todos os sambas e tinha por principal característica a umbigada. Diz-se obscuro pelo pouco que se sabe em relação à tal manifestação e pelo fato de o termo batuque ser muito genérico, abarcar um conjunto muito grande de gêneros os mais

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variados. Em quimbundo, língua falada por negros bantos oriundos da região de Angola, parte da costa africana de onde mais se exportaram escravos para o Brasil (cerca de 73% dos escravos brasileiros eram angolanos), o termo semba designa “umbigada”. Este batuque, levado pelos negros às mais distantes localidades do Brasil, daria origem à diferentes sambas nas distintas regiões. Citando a historiadora Olga von Simson:

A alma do samba vem para o Brasil com os escravos nos navios negreiros, e aqui ele se torna crioulo, adquirindo um corpo com características diversas, conforme a região onde se desenvolve:

No Nordeste ele será, em geral chamado de Coco. No litoral norte de Pernambuco o denominam samba de matuto, e será dançado nos ranchos pastoris. Na Bahia, além de ser dançado nos ranchos pastoris do Ciclo Natalino ele será chamado de samba de roda, apresentando forte influência das religiões africanas e estará carregado de axé. No Rio de Janeiro, trazido por migrantes baianos que se fixaram na cidade em meados do século dezenove, ele será a princípio o samba de partido alto, muito próximo do batuque africano, uma dança de umbigada com ritmo marcado por palmas, pelo prato de cozinha raspado com faca, por chocalhos e outros instrumentos de percussão e, ás vezes [sic] acompanhado pelo violão e pelo cavaquinho. Segundo velhos sambistas, a expressão partido alto provém da alta dignidade desse samba, cultivado por minorias negras.

[…] Por longo tempo, as raízes do samba paulista se mantiveram fortemente rurais e ele foi chamado ora de samba de roda, ora de samba de bumbo, ora de samba-lenço ou ainda de samba rural, segundo os intelectuais que o estudaram nos anos 30, como Mário de Andrade e Mário Wagner da Silva. O povo o chamava simplesmente de batuque.7

A citação também mostra a vagueza do termo batuque, e devido às diferentes interpretações que lhe podem ser dado, a autora opta pela utilização de “alma do samba”.

O desenvolvimento de um samba característico de São Paulo só é possível a partir do momento em que há um contingente relativamente grande de negros, fato que só vai se dar a partir do século XVIII, mas principalmente no século XIX com a cultura cafeeira. A primeira região aglutinadora de negros em São Paulo foi Santana de Parnaíba. Os escravos empregados nas lavouras de café vinham da decadente economia

7 Olga R. de Moraes von Simson, O samba paulista e suas histórias: textos, depoimentos orais, músicas e

imagens na reconstrução da trajetória de uma manifestação da cultura popular paulista (Campinas: Centro de Memória/UNICAMP, 2008), p.2.

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canavieira do Nordeste brasileiro, e, obviamente, traziam consigo cultura, saberes e hábitos que adquiriram em sua infância e juventude no Nordeste. Tal processo de migração de mão de obra se intensificou em 1850 com a Lei Eusébio de Queirós, que proibia o tráfico transatlântico de negros. Há registros no Arquivo Histórico Municipal de Campinas de que um único fazendeiro campineiro, o Barão de Itatiba, importou sessenta e um cativos de províncias nordestinas entre os anos de 1853 e 1874.

Há registros, que datam de meados do século XIX, de manifestações do samba nessas fazendas de municípios como Botucatu, Rio Claro, São Simão, Itapira, Itu, São Roque, Araçoiaba da Serra, Laranjal Paulista, Campinas, Redenção da Serra, Jacareí, Jundiaí, Caçapava, Capivari e Piracicaba. Em depoimento, Geraldo Filme relembra as ocasiões em que se praticava o samba, frisando a diferença com o samba carioca:

O nosso samba não tem nada a ver com o samba do Rio. É tão diferente, em tudo, nos tipos de manifestações da gente, no andamento. O nosso vem mesmo daqueles batuques, daquelas festas, as festas que eram dadas aos escravos quando tinha boas colheitas de café, dava aquelas festas pros escravos, na qual eles se manifestavam, com aquelas danças. Era batuque, era umbigada...8

As manifestações de jongo, samba entre outros abarcados dentro do termo batuques, eram feitos pelos negros nestas ocasiões festivas, onde celebrava-se a boa safra de café, embora, como nos lembra Fernando Penteado, filho e neto de fundadores da Escola de Samba Vai-Vai, nem tudo fosse alegria nessas ocasiões. Os escravos, nesse momento de lazer, se reuniam em roda para “orar”, em forma de samba, os lamentos colhidos durante a vida na senzala. O samba acalentava os negros. Nos versos entoados durante a brincadeira, imperava a comunicação de duplo sentido desenvolvida na senzala, de modo a desviar o olhar censor dos senhores que presenciavam a manifestação. Como nos versos do batuque “Tiá de Junqueira”, lembranças de Geraldo Filme dos cantos de sua avó:

Oi tiá, tiá, tiá

Oi tiá de Junqueira, tiá Oi tiá, tiá, tiá

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Oi tiá de Junqueira, tiá Moça bonita de lírio, tiá

Veja que coisa indecente, tiá Deita sem estar casada, tiá Fazendo vergonha pra gente.9

Como analisa o próprio Geraldo, há um protesto de ordem moral das negras, constantemente assediadas pelos senhores, enquanto as moças brancas (de lírio) tinham relações sexuais antes do casamento por livre e espontânea vontade, gerando prole que viria a ser criada pelas negras.

Na coreografia desses batuques, a umbigada estava também sempre presente, e atribuía conotação de extrema sensualidade ao samba, o que justificava, para muitos senhores, a proibição deste tipo de manifestação.

[...] Na Campinas do último quartel do século dezenove, o samba já era aceito por alguns senhores de escravos mais benevolentes, sendo dançado pelos negros em datas especiais, como no aniversário de uma sinházinha [sic] ou em dia de festa religiosa.

É o caso do Barão Geraldo de Rezende, grande cafeicultor que não só permitia, como apreciava o samba dos seus escravos, convidando amigos e parentes, para juntos assistirem ao sambas dançados em dias de festa no terreiro de café da famosa Fazenda Santa Genebra.10

Amélia Rezende, filha do barão, registrou a letra e a melodia de alguns sambas que eram cantados no terreiro de Santa Genebra:

I.

Quando o meu bem vai’se embora, ai eu fico Panha laranja no chão tico-tico

Panha laranja no chão.

Panha laranja no chão tico-tico Panha laranja no chão.

Minha toalha de renda Minha toalha de bico

Panha laranja no chão tico-tico Panha laranja no chão.

Panha laranja no chão tico-tico Panha laranja no chão.

9 Música gravada por Geraldo Filme, no programa Ensaio da TV Cultura em 1982. 10 Olga R. de Moraes von Simson, op. cit., p. 27.

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II.

Minha cumadi, pelo amor se Deus ai, Minha cumadi, pelo amor de Deus ai, Me dá meu leite, co’ a vaca me deu Me dá meu leite, co’ a vaca me deu III. Vô chamá Nhonhô Vô chamá Nhonhô Mucama tá brigando Lá no corredor Oi viva Neném Oi viva Neném Viva Neném, crioula Oi viva Neném.11

A prática da umbigada, segundo von Simson, não trazia em si um ato licencioso carregado de sensualidade, mas uma forma ritualizada de se louvar a fertilidade da natureza.

Cuíca e Domingues12 afirmarão que o termo samba em São Paulo, porém, só

ganha sentido comum, entendido por gente de todo estado, quando se falava no samba-de-bumbo de Pirapora do Bom Jesus. Pirapora figurou, principalmente após a “suavização” da escravatura em meados do século XIX e posterior abolição, em 1888, como principal núcleo cultural-religioso do interior de São Paulo. Muito desse valor atribuído à grande festa de Bom Jesus de Pirapora, realizada nos dias 3, 4, 5 e 6 de agosto, se deve à presença maciça de negros no ritual, que inspirados no primeiro milagre do Bom Jesus, tomaram-no como poderoso protetor de sua gente. O primeiro milagre diz respeito ao mito de criação do município de Pirapora , quando, em idos de 1725, três escravos negros tentavam transportar uma imagem de Jesus Cristo feita em madeira, encontrada às margens do Tietê. Em um atoleiro da várzea, a remoção da imagem parecia impossível, os escravos discutiam, até que o carreiro sugeriu uma mudança na disposição dos eixos do carro de boi e tudo se resolveu. Foi o primeiro

11 Idem, Ibidem, p.9.

12 Osvaldinho da Cuíca e André Domingues, Batuqueiros da Paulicéia: enredo do samba de São Paulo (São

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milagre do Bom Jesus, não pelo desencalhe, mas porque o carreiro era surdo-mudo. O local onde a imagem foi encontrada foi marcado com uma cruz e logo passou a receber romeiros interessados no poder milagroso da estatueta e das águas do Tietê, enquanto no ponto exato do milagre foi construída uma capela. Inevitavelmente, com o grande contingente de negros que se dirigiam às festas do Bom Jesus, houve uma contaminação da festa cristã pela cultura africana.

A inclusão do bumbo tem seu crédito atribuído a Honorato Missé, de quem pouco se sabe. Nascido a 12 de dezembro de 1903, em Santana de Parnaíba, branco, filho de uma família de 8 irmãos, Honorato evidentemente não foi o primeiro a perceber o uso do bumbo (instrumento usado pelas popularíssimas bandas marciais) para batucar, mas os testemunhos existentes são praticamente unânimes na afirmação de que somente a partir de Honorato (ao final de 1910) que os bumbos passaram a reinar no samba de Pirapora.

Um instrumento muito presente nos batuques paulistas e que reiterava o vigor rítmico grave das manifestações africanas era o tambu, tambor escavado a fogo em grande tronco, com pele de couro, no qual se batiam com duas baquetas de madeira. Não muito comum em Pirapora, uma vez que seu tamanho e peso dificultavam o transporte, o tambu se viu substituído pelo bumbo no papel de realçar o caráter rítmico das canções. Esta substituição é observada com nostalgia pelo cronista-historiador Rolando de Sergi, já em 1927: “O bumbo corriqueiro e prosaico substituía em todos os grupos o primitivo e característico tambu”13.

O tocador de bumbo, ele obedece à uma “regra africana” musical, que é o instrumento grave ser o solista. Hoje a gente tá assistindo à uma inversão disso, os instrumentos agudos é que partem pros solos e os graves fazem a marcação do tempo. Mas isso, na África e em muitas manifestações da cultura popular é o inverso, então o bumbo no samba preserva isso14

Uma característica peculiar do samba-de-bumbo é a participação muito

13 Rolando de Sergi apud José Ramos Tinhorão, “A vocação caipira de uma cidade cosmopolita” em

Tinhorão, Cultura Popular: temas e questões (São Paulo: Editora 34, 2001), p.228.

14 Marcelo Manzatti em depoimento gravado no longa-metragem Samba à paulista, de 2007, parte I.

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representativa de caboclos e mesmo brancos, o que foi interessante culturalmente para a manifestação, visto que a falta de identificação com um segmento cultural mais específico levou esse samba

a receber tipos de toda origem e vindos de toda parte, que imprimiram no samba-de-bumbo suas marcas culturais, enriquecendo-o com elementos musicais originalmente dispersos, como o jongo, a catira, caninha verde e a importantíssima folia do divino15.

Muito presente nos batuques paulistas, o tambu reiterava o caráter rítmico próprio da tradição musical africana.

Predominava no samba-de-bumbo a improvisação de versos sobre uma base melódica/harmônica simples em longos desafios. O dono-do-samba, o indivíduo que fazia os “pontos” (nome que se dá aos versos lançados ao coro), é sempre alguém com facilidade de improviso. O discurso dos versos, à semelhança de outros batuques de São Paulo, trazia mensagens de duplo sentido, como já foi dito, fruto de uma linguagem velada na senzala, e possui uma riqueza literária, muito carregado de complexas metáforas. Os instrumentos utilizados eram: bumbo, caixinha (que guarda alguma semelhança com a alfaia), réque-réque (de chifre, trazido pelos escravos bantos),

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chocalhos e pandeiros.

De acordo com von Simson16, com muita repressão às formas de divertimento

negro em São Paulo no século XX, os sambadores, para continuar a realização de suas festas, retiraram a umbigada de suas performances, e o contato entre os participantes passou a se dar por intermédio do bumbo, posicionado à frente do corpo do tocador . Os registros de Mário de Andrade, em seu estudo intitulado O samba rural paulista, descrevem com grande riqueza de detalhes este recorte específico da manifestação:

Na noite de 14 de fevereiro de 1931, foi mesmo sublime de coreografia sexual o par que se formou de repente no centro da dança coletiva. […] A graça da pretinha se esgueirando ante o bumbo avançado com violência, se aproximando quando ele se retirava no avanço e recuo de obrigação, era mesmo uma graça dominadora. […] Era impossível não sentir que o negrão, afastado da negrinha, mandava o seu gozo todo pro instrumento. Era visível a necessidade que tinha de apalpar com o bumbo enorme o corpito da companheira. […]

Nunca senti maior sensação artística de sexualidade, que diante daquele par cujo contato físico era no entanto realizado através dum grande bumbo. Era sensualidade? Deve ser isso que fez tantos viajantes e cronistas chamarem de indecentes os sambas de negros...17

O samba-de-bumbo tem outras características particulares no que diz respeito à coreografia:

A coreografia deste samba difere profundamente da do batuque, ou samba, ou que outro nome tenha, que, vindo da África, se generalizou entre nós. No batuque ou samba mais tradicional, descrito por viajantes antigos, e ainda sobrevivente na Bahia, há três elementos essenciais que o definem coreograficamente. É uma dança em que os dançantes formam círculo; quem dança realmente é um par, destacado do círculo e posto em evidência no centro dele; o passo, ou melhor, o movimento característico desse par dançarino é a umbigada, fim culminante dos floreios coreográficos, acabado o qual a dança recomeça com par novo. Nenhum destes três elementos existe no samba rural paulista que não é uma dança de par, mas coletiva; cuja disposição não é o círculo, mas o paralelismo dos dançantes em fileiras; e onde não existe a umbigada18

16 Olga R. de Moraes von Simson, op. cit.

17 Mário de Andrade, “O samba rural paulista” em Edison Carneiro, Antologia do negro brasileiro: de

Joaquim Nabuco a Jorge Amado, os textos mais significativos sobre a presença do negro em nosso país (Rio de Janeiro: Agir, 2005), p. 328.

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Em registro fotográfico de Mário de Andrade, nota-se a imponência do bumbo em meio à multidão.

Essa disposição do grupo em fileiras de “cobrinhas” é muito provavelmente influência de rituais indígenas brasileiros. O fato de não haver umbigada se trata de uma estratégia desenvolvida pelos que participavam do samba, de modo a continuar a prática da manifestação sem maior censura da elite.

O samba-de-bumbo, durante a festa do Bom Jesus, representava grande atrativo para a camada popular de todo o estado de São Paulo, às vezes se estendendo para além das fronteiras interestaduais (há registros de grupos vindos do sul de Minas para presenciar a festa).

Com o crescimento da população flutuante nos dias de festa, quando os hotéis, pensões e casas de família ficavam lotados, a alternativa para várias pessoas era acampar às margens do rio (geralmente os caboclos que utilizavam essa forma de alojamento). Afastados da vila também existia dois amplos edifícios abandonados que haviam servido de moradia de seminaristas e religiosos, e neles se alojavam exclusivamente os negros vindos de todas as regiões e cidades da província. É nesse local que a parte profana dos festejos vai se originar e se desenvolver, pois,

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após os cultos religiosos, negros batucavam e dançavam, desafiando-se a noite inteira, Essa dimensão da fração profana da festa, e da influência dos negros na sua realização, é reiterada no estudo de Mário Wagner V. Da Cunha, que identifica e estabelece dois tipos diferenciados de protagonistas: havia o devoto cumpridor de seu dever religioso; os romeiros, constituídos por brancos, que pretendiam cumprir o dever religioso, mas também acalentavam a ideia de participação nos festejos profanos; e, finalmente, os piraporeanos, constituídos por negros e mulatos que se dirigiam para Pirapora, exclusivamente em função da festa profana, ou seja, o samba. […] Nessas comemorações participavam todos os segmentos da população, sem exclusões; por isso, seguiam para Pirapora tanto os negros e caboclos pobres como a parcela mais privilegiada19.

Moraes aponta que esse grupo de romeiros e piraporeanos se estabeleciam em barracões de alvenaria, dantes utilizados por seminaristas e religiosos. Estes barracões eram palco principal da “fração profana” das festas do Bom Jesus. As batucadas lá ocorriam de modo que o samba nunca foi bem visto pela Igreja, instituição poderosa em Pirapora, e nos barracões, distantes das praças onde se realizavam as procissões, os negros encontravam espaço de maior liberdade para realizar as batucadas, porque, apesar de um aparente confinamento, o isolamento social acabou garantindo a liberdade de expressão desses grupos. Pelos barracões passaram importantes figuras do samba paulista, como Henricão, Geraldo Filme, Dionísio Barbosa, Livinho da Vai-Vai, entre outros.

Um samba de Geraldo Filme, Batuque de Pirapora, que relata suas memórias de infância, ilustra perfeitamente o ambiente dos festejos do Bom Jesus de Pirapora:

Eu era menino

Mamãe disse: vamo' embora Você vai ser batizado No samba de Pirapora Mamãe fez uma promessa Para me vestir de anjo Me vestiu de azul-celeste Na cabeça um arranjo Ouviu-se a voz do festeiro No meio da multidão “Menino preto não sai Aqui nessa procissão”

19 Moraes apud Márcio Michalczuk Marcelino, Uma leitura do samba rural ao samba urbano na cidade de

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Mamãe, mulher decidida Ao santo pediu pediu perdão Jogou minha asa fora

Me levou pro barracão Lá no barraco

Tudo era alegria Nego batia na zabumba E o boi gemia

Iniciado o neguinho Num batuque de terreiro Samba de Piracicaba Tietê e campineiro Os bambas da Paulicéia Não consigo esquecer Fredericão na zabumba Fazia a terra tremer Cresci na roda de bamba No meio da alegria Eunice puxava o ponto Dona Olímpia respondia Sinhá caía na roda Gastando a sua sandália E a poeira levantava Com o vento das sete saias20

Este samba evidencia a clara divisão entre o profano e o sagrado na festa do Bom Jesus de Pirapora: enquanto nas praças as manifestações eram dirigidas pela Igreja, e as procissões tinham como participantes exclusivamente os brancos, nos barracões de alvenaria havia a livre expressão das classes mais humildes, que compareciam em maior peso às festas. Temos menções claras ao tipo de música que se fazia nesse ambiente, com desafios (“Eunice puxava o ponto”) e presença do bumbo (“zabumba”).

A igreja, ela sempre teve, assim, uma diferenciação de classes, depois é que houve uma abertura maior. Mas os escravos, os negros, eles não tinham liberdade de ficar na igreja nos mesmos lugares que os brancos ficavam, nas missas solenes, nas procissões; eles eram discriminados. […] O negro fazia, então, a sua devoção dentro do barracão. De que maneira? Cantando. E o canto deles era aquele canto no estilo africano, que era mais ou menos o ritmo do samba21

20 Geraldo Filme, “Batuque de Pirapora”, gravado em 1972.

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Essa grande mobilização que existia entre o samba-de-bumbo de Pirapora, à medida que a festa vai ganhando maior relevância cultural, passa a competir com os interesses religiosos da poderosa Igreja local. Como resultado, em 1936, a Igreja, numa iniciativa em parceria com a prefeitura do município, interdita os barracões, alegando falta de segurança e desarticula os sambeiros (termo usado para denominar aqueles que participavam mais ativamente das batucadas). Mário de Andrade22, em 1937, já relata

mudanças significativas nas características originais do samba-de-bumbo e atesta que a festa perdeu muito de seu valor, sendo encontrado apenas um batalhão de sambeiros no lugar, e o mais humorístico do caso, com suas próprias palavras, é que o grupo de samba que estudou em Pirapora tinha ido de São Paulo.

Espaço de manifestação do profano na festa do Bom Jesus, o barracão de alvenaria. As restrições ao samba em Pirapora diminuíram a lotação da cadeia local naquelas noites frias de agosto, repletas de bêbados e arruaceiros, mas fizeram com que, gradativamente, o peso cultural da festa de Bom Jesus fosse diminuindo. Para piorar, ao mesmo tempo, o samba começou a sumir do interior paulista por conta do grande êxodo rural decorrente da industrialização desembestada da capital e suas adjacências. […] Por tudo isso, na década de 50, quando os barracões dos

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romeiros foram demolidos, a efervescência já não era nem sombra da de outrora, ainda que um bom número de sambistas continuasse indo até Pirapora para fazer suas orações.23

É interessante notar que muitos dos sambistas que frequentavam as festas de Pirapora, vinham em grupos da capital, em processo de vertiginosa urbanização, São Paulo. O fato de a centralidade de São Paulo não agregar tanto culturalmente a camada popular é de grande particularidade, como observará Tinhorão, em seu polêmico artigo, A vocação caipira de uma cidade cosmopolita:

A consequência dessa polarização do urbano pelo rural – fenômeno paulista absolutamente original dentro do processo cultural brasileiro, onde a cidade diluiu sempre os modelos do campo, impondo sua marca na síntese representada por novo produto final – foi a inconsistência das criações populares de São Paulo na área do lazer.24

O debate sobre a questão da reprodução das formas de lazer próprias do universo rural na capital será abordado com mais profundidade no próximo capítulo.

Os sambistas da capital se dirigiam aos festejos religioso-profanos de Pirapora com o objetivo de entrar em contato mais direto com suas raízes. Os nomes dos já citados renomados sambistas que passaram pelos barracões de alvenaria iam para um espaço onde podiam, de maneira mais livre, praticar o samba, impossível de assim o ser no ambiente inóspito da capital. Os próprios sambeiros afirmam que, além do fator da maciça presença de indivíduos com semelhante formação cultural e interesse na prática do samba, também o ambiente rural, o maior contato com a natureza do interior, onde as raízes desse samba se firmaram, o “contato com o passado” trazia inspiração para a manifestação do samba.

De repente, aqui, 'cê pode chegar aqui, dá uma iluminação em você, você alembra do passado, esse rio Tietê aqui, um rio tão lindo, um rio tão belo, 'cê entendeu? Sentava aqui no barranco, aqui, pescava lambari, 'cê bebia uma água limpa, hoje tá tudo poluído, cê entendeu? Então, assim, são uns batuques, são umas modas que de repente você vai criando na hora, assim, sem revanchismo e sem dor no coração.25

23 Osvaldinho da Cuíca e André Domingues, op. cit., p.31. 24 José Ramos Tinhorão, op. cit., p. 223.

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Geraldo Filme confirma que “lá o negro relembrava suas raízes, na cidade ele não tinha mais condições”26.

Em foto de Lévi-Strauss, “batalhão”de paulistanos se aglomera em redor do bumbo.

É interessante notar no discurso dos praticantes do samba a relação aparentemente contraditória entre a comum prática de desafios no interior paulista e a música dita “sem revanchismo” entoada nos momentos de lazer. Os desafios eram realizados em grande parte através do cururu, gênero musical similar ao repente, cantado ao som de violas e “cultivado” principalmente na região do Médio Tietê. O que se pode presumir é que os desafios não tinham caráter necessariamente depreciativo e agressivo, como é o caso de muitos outros gêneros onde há improvisação em espécie de discussão envolvendo dois ou mais participantes. Os improvisos iriam nascendo, à semelhança do partido-alto, “não só sobre um tema, refrão, mas também sobre o

26 Geraldo filme, em depoimento documentado em fita, disponível em acervo do Museu da Imagem e do

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ambiente, sobre um clima que vai se criando aos poucos”27. E realmente é o que se

observa em muitos dos casos, como em alguns improvisos do famigerado Zé Soldado, anotados por Mário de Andrade no ano de 1937, em Pirapora:

O cabôco Marculino - Ai, meu Deus É cabôco malcriado - Ai, meu Deus Pegô na prima choca - Ai, meu Deus

Foi vendê pro delegado - Ai, meu Deus

Ê-lê-lê-lê.28

Também outro gênero popularíssimo no interior do estado de São Paulo, e do qual se sabe muito pouco, foi a catira, também conhecido como cateretê, onde se utilizavam principalmente violas e, como percussão, somente as palmas de mãos e batidas de pé. Os versos de danças de catira podiam ser ouvidos nos arredores da capital, ainda no fim do século XIX, como anota Freitas: “[…]ficando neste capítulo O Cateretê uma das feições características do nosso povo, as cenas do cateretê paulista, tal como se desenrolavam ainda há uns trinta anos passados [o livro é de 1921] em os arredores da Capital”29.

27 Antônio Candeia Filho, em depoimento gravado no curta-metragem Partido alto, de 1971. 4’ 15’’. 28 Osvaldinho da Cuíca e André Domingues, op. cit., p.90.

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II. BARRA FUNDA E SÃO PAULO

DO INÍCIO DO SÉCULO XX

Branco quando morre, Foi a morte que o levou

Negro quando morre, Foi cachaça que o matou.

Dito popular do início do séc. XX

São Paulo, até o final do século XIX e início do seguinte, ainda guardava muito da atmosfera provinciana e pacata tipicamente interiorana. A cultura cafeeira, que fazia São Paulo figurar como maior exportador de café na economia mundial, acumulou o primitivo capital necessário para o desenvolvimento da indústria na cidade.

A capital conheceu vertiginoso processo de crescimento demográfico no período compreendido entre meados de 1875 e 1920, com migrantes vindos das fazendas de café do Vale do Paraíba e interior, e imigrantes desembarcando no porto de Santos, principalmente italianos, espanhóis e alemães. Cabe aqui fazer um parêntese para melhor compreensão da vinda dessa massa de ex-escravos do interior. Segundo

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Lamego30 o primeiro ciclo dos barões do café entrava em decadência por conta do mal

uso das terras, culminando com a abolição da escravatura, em 1888. Com tal derrocada do primeiro ciclo do café, a cidade de São Paulo passa a representar uma região atrativa para essa massa de trabalhadores rurais, muitos deles ex-escravos e seus descendentes. Dos Santos31 aponta os seguintes números: de 23.352 habitantes, em 1874, a população

dá um salto para 581.435, em 1920. Essa explosão demográfica se deve principalmente ao intenso fluxo de imigração que se estabeleceu nesse período: enquanto em 1872 a população estrangeira representava 8% da população da capital, contra 92% dos “da terra” (expressão encontrada em documentos de época para designar os nacionais) num total de 26.020 habitantes, em 1893 essa parcela de estrangeiros ultrapassa a quantidade de nacionais, com 55,52% do total de 120.775 habitantes. Dentre os estrangeiros, a imensa maioria era de italianos, seguidos de portugueses e ainda os espanhóis.

[…] Macola, um viajante italiano que visitou São Paulo alguns anos depois, ficou impressionado ao ouvir que se falava, se chamava e se imprecava, por toda a parte, “nos dialetos mais autênticos da Península”. Daí a impressão de espanto de um mineiro ao conhecer São Paulo em 1902: “Os meus ouvidos e os meus olhos guardam cenas inesquecíveis. Não sei se a Itália o seria menos em São Paulo. No bonde, no teatro, na rua, na igreja, fala-se mais o idioma de Dante que o de Camões. Os maiores e mais numerosos comerciantes e industriais eram italianos. Os operários eram italianos.” Sousa Pinto, um jornalista português que esteve na Cidade na mesma época, não conseguiu se fazer entender por vários cocheiros de tílburi, todos falando em dialetos peninsulares e gesticulando à napolitana. Escritas em italiano eram também as tabuletas de vários edifícios: “Encontramo-nos a cogitar se por um estranho fenômeno de letargia em vez de descer em São Paulo teríamos ido parar à Cidade do Vesúvio.”32

Nesses relatos de viajantes e até mesmo nas estatísticas recolhidas por órgãos municipais da época, existe clara tendência otimista em atribuir o progresso da cidade à vinda em massa dos imigrantes, mão de obra melhor qualificada tecnicamente e com costumes e cultura mais próximos do modelo europeu almejado pela elite paulistana. O “embranquecimento” da cidade, abordado em muitos documentos de época, revela um

30 Paulo Lamego, O Brasil é o Vale (Valença: Gráfica PC Duboc, 2006).

31 Carlos José Ferreira dos Santos, Nem tudo era italiano - São Paulo e pobreza: 1890-1915 (São Paulo:

Annablume/FAPESP, 2008)

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desejo latente de “reconstruir a Paulicéia inferiorizando, silenciando e excluindo aqueles que estivessem fora dos padrões socioculturais desejados ou fossem vinculados a aspectos de um passado que se desejava apagar – entre esses os nacionais pobres”33.

A massa operária da cidade era formada quase que exclusivamente por imigrantes, sob a justificativa de melhor qualificação técnica dos mesmos para os serviços exigidos pela indústria, deixando a essa camada de “nacionais despossuídos” serviços mais pesados e de menor especialização, como carregamento e ensacamento, pequenos biscates pela cidade e ainda serviços domésticos nas casas das famílias mais abastadas.

[...] os negros eram quase tantos quantos os italianos, na época, em São Paulo, [mas] viviam totalmente desintegrados [...] Os imigrantes – na indústria e no comércio. Para o negro sobrava só a tarefa de lavar casas, limpar escritórios, carregar lenhas e outras cargas. Éramos todos subempregados. Via-se muito, na época, negros puxando carrocinhas pela cidade ou fazendo ‘ponto’ na [rua] Quintino Bocaiuva, com latas e escovões nas mãos, à espera de ser chamado para limpar uma casa aqui, raspar um assoalho ali.34

Sob a bandeira da higiene, na qual eram repelidos por seus costumes, embriaguez e vagabundagem nos momentos de recesso, e da insuficiência técnica para a realização de trabalhos que demandavam maior habilidade (torneiros mecânicos, soldadores...), essa parcela popular nacional da população foi marginalizada pela sociedade como um todo, constrangida a abraçar o modelo europeu de civilização. A música Mulher de malandro, de Geraldo Filme, ilustra bem os serviços realizados por essa camada da população:

Meu bem, eu vou me embora

Não fique triste, mulher de malandro não chora Eu fiz de tudo para ser bom operário

Veio a crise financeira, eu perdi o meu trabalho Vou com o sol, volto com a luz da lua

Oh! Meu bem não fique triste, dinheiro se ganha na rua

33

Carlos José Ferreira dos Santos, op. cit., p. 42.

34 George Reid Andrews apud Edson Roberto de Jesus, “Bamo sambá” em Revista Histórica (São Paulo:

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Dê um beijo nos negrinhos, vou ganhar o nosso pão Carregar algumas malas lá na porta da estação Engraxar sapato e bota, carregar cesto na feira Alugar uma casaca, ser garçom de gafieira Hoje vou jogar no bicho, minha jura quebrarei

Quero ver se aumento um pouco sobre aquele que eu ganhei Oh! Meu bem não tenha medo, pois o jogo não dá nada Para tudo dá-se um jeito, a polícia é camarada

Vou vender bala de coco, barbatana e rapadura Oh! Meu bem só tenho medo do fiscal da prefeitura Pra arrumar algum dinheiro, garantir nossa gordura Vou em algum velório de rico, vou chorar na sepultura.35

Outro aspecto a ser analisado é a decisiva participação das mulheres negras na geração de renda familiar naquela época. Como os homens não possuíam empregos fixos, cabia às mulheres o papel de arrecadar renda estável para a manutenção familiar. Após a abolição da escravatura, criou-se uma massa de negros desempregados, que continuavam marginalizados, e as mulheres encontravam emprego como lavadeiras, arrumadeiras, amas-secas. Nas palavras de von Simson, “[…] os maridos vão viver de biscate, vão viver de pequenos serviços, de carregamentos, de consertar telhados, de raspar tacos, de consertar calha, de fazer essas coisas como um trabalho esporádico, sem carteira assinada.”36

A partir da análise da mancha urbana de São Paulo dos anos de 1881 a 1951, através de mapas cedidos pela Prefeitura da Cidade de São Paulo, é possível visualizar, além do súbito crescimento da cidade, a região da Barra Funda como área periférica da cidade de São Paulo no início do século XX. Região hoje considerada como parte das chamadas centralidades da cidade, a Barra Funda no início do século XX, representava, junto da Baixada do Glicério e o Bexiga, a periferia da crescente São Paulo, área que concentrava em grande número os negros expulsos dos cortiços do centro da cidade. A região central da cidade nessa época, compreendendo regiões como Campos Elíseos,

35 Geraldo Filme, Mulher de malandro, gravado em 1980.

36 Olga R. de Moraes von Simson, em depoimento gravado no longa-metragem Samba à paulista, parte I,

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Santa Ifigênia, Luz, Consolação, sofreu intenso processo de modernização, visando criar espaço de afirmação das elites, o que implicou na destruição física dos cortiços e espaços da comunidade negra e consequente expulsão dessa parcela mais pobre da população para a então periferia da cidade. As medidas de urbanização do centro incluíram alargamento da Avenida São João e da Libero Badaró, ajardinamento do Vale do Anhangabaú, e construção do conjunto de Carlos Gomes na encosta do Teatro Municipal.

A Barra Funda representava, tanto no nível físico como operacional, a fronteira entre centro e subúrbio. Esse limite estava evidenciado no corte da cidade pelas linhas de trem da Estação Barra Funda da Estrada de Ferro Sorocabana e a da São Paulo Railway, inauguradas, respectivamente, em 1875 e 1895, desenhando extensa malha de linhas ferroviárias na região.

Com população predominante de imigrantes italianos em sua origem, o bairro passa a concentrar, no início do século XX, muito da parcela de negros e mulatos da capital, das mais diferentes matizes, vindos, em boa parte, de diversos pontos do interior do estado, sobretudo das regiões cafeeiras.

É muito interessante observar a conexão estabelecida entre o choque cultural nas relações humanas que se davam no bairro, de indivíduos portadores de cultura e experiências absolutamente díspares, e a organização espacial e arquitetônica das habitações do bairro. Para tal tarefa é preciso remontar ao período do final do século XIX, quando são loteadas as terras da extensa Chácara do Carvalho. Os lotes foram ocupados pelos recém-chegados imigrantes italianos, e a arquitetura de suas moradias, conhecida por “ponta de chuva” (por serem marcados, no início da construção, na terra com a ponta do guarda-chuva dos mestres de obra italianos), possui peculiares aspectos funcionais que cabem ser analisados. As residências são em maioria geminadas, possuem uma entrada lateral, uma fileira de cômodos, uma cozinha, um quintal e um porão. Os porões dessas construções foram posteriormente alugadas aos negros, que apareciam cada vez em maior número no bairro. Muitas das manifestações de batuques e sambas se davam no porão das casas, em eventos festivos que reuniam essa camada

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popular nacional da cidade, onde, de acordo com Plínio Marcos, “[...] crioulo de mais de um metro e setenta tinha que dançar dobrado em cima da mulher, pra não bater com a testa na viga” 37

Casa de antiga vila operária na Barra Funda, geminada e com porta lateral para o porão.

Através de depoimentos de antigos moradores, sabe-se que no bairro havia também algumas gafieiras, onde tocava-se samba, de exclusiva frequência dos negros da região. Outro local de encontro da comunidade negra em São Paulo eram os terreiros das mães-de-santo, onde os afro-descendentes “tinham liberdade para fazer uma música que espelhasse sua memória ancestral, longe da repressão e do preconceito que manifestações desse tipo sofriam em lugares públicos, sob o olhar da elite majoritariamente branca”.38

37 Plínio Marcos, em depoimento gravado no LP Plínio Marcos em prosa e samba: nas quebradas do

mundaréu, de 1974.

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Essa prática do samba nesses terreiros evidencia a íntima ligação do samba com a vida social e religiosa das denominadas “roças” de umbanda e candomblé, como na da mãe-de-santo Tia Olympia, que recebia e incentivava sambistas regularmente na sua “roça”, próxima à linha do trem. Mas em se tratando de núcleo para manifestação do samba, nenhum local agregava culturalmente mais sambeiros do que o Largo da Banana.

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III. NÚCLEO DO SAMBA

O Largo da Banana e suas manifestações

[...] Meu pai sempre me dizia: “Meu filho tome cuidado, quando eu penso no futuro, não esqueço o meu passado”

Dança da Solidão Paulinho da Viola

O desenvolvimento e a ocupação da Barra Funda estiveram estreitamente ligados à construção das estradas de ferro no bairro. O Largo da Banana se localizava atrás da antiga estação ferroviária, funcionando quase que como um apêndice desta. O Largo possuía uma considerável área circular, onde eram dispostos cochos para os cavalos e mulas que por ali fossem fazer parada. O cenário era tomado por extensas pilhas de bananas e caixotes espalhados sobre o chão de terra batida. O local funcionava como ponto de descarregamento dos produtos vindos do porto de Santos, pela ferrovia Santos-Jundiaí, para eventualmente serem transferidos para os trens que seguiam para o interior do estado. A atividade mais recorrente era, porém, o descarregamento e

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encaixotamento das cargas de banana provenientes de Cubatão. Sendo a banana produto perecível, em ruas muito próximas ao largo existiam vários armazéns de banana verde e alfafa, de modo que se depositava temporariamente o excedente, garantindo o dinâmico escoamento do produto para o interior do estado.

Cortado pelas linhas de ferro, o Largo da Banana ficava em meio à densa malha de vias férreas.

Os trabalhadores do Largo (descarregadores, encaixotadores) eram em grande maioria negros que moravam em ruas próximas da estação e, à semelhança da parcela de negros trabalhadores da capital, não possuíam emprego estável, de carteira assinada, recebendo como diaristas. Por não ser um emprego fixo, a competitividade era brutal e, como lembram antigos moradores do bairro, em dadas ocasiões o local amanhecia com cadáveres no chão.

Lá no Largo da Banana, na Barra Funda, o ordenado era pequeno, o soldo era pequeno. Então, por cada tantos cachos de banana carregados eles ganhavam um. Então eles colocavam ali na praça para comércio. Na hora em que folgavam um pouquinho, aí eles armavam um samba e a gente era moleque, ficava olhando os velhos, não deixavam entrar na roda: "Sai daqui, moleque, chega pra lá". A gente ficava apreciando "os coroa" todos cantar e a gente guardou muita coisa e deu continuidade.39

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Formava-se, então, uma espécie de centro comercial popular especializado na venda de bananas, oriundas da particular remuneração concedida aos carregadores.

O local era frequentado pelos trabalhadores e pela “malandragem local”, que ia com o único propósito de presenciar e participar das frequentes e lendárias rodas de samba. A repressão ao samba como autêntica forma de expressão da cultura negra era latente, pois uma sociedade dotada de ares cosmopolitas e extremamente progressista não admitia desvios das condutas de civilidade calcadas em modelo europeu. Como bem expressa o historiador Francisco Rocha, o sambista, em sua essência, não está inserido na lógica de mercantilização do tempo, este representa potencial para realização de festa, samba. Em depoimento de Geraldo Filme, nota-se o caráter marginal da manifestação:

Na época não podia fazer samba na rua em São Paulo. É fazer samba ia em cana. A gente já saía, quem conseguia, [...] uma moeda de dois mil réis, que é dinheiro pra chuchu, rapaz, na época, no bolso que sabia que cantava samba ia preso, pra pagar a carceragem. E tinha alguns polícia que tiravam sarro com a gente. Chegava as meninas, também entrava na roda, sambar, aquela brincadeira. Enfim, tinha um policial lá que ele tinha uma veia musical, um negócio, então chegava: “A cadeia tá suja, vai todo mundo lavar”, aí ele mesmo cantava: “Vem cá menino, vem cá menina, tá tudo preso pra amanhã fazer faxina”.40

Como reduto de marginalidade, o Largo da Banana não sofria a mesma vigilância dos agentes repressores, exclusão que, à semelhança dos barracões de alvenaria de Pirapora, garantia a liberdade de expressão dessa camada da população nos momentos de lazer, propiciando assim espaço para o florescimento do nascente samba paulistano.

Como já visto no depoimento de Filme, o canto era entoado coletivamente pelos trabalhadores do lugar, na forma de samba. Levantada a origem de tais agentes produtores da manifestação (negros e mulatos vindos do interior do estado), sabe-se que o samba produzido no Largo levava muito da influência do samba rural do interior de São Paulo, adquirindo na capital, porém, muitos aspectos da vida propriamente urbana. Os batuques eram acompanhados por palmas de mão e batuque em qualquer que fosse o objeto disponível, latas de lixo, latinha de graxa e caixas para estocagem de banana. O

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Largo representava local de confluência e síntese das formas de samba praticadas no interior com o ambiente urbano da cidade. Assim, cultivava-se no Largo, não um gênero específico, mas um turbilhão de influências, desde recortados de cururu a versos típicos da catira, mas sempre com acompanhamento rítmico improvisado.

Apesar de o ritmo ser mais “picado” na capital, pelas palmas e instrumentos improvisados de tom agudo, a lata de lixo produzia um som mais grave, muito similar ao som do rústico tambu, e também eram as músicas cantadas numa levada mais pesada, característica do samba rural paulista.

Inocêncio Tobias, um dos fundadores da segunda fase da Camisa Verde e Branca, lembra do cururu (ou caruru) realizado no largo: “Esse partido alto hoje em dia, era caruru antigamente, que o pessoal chamava no interior. Isso aí é antigo. Então nóis fazia isso no Largo da Banana, fazia na mão, compreende?!”.41

O cururu realizado no Largo da Banana trazia muitas características peculiares em se tratando desde a temática à sua forma:

É patente o pano de fundo rural sobre o qual se move o Cururu. Mas sua temática não envolve a realidade do participante como trabalhador. Não se canta a terra, a colheita, a vaquejada. Não se cantam as questões sociais. Cantam-se, principalmente, fatos bíblicos, vida de santos: algo esotérico.42

O cururu na capital subverte em muitos aspectos esse cururu praticado no interior: seu acompanhamento foge do tradicional, não acompanhado por violas e instrumentos predominantemente de corda, mas somente percussão; seu pano de fundo é a urbanizada capital paulista; a temática abordada está intimamente ligada à “realidade participante” do trabalhador, nos improvisos, como em outras manifestações de batuques na cidade, cantava-se a saudade do interior e os aspectos cotidianos e corriqueiros do pesado serviço. Também na dança, conservava-se o gingado do cateretê.

Uma manifestação muito peculiar da cidade que tinha especial espaço no Largo da Banana era a tiririca, “uma derivação da capoeira em que não se pode usar as mãos

41 Inocêncio Tobias (também conhecido por Inocêncio Mulata), em depoimento gravado no

longa-metragem Samba à Paulista, parte I, 2007. 34’ 10’’.

42 Otávio Ramos e Arnaldo F. Drummond, Função do cururu (Cuiabá: Prefeitura Municipal de Cuiabá,

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para bater e, ao invés de gingar, os oponentes dançam samba […] enquanto jogam”43.

Assim, ao som de palmas e improvisada percussão, os sambeiros se desafiavam na roda e, sem parar de sambar, começavam um jogo de simulações, “fazendo visagem”, tentando golpes até que alguém de fato atingia o oponente, derrubando-o no chão. A roda cantava um refrão para acompanhar, de um samba qualquer, mas existiam alguns refrões que apareciam exclusivamente para o jogo de tiririca, como

É tumba, moleque, tumba É tumba pra derrubar, Tiririca, faca de ponta, Capoeira quer te pegar, Dona Rita do tabuleiro

Quem derrubou meu companheiro? Abre a roda minha gente

Que o batuque é diferente.44

A tiririca não representava, em si, um jogo violento. Porém era nítida a posição de não se tratar de um divertimento inocente, havia cunho um tanto agressivo, embora os sambistas ressaltem que, ao contrário dos jogos de pernada do Rio, a brincadeira não acabava em morte.

Existia esse negócio de valentia, de o garoto gritar alto, dar rasteira, fazer... Mas eu nunca vi um defunto. Quer dizer, nunca vi ninguém cortado, nem defunto. […] Fica bem claro que não existia esse negócio. Existia sim, pula pra lá, pula pra cá, sacode... Que um crioulo quando encontrava com o outro, e fazia tempo que a gente não via, então havia toda uma... […] Pula pra lá, abaixa, ameaçava rasteira, saltava pra trás, fazia aquela graça e depois cumprimentava.45

Cuíca e Domingues argumentam que a tiririca foi essencial no desenvolvimento de uma maneira paulista de sambar:

Algo muito interessante na tiririca era a maneira como os bambas se movimentavam. Ao contrário da capoeira – principalmente a da linha de Angola –, em que os contendores deslizam horizontalmente, com gestos harmônicos e postura elegante, o jogo de tiririca era meio pulado, brusco, e tinha como característica o porte algo curvado de seus praticantes. Essa maneira de mexer o corpo foi decisiva para o desenvolvimento do jeito paulista de sambar – um jeito

43 Osvaldinho da Cuíca e André Domingues, op. cit., p. 85.

44 Geraldo Filme, em canção gravada pelo programa Ensaio da TV Cultura, em 1982.

45 Toniquinho Batuqueiro, em depoimento do filme Geraldo Filme: Crioulo cantando samba era coisa feia,

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bastante particular que, interpretado como inabilidade pelos que cultores [sic] do modelo carioca, acabou sumindo.46

Também a influência santista era notável no samba do Largo da Banana, por conta da estrada ferroviária da estação, que descendo a Serra do Mar, favorecia intercâmbio cultural entre trabalhadores do porto de Santos e os ensacadores do largo. O samba santista, por conta do intenso movimento portuário, recebeu muita influência cultural do Rio de Janeiro e da Bahia, representando principal porta de entrada do samba carioca (de ascendência baiana) no estado de São Paulo.

Assim, o espaço funcionou como um melting pot, agregando e sintetizando grande quantidade de culturas e manifestações distintas, embora o termo sugira ingenuidade, passividade e imobilidade por parte da cultura, que é extremamente dinâmica e está em constante conflito.

É importante destacar a particularidade de São Paulo figurar como capital que não centralizava a cultura da camada popular de sua população; essa parcela de indivíduos reproduzia na cidade, como foi visto, manifestações típicas do universo rural do interior do estado, fenômeno explicado por Tinhorão da seguinte maneira:

Para as camadas populares de São Paulo […] a nova composição social nascida dessa mistura [influência de ex-escravos vindos da área rural e chegada de levas de trabalhadores imigrantes estrangeiros da Europa] iria se revelar culturalmente problemática. É que, levados a uma convivência obrigatória com estrangeiros e migrados da área rural em diversos bairros […], os negros paulistanos não contavam com um modelo de organização própria já estruturado para oferecer, o que estava destinado a gerar uma contradição: em vez de converter os recém-chegados do interior à cultura urbana local, foram eles levados a incorporar as peculiaridades do mundo rural.47

Registra-se efervescência cultural no Largo e grande movimentação em torno de seu samba até sua destruição física, em meados da década de 50, com a construção do viaduto Pacaembu, que hoje, junto do Memorial da América Latina (inaugurado em março de 1989), sepulta o antigo Largo da Banana. Geraldo Filme, em sua composição Vou sambar n'outro lugar, lamenta o ocorrido:

46 Osvaldinho da Cuíca e André Domingues, op. cit., p. 86. 47 José Ramos Tinhorão, op. cit., p. 223.

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Fiquei sem o terreiro da escola Já não posso mais sambar Sambista sem o Largo da Banana A Barra Funda vai parar

Surgiu um viaduto, é progresso Eu não posso protestar

Adeus, berço do samba Eu vou me embora, Vou sambar n'outro lugar.48

Densa malha ferroviária da antiga estação Barra Funda.

Atualmente, o local que já abrigou o saudoso Largo, já não guarda nenhuma referência visual do que foi o lugar onde ocorriam as famosas rodas de samba, ou seja, fisicamente, não restou nada do antigo Largo da Banana na atual paisagem. Assim, aquele que porventura se aventurar a descobrir o antigo local sem qualquer outra referência que não antigos registros, logo se verá numa tarefa impossível. Isso porque não existem resquícios materiais que façam a ligação entre o atual cenário e a antiga localidade. A linha de trem da atual estação Palmeiras–Barra Funda não é nem sombra da malha ferroviária de outrora, e parte do Memorial da América Latina e o pé do

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viaduto jazem sobre pedaço do antigo lugar, em divisão que torna inimaginável a disposição do Largo no atual espaço.

Também na memória dos antigos moradores do bairro, o Largo e sua localização são deturpados pelo tempo. Em entrevistas colhidas com indivíduos que participaram da história da Barra Funda, percebe-se a vagueza com que se aponta o local onde ficava o Largo, e muitos desconhecem até mesmo a antiga prática de samba no local. Assim, através de consenso de depoimentos de velhos e lúcidos (no que diz respeito à memória) moradores, é possível estabelecer a localização do amplo Largo da Banana, que compreendia parte do atual Memorial da América Latina (Auditório Simón Bolívar), o pé e pedaço abaixo do Viaduto Pacaembu e pequena parte da atual linha de trem Barra Funda.

As heranças deixadas pelo Largo não são palpáveis, se dão num nível de formação cultural da cidade, que no entanto atropela um lugar com sua desenfreada urbanização, sem no entanto similarmente aos antigos frequentadores, se preocupar em perpetuar a memória do que ali foi criado, a riqueza que num passado não tão distante, no local se manifestou.

Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notoriar atas, porque essas operações não são naturais. É por isso a defesa, pelas minorias, de uma memória refugiada sobre focos privilegiados e enciumadamente guardados nada mais faz do que levar à incandescência a verdade de todos os lugares de memória. Sem vigilância comemorativa, a história depressa os varreria.49

O Largo da Banana atesta a afirmação de que um lugar de memória é dependente da “vontade de memória”, de transferir os locais espacialmente do tempo em que pertencem, fossilizados, caso contrário “a história depressa os varreria”, como de fato ocorreu.

Fica nítida no bairro a Memória em sua mais pulsante forma, “aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas,

49 Pierre Nora, “Entre memória e história, a problemática dos lugares” em Projeto História: Revista do

Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP (São Paulo, nº 10, dezembro de 1993).

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vulnerável a todos os usos e manipulações, suscetível de longas latências e de repentinas revitalizações”.50

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho procurou apontar a relevância do local para a síntese do que podemos chamar um samba propriamente paulistano, e, além disso, suas cruas características como pertencente à uma Memória. Procurando subverter a, no mínimo precipitada frase do célebre Vinícius de Moraes: “São Paulo é o túmulo do samba”, as pesquisas somente conduziram à reiteração da afirmação, dando, porém nova interpretação à ela. São Paulo é sim o túmulo do samba, mas não pelo fato de a manifestação do batuque não se dar em território paulista, ou ser cá mal representado, mas porque sepulta aquele samba, de raízes rurais, considerado seu fruto mais legítimo.

O local considerado consensualmente um de seus mais ricos berços, hoje amarga esquecimento mesmo na memória dos mais antigos, não restam menores esboços do que possa ter sido o lugar na atual paisagem. Isso porque as marcas que este deixou se dão num nível que trespassa o material, suas heranças são quase que puramente imateriais. O Largo é aquilo que acontecia.

Numa cidade dirigida por interesses elitistas baseados num modelo de civilização europeu, o samba marginalizado de São Paulo foi duramente reprimido enquanto manifestação da cultura negra, e seus espaços foram destruídos lentamente, sem deixar quaisquer resquícios. Com o passar do tempo, por influências do samba do Rio de Janeiro e incompetência da administração da cidade, além do descuido dos agentes produtores do samba em melhor conservar aquilo que é seu, proteger de influências

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externas de indivíduos que não estão inseridos no universo dessa produção, esse samba foi extinto.

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BIBLIOGRAFIA

Textos

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Conteúdo audiovisual

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Obras de apoio

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MORAES, José Geraldo Vinci de. Metrópole em sinfonia: história, cultura e música na São Paulo dos anos 30. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.

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Referências

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