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Neiburg et al 2001 Dossiê Norbert Elias

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Academic year: 2021

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Norbert Elias (1897-1990^ x

í 94043

de reconhecida ilar, para as ciên-o às suas pciên-ostu- postu-am a importância importância para as cienc

cias sociais, apesar das c lações. Contudo, essas çoi de sua contribuição teórica.

Este livro-dossiê é uma homenagem a Norbert Elias em comemoração ao seu centenário de nascimento. Seus autores buscam responder às questões polêmicas e aos desafios lançados por Elias às ciências sociais, ao mesmo tempo que analisam, sob diferentes pontos de vista, a abrangência, o significado e a importância de sua contribuição teórica para as ciências humanas e, de modo particular, para as ciên-cias sociais. Destacam a riqueza de sua abordagem multidísciplinar e os aspectos inovadores de seu aparato conceituai e analítico, utili-zando-os para estabelecer uma aproximação com Mareei Mauss, polemizar posições com Max Weber e apontar semelhanças com Georg Sirnmel. 9 788531 404962

Federico Neiburg

Heloísa Pontes

Jessé Souza

Leopoldo Waizbort (org.)

Sérgio Miceli

Norbert Elias

|edusP

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Este livro-dossiê é um tributo ao sociólogo Norbert Elias, pelo cen-tenário de seu nascimento, em 1997. Os autores analisam, sob diferentes ângulos, a abrangência de sua con-tribuição teórica, conceituai e analí-tica para as ciências humanas e, em particular, para as ciências sociais, com sua fascinante abordagem mul-tidiscíplinar.

Heloísa Pontes focaliza a pers-pectiva analítica de Elias e sua con-tribuição para a antropologia, esta-belecendo um paralelo com Mauss; destaca seu papel na construção da sociologia da vida intelectual e na revisão da tradicional dualidade nas ciências sociais, a dualidade entre as dimensões micro e macro.

Federico Neiburg analisa a impor-tância de Elias na elaboração de uma teoria sociologicamente posi-tiva da violência política nas socie-dades nacionais modernas e enfatiza sua constante preocupação com os problemas de conceituação. Jessé de Souza polemiza Elias com Weber no aspecto que

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Dossiê Norbert Elias

ESP

|edusP

Presidente Comissão Editorial

Diretora Edil f ria l Diretora Comercial Diretor Administrativo Edilor-Assisteiue

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FEDERICO NEIBURG

HELOÍSA PONTES

JESSÉ SOUZA

LEOPOLDO WAIZBORT (ORG.)

SÉRGIO MICEU

Reitor Jacques Marcovilch

Vice-reitor Adolpho José Melfi

EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Plínio Martins Filho (Pro-tcmpore) Plínio Martins Filho (Presidente) José Mindlin

Laura de Mello e Souza Murillo Marx

Oswaldo Paulo Foraltini

Silvana Biral Eliana Urabayaslii Renato Calbucci

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Copyright © 1999 by autores l" edição 1999

2a edição 2001

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Dossiê Norbert Elias / Federico Neiburg... [et ai.]; Leopoldo Waizbort (org.). - 2. ed. - São Paulo : Editora da Universi-dade de São Paulo, 2001.

Outros autores: Heloísa Pontes, Jessé Souza, Sérgio Miceli Bibliografia.

ISBN: 85-314-0496-7

1. Ciências humanas 2. Ciências sociais 3. Elias, Norbert, 1897-1990 4. Sociologia I. Neiburg, Federico. II. Pontes, Heloísa. III. Souza, Jessé. IV. Miceli, Sérgio, 1945-V. Waizbort, Leopoldo.

98-5811 CDD-300

índice para catálogo sistemático: 1. Ciências sociais 300

Direitos reservados à

Edusp - Editora da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, Travessa J, 374

6° andar - Ed. da Antiga Reitoria - Cidade Universitária 05508-900 - São Paulo - SP - Brasil Fax (Oxxl1) 3818-4151 Tel. (Oxxl 1)3818-4008/3818-4150

www.usp.br/edusp - e-mail: edusp@edu.usp.br

Impresso no Brasil 2001 Foi feito o depósito legal

S U M Á R I O

Dossi§ Norbert Elias

3/D724/2. ed.

(194043/04)

Apresentação 09

Elias, renovador da ciência social

Heloísa Pontes 17

O naciocentrismo das ciências sociais e as formas de conceituar

a violência política e os processos de politização da vida social

Federico Neiburg 37

Elias, Weber e a singularidade cultural brasileira

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D O S S l ê N G R B E R T E L I A S

Eli;is e Simmel

Leopoldo Wnizbort 89

Norbcrt Elias e a questão da determinação . ; _

4 v

. . APRESENTAÇÃO

Sérgio Micelí 113 f

i

Bibliografia geral 129 LEOPOLDO WA1ZBORT

Cronologia 137 t Escritos de Norbert Elias 14]

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t m 1997, o centenário de nascimento de Norbert Elias (1897-1990) deu lugar a uma série de eventos e publica-ções comemorativos. Este dossiê se insere, modestamente, naquele amplo círculo, querendo conjugar duas intenções. Em primeiro lugar, eíe homenageia o sociólogo judeu-ale-mão no centenário de seu nascimento. "Sociólogo", ju-deu" e "alemão" são, inclusive, pontos de abordagem privi-legiados para se compreender a trajetória pessoal, intelec-tual e institucional do autor e sua obra (cf. ELIAS, 1991a). Além disso, eles apontam para o leque de formulações

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Entretanto, não se trata de simples homenagem lau-datória. Trata-se, antes, de tentar avaliar diferentes dimen-sões da obra de Elias, abordar seu amplo leque de interes-ses, as diversas possibilidades de desdobramento das suas contribuições e, ainda, de começar a compreender as li-nhas e a história de sua recepção, inclusive no Brasil.

O dossiê não apresenta um recorte temático, conceituai ou analítico definido, por amplo que seja, porque alme-ja abordar Elias de perspectivas variadas, dando notícia, inclusive, de diferentes vertentes de aproximação de sua obra e, assim, da própria história de sua recepção por aqui. Não há dúvida de que se trata de uma recepção relativa-mente recente; por essa razão não há sentido em propor uma delimitação temática clara, quando o grau de espe-cialização e diferenciação na abordagem da obra ainda é incipiente. É cedo para um balanço mais genérico da re-cepção e incorporação de Elias entre nós; mas é tempo oportuno para demarcar alguns aspectos dessa recepção, apontando ao mesmo tempo para as possibilidades latentes de abordagem e reflexão.

Disto resulta que o ponto aglutinador do dossiê é a contribuição de Elias como um todo, vista contudo sob o prisma de abordagens específicas que demarcam, a seu modo, vertentes de sua recepção e incorporação entre nós. De tais aproximações, o que se almeja são vias de acesso a seus postulados mais amplos, suas análises específicas, sua

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concepção de sociologia e das relações entre as "ciências humanas", suas premissas, sua gênese histórica, seus de-senvolvimentos, seus impasses e limites.

A importância de Elias para as ciências humanas, e para as ciências sociais em particular, é cada vez mais re-conhecida, embora não livre de fortes e polêmicas obje-çÕes. Entretanto, tais objeções são, elas mesmas, sintoma de um reconhecimento da obra de Elias. O sociólogo ale-mão em constante exílio reivindica de maneira enfática uma ciência dos homens que incorpore não só a tríplice repartição das nossas ciências sociais, mas também que abrace disciplinas afins como a psicologia (psicanálise in-clusive), economia, filosofia, lingüística, história, teoria li-terária. Disso resulta a abordagem interdisciplinar que fas-cina cada vez mais seus leitores.

A relevância da "sociologia" de Elias se revela no apa-rato temático e conceituai que ela oferece. Um modelo ge-ral para abordagens de processos de longa e longuíssima duração; a defesa intransigente de uma teoria dos proces-sos, entrelaçada com uma teoria das figurações, apresen-tando uma nova e rica abordagem de estática e dinâmica como categorias sociológicas; a percepção desperta para os microfenômenos, conjugando assim, de maneira sempre inventiva, perspectivas micro e macrossociológicas; a ror-mulação do conceito de sociogênese, reelaborando a idéia de estruturas de personalidade e entrelaçando-a, em uma

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relação de dependência mútua, à sociogênese, que por sua vez fornece um quadro geral para a abordagem do Estado moderno como processo e, ainda, da questão do poder, das relações de poder e dos equilíbrios de poder; a formu-lação da idéia dos "modelos", como modelos de jogo e for-mas de jogo; a retomada da relação, clássica nos domínios das ciências sociais, de indivíduo e sociedade; a ênfase, historicamente fiindante, na relação entre sociologia e di-agnóstico da época e a própria concepção da sociologia como "caçadora de mitos": rodos esses aspectos (dentre outros, que não enumero para não sobrecarregar o leitor) nos mostram a importância indiscutível e a vitalidade dos enfoques de Norbert Elias.

Vale a pena ainda lembrar a progressiva publicação de suas obras entre nós, nos últimos dez anos. O Processo

Civilizador, A Sociedade da Corte, Humana Conditio, A Sociedade dos Indivíduos, Mozart, Teoria Simbólica, Os Ale-mães, A Busca da Excitação (ELIAS, 1990a; 1974; 1991c;

1993; 1995; 199Id; 1996; ELIAS & DUNNING, 1992) são todos livros que já podem ser lidos em português. Isto torna Elias cada vez mais acessível aos alunos de gradua-ção e pós-graduagradua-ção. Ele vai sendo mais e mais incorpo-rado aos cursos, dissertações, teses e publicações científi-cas, tornando-se uma referência na análise sociológica que vai desde a discussão do lugar do Estado e das relações en-tre os Estados nacionais até os processos de violência nos

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esportes. Com isso, por um lado ele contribui para a vali-dação e valorização de campos e objetos empíricos ainda pouco explorados, assim como, por outro lado, fornece um novo enfoque para temas já usuais, porém, nessa mes-ma medida, reconfigura-os mediante umes-ma nova constru-ção do objeto.

Este Dossiê Norbert Elias reúne cinco intervenções so-bre Norbert Elias, cinco respostas às provocações que Elias lançou, e continua a lançar, às ciências sociais. Quatro dos textos aqui teunidos fizeram parte da mesa-redonda "Nor-bert Elias: 100 Anos", que ocorreu em Caxambu (MG), em 24/10/1997, no XXI Encontro Anual da Anpocs (As-sociação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciên-cias Sociais). O quinto texto foi escrito para uma outra mesa-redonda sobre Elias; mas, como havia circulado, na ocasião, entre os participantes da mesa da Anpocs, encon-trou aqui também uma possibilidade de publicação. Gos-taria de agradecer a Federico Neiburg, Heloísa Pontes, Jessé Souza e Sérgio Micelí peío engajamento na realiza-ção deste projeto em comum; à Anpocs, pela realizarealiza-ção da mesa-redonda e ao público que a assistiu e debateu conos-co na ocasião. É ensejo dos autores que o dossiê conos-contribua para o debate sobte Elias entre nós e, assim fazendo, possa cumprir seu intento de homenageá-lo.

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ELIAS, RENOVADOR DA CIÊNCIA SOCIAL

HELOÍSA PONTES

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Autor de uma obra sensacional, Norbert Elias perseguiu, ao longo de sua vida, temas variados e enfrentou desafiosD ' analíticos múltiplos. Seus livros, ao mesmo tempo em que circunscrevem objetos precisos de estudo, deixam aberto, para novas investigações, um leque instigante de proble-mas e teproble-mas. Extrapolando a agenda intelectual da socio-logia, as questões analisadas por Elias vêm sendo discuti-das e retrabalhadiscuti-das pelos psicanalistas interessados nas co-nexões da cultura com o inconsciente, pelos antropólogos que estudam as dimensões simbólicas das sociedades oci-dentais, pelos historiadores atentos às engrenagens do

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co-H E L O Í S A P O N T E S

tidiano e, principalmente, pelos pesquisadores que se de-dicam à história das idéias e à sociologia da vida intelec-tual. Os temas propostos, as fontes utilizadas e os objetos analisados por Elias não só permitem como também exi-gem essa empreitada interdisciplinar.

Com o propósito de iluminar alguns aspectos da pers-pectiva analítica desenvolvida por esse sociólogo de for-mação e, simultaneamente, ressaltar a sua contribuição para a antropologia, vou abordar, neste ensaio, três ques-tões: a primeira delas diz respeito à possibilidade de esta-belecer uma aproximação entre Elias e Mareei Mauss; a segunda refere-se à importância do trabalho de Elias para a construção da sociologia da vida intelectual; a terceira e última questão tematiza a maneira pela qual Eiias, no conjunto de sua produção, abre uma via analítica da maior importância para repensarmos a separação entre as dimen-sões micro e macro, tradicionalmente estabelecidas no campo das ciências sociais.

ELIAS E MAUSS: UMA APROXIMAÇÃO DESEJÁVEL

Dois dos mais importantes livros de Elias, A

Socieda-de da Corte e O Processo Civilizador, fazem parte Socieda-de um

projeto de pesquisa mais amplo iniciado pelo autor no período em que vivia na Alemanha, antes da ascensão de Hitler ao poder. O primeiro (publicado em alemão em

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1969, traduzido para o francês em 1974 e para o inglês em 1983) resultou de um extenso estudo desenvolvido pelo autor, nos anos de 1930, sobre a nobreza, a realeza e a sociedade de corte na França. Esse estudo quase mono-gráfico constitui, por sua vez, a base de seu outro livro, O

Processo Civilizador (publicado em alemão em 1939,

tra-duzido para o inglês em 1978 e para o francês em 1973, mas só editado aqui em 1990).

Essa referência às datas de concepção e publicação dos livros mencionados acima visa fornecer indícios mais se-guros para a aproximação proposta entre Elias e Mareei Mauss. O trabalho do antropólogo francês, "Ensaio sobre

a Dádiva", reconhecidamente de maior envergadura

ana-lítica, é de 1924. Os estudos de Elias, como vimos, inici-am-se na década de 1930. A proximidade cronológica evi-dencia, nesse caso, um enfrentamento semelhante, por parte de ambos os autores, de questões teóricas centrais, como a definição dos fenômenos sociais e a qualificação da relação indivíduo e sociedade.

Mauss renovou o campo conceituai da etnologia, atra-vés de análises comparativas sobre a magia e a troca, reali-zadas por meio de um conhecimento sólido de um vasto conjunto de dados etnográficos produzidos por outros -pois, como se sabe, ele nunca fez trabalho de campo. Elias, por sua vez, voltou-se para a análise da civilização ociden-tal, em meio a uma incursão em aspectos e processos de

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sua história. Isto é feito menos com a intenção de renovar o conhecimento historiografia) das sociedades que toma por objeto (ainda que, indiscutivelmente, este seja um dos saldos de seus trabalhos) e mais com o objetivo de circuns-crever uma série de problemas sociológicos de alcance explicativo mais geral. Digamos assim que Elias se utiliza da história para se livrar dela, ou melhor, para através dela garantir o acesso a formações sociais distintas das contem-porâneas, modeladas por processos históricos de longa duração, de forma a enfrentar questões sociológicas de ordem mais estrutural.

Elias e Mauss, apesar de formados no interior de tra-dições intelectuais distintas e de estudarem sociedades di-ferentes, perseguem objetivos comuns. Partilham com os historiadores o pressuposto de que é preciso observar o que é dado. Ora, o dado, para dizer nos termos de Mauss, "é Roma, é Atenas, é o francês médio, é o melanésio dessa ou daquela ilha, e não a prece, ou o direito em si" (MAUSS, 1974a, p. 181). O dado, como mostra Elias, em A

Socie-dade da Corte, é o aristoctata da corte, o indivíduo

mode-lado por um conjunto específico dê códigos de conduta "civilizados", tributário de uma multiplicidade de indiví-duos interdependentes. O desafio perseguido por ambos é o de integrai esses dados na recomposição do todo, de fotma a assegurar, segundo Elias, aos homens de uma for-mação social particular, como é o caso da sociedade da

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corte, "o seu caráter específico, único e diferenciado" (ELIAS, 1974, p. 234). Ou, no entender de Mauss, de for-ma a viabilizar o "princípio e o fim da sociologia: perce-ber o grupo inteiro e seu comportamento global" (MAUSS, 1974a, p. 181). Nas sociedades, como lembra Mauss, "mais do que idéias ou regras, apreendem-se homens, gru-pos e seus comportamentos" (MAUSS, 1974a, p. 181).

Atento à observação concreta da vida social e ao con-junto de suas múltiplas dimensões, Mauss procura apre-ender aquilo que lhe parece essencial: "o movimento do todo, o aspecto vivo, o instante fugidio em que a socieda-de e os homens tomam consciência sentimental socieda-deles mes-mos e de sua situação face a outrem" (MAUSS, 1974a, p. 180). Elias, por sua vez, na análise do processo civilizador em curso no Ocidente a partir do século XVI, busca re-compor "o movimento em toda a sua polifonia de muitas camadas, não como uma linha, mas como uma espécie de sucessão de motivos semelhantes, em níveis diferentes". (ELIAS, 1990a, p. 104) Se, em Mauss, o movimento do todo é visto sobretudo mediante uma teoria complexa das teciprocidades, que articulam o conjunto das relações so-ciais e permitem falar em "fato social total", em Elias a abordagem é análoga: ele busca as i n ter-relações e inter-dependências que lhe permitem, ao fim, trabalhar com um conceito de sociedade que é, de fato, uma rede de re-lações, um todo relacionai.

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Se tanto Elias como Mauss buscam enfocar o movi-mento do todo, é preciso não esquecer que essa emprei-tada apresenta dificuldades distintas em função dos ob-jetos e campos de investigação particulares estudados por eles. Feita essa ressalva, vale sublinhar que ambos perse-guem, em seus estudos, um objetivo comum: analisar a estrutura e o funcionamento dos sistemas e formações sociais investigados. Nos trabalhos de Mauss e de Elias registra-se, ainda, uma perspectiva semelhante relativa ao projeto de desvendar e simultaneamente articular o do-mínio das experiências sociais dos grupos estudados às di-mensões econômica, simbólica, política e psico-individual que os conformam.

Em seus trabalhos, Elias mostra, de maneira irrefutá-vel e intelectualmente desafiante, a existência de uma co-nexão forte entre as alterações na estrutura social e as mudanças no comportamento e nas emoções dos indiví-duos - reveladas, por exemplo, pelo avanço dos patama-res de vergonha, repugnância, controle e, principalmente, autocontrole. Daí a importância das fontes documentais que ele utiliza para analisar o processo civilizador no Oci-dente: os manuais de boas maneiras - uma fonte "menor" do ponto de vista literário, mas central para a apreensão dos processos sociais envolvidos na criação e difusão de novos modelos de comportamento e novas formas de ex-pressão dos sentimentos.

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Criados a princípio pelos membros das elites como forma de demarcar a sua diferença social, tais modelos de comportamento difundiram-se, paulatinamente, para seg-mentos cada vez mais amplos da sociedade. Novas manei-ras de se portar à mesa, de manejar o garfo, a faca, as mãos, o guardanapo; de lidar com as funções corporais, com os cheiros, a comida, a sexualidade, o escarro, o ba-nho, a sujeira; de se comportar em relação aos outros, os superiores, os inferiores, os mais próximos; de se relacio-nar com pessoas do mesmo sexo e de sexo diferente, com adultos, velhos e crianças; de expressar e controlar a agres-sividade, as emoções, os sentimentos; de se comportar, sozinho ou em companhia, no quarto, na sala e demais espaços da casa e da rua, sedimentam-se no decorrer dos séculos. Esses novos códigos de conduta, como mostra Elias, são a um só tempo indicadores e expressão do com-portamento civilizado.

Uma leitura apressada de O Processo Civilizador tal-vez o classifique sob o rótulo de história da vida cotidia-na. Os objetos selecionados no livro, a atenção concedi-da às emoções, ao corpo e aos embaraços sociais, assim como as fontes utilizadas apontam para essa classificação. Mas não se engane o leitor desavisado. O trabalho de Elias, sob muitos aspectos pioneiro no tratamento desse tipo de temática - aproximando-se, também neste caso, ao de Mauss, "As Técnicas Corporais", vale lembrar, é de

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1934 (MAUSS, 1974b) -, não se esgota nessa novidade. Sua força resulta das ligações que o autor estabelece en-tre as mudanças nos comportamentos, nos costumes e na constituição psíquica dos indivíduos, com as alterações que se verificam na estrutura social. Aí sim a novidade e o impacto intelectual do livro, que, articulando um co-nhecimento historiográflco sólido com uma perspectiva sociológica abrangente, consegue resgatar as dimensões mais estruturais do processo civilizador, em curso no Ocidente a partir do século XVI.

ELIAS E A SOCIOLOGIA DA VIDA INTELECTUAL

O rastreamento da sociogênese dos conceitos de civi-lização (formulado pela inteiligentsia francesa de classe média) e de cultura (elaborado por sua congênere alemã) constitui uma outra chave importante para a explanação do processo civilizador. Mais que uma história das idéias contidas nesses conceitos, Elias realiza nesse rastreamento uma sociologia de sua produção e de seus produtores. A análise dos segmentos intelectuais, responsáveis pela for-mulação mais sistemática desses conceitos, é feita, na pri-meira parte de O Processo Civilizador, a partir do esqua-drinhamento das relações - de proximidade, aceitação, ou recusa — que os intelectuais mantinham com os grupos de elite vinculados à sociedade da corte.

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Se, na Alemanha, a universidade constituíu-se, no sé-culo XVIII, como o centro social mais importante na dis-seminação da cultura de sua classe média, na França, foi a corte, com seu núcleo próprio de socíabílidade, que deu direção à vida mundana das elites e dos segmentos inte-lectuais burgueses que nela se incorporam.

A inteiligentsia de classe média alemã, excluída da cor-te (onde se falava francês e decidia-se a política) e de seu universo de sociabilídade, usa o livro como o meio de comunicação mais importante, pratica o alemão culto como língua escrita unificada, sistematiza o conceito de cultura e cria um estilo de vida frontalmente contrário ao das classes altas. Principal responsável pela formula-ção de um sistema de pensamento de origem acadêmi-ca, essa inteiligentsia trava "em território politicamente neutro" todas as batalhas que não podem ter lugar "no plano político e social porque as instituições e relações de poder existentes lhes negam instrumentos e mesmo alvos" (ELIAS, 1990a, p. 55). Impotente na política, "mas intelectualmente radical, forja uma tradição própria pu-ramente burguesa, divergindo radicalmente da tradição da aristocracia da corte e de seus modelos" (1990a, p. 63). Na França, ao contrário, a inteiligentsia reformista, representada entre outros pelos fisiocratas, permanece por muito tempo no contexto da tradição da corte: fala a sua língua, lê os mesmos livros, observa as mesmas normas,

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pratica a conversa "brilhante" como "arte" francesa e como um dos meios mais importantes de comunicação. Os in-tegrantes dessa intelligentsia formulam um sistema amplo de reformas sociais e políticas, que não se limitam a mu-danças no plano econômico. No entanto, não criam mo-delos opostos aos da sociedade de corte, visto que esta é a sua base social.

Os conteúdos antagônicos dos conceitos de civilização e de cultura explicam-se, então, em função da situação distinta dos estratos intelectuais de classe média na Fran-ça e na Alemanha. Suas posições diferenciadas no plano econômico, político, social e cultural encontram sua ex-pressão mais acabada na formulação desses conceitos. Como mostra Elias, eles são "instrumentos dos círculos de classe média - acima de tudo da intelligentsia de classe média - no conflito social" (1990a, p. 64).

Concebendo o social como um sistema de relações entre grupos e indivíduos interdependentes, Elias, ao mes-mo tempo em que se detém na investigação da produção e reprodução das formações sociais nas quais se inserem as intelligentsia francesa e alemã, constrói os nexos neces-sários para pensar as suas transformações internas. Rela-cionai e processual, sua análise apresenta um dos modelos mais bem-sucedidos da sociologia da vida intelectual.

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FRONTEIRAS QUESTIONÁVEIS: A SEPARAÇÃO ENTRE

EXPLICAÇÕES MICRO E MACROSSOCIOLÓGICAS

Outra dimensão central da visada analítica de Elias diz respeito à diluição das fronteiras, tradicionalmente estabe-lecidas nas ciências sociais, entre as explicações micro e macrossociológicas. Para abordar esse ponto, vou me deter no artigo que o autor publicou em 1987, três anos antes de sua morte: "The Changing Balance o f Power between the Sexes". Originalmente uma conferência feita em Bolo-nba, no ano de 1985, Elias abre a sua exposição com dois exemplos que, de forma sintética e empiricamente sugesti-va, introduzem o ouvinte (e também o leitor) na questão central de sua comunicação: a análise das repartições e das alterações na balança de poder entre os sexos.

O primeiro exemplo, retirado da experiência urbana do autor, refere-se a um casal de indianos que Elias costu-mava encontrar, esporadicamente e sem qualquer contato mais estreito, em suas caminhadas pelas ruas de Londres. O que lhe chamava particularmente a atenção eram a pos-tura corporal e a distância, estritamente observada, que a mulher mantinha em relação ao marido. Vestida de acor-do com a tradição indiana reservada às mulheres de sua posição social, ela sempre andava dois ou três passos atras de seu marido. Com voz baixa e a cabeça voltada para a frente, ele a escutava sem lhe dirigir o olhar. Apesar disso,

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na percepção de Elias, eles pareciam conversar avidamen-te um com outro. Nesses encontros casuais, filtrados pela reflexão aguda do autor, vemos a postura corporal do ca-sal de indianos, vivida por eles no registro de uma segun-da natureza, transformar-se em um emblema social. Da voz aos gestos contidos, da distância observada à conver-sação entabulada, a exposição irrefutável, para os olhos ocidentais, da repartição desigual de poder entre um ho-mem e sua mulher.

Eis o ponto: flagrar a assimetria entre os sexos nas entonações da voz, no jeito de caminhar, na forma de posicionar o corpo. Lição maussiana que, constituindo as técnicas corporais como objeto sociológico, nos fez ver o corpo como um dos espaços privilegiados de inscrição do mundo social. Atualizada na comunicação de Elias, ela serve como fio condutor para a exposição do segundo exemplo. Não mais a estranheza decorrente dos hábitos indianos e sim o costume ocidental relativo à maneira como as mulheres, no século passado, eram tratadas em público. Largamente difundido nos códigos tradicionais de conduta entre os europeus das classes altas e médias, tal costume expressava-se por meio de uma gestualidade simétrica, mas oposta, àquela executada pelo casal de in-dianos mencionado acima. Nesse caso, eram os homens que se posicionavam atrás das mulheres, para que elas, por exemplo, pudessem passar de um ambiente a outro. Eram

eles também que se curvavam para beijar-lhes as mãos, enquanto elas permaneciam eretas.

Mas o fato de que nessas situações as mulheres rece-bessem uma deferêncía corporal, destinada, de um modo geral, às pessoas de alta posição social, não significa, como mostra Elias, que elas tivessem um grande poder social. O exemplo da gestualidade "rebaixada", encenada publica-mente, no século passado, pelos homens ocidentais em seus encontros com as mulheres, nos leva, pela contramão, ao tema central de Elias. Tanto o caso indiano quanto os códigos europeus de conduta revelam uma inegável assi-metria na balança de poder entre os sexos. Mas dizer que, nos dois exemplos, essa repartição de poder recai favora-velmente sobre os homens, serve apenas para introduzir o problema. O passo seguinte de Elias será a análise crite-riosa das alterações na distribuição de poder entre homens e mulheres, em um contexto muito específico: o antigo Estado romano.

Em Roma, as mulheres, por muito tempo, foram ex-cluídas das esferas civis e militares, e tinham, como gru-po, uma posição bastante periférica em relação ao Estado. Vistas como pessoas pela metade, como seres humanos in-completos, elas nem sequer chegavam a ter nomes pró-prios. Eram identificadas apenas pelo sobrenome de suas famílias. Além disso, não tinham direiro e acesso à pro-priedade. Elas próprias eram uma espécie de propriedade

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dos homens de suas famílias ou de seus maridos. Assim sendo, não podiam divorciar-se por iniciativa própria, ao contrário de seus maridos, que podiam pleitear o divórcio quando quisessem, por motivos os mais diversos, entre eles, o fato de suas mulheres beberem vinho. Nesse perío-do, o casamento era ainda um negócio entre famílias e clãs e não uma instituição regulamentada pelo Estado.

Dito isso, vejamos como Elias irá problematizar as al-terações na balança de poder entre os sexos. Como ocorre-ram essas mudanças, quais as suas causas imediatas e quais as suas conseqüências a longo prazo? Tais mudanças são, acima de tudo, o resultado do acesso que as mulheres das classes altas romanas passaram a ter a uma parte da propri-edade de suas famílias de origem. Não por uma generosi-dade de seus parentes masculinos (pais e irmãos), ressalte-se, e sim em razão do enriquecimento de suas famílias, oriundas da oligarquia aristocrática. Graças às guerras bem-sucedidas, os membros masculinos dessas famílias torna-ram-se ricos o suficiente para deixarem às suas filhas e ir-mãs o controle e o acesso a uma parte de suas propriedades. Essa situação modificou a condição das mulheres e seu

status social. E mais: produziu novas formas de

relaciona-mento entre os sexos e uma nova sensibilidade amorosa, revelada, por exemplo, nos poemas de Catulo - o maior poeta lírico da República romana, nascido em Verona en-tre 87 e 84 e morto enen-tre 57 e 54 a.C.

32

E L I A S , R E N O V A D O R D A C I Ê N C I A S O C I A L

Autor de uma das mais belas poesias eróticas da lite-ratura ocidental, Catulo, na sua juventude, apaixonou-se por Clódia. Além de casada, mais velha, mais elegante e mais experiente do que ele, Clódia pertencia a uma das famílias mais aristocráticas de Roma. Catulo, ao contrá-rio, descendia de uma família de classe média provincia-na. Entre os vários poemas de amor que ele endereçou a Clódia, encontramos um verso que se tornou célebre:

Odeio e amo. Talvez queiras saber "como?" Não sei. Só sei que sinto e crucifico-me.

[CATULO, 1996, p. 150.]

Pela primeira vez na literatura ocidental, é talvez na vida de um homem, foram dadas voz e expressão à ambi-valência dos sentimentos que envolvem a experiência amorosa.

Lonee de ser um caso único, como mostra Elias, rela-o cionamentos como os de Catulo e Clódia (um poeta talen-toso, jovem e socialmente inferior e uma mulher mais ve-lha e socialmente superior) sinalizam uma mudança signi-ficativa na repartição de poder entre os sexos e na forma de expressão dos sentimentos amorosos. Uma maior igualda-de entre homens e mulheres - das classes altas, é bom frisar - desencadeia novas formas de controle e autocontrole nas relações conjugais. O fator decisivo para essa alteração e para a maior independência das mulheres assentava-se,

(19)

H E L O Í S A P O N T E S

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J t K !

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como vimos, no fato de que elas passaram a ter acesso a uma parte da propriedade de suas famílias de origem.

Revelada a nova condição social das mulheres e as al-terações que estavam ocorrendo na balança de poder en-tre os sexos, Elias mostra que o entendimento dessa situa-ção é inseparável da análise das mudanças nas relações de interdependência entte os grupos de elite e na estrutura do Estado romano — expressas, por exemplo, pela criação de instituições legais mais imparciais e efetivas, e pelo gradu-al monopólio da força física por parte do Estado. Nesse contexto, o casamento deixou de ser um assunto de famí-lia para se tornar cada vez mais uma associação voluntária entre um homem e uma mulher. Por essa razão, podia ser desfeito a partir da vontade de cada um dos cônjuges. Essa alteração nos costumes foi com o tempo regulamentada juridicamente, através da lei romana que forneceu diver-sas formas para a viabilização do divórcio.

No entanto, com a ascensão do cristianismo, a perda do monopólio da força física por parte do Estado e a con-seqüente desagregação do Império Romano, uma nova e cada vez mais assimétrica repartição de poder entre os se-xos irá se configurar. Neste caso, e por muitos séculos, em favor inegável dos homens.

A análise das alterações na balança de poder entre os sexos, feita por Elias a partir de um objeto empírico situa-do na Antigüidade, reforça aquilo que ele havia

demons-E L I A S , R demons-E N O V A D O R DA C I Ê N C I A S O C I A L

trado magistralmente ao longo de seus trabalhos de maior fôlego — como O Processo Civilizador e A Sociedade da

Corte, por exemplo, comentados no decorrer deste artigo.

A saber: a insuficiência dos modelos explicativos que se-param de maneira rígida as dimensões micro e macrosso-ciológicas. Por meio do esquadrinhamento dos nexos ana-líticos que conformam e entrelaçam essas duas dimensões, Elias mostra, de maneira cabal, a insuficiência dessas fron-teiras. Sua obra é a prova eloqüente de que as dimensões micro e macro, face e contraface de um mesmo processo social, só podem ser entendidas de forma relacionai.

Por essa razão, é possível afirmar sem hesitação que Elias, sociólogo de formação, mais do que muitos antro-pólogos de carteirinha, contribuiu decisivamente para consolidar a importância da dimensão simbólica e do sig-nificado na análise dos fenômenos sociais e culturais. Sua obra, estrela da mesma grandeza que a de Mareei Mauss, deveria, portanto, ser mais estudada nos inúmeros cursos que nós, antropólogos, dedicamos à história e às teorias da nossa disciplina. O fato de os livros de Elias serem, de um modo geral, incluídos apenas nos cursos optativos de antropologia não sinaliza ainda a manutenção desse pre-cário sistema classificatório que divide as fronteiras entre a sociologia e a antropologia de forma às vezes bem pou-co instigante do ponto de vista intelectual.

35

(20)

O NACIOCENTRISMO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E AS

FORMAS DE CONCEITUAR A VIOLÊNCIA POLÍTICA E

os PROCESSOS DE POLITIZAÇÃO DA VIDA SOCIAL*

FEDERICO NEIBURG

Texto apresentado na mesa-redonda "Norbert Elias: 100 Anos", cit. O con-teúdo deste texto deve muito ao diálogo que mantive com Lygia Sigaud du-rante o segundo semestre de 1997, quando tivemos a oportunidade de mi-nistrar juntos um curso sobre Norbert Elias, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ. Também se beneficiou do intenso diálogo com Leopoldo Waizbort.

(21)

í1' l •

U objetivo deste texto é mostrar a contribuição singular dos trabalhos de Norbert Elias para a elaboração de uma pers-pectiva sociologicamente positiva da violência política nas sociedades nacionais modernas. Utilizando categorias cor-rentes na sociologia alemã do primeiro quarto deste século

(i, e., entre aqueles que foram mestres de Elias), proponho

uma discussão em duas dimensões, que podemos chamar de empírica (ou histórica) e metateórica (ou teorética). Su-giro, igualmente, uma leitura sobre a natureza das relações entre essas duas dimensões na sociologia histórica de Elias, que é sempre, e ao mesmo tempo, teórica e empírica.

(22)

F E O E R I C O N E I B U R G

Em primeiro lugar, destaco a produtividade de algu-mas das noções utilizadas por Elias para entender procsos de politízação violenta da vida social. A partir do es-tudo de casos historicamente situados (especialmente os trabalhos de Elias sobre a Alemanha), busco extrair algu-mas indicações de validade mais geral que possam servir como instrumentos ou princípios para a compreensão de outros processos empíricos. Em particular, interessa-me mostrar a produtividade de duas teorias utilizadas por Elias: sua formulação de uma teoria do poder, a partir da análise da configuração de relações entre grupos

establi-shedç, outsiáers; e a teoria do double-bind, que serve para

estudar os mecanismos de legitimação do uso da força (a representação de "inimigos" que, no limite, devem ser morros) e, também, a constituição de identidades indivi-duais e grupais em processos de uso crescente da força.

Em segundo lugar, procuro sublinhar a constante pre-ocupação de Elias com os problemas de conceituação em ciências sociais: a crítica a noções que, dado seu conteúdo mais normativo que descritivo, são um obstáculo à com-preensão sociológica. Nesse sentido, em Elias - da mesma forma que em Weber, por exemplo -, as preocupações metateóricas são também empíricas: a crítica à capacidade compreensiva de alguns conceitos é inseparável do estudo de sua gênese, pois há uma relação constitutiva entre o sen-tido dos conceitos e os mundos sociais nos quais eles foram

40

O N A C 1 0 C E N T R I S M O O A S C i Ê N C I A S S O C I A I S . . .

concebidos — nos quais eles adquiriram os conteúdos que o sociólogo procura, ao mesmo tempo, entender e criticar.

Creio que a compreensão das formas violentas de fa-zer política sugerida por Elias permite observar a impor-tância que a dimensão metateórica tem em seus trabalhos, pois essa compreensão está acompanhada por uma crítica às perspectivas mais comuns em ciências sociais que se li-mitam a conceituar a violência como algo oposto à pacifi-cação, sempre associada à anomia ou à a-normalidade. São formas de conceituar a violência de maneira sociologica-mente negativa: em um caso, como o pólo negativo de um

continuum evolutivo ao qual se opõem os estados de paz;

em outro, como o pólo negativo de um contraste socioló-gico no qual a violência pressupõe uma situação de má integração ou de desintegração, oposta a sistemas sociais supostamente bem integrados. Ao contrário, uma com-preensão sociologicamente positiva da violência política exige criticar essas polaridades. Para avançar nessa crítica, como em outros capítulos da sua obra, Elias encontra-se com a melhor tradição da ciência social alemã, especifica-mente, com as análises de Simmel sobre o conflito, e com a sociologia histórica e comparada da dinâmica do mun-do religioso e de suas tensões, realizada por Weber .

l. Especificamente, refiro-me às formules simmeÜanas sobre a produtividade das relações de conflito e a necessidade de analisá-las na sua positividade

(23)

F E D E R I C O N E I B U R G

Esta mesa-redonda é uma homenagem a Norbert Elias e, como em toda homenagem, corre-se o risco de reduzi-la a um exercício exegético. Este não é o sentido da minha participação, nem das intervenções de outros cole-gas. Há pelo menos duas formas de relação com a trajetó-ria e a obra dos protagonistas da histótrajetó-ria das disciplinas sociais que são muito mais interessantes que a exegética. Uma é a da sociologia histórica da produção intelectual, que relaciona o conteúdo das teorias com as biografias sociais dos seus produtores, a partir do pressuposto que ambos (teorias e produtores) fazem parte de mundos so-ciais que podem ser analisados como outros quaisquer. A segunda (que sugiro na minha exposição) é uma aproxi-mação instrumental, que parte da suposição de que, em ciências sociais, é possível obter lições úteis e descobrir no-vas possibilidades de compreensão, quando aplicamos a alguns universos empíricos os princípios de compreensão que foram utilizados em relação a outros.

Entretanto, o meu interesse ao focalizar o potencial dos trabalhos de Elias para entender as formas violentas de fazer política tem, também, uma dimensão polêmica, pois se opõe às leituras que englobam a sua perspectiva sob o anátema do "evolucionismo" ou que, em termos

(SlMMEL, 1955), e às análises weberianas sobre os processos de constituição de identidades individuais e grupais nas relações conflituosas e concorrenciais en-tre profetas, magos, sacerdotes e congregações religiosas (p. ex.,WKUKl(, 1964).

42

O N A C I O C E N T R I S M O D A S C I Ê N C I A S S O C I A I S . . .

mais gerais, lêem nos seus trabalhos uma filosofia da his-tória. Acredito não ser difícil mostrar que essas leituras desqualificado rãs se baseiam em modelos teóricos que, eles

mesmos, têm uma enorme dificuldade para conceituar

como processos sociais de uma forma que não seja nor-mativa nem teleológica2.

O próprio Elias oferece a chave para a compreensão crítica dessa dificuldade quando se refere à relação entre a gênese do mundo de Estados nacionais e a "redução" ao presente das categorias utilizadas pela sociologia - um efeito nas ciências sociais do que ele identificou como sen-do uma orientação "intelectual naciocêntrica", que está presente em boa parte das ciências sociais3. Creio ser pos-sível pensar que o nacíocentrismo é um obstáculo que as ciências sociais têm de superar para poder compreender de forma sociologicamente positiva a violência e, em especial, a utilização da violência para fazer política.

Violência é uma palavra carregada de conteúdos

nega-tivos. Na linguagem ordinária, jornalística ou jurídica, a

2. Algumas das mais influentes referências d es q u ali ficado ias da perspectiva de Elias sobre as relações entre violência e formação dos Estados nacionais po-dem ser lidas em GIDDENS (1987, p. 195} e BAUMAN (1991, pp. 12 ess.). No mundo francês, referências semelhantes podem ser encontradas, por exemplo, em um debate recente sobre Elias, publicado em um número especial do

Cahiers Intemationaux de Sociologie (BimcuiÈKli et alii, 1995).

3. Cf., p. ex., a referência a uma "orientação intelectual centrada na nação", ern ELIAS, I989b, pp. 26-27.

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F E D E R 1 C O N E I B U R G

qualificação de um ato como sendo violento comporta uma condenação — sendo que a ausência de uma reflexão siste-mática sobre o sentido da palavra violência é responsável pela formulação de objetos de reflexão por parte das ciên-cias sociais que também estão carregados de valores negati-vos. Diante desse problema, e antes de continuar, cabe um esclarecimento terminológico: assim como Elias, entendo por violência a utilização da força física na regulação das relações sociais, e por violência política o uso da força em situações públicas (diferente, por exemplo, das situações domésticas), e em relações que são entendidas pelos pró-prios agentes sociais envolvidos como tendo algo a ver com o mundo da política (ELIAS, 1996). Dessa perspectiva -coerente, aliás, com uma visão "antropológica" da política que, espero, ficará mais clara no decorrer da exposição —, mundos sociais politizados são aqueles nos quais os indiví-duos tendem a conceber seus problemas e relações em ter-mos "políticos", mundos sociais nos quais "a política" não só envolve relações jurídicas, mas também valores morais4.

4. Ainda que Elias reconheça haver diversas implicações do uso da força física no mundo doméstico e no mundo público, dificilmente se encontrará em sua obra alguma definição teórica de violência política, já que a identificação dos atributos do mundo doméstico e do mundo publico ou político envolve uma questão empírica em que é fundamental considerar o ponto de vista dos agen-tes sociais que deles participam. A exposição mais econômica e densa de Elias sobre as relações entre civilização e violência, e sobre as formas violentas de fazer política, pode ser verificada em ElJAS (1996, pp.

171-203)-44

O N A C 1 0 C E N T F I I S M O D A S C I Ê N C I A S S O C I A I S . . .

A constatação da afinidade entre o processo de consti-tuição dos modernos Estados nacionais e a gênese das ci-ências sociais é quase um lugar comum na literatura5.

Sobressai, no entanto, a pouca atenção que tem merecido o exame de algumas dimensões e conseqüências dessa afi-nidade. Ao oferecer meios para conceituar a sociedade e a cultura, as ciências sociais contribuíram para a construção de um mundo social e cultural - feito de nações e de rela-ções internacionais — no qual elas passaram a existir. Ge-neralizando a sugestão de Elias, pode-se descrever como

naciocèntricas as teorias da cultura ou da sociedade que

têm no seu horizonte, ao mesmo tempo, uma ambição descritiva e prescritiva em relação a ideais de boa cultura e de boa sociedade que, de uma forma ou de outra, se refe-rem sempre a sociedades ou a culturas nacionais6.

Ao mesmo tempo que Elias criticou o estahlishmentso-ciológico consolidado depois da Segunda Guerra Mundial (em torno de figuras como Parsons, por exemplo), por sua inépcia para conceituar processos7, ele mostrou como essa

5. Além da grande quantidade de referências a processos específicos, a descrição dessa afinidade pode ser reconhecida de Durkheim a Weber, e, de formas di-ferentes e mais ou menos explícitas, de FoucAUiT f 1966) a HOIÍSBAWM (1991). 6. O naciocentrismo pode ser considerado como sendo uma forma particular do que DULIKHEIM & MAUSS (1969, p. 87) denominaram sociocentrismo -com a finalidade de designar a relação entre as categorias constitutivas de qualquer sistema de classificação, ou cosmologia, e as condições sociais de sua produção. 7. A intenção de explicar a preponderância dos modelos

(25)

estrutural-funciona-F E D E R I C O N E Í B U R G O N A C I O C E N T R I S M O D A S C I Ê N C I A S S O C I A I S - - .

f l

incapacidade pode também ser compreendida sociologica-mente, pois ela exprime uma dimensão do processo tório: as transformações dos conteúdos das palavras

civiliza-ção na França e cultura na Alemanha mostram, justamente,

como essas noções, que algumas vezes serviram para descre-ver mudanças, gradativãmente passaram a retratar mundos estáticos - restringindo o seu conteúdo a uma referência a "Estados" (c£ ELIAS, 1989a, cap. 1; 1991b; 1996; 1997). Uma vez que as nações se transformaram na única forma de organização das comunidades políticas no plano global — especialmente, depois da Primeira Guerra Mundial e da fundação da Liga das Nações -, os ideais de boa sociedade, dizia Elias, passaram a se situar no presente. Afins com esse movimento são as formas de conceituar a sociedade e a cul-tura que supõem homogeneidade, equilíbrio e estaticidade (ver, p. ex., ELIAS, 1987b; 1991b, pp. 133-146).

Para os intelectuais ilustrados e humanistas do século XVIII, como Voltaire ou Kant, as palavras civilização e

cultura eram formas de autopercepção (em termos de

Elias: we-images e we-ideals] de grupos sociais em

ascen-listas nas ciências sociais era, para Elias, uma forma de compreender por que a sua própria perspectiva genética sobre o social foi quase desconhecida por historiadores e sociólogos durante mais de trinca anos. Como se sabe, O

Pro-cesso Civilizador foi editado pela primeira vez em 1939; o texto no qual Elias

faz menção aos efeitos da "orientação intelectual naciocêntrica"

("rtaliozen-trischen Denkorienttenmg} era o prólogo à 2' edição, publicada em

Frank-furt, em 1968.

46

são: as classes médias intelectualizadas que opunham os valores da cultura aos títulos de nobreza, a crença no pro-gresso e no desenvolvimento da razão à etiqueta cortesa. Um século mais tarde, esses grupos sociais faziam parte do

establishment dos novos Estados nacionais, as formas de

autopercepção das classes médias intelectualizadas tinham se nacionalizado (designavam agora ive-ideals e we-images de grupos sociais de urna escala maior), os conteúdos das palavras cultura e civilização tinham-se estatizaão — no duplo sentido de negar o movimento e de estar referidos às comunidades com base territorial e fronteiras políticas que chamamos Estados. A referência a processos de civili-zação e de cultivação foi substituída pela ênfase nas dife-renças entre as nações; o termo civilização passou a dis-tinguir o mundo ocidental de nações e de relações entre nações de toda uma outra forma de organização social; o termo cultura começou a ser utilizado no plural, para de-signar as unidades delimitadas e diferenciadas que se autodefinem como culturas nacionais — cultura passou a ser sinônimo de "ser" ou de "caráter nacional" .

O processo de nacionalização e de estatização dos con-ceitos de civilização e cultura tem conseqüências mais

Para um comentário a respeito da originalidade da visão de Elias com relação aos estudos antropológicos sobre caráter nacional (e, em geral, sobre a socio-logia c a antroposocio-logia das culturas c identidades nacionais), ver NKIBURG oi GOLDMAN (1998).

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F E D E R I C O N E J B U R G

amplas nas ciências sociais: ele sugere que todos os con-ceitos (como sociedade ou identidade, por exemplo) que designam unidades sociais (e unidades de análise) defini-das a partir da existência de fronteiras territoriais têm con-teúdo estatizante e naciocêntrico — pois eles contêm, e descrevem, ideais de homogeneidade e de equilíbrio que legitimam a existência de um mundo que se representa como pacificado, integrado e dividido em unidades com fronteiras bem delimitadas.

A análise do processo civilizatório permite compreen-der a gênese de uma configuração social, de uma econo-mia psíquica e, também, dos ideais nos quais elas se legi-timam. Por um lado, a monopolização do uso legítimo da força física pelos Estados e a interiorização das coações sociais nas consciências individuais; por outro, a formula-ção de ideais que descrevem uma forma correta de com-portamento individual e de sociabilidade, e que enunci-am os princípios de legitimação de uma ordem social.

Nesse processo — que é o da gênese dos Estados nacio-nais modernos —, o mundo social se politiza, a parlamen-tarização garante a pacificação das relações intra-estatais, e a "díplomatização", a pacificação das relações interesta-tais9. Ao mesmo tempo, constitui-se uma teoria (ou

vári-9. A advertência de Elias, no sentido de que é no plano interestatal que é maior a persistência dos códigos guerreiros, deve estar acompanhada da relativização

O N A C I O C E N T R I S M O D A S C I Ê N C I A S S O C Í A I S . . .

as teorias, que conformam o que um antropólogo poderia reconhecer como uma mesma "cosmologia") na qual a boa sociedade é sinônimo de sociedade política, e a política é o contrário da guerra — uma forma pacífica e racional de regular as diferenças e as relações sociais10.

Essa imagem da boa sociedade, como se sabe, reco-nhece formulações célebres na tradição da filosofia políti-ca que remonta a Hobbes; é também o ideal que identifi-ca Weber na figura e na profissão do político e nas identifi- carac-terísticas da burocracia racional; é o mesmo ideal ao qual se refere Habermas quando estuda a gênese da moderna esfera pública burguesa". Segundo esse ideal, a sociedade política opõe-se ao estado de natureza: em termos

evolu-da própria separação entre os planos inter e intra-estatais: o que hoje (ou para uns) é uma questão interna, em um outro momento (ou paia outros) pode ser uma questão externa. Considerar essa relatividade é importante para não substancializar a diferença entre, por exemplo, o que é tido como sendo uma guerra civil e uma guerra entre nações — uma questáo-chave na compreensão da relação enrre violência política e nacionalismo.

10. Elias mostrou o desenvolvimento dessa dimensão parlamentarizadorã do pro-cesso civilizatório, especialmente, em relação às particularidades do caso in-glês (cf., p. ex., EÜAS, 1992, p p - 4 1 ess.).

11. Enquanto em Weber o estudo dos atributos do ripo racional-b u roerá tico im-plica, fundamentalmente, uma descrição sociológica e distanciada desse ideal (a respeito do qual o próprio Weber tinha sentimentos pelo menos contradi-tórios), em Habermas, ao contrário, há uma mistura entre a descrição da gê-nese histórica da esfera pública {na primeira parte do seu livro) e sua intenção de utilizar a história para construir uma fundamentação desse ideal que possa t« uma validade geral (na segunda parte) (cf. HAHKRMA5, 1984). Uma leitura

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F E D E R 1 C O N E l B U f t G

tivos, a política substitui a violência, as guerras são obser-vadas como momentos extraordinários, as sociedades que praticam a vendetta ou a vingança de sangue são vistas como transicionais ou imperfeitas; o Estado moderno bem constituído monopoliza o uso legítimo da força, a di-plomacia garante a paz, o sistema representativo de parti-dos é o mecanismo peío qual os cidadãos resolvem suas diferenças, escolhendo racionalmente, por meio do voto, os profissionais da política que estarão encarregados de tratar dos assuntos definidos como de interesse público.

Essa representação mistura um argumento ético com um argumento historiográfico: a política violenta é uma má política que merece ser condenada; toda forma violen-ta de marcar diferenças e de regular os conflitos sociais deve ser considerada como um sintoma de atraso, de doença social ou de anomia. Seguindo as sugestões de Elias, creio que se pode comprovar como essa combina-ção entre argumentos normativos e descritivos tem sido responsável pelas dificuldades que as ciências sociais têm tido para produzir uma visão compreensiva do uso da for-ça física no mundo da política12.

12. E importante esclarecer que a concepção da política como sinônimo de boa sociedade não tem nada de homogêneo e consensual. Ao contrário, como de-monstram alguns trabalhos antropológicos sobre os sentidos da política {esp. PALMEIRA &: HEREDIA, noprefy, pode acontecer que ela seja um sinônimo de divisão e de conflito, alguma coisa que tem de ser delimitada a momentos

ex-50

C N A C I O C E N T R I S M O D A S C I Ê N C I A S S O C I A I S . . .

A gênese do mundo dividido em unidades sociais de base territorial, separadas por fronteiras políticas, que cha-mamos Estados nacionais, é paralela à gênese dos valores e ideais que legitimam esse mundo — os valores da diplo-macia e da "boa política", associados à existência de parti-dos e parlamentos. O processo civilizatórío implica, ao mesmo tempo, uma progressiva pacificação do mundo social, produto da monopolização do uso legítimo da for-ça física pelos Estados, e a consagração da paz como um valor positivo. No entanto, como fica claro na obra de Elias, a pacificação não é um processo unidírecional, mui-to menos a paz, um valor absolumui-to.

Por um lado, a violência é constitutiva do próprio pro-cesso civilizatório; os valores da paz se impõem pela força; as guerras são meios para definir e redefinir fronteiras so-ciais; a consagração de certos aspectos em detrimento de outros como os verdadeiros traços do "caráter" de uma nação (uma forma lingüística ou religiosa, por exemplo) se realiza não só por intermédio de formas "doces" de vio-lência (como as exercidas através do sistema escolar) ,

iraordinários como o "tempo da política", para que seja controlada e não vire causa de violência. Entre ambas as concepções parece surgir um contraste que merece atenção: por um lado, a associação entre a grande política das grandes teorias, impregnada de atributos positivos e, por outro, a pequena política lo-cal, impregnada dos atributos negativos vinculados ao íaccionalismo e à venJeOa. 13. Aexpressáo "violência doce" ê utilizada por BotJRDiEU {1980, pp. 209 e ss.).

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F E D E R I C O N E I B U R G

mas também por meio de derramamento de sangue14. De fato, Elias adverte claramente que, longe de "normais", os estados de paz são temporários e frágeis15.

Por outro lado, como acontece com todos os valores sociais, também aqueles referidos ao uso da força física estão situados no tempo e no espaço social: são relativos a posições e pontos de vista, de forma que o que é legítimo ou justo em um momento, ou para uns, pode não ser le-gítimo ou justo em um outro momento, ou para outros, Mais ainda: é fácií comprovar a freqüência com que a pro-messa de um futuro de paz legitima o uso da força (a "vio-lência como parteira da história") tanto para os naciona-listas que buscam impor novas fronteiras entre Estados nacionais, quanto para os revolucionários que tentam refundar a ordem social no plano intra-estatal16. O

pro-14. Já no livro de Elias sobre a sociedade da corte pode-se ler uma análise minuci-osa do caráter violento dos processos de nacionalização da vida social na Eu-ropa Ocidental a partir do século XIV, com ênfase especial na polítização da religião e nas guerras de religião (El.lAS, 1985, cap. 5, csp. pp. 178-179). 15. Onde, talvez, pode-se achar uma indicação mais clara da necessidade de

in-verter a relação entre "paz" e "normalidade" para formular o que Elias consi-derava serem os verdadeiros problemas sociológicos é na análise do Holocaus-to que ele realizou na época do julgamenHolocaus-to de Eichmann (1961-62), e que está incluído como um capítulo {"The Breakdown of Civilizatton") no seu li-vro The Germans (ELIAS, 1996, pp. 299-402). Um argumento mais gerai so-bre a necessidade de substituir a pergunta soso-bre as condições de possibilidade da violência pela pergunta sobre as condições de possibilidade da paz, pode-se verificar também em ELIAS (1996, pp. 173-176).

16. A própria relatividade da definição das dimensões intra e ínterestatais é um

52

O N A C I D C E N T R 1 S M G D A S C I Ê N C I A S S O C I A I S . . .

cesso civilizatório impõe-se pela força; o próprio ideal de pacificação serve para legitimar assassinatos, exige argu-mentos em favor das guerras justas (cf. WALZER, 1992).

Gostaria agora de discutir dois instrumentos que per-mitem perceber melhor a complexidade da visão de Elias sobre o lugar da violência no processo civilizatório — ins-trumentos que, como já disse, podem nos fazer avançar na construção de uma visão sociologicamente positiva das formas violentas de fazer política.

O primeiro elemento refere-se à generalização da aná-lise relativa às relações entre os grupos establisheâ e

out-siders. Como se sabe, trata-se de um modelo formulado,

pela primeira vez, em um estudo de comunidade realizado por Elias e Scotson nos anos 60, no povoado inglês de Winston Parva. O objetivo da pesquisa era compreender os princípios de diferenciação social que dividiam os mo-radores do povoado e faziam que os indivíduos e as famí-lias de statusmais elevado fossem representados como me-lhores, enquanto sobre os indivíduos e as famílias de status mais baixo pesavam todos os estigmas associados à anomia

ponto muito importante na análise de Elias sobre a violência política e o nacio-nalismo. Uma das singularidades da sua sociologia é mostrar a necessidade de construir objetos que não estejam restritos às sociedades nac.onais, mregran-do na análise o campo das relações in te rés t atais, até agoraL de.xamregran-donas mãos dos especialistas em problemas internacionais (v. ELIAS, 199U, p.

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F E D E R I C O N E I B U R G

(delinqüência, desintegração, falta de coesão) — estigmas estes que existiam também nas consciências dos domina-dos, pois eles próprios sentiam-se inferiores.

Do ponto de vista de Elias e Scotson, o que fazia deste um caso exemplar era o fato de que, segundo os indica-dores sociológicos usuais (como renda, ocupação etc.) di-ficilmente poder-se-ia encontrar uma diferença significa-tiva entre os dois grupos sociais. A única distinção entre eles estava dada por um princípio de antigüidade: uns moravam em Winston Parva muito antes que os outros — uns eram os established, os outros, que tinham chega-do depois, eram os outsiãers. Entre ambos os grupos es-tabelecia-se uma relação de complementaridade e de con-flito. A rejeição entre eles era um elemento essencial na definição da identidade de cada um — o status superior e o carisma dos establisheck, o status mais baixo e a desven-tura dos outsiders (ELIAS & SCOTSON, 1994).

Elias podia reconhecer semelhanças entre a configu-ração das relações sociais em Winston Parva e a de outros universos sociais por ele estudados anteriormente — como aquele das relações entre a nobreza de espada e de toga, ou entre os cortesaos e os burgueses na sociedade cortesa. A reflexão sobre a configuração establishedloutsiders origi-nou aquela que, talvez, seja a formulação mais sofisticada da teoria eliasiana do poder: uma teoria das relações de

poder, na qual a hierarquia social (e a desigualdade) é

tam-54

O N A C I Q C E N T R 1 S M Q D A S C I Ê N C I A S S O C I A I S . . .

bem um assunto de "opinião", já que o status é inseparável das representações sobre o status17. Este não é o lugar para examinar o potencial desse modelo. Interessa-me, mais, enfatizar em que sentido Elias demonstra que as relações

established/oufsiders contêm sempre a possibilidade do uso

da força física, de que maneira elas podem dar lugar a pro-cessos de "violentização" da vida social18.

Ainda que os estigmas atribuídos aos outsiâers estives-sem associados à delinqüência, Elias não registrou em Winston Parva nenhum uso sistemático da força física para regular as relações sociais. Na sociedade cortesa, por sua vez, a centralidade da figura do rei era a garantia do equilíbrio entre os grupos, ao passo que as tensões entre eles, no lugar de diminuir, aumentavam. Mesmo que nos seus trabalhos seja possível encontrar sugestões sobre o que poderiam ser as linhas principais do estudo da explo-são de violência que se seguiu à noite de Varennes, as aná-lises de Elias chegam somente até a época de Luís XVI, sem examinar os acontecimentos desencadeados depois da

17. Uma formulação mais geral dessa teoria está em EUAS (1994), na qual ele afir-ma claramente a validade geral da configuração establsshedloutsiders paia rela-ções de força e de desigualdade entre grupos que podem ser conceituados, em termos nativos, como sendo de diferentes ordens: raças, cascas, grupos ecm-cos, classes, nacionalidades etc.

18.0 próprio Elias refere-se em algumas ocasiões à "violentização" da vida social como sendo "processos de descivilização", mas sem desenvolver uma discus-são sistemática sobre essa noção (para uma utilização da noção de desciviliza-çáo" inspirada em Elias, cf. MENNELL, 1995, e FLIÍ.TCHKK, 1997).

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F E D E R I C O N E 1 B U R G

Revolução Francesa. Onde Elias mais claramente focali-zou o seu interesse em compreender o uso da força física foi no universo alemão, mais especificamente, na compa-ração entre dois momentos da história dos alemães. Nessa análise, a teoria das relações establisheá/outsidersò.estmpe.-nha um papel central.

O primeiro momento é o que se seguiu à derrota ale-mã na Primeira Guerra Mundial, quando jovens oficiais formaram as Freikorps, com o intuito de se contrapor ao que entendiam como uma inadmissível renúncia aos ide-ais nacionalistas por parte das velhas elites imperiide-ais — em um só ano, formações das Freikorps assassinaram mais de mil "inimigos políticos", dentre eles figuras ilustres como Karl Liebknecht e Rosa Luxemburg. O segundo momen-to é o da Alemanha de fins dos anos 60, quando jovens tão frustrados com o seu país quanto os de quatro déca-das antes se alistaram em grupos terroristas de inspiração marxista, como o Baader-Meinhof. A busca de um senti-do para a vida mediante o uso da violência por parte da-queles que censuravam o establishment das Repúblicas de Weimar e Bonn permitiu a Elias recuperar uma noção (a de geração) e um problema (o das relações entre gerações) que tinha estado muito em voga entre os que foram seus professores em Heidelberg e Frankfurt19. Parece-me que a

19. Cf., p. ex., o célebre texto de Mannheim, originalmente publicado em 1928

56

O N A C I O C É N T R 1 S M O O A S C I Ê N C I A S S O C I A I S .

densidade sociológica que a questão geracional adquire em Elias se deve à sua inscrição na problemática mais ge-ral das relações established/outsiders.

Elias analisa a historicidade do uso da força física nas relações entre os alemães - sendo que o uso da força era, no século XIX, um traço de distinção das elites alemãs em relação a outras elites européias. Elias demonstra o fun-damento social desse habitus violento através da etnogra-fia do duelo e das confrarias de estudantes e de jovens militares que formavam a satisfaktionsfãhige Geselhchaft -uma sociedade fundada em um ideal militar de honra e de status, tal como o exprimiam a atitude de pedir satis-fação diante de ofensas e a utilização recorrente e atuali-zada da força física na definição das identidades pessoais e coletivas. A persistência e a generalização dos duelos entre os alemães no fim do século passado os distinguem de outros povos europeus entre os quais esse traço do

habitus militar há muito havia praticamente

desapareci-do; também exprimem os paradoxos de um Estado que se auto-representava como forte e que, no entanto, tole-rava como legítimas formas de fazer justiça e exercer vio-lência fora de seu controle. Revela, ainda, as

característi-(MANNHEIM, 1991). Para um esboço da história social da constituição xlas di-ferenças geracionais em um princípio de diferenciação social e motivo de Luta na Áustria e na Alemanha em fins do século XIX e início do século XX, ver SCHORSKK (1979).

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F E D E R 1 C O N E 1 B U R G

cas de uma "boa sociedade" que exigia a adesão aos valo-res da aristocracia militar, e a confiança em seu papel de protagonista no futuro da nação alemã. A persistência entre os alemães dessa disposição favorável ao uso da for-ça física, e as suas condições sociais de possibilidade, es-tarão, segundo Elias, na base da generalização da violên-cia nas relações entre os alemães depois da crise da Re-pública de Weimar, e entre os alemães e os seus vizinhos europeus a partir de 1939.

Para uma melhor compreensão dos mecanismos pelos quais uma configuração de relações entre grupos

esta-blishedz outsiders pode servir de base para a generalização

da violência, examinemos o segundo instrumento analíti-co utilizado por Elias. Trata-se da noção de double-bind (traduzida para o português como "duplo vínculo"), que Elias tomou emprestada dos estudos realizados por Grego-ry Bateson nos campos da psiquiatria e da antropologia.

Uma análise detalhada do conteúdo da noção de

double-bind exigiria outro texto. Este deveria considerar os

pontos de proximidade e afastamento entre a pretensão, igualmente totalizadora, dos modelos de compreensão da vida social {e das relações entre natureza e sociedade) em Elias e em Bateson; a centralidade, em ambos, das preo-cupações com os processos de socialização e de formação dos habitus sociais; e, também, seus respectivos interesses nas relações entre esses processos e os processos mais

ge-58

O N A C 1 0 C E N T R 1 S M O D A S C I Ê N C I A S S O C I A I S . . .

rais de mudança sócia! e cultural - uma relação que o pró-prio ELIAS (1990c, p. 66) fez explícita, e que, até o mo-mento, não mereceu a atenção devida por parte daqueles que comentaram a sua obra.

Como se sabe, a teoria do double-bind foi utilizada por Bateson nos seus estudos sobre esquizofrenia e, tam-bém, nas suas análises dos processos de mudança cultu-ral — especificamente com relação ao que ele chamou de cismogênese (cf, p. ex., BATESON, 1996a; 1996b; 1973). Em Bateson, a teoria do double-bindserve para descrever uma situação em que o equilíbrio nas relações interpes-soais e intergrupaís resulta não da ausência de conflito, mas, ao contrário, de uma oposição e tensão crescentes -nos seus termos, na base das situações homeostáticas há conflito e oposição, não integração funcional. Quando se trata de compreender os processos que a clínica médica chama de esquizofrênicos, o foco da atenção coloca-se nas identidades dos indivíduos que participam de configura-ções familiares; quando se trata de estudos culturais, o foco desloca-se para as identidades grupais. Em ambos os casos, o double-bind descreve elementos que são ineren-temente contraditórios: a identidade de um indivíduo ou de um grupo é e não é; ela tem, ao mesmo tempo, atri-butos positivos e negativos que sempre dependem das posições relativas de indivíduos e de grupos, e dos seus pontos de vista.

Referências

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