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Representações de trauma, silêncio e identidade: um olhar sobre a literatura juvenil realista dos EUA

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Academic year: 2021

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REPRESENTAÇÕES DE TRAUMA, SILÊNCIO E IDENTIDADE: um olhar sobre a literatura juvenil realista dos EUA

Regina Peixoto Carneiro

Orientadora: Profª. Drª. Carla Portilho

NITERÓI 2020

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REGINA PEIXOTO CARNEIRO

REPRESENTAÇÕES DE TRAUMA, SILÊNCIO E IDENTIDADE: um olhar sobre a literatura juvenil realista dos EUA

Orientadora: Profª. Drª. Carla Portilho

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação de Estudos da Literatura, na subárea de Literaturas Estrangeiras Modernas do Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense, dentro da Linha de Pesquisa de Literatura, História e Cultura, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Estudos da Literatura.

NITERÓI 2020

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REPRESENTAÇÕES DE TRAUMA, SILÊNCIO E IDENTIDADE: um olhar sobre a literatura juvenil realista dos EUA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação de Estudos da Literatura, na subárea de Literaturas Estrangeiras Modernas do Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense, dentro da Linha de Pesquisa de Literatura, História e Cultura, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Estudos da Literatura.

Aprovada em ____/____/2020.

Banca Examinadora

Profª. Drª. Carla de Figueiredo Portilho – UFF Orientadora

Prof. Dr. André Cabral de Almeida Cardoso – UFF

___________________________________________________________________________ Profª. Drª. Regina Silva Michelli Perim – UERJ

NITERÓI 2020

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À Universidade Federal Fluminense, lugar onde me tornei profissional, professora e pesquisadora, por ter composto o cenário de sete anos incríveis da minha vida;

À CAPES, por ter financiado a minha pesquisa durante um ano;

À minha orientadora, professora Carla Portilho, pela paciência e pelo carinho durante as orientações. Obrigada por me trazer conforto e confiança na condução desta pesquisa, respondendo com prontidão e detalhamento os e-mails quilométricos com questionamentos e dúvidas. Sem a sua tranquilidade e palavras doces, eu teria sofrido muito mais nos momentos de bloqueio. Obrigada por me incentivar a sair da zona de conforto, foi muito importante para o meu trabalho e para mim;

Ao professor André Cardoso, que me inspirou durante toda a graduação para chegar até aqui, com incentivo e instruções valiosas em várias etapas do caminho. Obrigada por ter se esforçado para arrancar sempre o melhor de nós; sua influência quando este projeto era só uma ideia foi fundamental para a minha presença na pós e para a existência deste trabalho;

À professora Regina Michelli, pela simpatia e generosidade muito bem recebidas e apreciadas durante a minha qualificação e em todos os momentos em que nos encontramos. Obrigada pelas contribuições e palavras de incentivo;

A Cássia, com quem troquei inúmeras mensagens ao longo desta pesquisa, do início ao fim, que dedicou tempo e atenção ao meu trabalho e contribuiu com revisões preciosas, além de estar presente nas minhas referências, como não podia deixar de ser. Não pense que te deixarei em paz agora que este trabalho acabou – há ainda muito o que conversarmos, e sou grata por ter com quem compartilhar tanta coisa que me move;

A Isabela Prince, cuja presença em minha vida, ainda que temporária, me ajudou a mergulhar dentro de mim de forma permanente, e a quem devo, de certa forma, a possibilidade de escrever sobre esse tema e ficar bem;

A Clarissa e Beatriz, pela companhia, constantemente me trazendo calma, alegria e pausas necessárias em meio a um longo período de ansiedade e estresse. Vocês sinceramente fizeram o meu ano;

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amigos e família; obrigada por me entenderem, me aconselharem, me ouvirem falar de pesquisa e livros sem revirar os olhos à repetição do assunto. Nem sempre fui a melhor companhia este ano, mas o apoio e a compreensão de vocês significaram muito;

A minhas amigas queridas mestrandas, Ana Luiza, Victoria e Thayane: sem a presença de vocês nesse processo, a minha experiência teria sido pobre, sem graça e solitária. Não consigo pôr em palavras o que foi passar por isso com vocês, só sei que foi tudo para mim;

A Chico, meu bichinho e grande companheiro nas jornadas exaustivas de pesquisa e escrita;

A Kenzo, meu querido amor e amigo, cujo apoio foi essencial para mim nesses 11 anos de amizade e 6 de parceria. Você viu de perto o processo de iniciar e concluir este trabalho, e isso fez eu me sentir menos sozinha. Obrigada por entender o meu tempo, por todos os gestos e comemorações a cada etapa concluída. Não dá para não se emocionar ao escrever sobre trauma, por isso, obrigada por me abraçar quando eu chorava ao ler coisas particularmente difíceis;

Por fim, agradeço a minha mãe, Lucia, minha pessoa favorita. O que já passamos juntas e o vínculo que temos é um tesouro para mim; esta conquista não existiria sem você, que se esforçou tanto, de todas as formas, para que eu chegasse até aqui. Sou eternamente ligada a você.

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Esta dissertação de mestrado se propõe a analisar representações do trauma dentro da literatura juvenil realista estadunidense contemporânea através da teoria literária do trauma (CARUTH, 1996; HERMAN, 2015), investigando o amadurecimento dos personagens analisados ao passar por momentos negativos impactantes. Também pretende-se verificar a forma como as experiências traumáticas afetam o senso de identidade dos protagonistas na adolescência. Os três romances escolhidos como objeto de estudo são As vantagens de ser invisível (1999), de Stephen Chbosky, Fale (1999), de Laurie Halse Anderson e My Absolute Darling (2017), de Gabriel Tallent. Esta seleção apresenta diferentes representações do trauma, cujos aspectos particulares serão analisados tanto individualmente quanto de forma comparativa ao longo da dissertação.

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This thesis aims to analyze representations of trauma in contemporary realist young adult literature in the USA through literary trauma theory, investigating the development and growth of the characters in their coming of age period. Another goal is to analyze the way traumatic experiences affect the protagonists’ sense of identity in adolescence. The three novels selected as objects of study are The Perks of Being a Wallflower (1999), by Stephen Chbosky, Speak (1999), by Laurie Halse Anderson and My Absolute Darling (2017), by Gabriel Tallent. The three works approach three different representations of trauma, whose particular aspects will be analyzed individually and comparatively in the research.

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That’s the thing about pain. It demands to be felt.

John Green

Too many grown-ups tell kids to follow their dreams like that’s going to get them somewhere Auntie Laurie says follow your nightmares instead cuz when you figure out what’s eating you alive you can slay it

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INTRODUÇÃO ... 10

1. A LITERATURA JUVENIL REALISTA CONTEMPORÂNEA DOS ESTADOS UNIDOS ... 14

1.1 A evolução da literatura young adult ... 18

1.2 Temas polêmicos na literatura juvenil ... 21

2. AS VANTAGENS DE SER INVISÍVEL – TRAUMA, MEMÓRIA E ESCRITA ... 25

2.1 A escrita como forma de expressão ... 26

2.2 A representação do trauma – teoria e análise... 34

2.3 Amadurecimento e senso de identidade ... 45

3. FALE! – TRAUMA, ADOLESCÊNCIA E SILÊNCIO ... 49

3.1 A cultura do estupro e o movimento #MeToo ... 51

3.2 Adolescência e comunidade ... 53

3.3 O silêncio e sua ruptura ... 61

4. MY ABSOLUTE DARLING – TRAUMA, LUTA E SOBREVIVÊNCIA ... 78

4.1 Recepção do romance ... 80

4.2 A representação do trauma – teoria e análise ... 82

4.3 Situação pós-traumática ... 110

CONCLUSÃO ... 115

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INTRODUÇÃO

Estudos apontam que a literatura juvenil só veio a se distinguir como categoria literária própria – isto é, independente da literatura infantil – a partir de meados do século XX (SANTOS, 2016). Desde então, tem ganhado crescente popularidade, se consolidando no interesse do público jovem e no universo editorial. No entanto, a quantidade de produção acadêmica dedicada ao estudo da literatura juvenil dentro da crítica literária ainda é pequena, se comparada às de literatura voltada para adultos e crianças.

A maior parte dos estudos dedicados à literatura juvenil está relacionada à área de educação: por exemplo, como trabalhar os livros infantojuvenis na sala de aula ou como estimular os jovens ao mundo da leitura. Segundo Cindy Daniels (2006), o estudo de obras de literatura juvenil dentro da crítica literária tem sido negligenciado devido ao fato de que os próprios críticos literários e os acadêmicos sentem dificuldade de definir o mérito de tais obras, em comparação a cânones tradicionais. Não cabe aqui discutir ou defender seu mérito; todavia, acredita-se que a literatura juvenil tem uma linguagem e um contexto próprios nos quais a crítica literária deveria se aprofundar. Daniels (2006) argumenta que, justamente por ser uma categoria relativamente recente e, por conta disso, ter uma definição ainda abrangente, mais teóricos deveriam se dedicar à análise crítica dessas obras, uma vez que dariam espaço para estudos originais.

Esta dissertação de mestrado se propõe a analisar representações do trauma através do silêncio dentro da literatura juvenil realista contemporânea estadunidense, verificando sua contribuição para o crescimento e amadurecimento dos personagens analisados. Assim, constatando a necessidade de se voltar o olhar crítico literário para o romance juvenil, busca-se analisar a representação da experiência traumática dentro do contexto da literatura adolescente, selecionando três romances como objetos de estudo por considerá-los obras complexas que lidam com trauma e silêncio relacionados à construção da identidade. Para atingir esse fim, busca-se contextualizar brevemente os três romances em relação à literatura juvenil, após analisar a evolução da categoria literária e como as obras se encaixam nela; apontar e analisar como se relacionam os temas silêncio e trauma nos romances, verificando as diferentes formas com as quais esses temas são apresentados em cada um deles; discutir a contribuição desses temas ao processo de crescimento e amadurecimento dos protagonistas dentro da configuração da narrativa; e analisar o processo de construção de identidade das personagens dentro da narrativa adolescente, verificando o papel do trauma e, consequentemente, do silêncio na busca

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por essa identidade. Por fim, busca-se refletir sobre a importância da narrativa adolescente que aborde o trauma e outras questões consideradas problemáticas, especificamente na literatura juvenil, por ser voltada para leitores jovens.

A pesquisa tem como objetos de estudo três romances: As vantagens de ser invisível (The Perks of Being a Wallflower), de Stephen Chbosky, publicado em 1999 pela MTV Books; Fale! (Speak), de Laurie Halse Anderson, publicado em 1999 pela Square Fish; e My Absolute Darling, de Gabriel Tallent, publicado em 2017 pela Riverhead Books. O principal objetivo é investigar as diferentes representações do trauma, refletindo sobre como elas se configuram com outros temas presentes nos romances – e frequentemente abordados na literatura jovem –, como violência sexual, depressão, (não) pertencimento, uso de drogas, suicídio, entre outros. Pretende-se observar os elementos que revelam a construção de uma identidade própria dos personagens na fase adolescente, referente à forma como lidam com o seu trauma, traçando um paralelo entre eles. Em cada um dos romances, a experiência traumática (na forma de abuso sexual) deixou marcas no personagem que a vivenciou e, a partir da teoria literária do trauma, pretende-se investigar como essas experiências moldaram o adolescente, verificando se há influência significativa desses traumas na formação como indivíduo. Ao traçar esse paralelo entre os três romances, fica evidente que as marcas deixadas pelo trauma afetam cada protagonista de forma diferente; assim, pretende-se olhar os diversos caminhos levados pelos personagens, usando cada romance para abordar um aspecto específico do trauma na literatura.

Na literatura norte-americana contemporânea, muitos dos romances juvenis indicados nos currículos escolares desde a década de 2000 foram banidos por conterem conteúdo considerado inadequado para a faixa etária; alguns membros de comitês educacionais chegaram a se referir a algumas dessas obras como “pornografia infantil”1. Apesar de a censura das obras

não ser o foco central desta pesquisa, considera-se importante o estudo da abordagem dos temas que causaram essa censura, como violência sexual, aborto, suicídio, depressão e uso de drogas, especificamente dentro do contexto literário adolescente.

A dissertação está dividida em quatro capítulos: no capítulo 1, intitulado “A literatura juvenil realista contemporânea dos Estados Unidos”, será feita uma breve contextualização da literatura juvenil estadunidense, usada como base para situar os romances na crítica literária, bem como sua relação com a tradição e as possíveis configurações do conceito de “romance de formação”. Após descrever a evolução da literatura juvenil de forma histórica, também se abrirá

1 Ver: REICHMAN, Henry (Ed.). Newsletter on Intellectual Freedom, American Library Association, November

2010, v.LIX, n.6. Disponível em: https://journals.ala.org/index.php/nif/issue/viewIssue/446/235. Acesso em: 27 set. 2019.

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um debate sobre as diferentes visões acerca do conteúdo explorado em certas obras voltadas para adolescentes, muitas vezes considerado inadequado, pesado e polêmico. A pesquisa abarca duas grandes áreas: literatura juvenil e teoria do trauma. Durante a pesquisa, optei por criar essa contextualização no capítulo inicial como forma de estabelecer o recorte da literatura juvenil estadunidense, sendo o único capítulo predominantemente teórico. Quanto à teoria do trauma, decidi não trazer um capítulo inteiro só de fundamentação teórica, pois pretendo ir aprofundando a teoria com foco na análise crítica literária, na medida em que vou abordando os aspectos relevantes em cada uma das obras, uma vez que elas representam o trauma de maneiras diferentes, ainda que compartilhem algumas características. Assim, cada capítulo de análise vai destacar algum ponto ou aspecto específico da experiência traumática que é colocado em evidência nas narrativas selecionadas.

No segundo capítulo, o romance As vantagens de ser invisível será abordado de forma a analisar a representação do trauma através da escrita e da memória reprimida, uma vez que só a partir do ato sexual, de uma repetição da ação que levou à experiência traumática, é que Charlie desbloqueia as lembranças e entra em contato com seu passado. A partir de algumas situações descritas por Charlie, pretende-se observar como o trauma teve um forte papel na repressão de sua memória e, consequentemente, no seu crescimento na fase adolescente. Para esta análise, será usada a perspectiva da teoria literária do trauma de Cathy Caruth, precursora no estudo do trauma atrelado à literatura nos Estados Unidos nos anos 1990, com base em ideias de Freud. Caruth descreve o trauma como uma experiência tão forte que seu significado não é alcançado, deixando marcas que demandam atenção (CARUTH, 1996). Apesar de seus conceitos serem mais bem explorados no capítulo 2, se aplicam perfeitamente à análise dos capítulos seguintes também, e serão retomados quando aplicável.

No capítulo 3, enquanto o anterior vai trazer uma perspectiva da expressão do trauma através da escrita, Fale! continuará as reflexões iniciadas na análise de Vantagens, dessa vez com foco no processo de cura e enfrentamento pela expressão através da arte, uma vez que se debruçar sobre seus desenhos e suas pinturas é a única forma que Melinda encontra de buscar sua voz e desabafar, quebrando o silêncio. Como veremos, a relação entre o trauma e o silêncio em Fale! se faz de forma mais óbvia do que em Vantagens, e as circunstâncias e características das duas experiências traumáticas trazem material interessante para se pensar em como o adolescente pode entrar em contato com sua dor, ao mesmo tempo em que deve lidar com outras questões comuns na fase da adolescência, como pertencimento, confiança, alienação e depressão. Ao analisar a representação da experiência traumática nesse segundo romance,

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pretende-se verificar o papel da arte na busca por uma forma de expressar o sofrimento da protagonista, ao mesmo tempo em que ela vai, aos poucos, ganhando força para enfrentar suas questões.

No capítulo 4, o livro My Absolute Darling será abordado como um romance de tensão, se contrapondo aos outros dois tanto na temática como no tom, explorando aspectos linguísticos e de gênero, ao mesmo tempo em que apresenta elementos da experiência traumática completamente distintos dos primeiros romances. Lançado em 2017 e por enquanto sem tradução no Brasil, não há ainda trabalhos acadêmicos que tenham a obra como objeto de estudo; no entanto, por seu sucesso eminente de vendas, recebeu muitas resenhas críticas de profissionais editoriais (positivas e negativas). Enquanto Charlie viveu seu abuso na infância e bloqueou completamente a lembrança, Melinda acabou de ter sofrido o trauma, então já se encontra uma diferença central entre o abuso na infância e o estupro na adolescência. Já na narrativa de Turtle, ela ainda sofre o abuso sexual constantemente, e a questão não é só como lidar com as marcas do trauma, mas como se livrar dele de forma física, e não apenas psicológica. Torna-se uma questão de luta e sobrevivência, de ela encontrar a força em si para se desvencilhar do destino violento, ainda que quebrar o silêncio – a maior marca traumática – seja o elo que une os três romances. My Absolute Darling destoa imensamente dos outros dois objetos de estudo, tanto por ter sido publicado quase 20 anos depois, quanto pelas características do romance em si – apesar da protagonista adolescente, sua linguagem e sua temática o categorizariam mais como um romance de formação do que literatura YA, apontamento que será aprofundado no capítulo. No entanto, foi escolhido por ter uma representação relevante da experiência traumática que servirá de contraponto pertinente para o propósito desta pesquisa, especialmente em comparação com os outros dois.

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1. A LITERATURA JUVENIL REALISTA CONTEMPORÂNEA DOS ESTADOS UNIDOS

Comparada à literatura adulta ou infantil, a literatura voltada para adolescentes é relativamente recente, tendo sido considerada como uma categoria à parte dessas apenas no início do século XX. O conceito de “adolescência” só veio a ser cunhado em 1904, pelo psicólogo e pesquisador G. Stanley Hall, porque até então não se distinguia essa fase da vida com características diferentes da de “adulto”; quando o indivíduo começava a trabalhar, já era considerado adulto, o que costumava acontecer a partir dos 10 anos de idade (CART, 2010, p.4). Ainda que muitas das concepções de Hall tenham sido rebatidas nas décadas seguintes, o conceito de adolescência permaneceu, sendo considerado o período entre os 12 e os 18 anos, em que os indivíduos não são mais crianças, mas ainda não têm as responsabilidades de adultos, sendo inseridos na escola em vez de no mercado de trabalho.

Dessa forma, a literatura juvenil (young adult ou YA, como é chamada nos Estados Unidos) começou a surgir com foco nesse “novo” público-alvo, que, naquela época, estava em um período de transição. Ainda hoje, essa fase de transição parece se fazer presente, considerando que a concepção do período de adolescência (e, consequentemente, do público-alvo da literatura para adolescentes) como sendo entre os 12 e os 18 anos não é fixa, sendo debatida por pesquisadores na área. Alguns se referem à expressão “young adult” como um termo guarda-chuva, quando se considera que adolescência é uma construção social baseada em contextos históricos e socioculturais variados (LESKO, 1996), de forma que a própria faixa etária a que o termo se refere é fluida. Apesar de young adult ter a tradução literal de “jovem adulto”, o termo é usado de forma a englobar também o adolescente, o que evidencia ainda mais suas características culturais. Marshall George (2016), por exemplo, escreve que se incomoda em usar o termo literatura young adult para se referir a livros destinados a jovens de 12 ou 13 anos, uma vez que, seguindo o termo, eles ainda estariam longe do que se costuma definir como “fase adulta”, preferindo usar “literatura adolescente”. Michael Cart, ao considerar esse fenômeno, marca sua opinião de que o termo atualmente pode se referir a pessoas de 12 a 25 anos, marcando a característica de que a fase da vida não é relacionada a crescimento, e sim a aspectos culturais, com os jovens demorando mais a sair de casa e, assim, alongando essa “adolescência” (2010, p.119). Diante da discussão, Marshall George optou por afirmar que estuda a literatura “escrita para adolescentes e jovens adultos”, a fim de englobar as duas concepções dentro do termo guarda-chuva.

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Na crítica literária e no mercado editorial estadunidenses, o termo guarda-chuva young adult engloba algumas possíveis categorias, não devendo ser confundidas como gêneros. Há ainda muita discussão no meio literário, com agentes e críticos argumentando que a diferença, nesse sentido, é que gênero se dividiria, por exemplo, como contemporâneo, histórico, romance, fantasia, ficção científica, suspense, enquanto categoria se refere ao público-alvo intencionado, de forma que é possível ter obras de romance YA, fantasia YA, suspense YA etc. (BINKS, 2014).

Esta discussão não faz parte do recorte desta pesquisa, mas serve para justificar o uso da palavra “categoria” em vez de “gênero” ao falar sobre YA. Tomando o termo categorias, que se refere ao público-alvo para o qual as obras são intencionadas, existem os romances infantis (children’s literature), que são lidos não só por crianças mas se tornaram universais, sendo para todas as idades; há os romances infantojuvenis (middle grade literature), que ainda entram na categoria YA, mas são voltados para adolescentes mais jovens, no ensino fundamental, e normalmente os temas abordados estão mais em sintonia com as dificuldades dessa faixa etária – por exemplo, relacionamentos na escola ou em casa, bullying, não-pertencimento, autoestima; no entanto, ainda não são frequentes temas como sexo ou uso de drogas, que costumam aparecer em obras para uma faixa etária um pouco mais elevada.

Há os juvenis, que são voltados para adolescentes que estão no ensino médio, mas também englobam jovens um pouco mais velhos, até o início da faculdade. Esses últimos são os que mais se relacionam com a literatura YA mais popular, abordando questões como novas experiências na adolescência e como lidar com elas. Tem se popularizado também uma nova categoria, “new adult” (NA), voltada para pessoas de aproximadamente 25 anos, que já saíram da faculdade e estão lidando com situações mais próximas da realidade adulta – arranjar um emprego, morar sozinho etc. Geralmente, questões sexuais são abordadas nos romances NA de maneira mais corriqueira e mais explícita, e seu público-alvo não são os adolescentes (WEST, 2014). Holly West tenta definir o termo NA como também fazendo parte de uma fase de transição desse ambiente pós-universidade para o ambiente de trabalho, sendo mais comumente presente no gênero de romance contemporâneo. Como o aspecto transitório também é muito atribuído à fase de adolescência em relação ao início da vida adulta, isso mostra como todos os termos mencionados são fluidos, evidenciando a dificuldade em afirmar com precisão a separação entre essas categorias, uma vez que os próprios especialistas no assunto discordam com frequência. Como descreveu Anna Laurence-Pietroni (1996): “A ficção young adult desafia uma categorização fácil, e por natureza propõe uma visão liberal de gênero mais como

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processo do que como definição2.” (apud CART, 2010, p.60). Ainda que a autora use o termo “gênero”, parece já estar prevendo a discussão atual, de que não são aspectos específicos e fechados que categorizam o tipo de literatura.

Uma das características da literatura juvenil realista é a representação mais próxima possível de experiências reais pelas quais passam os adolescentes, uma vez que eles, como indivíduos em formação, buscam na ficção uma forma de interpretar o mundo a sua volta e de se reconhecer nele – uma forma de pertencer (SOTER; CONNORS, 2009). Para a pesquisa desenvolvida nesta dissertação, foram trabalhados romances contemporâneos com protagonistas adolescentes passando pelo ensino médio. Sendo assim, reforço que não há uma única definição do que é a literatura YA, mas uma que se relaciona a esta pesquisa é a de Catherine Ross (1985), em seu artigo “Young Adult Realism: Conventions, Narrators and Readers”, considerando que um dos objetivos principais deste trabalho é analisar representações do trauma:

O YA realista é um gênero da literatura que tem se desenvolvido desde meados dos anos 60 e é atualmente reconhecido pelas seguintes características: protagonistas adolescentes, narração a partir do ponto de vista do adolescente, cenários contemporâneos realistas e abordagem de assuntos que eram antes considerados tabus3. (ROSS, 1985, p.174– tradução minha) A fim de estabelecer uma historicidade à literatura YA pós-moderna, Roberta Trites, em seu livro Disturbing the Universe: Power and Repression in Adolescent Literature (2000), volta à tradição com o Bildungsroman, termo da crítica literária alemã que deu origem ao coming of age novel (referido aqui como romance de formação). Baseada em sua interpretação pessoal e reconhecendo que a maior parte dos personagens de histórias infantis e juvenis naturalmente cresce, ela faz a distinção entre o Bildungsroman e o Entwicklungsroman, sendo o primeiro sobre um protagonista que amadurece e se torna adulto ao se integrar ao meio em que vive, e o segundo sobre o personagem que não se torna adulto ao final da narrativa, mas soluciona algum problema e cresce com ele (TRITES, 2000, p.10). De maneira mais direta, ela se refere ao Bildungsroman como romance de formação e ao Entwicklungsroman como narrativa de desenvolvimento, deixando claro que a tradição alemã de onde esses termos se originaram não

2 No original: “Young adult fiction defies easy categorization, and by its nature proposes a more liberating view

of genre as process rather than as circumspection and definition.”

3 No original: “Young adult (YA) realism is a genre of literature that has been developing since the mid-sixties

and is now recognizable by specific characteristics: adolescent protagonists, narration from the adolescent's point of view, realistic contemporary settings, and subject matter formerly considered taboo.”

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abrange o significado que o romance de formação e a narrativa de desenvolvimento tomaram atualmente, nem sua influência na literatura YA.

Segundo Trites, muitos romances chamados naturalmente de Bildungsroman por ser um termo mais conhecido são, na verdade, Entwicklungsroman, uma vez que o protagonista passa a narrativa tentando resolver um problema e o soluciona, mas não necessariamente se torna adulto e atinge uma maturidade significativa, considerando que muitos desses romances acontecem na duração de menos de um ano. Sendo assim, é possível afirmar que histórias que representam um adolescente podem ser chamadas de romance de formação ou de narrativas de desenvolvimento, podendo depender do tempo em que a história se passa ou do nível de maturidade atingido ao final do enredo.

Ainda assim, Trites reconhece que, apesar de a duração da história ser um fator, atualmente os romances YA se aproximam também do Bildungsroman devido ao seu aprofundamento de questões relacionadas à individualização e à busca por uma identidade, que ganharam crescente atenção na era pós-moderna:

Como resultado, a popularidade do tradicional Bildungsroman com ênfase na autodeterminação abre espaço para a dominância do romance young adult no mercado, que está menos interessado em retratar crescimento e mais empenhado em investigar como o indivíduo existe na sociedade4. (TRITES, 2000, p.19 – tradução

minha)

Essa visão faz sentido ao se pensar nas concepções apontadas por Soter e Connors (2009) e na definição de literatura juvenil de Ross (1985) – os adolescentes estão preocupados em se encaixar na sociedade em que vivem, e a fase da adolescência é marcada pela perda da inocência e pelas crescentes responsabilidades do início da vida adulta, bem como a dificuldade de ter que lidar com algumas experiências pela primeira vez.

Nesse empenho de investigar como o indivíduo se relaciona socialmente, mais importante do que oferecer uma história com um final feliz ou somente experiências positivas é representar protagonistas que são colocados diante de situações complexas e inusitadas – ainda que não necessariamente únicas ou particulares deles – e precisam arranjar uma forma de lidar com elas, buscando seu lugar no mundo. Nos romances de formação, o jovem passa por algumas situações que o levam a amadurecer, porque ele reflete e aprende com elas. Como o adolescente está em um processo identitário no qual vive experiências pela primeira vez, seu

4 No original: “As a result, the popularity of the traditional Bildungsroman with its emphasis on self determination

gives way to the market dominance of the Young Adult novel, which is less concerned with depicting growth reverently than it is with investigating how the individual exists within society.”

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potencial de crescimento pessoal é grande, o que evidencia essa relação entre os romances de formação e a literatura YA.

A literatura juvenil passou por muitas fases ao longo dos anos e, ainda que sua herança dos romances de formação não tenha sido ignorada, muitas de suas características foram mudadas por aspectos históricos, socioculturais e econômicos, sendo influenciadas por gostos/interesses de leitores, pela evolução do mercado editorial e pelas necessidades do ramo educacional. Um dos principais pesquisadores sobre a literatura juvenil estadunidense, Michael Cart, fez uma contextualização dessas diferentes fases, que serão melhor exploradas adiante.

1.1 A evolução da literatura young adult

Em sua obra Young Adult Literature: From Romance to Realism (2010), Michael Cart faz uma contextualização histórica da literatura juvenil realista estadunidense. Uma das características importantes mencionada por Cart ao se considerar uma literatura para jovens é pensar que, quando houve essa migração das pessoas de 12 a 18 anos para a escola em vez do mercado de trabalho, acabou-se por criar uma cultura de juventude5, na qual indivíduos da mesma idade eram colocados para conviver e passar por experiências semelhantes no mesmo meio, criando um vínculo sociocultural entre eles. Assim, nos anos 1930, as editoras perceberam essa nova cultura como uma oportunidade para fazer marketing voltado para essa faixa etária. Não só começaram a lançar livros com esse público em mente, como também republicaram livros que haviam sido pensados para adultos, mas que achavam servir também para esse novo público jovem.

Segundo Cart (2010), o primeiro livro que marcou a era da literatura YA foi Seventeenth Summer, lançado em 1942. Ironicamente, a autora Maureen Daly em 1994 declarou que o livro havia sido pensado e publicado com intenção de atingir adultos, e não jovens, ainda que tenha se popularizado com o público adolescente. Os temas que marcaram essa categoria literária incipiente nos anos 40 e 50 eram relacionados a relações românticas inocentes e o dia a dia da escola, sem abordar assuntos muito sérios ou pesados, evitando falar de sexo. Além disso, o marketing era voltado para meninas, enquanto os livros voltados para meninos se incluíam em outros gêneros, como aventura e fantasia.

Na década seguinte, a literatura juvenil dos anos 40 e 50 começou a sofrer críticas severas, uma vez que não era vista com valor literário, apenas como forma de entretenimento e

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passatempo aos jovens. Com a chegada dos anos 1960, essa visão sobre a literatura para jovens começou a mudar um pouco, especialmente após o lançamento de The Outsiders (1967), de S. E. Hinton, um livro sobre a rivalidade entre dois grupos sociais, um composto por adolescentes ricos e esnobes, e o outro composto por uma gangue de jovens. O interessante sobre a obra é que a autora tinha 16 anos quando a escreveu, sendo, então, da mesma faixa etária de seus personagens e seus leitores, o que acabou por garantir credibilidade à sua intenção de escrever uma literatura real, que abrangesse o dia a dia de jovens de verdade e não omitisse a violência ou a tristeza, no lugar de uma versão romantizada encontrada até então (CART, 2010, p.26).

Essa nova visão sobre a literatura juvenil criticava não só as histórias romantizadas, mas também o teor moralista e didático presente em muitas obras. Desde os anos 1960, há o debate sobre a função e a intenção dessa categoria literária, que tipos de temas são adequados de se abordar, e se é necessário ou não oferecer histórias que ofereçam algum tipo de esperança ou final feliz. Cart (2010), Trites (2004) e muitos outros pesquisadores acreditam que limitar a literatura juvenil a narrativas que sempre terminem em um tom positivo não só foge da autenticidade pretendida pelo realismo, como subestima os adolescentes como leitores críticos.

Cart também atenta para o fato de que, depois que foi descoberto o potencial da literatura juvenil para o mercado editorial e de vendas, houve uma série de escritores buscando seguir uma “fórmula do sucesso”, além de transformar seus livros em uma ferramenta de ensino ou exemplo, entendendo que os leitores jovens estão de fato buscando uma resposta para lidar com as suas novas experiências. No entanto, fica claro que a ironia é que essa ferramenta também subestima os adolescentes como leitores, que parecem buscar ser representados, não direcionados.

Assim, o final da década de 1960 se estabeleceu como o início da literatura young adult realista, com cada vez mais obras publicadas que mostravam temas desconfortáveis em torno de violência e tristeza:

Independentemente de quem iniciou, é indiscutível que, no final dos anos 60, a literatura YA estava em um período conturbado de transição da literatura que tradicionalmente oferecia uma abordagem superficial para uma com olhar mais focado e direto nas desagradáveis realidades da vida adolescente estadunidense6.

(CART, 2010, p.29 – tradução minha)

Voltando à ideia das fórmulas, na década de 1970, a abordagem de temáticas mais sérias e pesadas acabou criando os chamados “problem novels” – narrativas focadas em um problema

6 No original: “Regardless of who was first responsible, it is inarguable that, in the late sixties, YA literature was

in a hectic period of transition from a literature that had traditionally offered a head-in-the-sand approach to one that offered a more clear-eyed and unflinching look at the often unpleasant realities of American adolescent life.”

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e em sua resolução. Michael Cart aponta que as críticas aos problem novels eram que, ao focar em um problema, e não na jornada individual do personagem, as narrativas acabavam perdendo o tom realista de identidade pessoal e se direcionando à consciência social. O que se destaca sobre esses livros é o tema, não o personagem em si. Além disso, como parte da “fórmula” dessas narrativas eram um fim contendo a resolução do problema, isso tirava a autenticidade pretendida pelo realismo, uma vez que o objetivo era representar a realidade, que não necessariamente finaliza com o problema resolvido. As críticas, é claro, não acabam aí – Cart afirma que, ainda que essas questões sejam apontadas nos problem novels, as próprias narrativas realistas dos anos 60/70 tinham herança no romantismo americano do século XIX, que objetivava terminar sempre em tom de otimismo. Vale notar, ainda, que apesar do tom pejorativo denotado por pesquisadores, os problem novels eram altamente populares entre os leitores. Assim, essas críticas se devem mais à análise literária por parte dos pesquisadores do que ao impacto mercadológico (CART, 2010, p.34).

Nos anos 80, houve o retorno dos romances “superficiais7” iniciados nos anos 40/50, deixando o realismo um pouco de lado; também se popularizaram as narrativas de fantasia e horror (CART, 2010, p.38). Essas tendências foram acontecendo baseadas em pesquisas feitas pelas editoras e pelos mercados sobre o que os adolescentes leitores queriam. Na concepção de Cart, esse retorno às origens e o saturamento com os temas realistas se deu na forma de escapismo – os leitores estavam novamente interessados em se distrair, se sentirem imersos em narrativas que não tivessem a ver com eles, em vez da busca por identificação e autenticidade que haviam marcado os anos 60/70. Ainda assim, essa literatura de romance continuou a ser criticada, principalmente por, em sua maioria, focar em estereótipos de gênero, com protagonistas brancos da classe média, evitando e ignorando a diversidade. Essas críticas abriram espaço para discussões sobre o multiculturalismo e o “politicamente correto”, com autores sentindo a necessidade de abordar realidades diferentes das encontradas na literatura conhecida até então.

Pulando aos anos 90, as estatísticas sobre violência e pobreza que permeavam o cotidiano dos adolescentes começaram a se fazer cada vez mais presentes na mídia. Além disso, a falta de recursos das instituições públicas e privadas tornou a publicação e o acesso à literatura e à informação para jovens mais escassa, em um momento em que ela parecia se tornar ainda

7 O termo foi usado entre aspas para mostrar uma visão de críticos literários, não um julgamento de valor ou

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mais necessária. Em uma conferência de 1994, o próprio Michael Cart fez um discurso argumentando sobre o tipo de literatura que ele acreditava ser precisa para o momento:

Se a literatura YA tiver um futuro, deverá ser mais do que feita à base de fórmula que começa e termina com um problema. Deve ser tão real quanto as manchetes, e mais do que simples relatos de fatos. Também deve ser enriquecida pelos melhores meios que a literatura pode oferecer: um cenário completo e expansivo; uma voz narrativa artística e memorável; personagens complexos e profundos; uma sinceridade e honestidade no uso da linguagem e no tratamento do material. A literatura young adult (…) deve tomar riscos criativos (e de marketing) para apresentar assuntos difíceis e de relevância que possam oferecer seus leitores não só a realidade, mas, principalmente, o conhecimento desejado8. (CART, 2010, p.55-56 – tradução

minha)

Vê-se que a visão de Michael Cart era crítica em relação aos romances com temáticas superficiais e vazias, bem como com os problem novels, que muitas vezes negligenciavam o desenvolvimento de personagens e focavam apenas no enredo. O trecho mostra os princípios que guiaram o pesquisador em suas análises críticas dos lançamentos seguintes de obras juvenis. Os anos 90, então, marcaram uma nova era na literatura young adult, que passou a ganhar mais espaço como obras de valor literário, em oposição às críticas que recebia anteriormente.

1.2 Temas polêmicos na literatura juvenil

Na literatura norte-americana contemporânea, muitos dos romances juvenis indicados nos currículos escolares desde a década de 2000 foram desafiados ou banidos9 por conterem conteúdo considerado pesado ou inadequado para a faixa etária. A American Library Association (ALA) registra, todo ano, indicações de escolas e bibliotecas sobre os livros questionados por associações de pais e outros membros da comunidade, em uma tentativa de combater a censura. A ALA, então, compilou uma lista dos 100 livros young adult mais desafiados/banidos da década de 2000-2009, definindo-os como “livros para o público jovem adulto ou livros com protagonista jovem adulto10”. A coleção Harry Potter, por exemplo, vinha

em primeiro lugar na lista; As vantagens de ser invisível, de Stephen Chbosky, a que dediquei

8 No original: “If young adult literature is to have a future, it must be more than formula-driven fiction that begins

and ends with a problem. It must be as real as headlines but more than the simple retailing of fact. It must also be enriched by the best means literature can offer: an expansive, fully realized setting; a memorably artful narrative voice; complex and fully realized characters; and unsparing honesty and candor in use of language and treatment of material. Young adult literature, in short, must take Creative (and marketing) risks to present hard edged issues of relevance so that may offer its readers not only reality But also revelation and, ultimately, that desired wisdom.”

9 Os livros banidos são aqueles proibidos de circular nas escolas; os livros desafiados são os que sofreram tentativa

de proibição, mas permaneceram nos currículos.

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o capítulo 2, ocupou o 10º lugar, e Fale!, objeto do capítulo 3, veio em 60º lugar11. A maioria dos argumentos contra os livros para adolescentes se refere a sexo, uso de drogas/álcool e violência de forma geral – temas considerados polêmicos. É defendido que expor os leitores jovens a esse tipo de conteúdo pode incentivar ou glamorizar a prática dessas atividades.

A autora Shelley Stoehr, ao discutir sobre os assuntos polêmicos presentes na literatura juvenil na palestra “Controversial Issues in the Lives of Contemporary Young Adults” (1997), menciona o realismo como argumento para justificar o uso de palavrões e a presença de sexo e drogas em seus livros, abrindo para os livros YA de modo geral. Ela defende que os autores não inventaram as palavras e as experiências que aparecem nesses livros, apenas as utilizaram para representar uma realidade estatisticamente comprovada: os adolescentes não têm a ideia de agir de certa maneira baseado nos livros que leem, já o fariam de qualquer forma. Stoehr concorda que uma mediação dessas leituras pode ser interessante – para livros nos currículos de escolas, isso acontece –, mas argumenta que a representação desses temas nos livros são grandes catalisadores para abrir as linhas de comunicação sobre assuntos frequentemente considerados difíceis para os adultos abordarem com os jovens.

Kimberley Reynolds publicou o livro Radical Children’s Literature: Future Visions and Aesthetic Transformations in Juvenile Fiction (2007) com uma abordagem abrangente e contemporânea sobre os temas que predominam na ficção juvenil atual, considerando o papel transformador da arte literária e as características específicas da literatura para crianças e jovens ao longo do tempo. Na introdução, Reynolds se refere ao histórico da literatura infantil para mostrar como houve uma tentativa, através dessas histórias, de disseminar valores morais e sociais às crianças. Mais especificamente em relação à cultura norte-americana, ela afirma que as crenças puritanas foram muito difundidas por meio da literatura, traçando um paralelo com a literatura infantil do século XVIII, que era usada para direcionar os pensamentos e comportamentos da classe média emergente na Inglaterra (O’MALLEY, 2003 apud REYNOLDS, 2007, p.2). Essa tentativa, segundo Reynolds, se deu por conta do grande potencial em torno da infância, uma vez que a maior parte das escolhas desse público-alvo ainda está para ser feita. Assim, criou-se a ideia de que esse potencial pode ser moldado pela literatura, incentivando culturas e um processo de identidade.

Observa-se que Reynolds não usa o termo young adult de maneira generalizada: o título da obra contém as palavras “children’s literature” e “juvenile fiction”, indicando uma intenção

11 A lista completa está disponível em: http://www.ala.org/advocacy/bbooks/top-100-bannedchallenged-books-2000-2009. Acesso em: 30 out. 2019.

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de se referir a um público abrangente. Em sua visão, a literatura infantil “fornece um espaço cultural curioso e paradoxal: um espaço que é ao mesmo tempo altamente regulado e ignorado, ortodoxo e radical, didático e subversivo12” (REYNOLDS, 2007, p.3 – tradução minha). Pensando nisso, abre-se espaço para refletir sobre como uma literatura simultaneamente “didática e subversiva” se apresenta.

Ao longo deste capítulo, já se estabeleceu que, na contemporaneidade, a abordagem de temas controversos ou julgados inadequados na literatura juvenil é incentivada por pesquisadores e outros profissionais, uma vez que aproximam os leitores da realidade e abraçam a ideia de diversidade, relevantes nos debates do século XXI, em especial nesta última década. No entanto, uma característica recorrente nessa categoria literária é o toque positivo presente – e até esperado – nas obras, como aponta Reynolds:

Muitos escritores, editores e críticos argumentam fortemente que, independentemente do que aconteça nos livros e do quão realista aquilo seja apresentado, se a intenção é que sejam lidos por crianças, os livros deveriam terminar em um tom de otimismo ou, no mínimo, de esperança13. (REYNOLDS, 2007, p.89 – tradução minha)

Em contrapartida, Reynolds argumenta que é um tipo de literatura voltado para pessoas de diferentes culturas, crenças e experiências e, por conta disso, possuem necessidades distintas, o que às vezes inclui reconhecer experiências perturbadoras e sentimentos de desespero, frustração e raiva. Ela cita, para compor sua visão, o pesquisador Kenneth Kidd: “parece haver um consenso agora de que a literatura infantil é a via mais adequada, e não menos, para o trabalho com trauma14” (KIDD, 2005 apud REYNOLDS, 2007 – tradução minha). Os dois argumentam que abordar emoções e situações negativas pode oferecer um impacto social e emocional benéfico aos leitores, além de trazer uma nova forma à literatura tradicional voltada para jovens. Reynolds também cita Perry Nodelman, que aponta os pontos negativos de se ignorar essas experiências perturbadoras: “Ao privar crianças da oportunidade de ler sobre assuntos confusos ou dolorosos como os que elas podem estar vivenciando, pode-se tornar a

12 No original: “children’s literature provides a curious and paradoxical cultural space: a space that is

simultaneously highly regulated and overlooked, orthodox and radical, didactic and subversive.”

13 No original: “Many writers, editors, publishers, and critics argue strongly that whatever happens in the course

of books, and no matter how realistically it is presented, if they are intended to be read by children, books should end on a note of optimism, or at least hope.”

14 No original: “There seems to be a consensus now that children’s literature is the most rather than the least

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literatura irrelevante para elas, ou fazê-las sentir que estão sozinhas em seus pensamentos e suas experiências15” (NODELMAN, 1996, p.86 apud REYNOLDS, 2007, p.91– tradução minha).

Dessa forma, fica claro que limitar a literatura juvenil a um final feliz, ainda que seja uma herança da categoria literária, não é visto como um requisito por especialistas, que não só acreditam que essa obrigatoriedade pode vir a comprometer o valor literário das obras, como incentivam o espaço para uma abordagem de temáticas perturbadoras e desconfortáveis, além de reconhecer, inclusive, sua necessidade. Para finalizar, deixo uma citação de Richard Jackson, selecionada por Michael Cart para somar à discussão sobre essa polêmica:

Quando críticos hoje se preocupam com histórias sem esperança, estão se preocupando, em nome do público, com a capacidade dos jovens leitores de enfrentar os aspectos mais sombrios da vida. Mas nos EUA há adolescentes vivendo esses aspectos sombrios, e eles precisam de nossa atenção tanto quanto a juventude popular, atlética, determinada e confiante que é tão tranquilizadora aos adultos. Até os jovens no sol entrarão na escuridão. Todos eles precisam de nossa sensibilidade. E nós também precisamos de nossa sensibilidade, como a arte nos inspira a senti-la16.

(JACKSON, 1985 apud CART, 2010, p.66 – tradução minha)

Parece, assim, que as críticas e as censuras servem mais para apontar uma idealização moral do que, de fato, atender aos desejos e às demandas do público jovem, mais uma vez mostrando como eles são subestimados em sua capacidade de entrar em contato e se deixar atingir por temas que, muito possivelmente, fazem parte de suas vidas.

15 No original: “To deprive children of the opportunity to read about confusing or painful matters like those they

might actually be experiencing will either make literature irrelevant to them or else leave them feeling they are alone in their thoughts or experience. (1996: 86)”

16 No original: “When reviewers today worry about bleak stories, they are worrying, on behalf of the audience,

about the readiness of young readers to face life’s darkest comers. But in America there are kids living in those dark corners, and they need our attention as much as the feisty, pert, athletic, and popular youth so reassuring to adults. Even children in the sun will enter the darkness. They all need our tenderness. And we need our tenderness as art inspires us to feel it.”

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2. AS VANTAGENS DE SER INVISÍVEL – TRAUMA, MEMÓRIA E ESCRITA

Nos subúrbios de Pittsburgh, nos Estados Unidos, em 1991, um menino de 15 anos começa a escrever cartas anônimas a uma pessoa que não conhece, mas de quem já ouviu falar e que sabe ser uma pessoa “que escuta e que entende” e que “outras pessoas admiram pela força e pela amizade” (CHBOSKY, 2009, p.3 – tradução minha). Nessas cartas, esse menino se apresenta como Charlie, mas confessa que trocou todos os nomes de sua história e omitiu seu endereço, porque não quer respostas e nem opiniões – só precisa de alguém que o leia e o entenda. Na primeira carta, Charlie escreve: “Essa é a minha vida, e eu quero que você saiba que estou feliz e triste ao mesmo tempo. Ainda estou tentando descobrir como isso é possível17.” (CHBOSKY, 2009, p.3 – tradução minha). Ao longo das cartas, o leitor percebe que o narrador-personagem é um adolescente extremamente introspectivo, com uma voz inocente e sábia ao mesmo tempo, e que busca uma razão que explique por que ele se sente diferente das outras pessoas. Esta é a premissa do romance As vantagens de ser invisível, de Stephen Chbosky, publicado em 1999 pela MTV Books.

Essa obra foi escolhida para análise da representação traumática pela forma como aborda temas complexos de forma responsável, tendo sido reconhecida como parte do cânone contemporâneo juvenil por alguns pesquisadores:

Apesar de o protagonista ser um adolescente e do fato de o texto ser majoritariamente lido no contexto do Ensino Médio, a qualidade da escrita, o tom realista do romance e a profundidade dos assuntos discutidos garantiram sua posição como literatura juvenil contemporânea e clássico literário18.

(MATOS, 2013, p.1 – tradução minha)

Na literatura juvenil realista, em especial, acredita-se que a representação de experiências é fundamental para identificação com o leitor, uma vez que adolescentes muitas vezes se voltam para a literatura em busca de identificação, com o objetivo de se enxergar naquele mundo e encontrar respostas para o seu próprio (SOTER; CONNORS,

17 No original: “So, this is my life. And I just want you to know that I am both happy and sad, and I’m still

trying to figure out how that could be.”

18 No original: “despite the fact that the book’s protagonist is a teenager, and despite the fact that the text is

primarily approached by readers in a high school context, the quality of the writing, the novel’s realistic tone, and the depth of the issues discussed in its pages have assured its position as a contemporary young adult and literary classic.”

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2009) – fato que se torna ainda mais claro quando se pensa na relação de Charlie, o protagonista, com os livros que lê (em sua maioria romances de formação, como, por exemplo, O apanhador no campo de centeio, de J. D. Salinger, e O sol é para todos, de Harper Lee, recomendados pelo seu professor de inglês avançado, Bill). Em sua dificuldade de se relacionar socialmente, Charlie se volta para esse tipo de literatura para compreender a realidade e como se insere no meio em que vive. Uma característica predominante do young adult, segundo Roberta Trites (2000), é a busca por uma identidade e/ou uma independência:

Como resultado, a popularidade do tradicional Bildungsroman com ênfase na autodeterminação abre espaço para a dominância do romance young adult no mercado, que está menos interessado em retratar crescimento de maneira fidedigna e mais empenhado em investigar como o indivíduo existe na sociedade19. (TRITES, 2000, p.19 – tradução minha)

Nesse empenho de investigar como o indivíduo se relaciona socialmente, mais importante do que oferecer uma história com um final feliz ou somente experiências positivas é representar protagonistas que são colocados diante de situações complexas e inusitadas – ainda que não necessariamente únicas ou particulares deles – e precisam arranjar uma forma de lidar com elas, buscando seu lugar no mundo. Através das cartas que Charlie escreve, vai-se descobrindo um pouco mais sobre sua vida, tecendo um olhar crítico sobre a adolescência de forma geral. Pelo olhar de Charlie, vislumbram-se as dificuldades próprias dessa faixa etária, que se mostra confusa por ser tão instável – tem-se mais responsabilidades do que quando criança, mas ainda é preciso tem-seguir as regras das figuras de autoridades, colocando o adolescente em oposição ao adulto.

2.1 A escrita como forma de expressão

Em sua obra Unclaimed Experience: Trauma, Narrative and History (1996), Cathy Caruth apresenta a conceituação do trauma psicológico na literatura20, formando uma das primeiras pesquisas da teoria literária do trauma. Discutindo diferentes temas, Caruth tem a intenção de definir o trauma a partir da premissa de que ele é inassimilável

19 No original: “As a result, the popularity of the traditional Bildungsroman with its emphasis on self

determination gives way to the market dominance of the Young Adult novel, which is less concerned with depicting growth reverently than it is with investigating how the individual exists within society.”

20 Neste trabalho, a teoria do trauma na literatura é focada em representação, e se difere daquela abordada

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e, muitas vezes, inexprimível. Ela comenta sobre uma análise literária de Freud: “Se Freud recorre à literatura para descrever uma experiência traumática, é porque a literatura, assim como a psicanálise, está interessada na relação complexa entre o saber e o não saber.21” (CARUTH, 1996, p.3, grifos meus). Para compreender os limites e as profundezas da experiência traumática, os escritos de Freud insinuam que o trauma é ainda maior do que uma ferida na psique, é uma dor que demanda atenção, na tentativa constante de revelar uma verdade inalcançável: “Essa verdade, em seu surgimento tardio, não pode estar vinculada apenas ao que é conhecido, mas também ao que permanece desconhecido em nossas próprias ações e nossa linguagem22” (CARUTH, 1996, p.4).

Assim, é possível estabelecer uma relação entre o trauma e a linguagem, que se apresenta tanto na necessidade de escrever e narrar, quanto na impossibilidade de fazê-lo, ou seja, no silêncio. Essa necessidade, que às vezes chama a atenção do sobrevivente involuntariamente, à força, de forma confusa, pode aparecer na literatura com o papel de tentar representar aquilo que é difícil de dizer. Mesmo com a dificuldade, para James Pennebaker, que cunhou o termo Expressive Writing (Escrita Expressiva) nos anos 80, há dois possíveis benefícios nessa prática: o autoconhecimento e a recuperação. Pennebaker defende a ideia de que quando o indivíduo coloca experiências traumáticas em palavras, tira um pouco do peso que os eventos emocionais causaram (PENNEBAKER, 2014, p.11). Através de pesquisas, questionários e estudos de casos, ele observou que:

Ter uma experiência traumática certamente foi ruim para as pessoas de muitas formas, mas as que passaram por um trauma e o mantiveram em segredo ficavam muito piores. Não compartilhar o trauma (...) colocava as pessoas em riscos maiores de doenças leves e graves, comparado com pessoas que compartilhavam seus traumas. Os perigos de manter segredo eram mais aparentes para traumas mais graves23. (PENNEBAKER, 2014, p.12

tradução minha)

Ao unir a ideia de trauma à de literatura, Geoffrey Hartman aponta que a expressividade através da escrita ou da arte não tem o efeito apenas de reviver o ocorrido

21 No original: “If Freud turns to literature to describe traumatic experience, it is because literature, like

psychoanalysis, is interested in the complex relation between knowing and not knowing.”

22 No original: “This truth, in its delayed appearance and its belated address, cannot be linked only to what

is known, but also to what remains unknown in our very actions and our language.”

23 No original: “Having a traumatic experience was certainly bad for people in many ways, but people who

had a trauma and kept that traumatic experience secret were much worse off. Not talking to others about a trauma, we learned, placed people at even higher risk for major and

minor illness compared to people who did talk about their traumas. The dangers of keeping secrets were most apparent for major life traumas.”

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através da repetição, e sim o efeito de causar alívio, argumentando que expressar um trauma é aumentar sua capacidade de autorreflexão, formando uma ligação entre expressão literária e saúde psíquica (HARTMAN, 2003, p.260).

Pensando nesse contexto, Charlie resolve escrever porque se sente sozinho após dois eventos traumáticos – o suicídio do amigo Michael, alguns meses antes, e a morte da tia na infância, que nunca conseguiu superar. Precisa que alguém o escute, alguém que ele sabe ser uma boa pessoa, mas que não terá como interferir. Assim, pensa que poderá ser sincero, falar sobre as coisas pelas quais passou e está passando sem censura ou repercussões, pois não será identificado. Inicialmente, não se sabe como ele encontra a pessoa com quem se comunica, só se sabe que é uma pessoa de quem ele ouviu falar bem. Em uma de suas cartas finais, ele explica que é importante que o receptor saiba que ele não o encontrou aleatoriamente nas páginas amarelas, mas ouviu falar muito bem dele enquanto entreouvia duas colegas conversando na aula, e estava se sentindo tão mal e sozinho que confiou nessa pessoa como o destinatário ideal para suas cartas, como alguém que não julgaria: “O tipo de pessoa que não se incomodaria em receber cartas de um garoto. (...) Que entenderia como isso é melhor do que um diário porque [nas cartas] há comunhão e um diário pode ser encontrado24” (CHBOSKY, 2009, p.221– tradução minha).

Fica evidente ao leitor que o destinatário dessas cartas não é relevante como personagem – é apenas uma figura que remete a nós, os próprios leitores. Assim, quando Charlie começa cada carta com “Querido amigo”, o leitor pode se sentir incluído nesta categoria, como sendo o recipiente de seus relatos íntimos. Mostra-se, também, que o papel da escrita, para Charlie, não é apenas se expressar; é necessário se abrir com uma pessoa que ele sabe que existe, ainda que não conheça pessoalmente, e de quem tenha uma boa recomendação. Sua solidão é tão grande que, mesmo sem respostas, sem troca, ele precisa sentir que é ouvido. É interessante que essa anonimidade, que lhe é tão cara, revela uma de suas características principais – a passividade:

[Charlie] não só quer afirmar que há pessoas no mundo dispostas a entendê-lo sem tirar vantagem dos eventos que compartilha, como também escreve na tentativa de entender quem é e o que deseja. Ainda assim, ao se recusar a assinar as cartas com seu nome verdadeiro, e se recusando também a contar seus medos e suas tensões a uma pessoa que de fato o conhece, ele está

24 No original: “The kind of person who wouldn’t mind receiving letters from a kid. The kind of person

who would understand how they were better than a diary because there is communion and a diary can be found.”

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perpetuando o senso de deslocamento que o caracteriza durante toda a narrativa25. (MATOS, 2013, p.3 – tradução minha)

Para Angel Matos (2013), essa imparcialidade que Charlie sente ao enviar as cartas a um desconhecido – permitindo-lhe ser mais sincero e verdadeiro do que jamais seria com alguém que o conheça – é também o que se posa como um possível problema, uma vez que lhe permite evitar encarar suas próprias questões de forma direta. Ao mesmo tempo, as cartas são um desafio de autoconhecimento, uma vez que Charlie se debruça sobre elas como forma de se inserir nos acontecimentos de sua vida, em vez de só narrá-los como uma pessoa de fora: “quando escrevo as cartas, passo os próximos dois dias tentando entender o que descobri nelas. Não sei se isso é bom ou ruim.26” (CHBOSKY, 2009, p.31– tradução minha).

Seu professor de inglês avançado, Bill, toma um interesse pessoal por Charlie ao perceber que ele é um leitor dotado – Charlie admite ler o mesmo livro três vezes seguidas a fim de se aprofundar melhor nas questões presentes na literatura. Assim, Charlie descreve como Bill lhe passa tarefas extras sobre livros diversos. Ao ser pego “observando as pessoas” por Bill, que pergunta se ele sempre pensa tanto assim, Charlie pergunta: “Isso é ruim?” ao que o professor responde: “Não necessariamente. É que às vezes as pessoas usam o pensamento para não participar da vida27.” (CHBOSKY, 2009,

p.26). O comentário do professor indica essa percepção da personalidade introspectiva de Charlie como uma pessoa que pensa mais do que age, o que faz relação também com o título, “invisível”. Vale mencionar que, no inglês, a palavra é “wallflower”, que não significa literalmente invisível, mas é usada para descrever uma pessoa tímida e reservada que foge do holofote em contextos sociais, tomando uma posição mais observadora do que ativa28.

A partir dessa conversa, Charlie fica fascinado pela ideia de participar, ainda que não saiba exatamente como. Ele é percebido na escola como um adolescente incomum, e

25 No original: “not only does he want to affirm that there are people in the world who are willing to

understand him without taking advantage of the events he shares, but he is also writing in an attempt to understand who he is and what he desires. Nevertheless, by refusing to attach his real name in any of his letters, and by refusing to divulge his fears and tensions to a person who actually knows him, he is further perpetuating the sense of detachment that characterizes him throughout the entire narrative.”

26 No original: “when I write letters, I spend the next two days thinking about what I figured out in my

letters. I do not know if this is good or bad.

27 No original: “Not necessarily. It’s just that sometimes people use thought to not participate in life.” 28 Ver definição no dicionário Merriam-Webster, disponível em:

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tem consciência disso. A primeira história que conta a seu interlocutor anônimo é sobre o suicídio de seu melhor amigo Michael – seu único amigo –, e como foi o resto do seu ano na escola desde que isso aconteceu. Um de seus tormentos é não entender porque o amigo teria se matado sem lhe deixar um bilhete, e conta que a resposta do psicólogo da escola é que Michael provavelmente tinha “problemas em casa” e sentia que não tinha ninguém com quem conversar, o que faz Charlie se sentir extremamente culpado, gritando com todos. Depois desse incidente, Charlie escreve que os professores passaram a tratá-lo diferente e a lhe dar notas boas mesmo quando ele próprio achava que não merecia: “Para ser sincero, acho que eu deixava todos nervosos29” (CHBOSKY, 2009, p.5 tradução minha).

A partir daí, Charlie fala muito sobre o tema “problemas em casa” para entender por que as pessoas fazem o que fazem: ele está tão interessado em conhecer as razões pessoais dos outros quanto as suas próprias. Chega a escrever: “Eu tento pensar na minha família como a razão para eu ser desse jeito30” (CHBOSKY, 2009, p.3– tradução minha), e não fica claro para o leitor de que “jeito” é esse. Já na segunda carta, os traços desse “jeito” de Charlie começam a aparecer, quando conta que precisou se defender de um menino que começou a bater nele, sem saber que Charlie fazia aulas de autodefesa com o irmão mais velho desde criança e, apesar de ser pequeno, sabia brigar muito bem. O interessante na história é que Charlie começa a chorar de forma descontrolada depois de bater no menino e precisa ser levado para casa, ficando conhecido como “o menino que bateu no outro e não conseguia parar de chorar depois” (CHBOSKY, 2009, p.9– tradução minha). Aos 15 anos, é fácil para um adolescente ficar preso a estigmas e estereótipos que marcam pelo resto da trajetória escolar, principalmente ao ter uma reação diferente da esperada.

Assim, ainda que esteja tentando se expressar nessas cartas anônimas e use sua escrita como forma de assimilar sua realidade, permanece passivo diante da vida. Chora sem motivo aparente e percebe que tem “algo de errado” com ele, mesmo que não consiga identificar o que é. Percebe-se uma natureza inocente e extremamente sensível, ao mesmo tempo em que aparece, em situações específicas, essa agressividade e uma falta de controle.

29 No original: “To tell you the truth, I think I made them all nervous.”

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Em passagens diferentes do romance, vê-se como o silêncio é natural para Charlie. Pequenos momentos denunciam uma relação entre silêncio e segredo: as pessoas confiam em Charlie porque ele é calado; ele observa, mas não julga. Assim, ele se torna ótimo em guardar segredos. Fica claro que há situações em que ele não compreende exatamente o segredo que está guardando – não assimila o acontecimento. Em uma passagem, conta para seus amigos sobre a única festa da qual tinha participado, quando tinha uns 12 anos, organizada por seu irmão mais velho em casa. O irmão mandou que ficasse em um dos quartos durante a festa inteira, até que entrou um casal que ignorou sua presença e começou a se beijar na frente dele. Enquanto narra o que aconteceu, descreve como a menina estava reagindo às ações do menino e vai ficando desconfortável. É através do ato de narrar o caso aos amigos que ele se dá conta de que foi testemunha de um estupro, sendo consumido pela raiva naquele instante. Ainda que isso tenha acontecido anos antes, ele só é capaz de assimilar o evento ao narrá-lo. Essa também é uma característica que demonstra a inocência de Charlie e, mais importante do que isso, mostra a importância que se expressar tem para ele como forma de organizar os pensamentos. Traçando um paralelo entre esse momento e o ato de escrever as cartas, é possível perceber o quanto Charlie conta com a escrita para compreender o que lhe acontece:

O esforço que Charlie faz para tentar entender seus pensamentos é um indicativo claro de que Bill estava certo. Investe tanto em tentar entender a vida que sobra pouco espaço para de fato viver e aproveitá-la31. (MATOS,

2013, p.9 – tradução minha)

Depois do que diz o professor, ele começa a tentar ser mais ativo, sair da zona de conforto e mudar sua condição de observador, de invisível. Assim, se esforça mais para fazer amizade com as pessoas, colocando-se disponível para novas experiências. Quando puxa assunto com Patrick, um menino mais velho que se mostra bastante simpático, Charlie é apresentado a um novo grupo de amigos, e a forma como é bem recebido o emociona, demonstrando essa necessidade de afeto e aceitação: “Eles não faziam piadas internas ou dificultavam minhas chances de acompanhar o assunto. Me faziam perguntas.32” (CHBOSKY, 2009, p.22 – tradução minha). Esse trecho mostra como

31 No original: “The effort that Charlie puts into trying to understand his meditations is a clear indicator

that Bill was right to some extent. So much effort is invested trying to understand life that there is little room to actually live and enjoy it.”

32 No original: “They didn’t throw inside jokes and made me struggle to keep up. They asked me

Referências

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