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2. AS VANTAGENS DE SER INVISÍVEL – TRAUMA, MEMÓRIA E ESCRITA

2.3 Amadurecimento e senso de identidade

Levando em conta a complexidade da experiência traumática e como a memória pode se manifestar sem o controle da consciência, a literatura atua como forma de alcançar o inalcançável. Usar a linguagem como forma de retomar esse controle também é uma grande característica das narrativas de trauma. Para Deborah Horvitz (2000), em sua coletânea Literary Trauma: Sadism, Memory and Sexual Violence in American Women’s Fiction, o ato de narrar aparece como uma ferramenta de autoconhecimento e recuperação, como oportunidade de reviver o evento traumático de outra forma – não mais através de pensamentos intrusivos e involuntários, mas pela escolha consciente de palavras que comportem a experiência individual do sobrevivente: “a narrativa está intrinsecamente atrelada à memória e ao processo de relembrar: quanto maior a habilidade de narrar o trauma (...), maior a possibilidade de recuperar o controle de sua vida.” (HORVITZ, 2000– tradução minha).

58 No original: “I’m starting to feel like what I dreamt about her last night was true. And my psychiatrist’s

questions weren’t weird after all. I don’t know what I’m supposed to do now. I know other people have it a lot worse.”

Ao contrário da repetição causada pelos pensamentos intrusivos na memória traumática, o ato de escrever sobre o trauma não é uma ação passiva e involuntária – requer uma reflexão sobre o evento, um controle sobre como narrar, como expressar:

Helga Weiss (2013) relatou que muitas pessoas do gueto de Praga começaram a escrever (diários) para tentar compreender a situação extrema em que viviam. O cotidiano de restrições, dor e violência era, então, repetido de forma ativa pela escrita. Sobre essa questão, Primo Levi esclareceu, em vários momentos de sua obra, que escrever sobre o trauma é também uma forma de tentar ordenar essas situações violentas. Escrever sobre o trauma é uma maneira de se apropriar de uma parte da própria história que escapa à compreensão e ao sentido. (ANTONELLO, 2016, p.146)

Assim, percebe-se também uma relação entre a escrita, a memória e a história. Expressar suas lembranças traumáticas é uma maneira de incorporar o trauma à sua história – não para que o trauma defina a identidade do sobrevivente, mas para que seja reconhecido como parte de sua história, com significado. Enquanto o silêncio sobre o trauma o perpetua, escrever sobre ele torna o sobrevivente capaz de compreendê-lo e, assim, lhe dá a possibilidade de se libertar dele.

Ainda que Charlie pareça imaturo pela forma como reage aos acontecimentos em sua vida e como lida com seus pensamentos, sua atitude no final da narrativa demonstra um crescimento notável. No epílogo, conta que passou dois meses internado num hospital, após os pais o encontrarem na sala de TV, pelado, sem reagir à tentativa de contato de ninguém. Depois de passar por um tratamento com remédios e sessões de terapia durante esses dois meses, Charlie recebe alta e escreve a última carta, tendo a oportunidade de refletir sobre tudo o que descobriu e viveu durante esse tempo.

Emily Wasserman (2003) defende que: “Porque Charlie não sente mais que sua tia era a única pessoa que o amava, finalmente consegue ver a verdade de sua relação.59” (WASSERMAN, 2003– tradução minha). É como o suicídio de Michael – por mais que Charlie seja um ávido leitor e um grande observador da vida, quando confrontado com suas próprias questões, só consegue enxergar os fatos com os quais conseguiria lidar. Ao escrever sobre seus sentimentos e ao tomar uma atitude ativa com Sam, Charlie se coloca

59 No original: “Because he no longer feels as though his aunt was the only one to love him, he can begin

em controle do próprio caminho: “Ele ganha uma nova perspectiva sobre sua vida e, mais adiante, sobre sua vitimização pela tia.60” (WASSERMAN, 2003– tradução minha).

Nesse sentido, o verdadeiro desenvolvimento de Charlie como indivíduo com identidade própria se dá quando finalmente passa a encarar a experiência traumática, com todas as suas consequências:

O surpreendente momento em que Charlie revive seu passado reprimido é devastador e difícil de tolerar emocionalmente, mas é o momento em que ele realmente começa a se sentir livre do peso insuportável de tentar entender quem é, e porque deseja desesperadamente entender o mundo em que vive. Apesar de ação levá-lo a esse momento de revelação, é o ato de escrever que o ajuda a colocar sua vida sob um novo olhar e fornece a peça que faltava para completar a imagem de si próprio61. (MATOS, 2013 – tradução minha)

Esse amadurecimento que Charlie demonstrou em suas cartas finais o levou a encarar o trauma de forma consciente. Charlie não só é capaz de perdoar tia Helen, como a compreende. Charlie confessa que culpou a tia e sentiu raiva por um tempo. Mas, no final das contas, a conclusão a que Charlie chega é que, por mais que seja importante que ele tenha lembrado do que lhe aconteceu, a experiência traumática não o define. Não é toda a sua identidade, apesar de ser parte de sua vida:

É que se eu fosse culpar a tia Helen, teria que culpar o pai dela por bater nela e o amigo da família por ter abusado dela. E a pessoa que abusou dele. E Deus por não ter parado tudo isso e outras coisas muito piores. E eu fiz isso por muito tempo, mas não mais, porque não adiantava de nada. Eu não sou como sou por causa do que sonhei e lembrei sobre a tia Helen. Foi isso que descobri quando as coisas se acalmaram.62 (CHBOSKY, 2009, p.228 – tradução minha)

Enquanto o romance inteiro representou um menino cuja inocência era inusitada, os momentos finais, que mostravam o mesmo menino reconhecendo e lidando com um trauma profundo, evocaram nele uma maturidade e conhecimento notáveis. Charlie se

60 No original: “he gains a new perspective on his life, and later, on his victimization at the hands of his

aunt.”

61 No original: “the surprising and unprecedented moment in which Charlie reawakens his repressed past is

heartbreaking and difficult to tolerate emotionally, but it is the moment in which Charlie truly begins to feel free from the unbearable burden of trying to figure out why he is the way he is, and why he so desperately craves to understand the world around him. And although action leads him to achieve his moment of breakthrough, it is the act of writing that helps him put his life into perspective and provides the missing puzzle pieces that complete the image of the self.”

62 No original: “It’s like if I blamed my aunt Helen, I would have to blame her dad for hitting her and the

friend of the family that fooled around with her when she was little. And the person that fooled around with him. And God for not stopping all this and things that are much worse. And I did do that for a while, but not anymore, because there was no point. I’m not the way I am because of what I dreamt and remembered about my aunt Helen. That’s what I figured out when things got quiet.”

despede do destinatário avisando que vai parar de escrever, pois estará ocupado demais “participando”. A escrita auxiliou Charlie no seu processo de autoconsciência, fazendo com que refletisse sobre os acontecimentos de sua vida e, assim, criasse segurança para viver na sociedade – algo que, com a perda da tia e a morte do seu único amigo, se sentia debilitado para fazer. E é nesse processo que Charlie quebra o silêncio e mostra que escolheu viver – de forma ativa, agora – apesar do trauma, sem deixar que ele o limitasse.

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