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Vista do A série This Is Us no viés da Semiótica do Sensível.

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Academic year: 2021

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A série This Is Us no viés da Semiótica do Sensível:

Processos de subjetivação e construção de afetividades

Robéria Nádia Araújo Nascimento

Professora Associada (Universidade Estadual da Paraíba). Doutora em Educação (Universidade Federal da Paraíba). Professora Permanente e Coordenadora Adjunta do PPGFP/UEPB (Programa de Pós-Graduação em Formação de Professores). Email: rnadia@terra.com.br

Resumo

A série americana This Is Us é analisada sob o embasamento teórico da Semiótica do Sensível (GREIMAS, 2002) a título de evidenciar os processos de subjetivação que a permeiam. Uma das chaves de leitura para as subjetividades do gênero dramático (NOGUEIRA, 2010) envolve uma gramática de emoções que nos induz à projeção empática de novos sentimentos pela via do valor-afeto (SODRÉ, 2006). Assim, a intencionalidade é pensar a experiência imersiva do espectador como artefato e pretexto de interpelação dos modos de contato estabelecidos com e pela narrativa, a fim de compreender os signos afetivos e sensoriais de projeção para o “lugar do sensível” proposto (e não dado) pelo enredo.

Palavras chave

Ficção seriada; Semiótica do Sensível; Narrativa dramática.

Abstract

The american series This Is Us is analyzed under the theoretical foundation of the Semiotics of Sensitive (GREIMAS, 2002) the title of evidence the processes of subjectivation that permeate. One of the keys to reading to the subjectivities of dramatic genre (NOGUEIRA, 2010) involves a grammar of emotions that leads us to the empathic projection of new feelings through value-affection (SODRÉ, 2006). Thus, the intention is to think the immersive experience of the spectator as artifact and pretext of questioning of modes of contact established with and by the narrative, in order to understand the affective and sensory signs that of projection for the "place of sensitive" proposed (and not given) by the plot.

Keywords

Serial Fiction; Semiotics of Sensitive; Dramatic Narrative.

Introdução

Este texto articula visões preliminares derivadas de uma pesquisa em curso sobre a complexidade narrativa (MITTEL, 2012) da série americana This Is Us (criada e dirigida por Dan Fogelman). O intuito é verificar como o produto ficcional ilustra os dramas intricados, nos quais a construção de sentidos é delineada com intensidade entre as incógnitas de um roteiro passional que se retrai e se refaz por sequências não lineares de captura de significações.

Narrativas ficcionais do gênero, que mobilizam afetividades e vínculos para reverberar contextos familiares e cotidianos, oferecem um significativo patamar de reflexão, como parecem fazer avançar o entendimento da comunicação e de seus processos, ao fornecerem pistas sobre o papel da mídia audiovisual na reprodução e/ou crítica das questões sociais contemporâneas, cuja valoração simbólica guarda estreita relação com os mecanismos comunicativos. Assim, torna-se oportuno percorrer as apropriações e sugestões da série, sobretudo considerando essas movências, nas quais a matriz espectatorial é instigada pelos

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sentimentos. Nessa perspectiva, chama a nossa atenção a potência de afetos da narrativa para comover ao falar de amor transcendendo as estratégias romanescas usuais dos folhetins dramáticos.

Para fins propositivos de observação, o recorte teórico estabelecido parte da premissa de que os laços representados indicam processos de subjetificação que favorecem uma experiência imersiva propensa a identificações e reconhecimentos. Nesse eixo de raciocínio, a produção de subjetividades é pensada enquanto chave de leitura da referida produção, porque é, em síntese, “essencialmente fabricada e modelada no registro social” (GUATTARI; ROLNIK, 2010, p.31). Depreendemos, dessa forma, que o outro é uma extensão de nós mesmos no limiar das pulsões e agenciamentos das sociabilidades, buscando perceber como a problemática é difundida no arcabouço narrativo.

Os enlaces afetivos constituem a proposta do contexto em foco na tentativa de instaurar um espaço de heterogeneidades e tensionamentos que não podem ser tratados apenas pela ordem discursiva e pragmática das aparentes funcionalidades instrumentais (isto é, somente centrados “no que é dito” e “para quê é dito”). A vertente da Semiótica do Sensível, postulada por Greimas (2002), acena com a compreensão das subjetividades em meio às humanidades de nossa “imperfeição”, fato que parece convergir com as singularidades da série. Então, as contribuições teóricas articuladas, acrescidas de conceitos trabalhados por outros autores, parecem expandir as reelaborações de sentidos das vidas cotidianas apresentadas na ficção em suas dimensões (e implicações) de afetos.

Nessa direção, inferimos, e tentaremos demonstrar, que as interlocuções sugeridas iluminam a trama1, cujos contornos sensíveis plasmam uma construção psicológica que corrobora o protocolo do gênero dramático (NOGUEIRA, 2010), mas o fazem de modo refinado e complexo, ao expor relações controversas, conturbadas por rancores e silenciamentos, ainda que ancoradas por ternuras. No território do sensível, pensamos que enfoques dramáticos dão cor e textura à pluralidade de fatos reais para despertar sentimentos de empatia e possibilidades cognitivas que solicitam releituras. Para ratificar tal hipótese, efetuamos uma análise sucinta do produto ficcional em questão buscando traduzir suas sensorialidades em impressões incipientes ora compartilhadas.

1.

Fragmentos do cotidiano de This Is Us

Numa breve incursão pela narrativa, relembramos que a história da família Pearson, formada por Rebecca (Mandy Moore) e Jack (Milo Ventimiglia), começa em 1979, no cenário urbano de Pittsburgh. O casal vivencia a expectativa feliz da chegada de filhos trigêmeos no ensaio da construção do papel social de pais. Entretanto, a felicidade é interrompida quando um dos bebês não sobrevive ao parto. Para compensar a dor da perda, os dois decidem ainda na maternidade adotar um bebê negro, Randall, que havia sido abandonado pelo pai biológico William (Ron Cephas Jones). As vidas dessas pessoas são interligadas e, enquanto espectadores, acompanhamos suas trajetórias da infância até as ambivalências e angústias da fase adulta.

O filho biológico Kevin (Justin Hartley) se torna um ator de televisão bem-sucedido, mas deprimido e cansado de papéis superficiais. No empenho de provar que possui talento, e não apenas beleza, desenvolve dependência de álcool e remédios que o levam a uma reabilitação. Kate (Chrissy Metz), sua irmã gêmea, é uma mulher obesa que convive com

1 A estreia mundial da produção, que se encontra na quarta temporada, ocorreu em 20 de setembro de 2016. O primeiro trailer alcançou mais de 70 milhões de visualizações. A métrica consolida a ressonância positiva de uma história que nos apreende com seus paradoxos e conflitos sem apelar para mundos futurísticos ou tecnologias bizarras como fazem as narrativas de ficção científica.

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rejeições e trava uma eterna luta para perder peso. Randall (Sterling K. Brown2), apesar de feliz e grato pela adoção, enfrenta os percalços do racismo desde criança, que lhe impulsionam a procurar seu pai biológico para conhecer as razões do abandono.

Não há caracterização icônica da vilania mediante ações perversas, sórdidas ou sarcásticas. É a vida que impõe as diferenças. Cada personagem é emocionalmente instável, mas sobrevive às dores, amores e violências simbólicas, desconstruindo estigmas que dão a entender a disforia da série em paralelo à discussão das sociabilidades contemporâneas. Estados disfóricos apontam repentinas oscilações marcadas por sentimentos de tristeza, melancolia ou pessimismo que se intercalam com sensações subjetivas de alegria ou prazer. O hibridismo de elementos forja um pacto com a audiência traduzido em diálogos que nos provocam o riso ou que nos despertam terna emoção.

Figura 1- Personagens da série

Fonte: Site Oficial da Série: https://www.nbc.com/this-is-us

As sensações integram o cotidiano social envolvendo tudo que o constitui: tanto no que significa permanência (o seu conteúdo) e que, portanto, se repete; quanto no que lhe é singular (suas formas e códigos), que demandam atenção para as dubiedades e os recomeços (ALVES; OLIVEIRA, 2010). Ao propor uma sociologia compreensiva, que denominou “do aqui e do agora”, Maffesoli (2005) examina o cotidiano como uma categoria “não objetivada”, já que manifesta a essência humana em suas vulnerabilidades. É, pois, na complexidade cotidiana que experienciamos uma razão sensível.

Quando se prioriza apenas a exterioridade e a utilidade dos sujeitos há um distanciamento do paradigma sensível. No ponto de vista do autor, a razão sensível é crucial porque contraria a perspectiva de um mundo objeto sem se tornar obstáculo das formas de convívio: ao contrário, potencializa o estar junto e a alteridade. Por esses aspectos, o viver não se separa do “sentir”, e o amor não é sinônimo de utopia piegas, mas um signo compartilhado socialmente por um idioma universal.

Defendendo os entrelaçamentos de razão/emoção, Maffesoli (2005) enfatiza que as sensibilidades incluem os diversos modos de existir, as maneiras de pensar, de se situar e de dialogar com os outros para além das fronteiras linguísticas ou das barreiras sociais. As relações se constroem e progridem nos movimentos cotidianos, apesar de nossos medos, diferenças e inseguranças, afirmando o caráter experimental e sensorial da vida. É no empirismo que os afetos se tornam vetores de introspecção e transformação interpessoal, como parece ilustrar o universo de This Is Us.

Desdobrando-se em fluxos passionais, a série evidencia a intertextualidade da noção de família pela qual mobiliza memórias e situações afetivas que nos transmitem a impressão

2 Em 2017, o intérprete da versão adulta de Randall tornou-se o primeiro negro a vencer o Emmy Awards como “melhor ator em série dramática”, num período de 19 anos. Esse hiato desvela questões de racismo que envolvem a indústria cinematográfica.

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de já as termos presenciado e sentido. Assim, a apropriação fornece o cruzamento com o mundo social na simulação de acontecimentos e sensações. Como consequência, a narrativa se torna um espaço prazeroso de evasão, fruição e produção de sentidos, ao mesmo tempo em que explora emoções e “reconhecimentos”. Nogueira (2010) supõe que a interpelação do espectador é uma tentativa de inverter suas convicções ou confirmá-las. Portanto, uma espécie de insight é mobilizado para capturar o interesse pela trama mediante personagens que encarnam razão e paixão.

Discutindo as estratégias de captura de atenção, Sant’Anna (2008) diz que a intertextualidade é um dos mecanismos de bricolagem para incorporar na tela experiências “alheias” por reconstrução. Nessa instância, é possível entender que, em This Is Us, a transcrição do cotidiano familiar não é óbvia, mas ressignificada com sensibilidade. Num mundo social de incomunicações e diálogos superficiais, o reconhecimento do sensível auxilia o trânsito das emoções ao mesmo tempo em que possibilita a consciência crítica na recuperação dos fatos sociais. No trabalho de reconfiguração, os arquétipos e estereotipias mostrados na série impedem o efeito do estranhamento.

Mas até que ponto a verossimilhança configura uma estrutura valorativa da trama? Porque, segundo Jost (2012): “O sucesso de uma série deve-se menos aos procedimentos que ela utiliza (visuais, retóricos, narrativos etc.) do que ao ganho simbólico que ela possibilita ao espectador” (JOST, 2012, p. 25). Numa tradução literal do título, podemos encontrar a simbologia de que “estes somos nós”, pois, afinal, existe muito de nós nos personagens. Sobressai, então, a hipótese de que os seres da ficção não precisam de edições ou efeitos especiais sofisticados para nos representar. Embora a série não se refira diretamente a pessoas reais, como no gênero documentário, intuímos que nelas se inspira em razão da plasticidade.

No argumento de Lopes (2004) a mobilidade discursiva ficcional sugere a interpretação de vivências reais com seus múltiplos significados, através das imagens e símbolos das narrativas. Em razão da polissemia, dinâmicas de subjetivação se imbricam e reverberam contagiando diferentes segmentos do espaço público por impulsos afetivos de similaridade. Cria-se, além da identificação social, uma cultura de ecos, porque os espectadores, independentemente de classe, sexo, idade ou região, participam da circulação dos sentidos das histórias em inúmeros circuitos onde estes são reelaborados e ressemantizados. Dessa maneira, a teia de sedução é tecida espontaneamente pelos debates sobre as mensagens, permitindo a (des) construção de novas sociabilidades e discursividades que induzem a continuidade das histórias (LOPES, 2009).

Jost (2012) busca compreender a familiaridade da audiência ressaltando que os produtos preenchem a instância da ficção de realidade e a realidade com a ficção adquirindo status de “obras” narrativas. Segundo o autor, isso ocorre através de três caminhos que se bifurcam. A primeira trilha é a “atualidade”, composta por duas faces: a “dispersão” e a “persistência”. A dispersão é a credibilidade ficcional derivada da aparição e desaparição de acontecimentos na absorção pela realidade. A persistência evoca o sentido de real que se mantém a partir das alusões contemporâneas ou de situações que o identifique.

Já a segunda trilha é vista como “universidade antropológica”, numa alusão ao que há de humano em nós, contrariando modelos psíquicos dicotômicos, e também redutores, como o bom e o mau. O autor ressalta que a humanidade dos personagens é privilegiada sobre qualquer espécie de superpoder ou habilidade mágica que os separassem do real humano. A humanidade surge, então, como compensação simbólica para nos levar a refletir sobre nós mesmos.

Por fim, a terceira via diz respeito à midiatização, estratégia de encenação realista que oferece uma impressão de verdade às réplicas do cotidiano com códigos de endereçamento reconhecíveis no mundo icônico da significação. Tais códigos seduzem, porque são habitualmente percebidos por meio do discurso narrado e das imagens apresentadas: “No

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mundo das séries, a verdade surge sempre através das imagens da atualidade que a TV despeja, ou imagens índices que confundem [...]” (JOST, 2012, p. 32).

Apesar das estratégias mencionadas, o autor crê que a captura de interesse reside mesmo na “invenção”. A capacidade de permitir que o espectador conheça aquilo que ainda não sabe sobre o cotidiano que lhe é próximo ou que pensa já saber. Dessa forma, é convocado para enfrentar as dúvidas e descobrir a realidade que se esconde no fundo das aparências, já que nada é o que parece, dada a versatilidade das situações. Assim, entre o dizível e o indizível da trama são tecidas as malhas da atenção e do afeto construindo a lealdade dos espectadores. Uma narrativa também se faz crível e envolvente quando a capacidade de imaginar desfechos torna-se mais estimulante do que comprová-los.

Em recente trabalho, Jost (2019) recupera a ideia de que a assistência se dá de maneira autônoma e substantiva, porque olhamos para a série como um objeto escolhido, eleito por nossas afinidades, e não como um objeto imposto por uma dada programação, o que equivale a redescobrir o significado da abordagem que nos prende através de suas pistas. O novo modo de consumir séries faz o campo da televisão encontrar o cinematográfico, fugindo da mesmice e da previsibilidade, uma vez que, apesar da abertura contínua da história, ou talvez por causa desta abertura, o espectador busque, embora não perceba, “o fecho” que qualquer filme oferece. “De episódio em episódio, a pessoa anseia conhecer a palavra fim da história, que, por encerrar esse movimento dialético de abertura e fechamento, é sempre ilusória” (JOST, 2019, p. 71).

Tudo converge, então, para a sensorialidade de um envolvimento que se expande. Como explica Gordillo (2010), são criadas relações filogenéticas que suscitam novas aderências e novas leituras. Com isso, processos imagéticos de subjetivação coerentes passam a corroborar a funcionalidade do gênero através de características interdependentes e não excludentes entre si: fabulização, a capacidade de atrair as pessoas para outros contextos, mediante a ação de personagens, tempos e espaços; socializadora, ao unir grupos sociais em torno de temáticas comuns, gerando adesões, gostos e preferências; identitária, ao compartilhar os significados e as mutações culturais; disseminadora de modelos, ao organizar situações e personagens familiares, convertendo os estereótipos em sugestões de comportamento; e formativa, já que auxilia a interpretação do mundo social.

Além dessas perspectivas, This Is Us põe em relevo o conceito de “valor-afeto” (SODRÉ, 2006), fazendo-nos admitir “a força primordial do sensível na constituição de formas emergentes de sociabilidade presentes nas narrativas inspiradas no cotidiano” (SODRÉ, 2006, p. 16). Na série, o “estar junto” determina relações de comunicabilidade que se enlaçam nas camadas sobrepostas dos personagens. Em suas simplicidades viscerais, esses parecem não se reconhecer nem caber dentro de si mesmos, diante das questões complexas que apresentam. Nessa dimensão, suas identidades atravessam processos de descoberta e revisão constante gravitando em torno de núcleos familiares com ramificações também subjetivas. Por isso, Guattari e Rolnik (2010) lembram que as complexidades dessa ordem atuam no próprio coração dos indivíduos. E esse coração é “partido” quando nos solidarizamos com os sofrimentos dos personagens que nos tocam e pelos quais torcemos.

Nesse sentido, é possível entrever o potencial da série para instigar compaixão (re) criando reflexões sobre identidades, sociabilidades e vínculos, enquanto estruturas de reconstrução do eu, à medida que as vivências dos personagens são críveis e inspiradoras em suas trajetórias, como convém a ficções associadas às dinâmicas reais. Desse modo, não se apela somente às percepções identitárias da audiência, mas às diferenças humanas com seus diversos graus de tensões e esperanças. Não são narrativas fabricadas apenas para emocionar o público, replicando seus anseios e plasmando um mundo cor de rosa, “mas produtos que forjam diversos reconhecimentos do outro em sensorialismos que se consolidam como novas ferramentas intelectivas” (SODRÉ, 2006, p. 17).

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Na visão do autor, incitam novas inteligibilidades, mediando modos de “pensar” e “aprender” sobre a vida, através das estratégias de fruição que nos conectam as situações representadas. Uma espécie de simbiose e de fetichização do real histórico são forjadas pela via da fabulização, na qual vigora o problema do afeto como princípio a ser buscado e valorizado no enfrentamento das individualidades.

2.

Nuances dramáticas de This Is Us: entre alegrias, dores e

lágrimas

Como sugerido, localizamos com aparente nitidez os contornos de uma produção do gênero dramático, uma vez que o repertório exposto condiz com tal classificação. No entanto, assinala Nogueira (2010) que a matriz das ficções é heterogênea, pois os dramas carregam interfaces que também incorporam traços de comédia sutil ou de suspense psicológico, dependendo dos desenhos sinuosos planejados pelos roteiros. É comum que os personagens riam de si mesmos até para traduzir leveza às angústias que vivenciam, transferindo para a narrativa nuances lúdicas propositais que amenizam os efeitos dramáticos sugeridos.

Dessa maneira, as denominações são fluidas, porque sinalizam aspectos de um conjunto de obras, num esquema genérico de classificação, que procura nelas ressaltar os sinais de uma partilha morfológica e ontológica. Por isso, as definições são parciais e fragmentárias, por se vincularem mais à visibilidade e à notoriedade da ficção, servindo, a princípio, para orientar as motivações seletivas do público. É em torno das indicações de gênero que circulam as primeiras informações sobre as narrativas, sendo necessário, para confirmá-las, conhecer seus marcadores. De modo amplo, o espectador organiza a sua experiência ficcional por intermédio da discriminação de certas categorias, uma vez que a própria classificação já exibe algum grau de similaridade com a vida real, suscitando determinadas expectativas para o público, que passa a reconhecer os códigos inerentes ao formato.

Para Nogueira (2010) linguagens de cunho dramático tendem a impactar a sociedade pelo tratamento de seriedade concedido aos acontecimentos. Isso nos leva a perceber que “o objeto das tramas é o ser humano comum, mostrado em situações corriqueiras mais ou menos complexas, mas sempre com grandes implicações afetivas ou causadoras de inescapável polêmica social” (NOGUEIRA, 2010, p. 29). Ao contrário da comédia, que se reporta às fragilidades ou aos vícios humanos para fazer rir; e da tragédia, que trata da sua elevação e suas virtudes, o drama se refere à vivência mais prosaica do sujeito vulgar, ao mesmo tempo em que trata, com aparente simplicidade, das suas consequências emocionais mais inusitadas.

Elucida o autor que o foco no prosaico aproxima o drama de um registro objetivo e analítico, ainda que, frequentemente, crítico, na tarefa de produzir efeitos de realismo e problematização acerca da sociedade e dos seus valores. O intuito é refletir acerca do lugar do indivíduo no mundo ativando uma potência narrativa emocional que apela à criticidade. Martín-Barbero (2014) pensa que o que está em jogo nas tramas não é discutir o processo de humanização em si, mas de “hominização”: falar sobre as mutações na condição humana. Assim, cada mediação ajuda a desvendar “o bom que existe no mau e o mau que se oculta no mais sublime, porque o humanismo não se aprende memorizando, ou teorizando, mas por contágio” (MARTÍN-BARBERO, 2014, p. 13).

Diferente do que ocorre nas tramas de ação, onde os acontecimentos alcançam rapidamente uma ordem de relevância, e seus protagonistas reafirmam seus egos por conquistas previsíveis, nas histórias sensíveis e emotivas, a caracterização dos personagens permite vários protagonismos e vai se delineando lentamente. Cada coadjuvante tem seu

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instante significativo na trama, que passa a adquirir contornos de especial complexidade quando esses personagens se desdobram e surpreendem.

O mais importante para essas ficções, do ponto de vista narrativo, não é o realce a esse ou aquele papel, ou a conclusão de determinado núcleo, mas é possibilitar o contágio com os seres que as vivem: “Podemos falar em tensão dramática crescente, isto é, nos efeitos que os acontecimentos provocam sobre aqueles que se confrontam com situações de adversidade” (NOGUEIRA, 2010, p. 24). O empenho de Rebecca e Jack para adotar um bebê negro, bem como as dificuldades enfrentadas posteriormente à adoção, através dos coadjuvantes acionados na história, ilustra essa assertiva, ao mesmo tempo em que alerta para os estigmas do racismo no espaço social.

Observamos, por esse contexto, discussões que integram a lógica da complexidade narrativa e que subvertem o eixo central da trama para produzir o seu desdobramento por vários nexos atraentes. Cada episódio, então, pode ser visto fora de ordem, pela temática problematizada, sem, necessariamente, apresentar uma continuidade por forjar microhistórias independentes e reversas com novas singularidades. Institui-se uma nova concepção de temporalidade para a assistência à medida que a lealdade dos espectadores tanto é estimulada como colocada à prova.

Sob o artifício da “costura narrativa”, o embaralhamento de This Is Us também manifesta um eixo espaço-temporal oscilante entre o passado e o presente. Mais do que um mecanismo de captura por atenção, isso constitui, na verdade, parte fundante da série, numa competência que delimita e amplia as nuances de cada personagem. Registra-se, dessa maneira, o princípio do anacronismo, que desenvolve dois universos cronológica e ontologicamente incompatíveis: o ontem e o hoje. Nogueira (2010) explicita que a discordância ou imbricação entre esses elementos tornam a narrativa imprevisível, uma vez que os eixos discursivos contrariam, coincidem, convergem ou divergem, sem uma sequência lógica, remetendo ao agravamento narrativo, marcado por cenas de desconcertação progressiva imposta a personagens, núcleos e/ou situações.

Tal dimensão permite constatar que a diegese de This Is Us aglutina vestígios do drama romântico como também do drama familiar por marcas incisivas, socioemocionais. Isso se justifica “por eleger como tema fulcral o mais compulsivo dos afetos humanos, a convivência, que tende a suscitar maior envolvimento do espectador” (NOGUEIRA, 2010, p. 25). Contudo, a perspectiva dramática também se centra na disfuncionalidade dos grupos, nos quais o conflito de gerações ou os preconceitos sociais, assim como os amores conflituosos, instigam inquietações, interpelando e conectando sentimentos de admiração: “Personagens bastante particulares são marcados pela grande profundidade da reflexão e por uma inquirição incisiva sobre a dimensão espiritual ou as implicações éticas das suas existências” (NOGUEIRA, 2010, p. 26).

Em decorrência de uma configuração nesses moldes, as disjunções e as paixões extremas transferem a séries “superlativas” a expressão tearjerkers, porque o método narrativo é hiperbólico, no sentido de conduzir os espectadores às lágrimas ou mesmo ao pranto convulsivo devido a intensidade das abordagens. Estas, normalmente, aludem a medos, decepções, dificuldades, culpas e perdas, redenções e arrependimentos, ao mesmo tempo em que encantam com a possibilidade de conquistas e/ou superações. A resiliência, na verdade, caracteriza os personagens, que não representam heróis com superpoderes, nem protagonizam lutas do bem contra o mal em cenários sombrios. Mas que, na condição de sujeitos humanos e imperfeitos, emocionam e compadecem a audiência com suas angústias e recomeços “tratando das discriminações que nos destroçam”, e criando, no dizer de Martín-Barbero (2014), “um mapa que desenha os sonhos/pesadelos da nossa utopia de comunidade solidária” (MARTÍN-BARBERO, 2014, p. 14).

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Tudo conspira para que o protocolo narrativo de This Is Us não nos deixe indiferentes e até mesmo apele para os lenços de papel, uma vez que a habilidade de contar uma boa história é mais valiosa do que demarcar um ponto final. Contudo, apesar dos apelos globalizados para cair no gosto da audiência, incluindo-se as resenhas especializadas que atraem a atenção do público, Andrade (2003) reflete que a ficção não deve ser vista como uma “socialização massificada”, mas enquanto instância de socialização à la carte, adaptada aos tempos de individualismo da vida cultural.

A autora interpreta que os seriados, embora sejam direcionados para uma heterogeneidade de espectadores, ainda assim permitem a negociação de valores e experiências morais que podem fazer sentido no nível individual, que respondam a expectativas particulares e inspirem identificações positivas, pois a maneira como cada um “constrói uma imagem de si mesmo, vive suas relações, exprime desejos, experimenta frustrações é permanentemente reapropriada pela confrontação silenciosa dos personagens” (ANDRADE, 2003, p. 231). Logo, os valores de aceitação ou negação das tramas são variáveis compatíveis às subjetividades dos espectadores tornando a ficção uma ferramenta sensorial para a percepção de si mesmos. Em decorrência da matriz de visibilidade, a ambiência ficcional nos propicia o contato com personagens multifacetados que sempre têm algo a nos dizer sobre a essência humana por novos modos de estar no mundo.

3.

Identidades afetivas na ficção: caminhos para a Semiótica

do Sensível

Na construção dos vínculos afetivos, a narrativa de This Is Us apresenta uma instância ontológica que desperta o interesse para os estereótipos, sensibilidades e silenciamentos que atravessam os personagens. Ao sublinhar encontros e desencontros, uma nova leitura das relações humanas e sociais é sugerida permitindo que ficção e realidade se hibridizem para destacar o papel da fabulização na sugestão e disseminação de identidades plurais. Guattari e Rolnik (2010) problematizam que a identidade é um conceito de circunscrição da realidade a determinados quadros de referência; algo “aprendido” empiricamente. Por outro lado, a singularidade tem cunho existencial, uma vez que diz respeito ao “eu” de cada sujeito.

Para Hall (2004), as experiências culturalmente compartilhadas e as negociações de sentidos entre os indivíduos formam a noção de identidades, assim como as diferenças sobressaem aos sistemas de representação social. Sob essa lógica, os sentimentos identitários acontecem no plural por performances marcadas pela impermanência e inacabamento nas trocas simbólicas do tecido cultural. Nessa esfera, as diferenças identitárias, atreladas aos registros e às transições da historicidade, não são simétricas nem fixas ao vivenciarem metamorfoses constantes. Hoje somos uns, amanhã poderemos ser outros: “Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas” (HALL, 2004, p. 12).

Por meio da personagem Kate, somos impactados pelos transtornos das padronizações sociais com seus valores equivocados. A luta para vencer a obesidade expressa a dúvida acerca do amor das pessoas, o sofrimento da rejeição por não corresponder aos parâmetros de beleza do irmão gêmeo que, por sua vez, já se deprime em razão da objetificação da mesma beleza. São personagens que descortinam metáforas das imperfeições humanas, mas que nos impelem a perceber as perversidades dos julgamentos estéticos, que alimentam fragilidades emocionais solicitando o questionamento das suas imposições e necessárias transposições.

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Figura 2- A personagem Kate

Fonte: Site Oficial da Série: https://www.nbc.com/this-is-us

Através de Randall, a luta contra o preconceito e o abandono é redefinida, atribuindo sentido às palavras de Maffesoli (2005), que pressupõe a ruptura de estereótipos como alternativa para novos paradigmas sociocivilizatórios. O autor afirma que o embate com as injustiças surge nas entranhas e subterrâneos da sociedade, nos lugares e espaços que obscurecem os sujeitos que ali vivem, em condições de inferioridade, sem vez e voz nas interações culturais. Dessa forma, a história do personagem evoca os dramas e as tensões das periferias, dos lugares invisibilizados e silenciados, propondo a reflexão sobre os modos de viver subjacentes a esses impasses e os consequentes enfrentamentos que formam o sentido da resiliência.

Figura 3- Randall e seu pai biológico, William

Fonte: Site Oficial da Série: https://www.nbc.com/this-is-us

Por essas angulações, This Is Us se torna uma ambiência pertinente para se observar o micro, o outro e as diferenças que os constituem, de acordo com a proposta de Maffesoli (2005). O autor aborda que vivenciamos o fim da era das homogeneidades e das idealizações de sexo, identidades, cor, idioma, classes ou etnias. Portanto, é tempo de se ouvir os anônimos e as suas diversidades. Nesse tempo emergente, faz-se essencial construir uma nova centralidade histórica e um novo conceito de civilidade que, na série, passa pelas afetividades e não advêm de feitos heroicos ou de uma sociedade pós-apocalíptica com destroços humanos, desenhando-se nas próprias margens do cotidiano social, como a trajetória de Randall inspira.

Numa simplicidade refinada, os fragmentos da trama exploram diferenças derivadas de dinâmicas simbólicas e discursivas cambiantes, conforme notabilizado nos estigmas que cercam o personagem. Vale sublinhar que a atribuição de sentidos aos sujeitos, segundo Silva (2008), guarda estreita vinculação com distinções hierárquicas do espaço social que são praticadas coletivamente, a exemplo das ações de incluir/excluir (estes pertencem; aqueles, “não”), demarcar fronteiras (nós e “eles”), adjetivar (bons e “maus”), normalizar (somos

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“normais”, eles, “não”), como se fosse possível, nas palavras do autor, existir uma identidade social sem costuras que justificasse qualquer nível de segregação.

As experiências intersubjetivas de This Is Us repercutem comportamentos contraditórios e expressões de sociabilidade que afetam relações familiares mal resolvidas, ou que delas têm origem, como os desamores provocados pelo bullying. A problemática sinaliza a “desmontagem” de uma hegemonia racionalista que, nos termos de Martín-Barbero (2014), até agora opunha “o inteligível ao sensível e ao emocional, a razão à imaginação, a cultura à técnica (...) ao contrário de os por juntos, num mínimo de utopia impregnada de futuro” (MARTÍN-BARBERO, 2014, p. 9).

No entendimento de Bulhões (2009), narrativas do gênero contam verdades em traços de similitude com o mundo social, sem os quais a viabilidade da transgressão do “ato de criar” não se efetivaria. Na vida real sonhamos e perdemos, alternamos alegrias e tristezas, amamos e nos entristecemos: “A ficção não é um invólucro impenetrável, uma cápsula suspensa na imaterialidade: repete o real para transfigurá-lo, por tê-lo conhecido, e por isso o subverte” (BULHÕES, 2009, p. 22). A verossimilhança se sustenta por meio de intrigas e impasses que hibridizam diferentes pontos de vista, através de cruzamentos e flashbacks que propõem novos nexos discursivos para a expansão e o futuro da narrativa, a partir de um questionamento-slogan: o amor será mesmo capaz de superar tudo?

Dessa forma, o universo de afetos merece significativa atenção por ser parte fundante da subjetivação encaminhada pela trama. Gonzalez Rey (2005) advoga que o cotidiano dos indivíduos não é um sistema linear e contínuo, mas dinâmico e impregnado de valor emocional. Em outros termos, parâmetros externos e internos ao mundo social são sempre influenciados pelos sentimentos e pela potência afetiva dos sujeitos, suas capacidades de sentir e externar emoções por afinidades conectivas. Os sentimentos são relativos à essência humana definindo uma dimensão dialógico/dialética entre a subjetividade e a sensorialidade constituindo os sujeitos em interação no/com o mundo social.

Nos campos sensíveis da significação afetiva, as experiências de convívio fomentam uma gramática de emoções (GREIMAS, 2002), cuja subjetividade é resultante de agenciamentos singulares de construções de sentidos do mundo. Esses agenciamentos são alfabetos imateriais descentrados, incluindo a natureza infra-humana, infrapsíquica, infrapessoal, relativas aos sistemas de percepção, de sensibilidade, de afeto; bem como de desejo, de representações e de imagens de valor social que se interpõem às relações interpessoais. Portanto, a gramática de emoções é plasmada no registro sociocultural das existências humanas, que tanto incorporam o sentido do sensível como acionam as empatias.

Com propriedade, Sodré (2005) rejeita qualquer descompasso entre o logos e o phatos, dualidades entre a razão e a paixão, na assertiva de que a força primordial do sensível – do emocional, do afetivo, do mítico, do sentimental – determina as formas emergentes de socialidade: “O ato de conviver tem mais a ver com a dimensão corpo e espírito, corporalidade e sentimento, do que com a razão” (SODRÉ, 2005, p. 16). Nesse pensamento, afeto aparece como manifestação humana subjetiva e não como contrária ao que se mostra “objetivo” ou “racional”. Afeto em seu significado emotivo de produzir sensações, “mas sem utilização embelezadora dos discursos e sem abrir os canais lagrimais dos interlocutores por apelo à banalidade retórica” (SODRÉ, 2006, p. 75).

Na vida coletiva, o contato e o afeto são categorias centrais para o agir comunicativo e interpretativo, seja qual for a ordem linguístico-simbólica das mediações do mundo social. Como postula Martín-Barbero (2014), na constituição da subjetividade, o eu só se torna real na reciprocidade da interlocução. Dialogar, então, é ação tecida por uma base de pronomes pessoais que formam a textura da intersubjetividade: “É descobrir na trama de nosso próprio ser a presença dos laços sociais que nos sustentam” (MARTÍN-BARBERO, 2014, p. 33).

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Considerando a importância desses laços, Sodré (2006) acrescenta que “a zona obscura dos afetos é aquela energia psíquica que nos induz a produzir inferências lógicas entre nós e os outros. Temos, pois, um cérebro emocional” (SODRÉ, 2006, p. 25). Nessa dimensão, o valor-afeto supõe uma imagem ou uma ideia, mas a ela não se reduz, por ser puramente transitivo e não representativo. Desse modo, a ação de afetar explica a subjetividade em suas condições de singularidade.

O conceito, por sua vez, absorve o significado da emoção, um fenômeno interno que se define por um estado de choque, de perturbação na consciência, de descarga de tensão, que equivale à energia psíquica mais próxima do estado humano de paixão: “A emoção dá unidade aos fenômenos sensíveis, caracterizando-os de forma diferente em cada ser, colocando-os em movimento na dimensão subjetiva da sensibilidade e das sensações” (SODRÉ, 2006, p. 29).

Entretanto, num mundo individualista, o afeto e o sensível são vistos com desconfiança no ethos da indiferença para com o outro. Andrade (2004) reflete que o amor é alvo de preconceitos, como se fosse piegas, pois muito recentemente é que se reconheceu as emoções como processos biológicos relevantes para a convivência humana na consolidação de comportamentos e ligações pessoais duradouras: “Muitas ações são decorrentes de impulsos de sociabilidade, racionalidade técnica de resultados, mas só serão ações sociais quando realizadas sob ação do amor” (ANDRADE, 2004, p. 19). Em contraposição ao cenário do individualismo, colocam-se a amizade, a compaixão e a ternura como signos de proximidade e criação de um novo espaço coletivo, no qual o amor seja o próprio acontecimento de sentido.

A incursão teórica formulada por Greimas (2002) aposta nessa possibilidade contemplando justamente a dimensão do sensível como inspiração das projeções empáticas que movem a vida social: tendemos a nos ver naqueles que julgamos parecidos conosco, ou que vivem situações que já vivemos. Talvez por isso o cotidiano retratado na série seja comum a muitos grupos sociais, transferindo-lhe uma potência afetiva de conexão e similaridade.

Traduzindo uma impressão de verdade, a narrativa de This Is Us não dissemina um pseudo mundo social ou uma era inventada, como é usual nas produções futurísticas, que poderiam impedir reconhecimentos do público. Na sua concepção, há referências a um cotidiano comum a qualquer um de nós, no qual a vida de todos os dias se desdobra com pausas e reticências num constante devir. A menção às coisas simples não produz condicionamentos da audiência e ainda permite que a experiência imersiva se fortaleça por identificação, “colando o espectador à tela”, numa paráfrase do pensamento de Jost (2019).

A construção de subjetividades em This Is Us expressa uma confluência de ideias que põe em movimento as sabedorias e os percalços cotidianos produzindo um “sentir-pensar” que é tratado por Medina (2003) como signos da relação humana em impulsos do inconsciente coletivo, “aflorando significados aproximativos da realidade, mas jamais um retrato chapado. A partir desse real constrói-se um real simbólico, modos de ser e de dizer que se narram na singularidade das pessoas” (MEDINA, 2003, 133).

Numa prosa-poética interpretativa, o paradigma semiótico do sensível formulado por Greimas se alicerça em duas premissas: a primeira sugere que a experiência da percepção das coisas, pessoas e sentimentos tem sempre um elemento social que nos é comum, mas que, ao mesmo tempo, arrebata-nos e nos desvia da rotina cotidiana, sem perdê-la de vista, disparando em nossas mentes e em nossos corações o gatilho do “reconhecimento”. Tudo aquilo que nos acontece e que nos marca de alguma maneira tece elos sensoriais de relações com o nosso mundo. O “já vivido” afeta as novas construções de significados, os novos modos de fazer-sentir e de compartilhar os sentidos subsequentes.

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A segunda premissa compreende a experiência “das coisas” como articulações entre o sensível e o inteligível por vinculação e reciprocidade na percepção das sensibilidades daí advindas. Nessa lógica, duas apreensões anunciam “um sentido ‘sentido’” nas empatias e afinidades humanas: “O sensível não apenas ‘se sente’ (por definição), mas também tem sentido – ou melhor, faz sentido –, o próprio sentido, inversamente, em si mesmo incorpora o sensível” (GREIMAS, 2002, p. 130).

O raciocínio da sensibilidade parte de uma inteligência afetiva, que expande a semiótica do sensível, através de uma apropriação “subjetiva” dos fatos, e essa se desenvolve a partir do que o autor define como “fraturas e escapatórias”, correspondentes às experiências sensoriais: aquelas que reconhecem a presença do poético na vida humana, em meio às relações do cotidiano, onde se observa uma subjetiva “parada do tempo”, que nos alimenta de esperança.

Por essa perspectiva, a subjetividade fundamenta a relação particular estabelecida entre um sujeito e a percepção de algo de valor para ele. Ou seja, da capacidade singular de apreender algo e, posteriormente, atribuir-lhe uma valoração sensível, significativa e individual, que pode explicar os efeitos que as histórias exercem sobre algumas pessoas, e em outras, não. Assim, as sensibilidades derivam dos processos de subjetivação que, por sua vez, “abrem fraturas em nosso cotidiano para vivenciarmos e ‘sentirmos’ novos sentidos” (GREIMAS, 2002, p. 74).

É a valoração pessoal que institui um novo “estado das coisas” através da nossa interpretação, construindo-se por relações específicas com o mundo e aquilo que nos diz respeito; que fala somente a nós, sendo desconhecidos para os outros em sua integralidade. Assim, determinadas mensagens ou pessoas nos tocam mais diretamente, criando confluências com o que nos importa: “Tais relações oportunizam e representam fraturas e escapatórias em nossas vidas: acontecimentos traduzidos que somente ocorrem uma vez e deixam marcas, nostalgias, pressentimentos, esperanças” (GREIMAS, 2002, p.74).

Sensações “visíveis” que fluem diante de uma tela com boas histórias; de paisagens que nos despertam memórias afetivas, de cheiros e sabores que ativam lembranças; ou da leitura de um texto literário ou poético, que nos transportam para a afetividade, uma vez que tais superfícies têm caráter emocional e nos despertam ricas “escapatórias” que somente nós compreendemos. Em face disso, os movimentos de ver e de pensar as coisas do mundo criam em nossas vidas maneiras de sentir particulares, “inspirando outras formas de atribuição de valores às coisas sensíveis no aprofundamento contínuo dos sentidos” (GREIMAS, 2002, p. 72).

Considerações Finais

A Semiótica do Sensível não visa opor o cognitivo ao sensitivo, o racional ao passional, o inteligível ao sensível, mas sugere aglutinar essas dimensões para dar conta dos processos de construção das subjetividades, sob a premissa de que o espaço do sensível aciona a significação dos sentidos. Portanto, a matriz significativa alicerça as experiências das sociabilidades humanas, em diferentes circuitos, que engendram possibilidades de encontro e convivência pelas lentes do afeto e da ternura.

O plano cognitivo não se separa do plano sensível, possibilitando a este condições sensoriais que fomentam a empatia, os afetos, os encantos, as paixões de estar no mundo, e com o outro, entre mesmices, desafios e dilemas. Segundo Greimas (2002), o que é experimentado, vivido, “sentido” se agrega à “ação” de viver com suas imperfeições, forjando

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uma cultura humana mais interativa que se traduz em novas percepções de alteridade como vistas na série.

À luz das considerações traçadas, esperamos que os caminhos teóricos elencados tenham subsidiado uma interpretação, ainda que parcial, dos processos de subjetivação de

This Is Us. A gramática de emoções da trama é ambientada na projeção empática de novos

sentimentos, alfabetos sensíveis, códigos e referentes conhecidos, mas que intensamente nos absorvem. O que os personagens nos dizem? Por que nos cativam de modo relevante? Eles são como nós? Tais prospecções nos motivam e serão aprofundadas na pesquisa em curso por intermédio de outras leituras e interlocuções conceituais.

Num mundo onde a incomunicação ainda prevalece, em razão do individualismo, a série nos convida a ver e a ouvir o outro dialogando com nossas expectativas sensíveis. A representação de cotidianos familiares com suas malhas e questões conquistam e (re) formam cumplicidades. De maneira substantiva, a narrativa se torna tecido, artefato e pretexto para interpelar reconhecimento e reciprocidade nos modos de contato estabelecidos com e pela narrativa, oferecendo signos afetivos e sensoriais capazes de nos projetar para o “lugar do sensível” que é proposto (e não dado) pelo enredo. Pois, como compreende Sodré (2006), “o sensível é esse rumor de fundo persistente que nos compele a alguma coisa sem que nele possamos separar real e imaginário.” (SODRÉ, 2006, p. 221).

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