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O Suicidio livre em face da Religião, da Moral e da Sociedade

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Academic year: 2021

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© Suicídio LiDfe

EM FACE

RELIGIÃO, DA MORAL E DA SOCIEDADE

DISSERTAÇÃO INAUGURAL

APRESENTADA Á E S C O L A M E D I C O - C I R U R G I C A DO P O R T O

jofJs~ Ft< c

P O R T O J Y P . DE ft. f. yASCONCELLOS, SUCCESSORES 51, Rua de Sá Noronha, 59 1 9 0 1

(2)

DR. ANTONIO JOAQUIM DE MORAES CALDAS

LENTE SECRETARIO

Ciemente Joaquim dos Santos Pinto

smile

C o r p o C a t h e d r a t i c o lentes Cathedraticos 1." Cadeira —Anatomia

descripti-v a serai C a rio s A l b e r t 0 d e Ljm a. Cadeira - Physiologia . . . Antonio Placido da Costa. 3." Cadeira—Historia natural dos

medicamentos e materia

me-d l e a Illyme-dio Ayres Pereira me-do Valle. 4." Cadeira — Pathologia externa

e therapeutica externa - . Antonio Joaquim de Moraes Caldas. 5. Cadeira-Medicina operatória. Clemente J. dos Santos Pinto. 6." Cadeira—Partos, doenças das

mulheres de parto e dos

re-cem-uascidos Cândido Augusto Corrêa do Pinho. 7." Cadeira — Pathologia interna

e therapeutica interna . . Antonio d'Oliveira Monteiro. 8.» Cadeira-Clinica medica . . Antonio d'Azevedo Maia. 9." Cadeira-Clinica cirúrgica . Roberto B. do Kosario Frias. 10." Cadeira —Anatomia

patholo-s i c a Augupatholo-sto H. d'Almeida Brandão. 11." Cadeira-Medicina legal . . Maximiano A. d'Oliveira Lemos. 12." Cadeira—Pathologia geral,

se-meiologia e historia medica. Alberto Pereira Pinto d'Aguiar 1.V Cadeira - H y g i e n e . . . . João Lopes da S. Martins Junior. Pharmacia Nuno Freire Dias Salgueiro.

Lentes jubilados < Secção medica j J o s é d'Andrade Gramaxo.

' • Dr. José Carlos Lopes. Secção cirúrgica ; j P e d r o Augusto Dias.

/ Dr. Agostinho Antonio do Souto. Lentes substitutos

Secção medica j J o s é D i a s d'Almeida Junior ' Vaga.

Secção cirúrgica j L u i z de Freitas Viegas. ' I Vaga.

Lente demonstrador

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MIKHA MÃE

Nunca esquecerei o quanto te devo. Pedo a Deus que guie os meus passos na carreira espinhosa que vou encetar.

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Quizeste um padre e saliiu-te um me-dico. Perdoa os subterfúgios de que me ser-vi para não ser padre — no que n3o segui os teus conselhos e exemplos de honradez e lealdade—mas, que queres? não gostava da vida ecclesiaslica ; prefiro trabalhar mais e ganhar menos. Pelo facto de ser medico não deixarei de ser o teu obediente e grato

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Z/. \Larlota \Ôonxaga cie Reabra

Era prova de estima e gratidSÒ.

(Zstdeùciicle

ai li, minha querida esposa, eu de-dico este trabalho — a prova final do meu curso—a que assististe desde o principio. VÇinpuem como tu tem direito a esta of-ferta. oAcceita-a como prova do desejo que

tenho de fa\er-te feli^.

minha filhinha

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W-

7

O F F I C I A L B R I O S O

cvCunca zòau-acztzi o attxili© atte auaica&.

A MINHAS IRMÃS

ana \ lYosa

nna

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^titonio ^ferreira Ccelfío ()<>aquim da Siíva Wires S). Smilia J^ugusta de Sea6ra £). (jníia jiiigusta de Seaôra

(9)

jjr. JlWíerio da |,ttnk lanía j[iía

E A

S U A EX.MA F A M Í L I A

Não se olvidam as relhas amisades nem se esquecem os favores recebidos.

/Vo JLL."° E px."° SNR.

<=£/£. C^íffc-nso- Cyíuausia da L^asia

Doido professor, dislincto parlamentar, coração diamantino

SUA EX.ma ESPOSA

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i/r. V0(anõe/ Gyoaçujm tyj\oórigues

E A SUA EX.** ESPOSA

AOS MEUS AMIGOS

Joaquim Albino da Silveira.

Antonio Fécondes Urbano.

Antonio José de Barros.

Aos meus Companheiros de Casa

Qálbano Pereira dos Santos. -Qãntonio da Costa Ferreira. Francisco Corrêa de Figueiredo. SMiguel o/lranda.

QÂrmando de Paiva. oAlberico de Lemos.

iodos os meus condiscípulos

E EM ESPECIAL AO

(Joaquim JJjexandrino da Conceição

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ENFERMARIA N.° 12 DO HOSPITAL DE SANTO ANTONIO

JLL."OS E fx.*°s £NRS.

Jt[. José Jias d'glmiida

§\. Juiz k ç^riitas ftiegas

O alumno reconhecido.

AOS ILLUSTRES CLÍNICOS

j£)t. Ji^a-va- de

L^azvaiko-ÍZ7-t. Ç/ife Ç~?QJCiteè

otyt. ç/Cnfo-aià de Cradt

Mui propositadamente -vos reuni. Sabeis porquê. Cavalheiros primo-rosos, sois mestres na scieucia e na bondade. Dignae-vos acceitar a in-significante offerta do vosso admi-rador

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o JLL."° E px."° SNF

Jr. Intonio îupato liando da iosta

Testemunho da minha consideração, respeito e admiração pelo seu talento.

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Suicídio é o acto pelo qual, ou na plenitude da razão e vontade, ou sob a influencia d'uma affecçâo mental, o homem se mata, ou se expõe voluntária e scientemente á morte com o fim egoísta de perder a vida.

Segundo esta definição não podem ser considera-dos suicidas aquelles que, occasionalmente, se ma-tam cahindo d'um logar elevado; a morte, n'este caso, não é o resultado da vontade, mas d'um acci-dente ou imprudência. Não podem egualmente con-siderar-se suicidas aquelles que encontram a morte no emprego voluntário de meios cuja acção lethifera elles ignoravam; assim, um individuo que se enve-nena, usando voluntariamente substancias cujas pro-priedades toxicas elle não conhecia, não é um sui-cida.

Não são ainda considerados suicidas os homens animosos que, voluntária e scientemente, se lançam

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n'um perigo certo ou se expõe a uma morte inevitá-vel, nao com o fim egoista de perder a vida, mas para obedecer ás leis, para não violar a fé jurada, para não trahir a sua consciência, ou por um sacri-fício sublime pela pátria. Taes foram Socrates, Ee-gulus, Curtius, Samsão, Eleazar, taes foram milha-res de martymilha-res, taes foram os generosos habitantes de Calais que se ofereceram á morte para salvar os seus concidadãos prestes a morrer de fome ou ás mãos do inimigo.

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A palavra suicídio foi creada por Desfontaines no século xvn. Não obstante o suicídio não ter nome pró-prio em nenhuma lingua conhecida, como diz Tissot, e por isso não ser coevo da formação d'ella, pode-mos todavia admittir que elle é tâo antigo como o mundo, porque — e nós o vamos vêr—o suicídio tem-se apresentado ao espirito humano como o remé-dio supremo aos sofrimentos moraes ou physicos jul-gados incuráveis. Portanto, desde que a humanidade, na pessoa de Adão, foi expulsa do paraíso terreal e condemnada a regar a terra com o suor do seu rosto, a ideia do suicídio deveria apparecer como remédio para seus males.

Compulsando a historia nós vemos o suicídio ad-mittido em principio e praticado por todos os po-vos que se tem succedido até á vinda de Jesus Christo. E se considerarmos o paganismo no seu conjuncto, vêr-se-ha que o suicídio é a consequência

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immediata e lógica d'esté principio geral: «como o fim do homem é a felicidade, o infeliz que se mata melhora a sua condição.» N'este principio se funda-vam e fundam ainda hoje aquelles que defendem o suicidio.

Este principio é a conclusão lógica de doutrinas oppostas.

Defendendo o suicidio, uns negam a existência de Deus e a immortalidade da alma e concluem que é preferível a morte voluntária a uma existência mi-serável; outros admittem a existência de Deus e a immortalidade da alma, mas, partidários da metem-i psycose, julgam que o sumetem-icmetem-idmetem-io é uma acção metem-indmetem-iffé- indiffé-rente ou mesmo permittida, crendo que é bom des-embaraçasse d'uma vida infeliz para gosar outra melhor e sob outra forma.

Que o principio que apresentamos é o fundamento d'aquelles que defendem o suicidio. demonstram-n'o as ligeiras considerações, que, vamos fazer, sobre as doutrinas philosophicas que precederam o christia-nismo.— O philosopho asiático chamado Budha pelos Índios, Summonokodum pelos siamezes, Somonaku-tana pelos habitantes de Pegú, Fotoque ou Kekia pelos chinezes e Xaca pelos japonezes, homem sufi-cientemente astuto e engenhoso para enganar povos simples e crédulos, queria fazer-se passar por um Deus e chamava-se Foè—não homem.

O povo, no primeiro estado da lei de A. Comte, era naturalmente disposto a acreditar o maravilhoso

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idola-trava. Budha, reunindo os seus discípulos, revelou-lhes a verdadeira doutrina: «a vida e o nada, isto é, uma materia informe, é o principio originário d'onde emanam e para onde voltam todas as coisas. Os es-píritos, as almas e tudo o que existe não constituem senão um objecto perfeitamente idêntico e cujas for-mas múltiplas derivam d'uni só e mesmo principio.

Este principio é universal, infinito, innato e im-mortal; não tem força, nem intelligencia, nem poder algum ; nada ouve, nada ambiciona e nada faz. Para ser feliz e gosar d'uma felicidade completa, deve-se, a exemplo d'esté principio, não ter affeições, não se inquietar com coisa alguma e passar os seus dias n'uma comtemplação continua. E' só assim que se pôde gosar esta tranquilidade divina, fora da qual se não pôde imaginar uma mais alta beatitude.» E' esta philosophia, commentada e propagada por Fohi e Confucius, que serve de religião e de moral aos chi-nezes. Os lettrados chinezes affirmam que «o princi-pio originário de todas as coisas, Li, isto é, a base da razão e da natureza, é infinito, sem começo e sem fim, sem vida, sem intelligencia, sem poder, puro....» Segundo esta doutrina, o nada é o nosso princi-pio e o nosso fim ; os espíritos e as almas constituem um e mesmo objecto semelhante ao principio origi-nário— eis aqui o materialismo. O principio originá-rio não tem força, nem intelligencia, nem poder — eis a fatalidade. Não ha vicios nem virtudes e con-seguintemente não ha castigos, nem recompensas. São portanto lógicos os orientaes que, a exemplo de

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Budha, põem termo á vida quando ella se lhes tor-nou pesada, visto que, invocando a religião e a phi-losophia, acreditam que a alma de cada homem, de-pois de abandonar o seu invólucro, volta para o prin-cipio originário, para a alma universal, feliz, sem vida e sem intelligencia e ahi permanecerá até que se opere uma nova mudança.

A philosophia, a religião e as proprias leis deram, á China o triste privilegio de ser a nação onde se pratica o suicídio desde a mais alta antiguidade e os factos que se tem dado na presente guerra provam que este bárbaro costume persiste. Se um chinez quer vingar-se d'um inimigo, suicida-se, porque as leis tornam responsável pelo suicídio aquelle que lhe deu causa, de modo que a família do suicida recebe lar-gas indemnisações e a opinião publica honra-o e glo-riflca-o, julgando o suicidio um acto de magnanimi-dade e heroísmo.

Se o chinez matasse o seu inimigo, deshonraria os seus amigos e parentes, reduzil-os-hia á miséria e privar-se-hia das honras fúnebres que julga indis-pensáveis.

Não admira, pois, que os chinezes se matem com frequência extrema e por motivos, muitas vezes fú-teis, seguindo o exemplo de quinhentos philosophos da escola de Confúcio, que, após a execução da or-dem do imperador Chi-Koung-Ti, o qual mandara queimar os livros d'estes sábios, se lançaram ao mar e pereceram nas ondas.

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os dogmas pantheistas da India. Os japonezes, porém, são mais fanáticos que os chinezes. Não esperam que a infelicidade os attinja para se matarem: muitos, movidos por um sentimento religioso, afogam­se, en­ cerram­se em túmulos fechados, onde se deixam mor­ rer de inanição, invocando o seu idolo Amido, ou deixam­se esmagar pelas rodas dos carros que, nas procissões publicas, levam os Ídolos.

Os suicidas são venerados, o seu exemplo seguido e algumas vezes lhes levantam basilicas.

Os Brahmanes da seita dos gymnosophistas ensi­ nam que a regeneração é um facto positivo .e a

morte uma simples mudança d'habitaçào, para a qual se preparam como para uma viagem de recreio. Não admira pois que, a exemplo do seu philosopho Cala­ nus, que se queimou na presença de Alexandre, e mais tarde de Jarmenochegra, que egualmente se queimou perante Augusto, os gymnosophistas se suicidem com frequência.

Na Africa, os padres do Egypto, que eram os philosophos da nação, deixaram entrever, não obstan­ te os enygmas e os hieroglyphos com que envolviam a sua theologia, que os systemas da alma do mundo e da métempsycose formavam a base da sua dou­ trina. D'aqui o amor pelo suicídio que se descobre nos annaes d'esté povo. Sesostris suicida­se, depois de ter perdido a vista; os generaes carthagineses, Amílcar e Annibal, trahidos pela fortuna das armas, põem termo á vida. Os Saguntinos suicidam­se em massa para escapar aos Romanos, prestes a entrar

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na cidade; os Phocios procedem da mesma maneira, depois de terem morto suas mulheres e filhos... e seria interminável a relação, se quizessemos ser com-pletos.

São raros os exemplos de morte voluntária entre os Persas, como entre os Chaldeus. A religião maho-metana oppõe barreiras quasi insuperáveis ao pensa-mento do suicidio. Imbuidos de crenças fatalistas, acreditando que nada succède senão por vontade de Allah, os musulmanos resignam-se a tudo. Todavia, o contacto europeu actual tem talvez modificado as suas crenças, pois que, nos tempos modernos, alguns casos de suicidio se teem observado entre os Persas. Nos annaes dos Hebreus apenas encontramos uns oito suicídios no longo espaço de quatro mil annos ! Seja-nos licito transcrever algumas passagens da Bí-blia, onde os modernos suicidas poderiam encontrar actos de verdadeira coragem, se o suicidio fora um acto de coragem.

«II livro de Machabeus, cp. I; v. 37 —Rhazias autem quidam de senioribus ab Jerosalymis dilatus est Nicanori, vir amator civitatis, et bene audiens: qui pro affectu pater Judeorum appelabatur; v. 38 —Hic multis temporibus continentse propositum te-nuít in Judaísmo, corpusque et animam tradere contentus pro preserverantia; v. 39—Volens autem Nicanor manifestare odium, quod hebeat in Judeos mi-sit milites quingentos, ut eum comprehenderent; v. 40 — putabat enim, si ilium decepisset, se cladam Judœis maximam illaturum; v. 41 — Turbis autem

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irruere in domum ejus, et jamum disrumpere, atque ignem admovere cupientibus eum jam comprehen-dentur, gladio se petiit; v. 42— eligens nobilitei* mori potius, quam subditus fieri pecatoribus, et con-tra natales suos indignis imperiis agi; v. 43— Sed, cum per festinationem non certo ictu plagam dedisset, et turbœ intra ostia irrumperent, recurrens audacter ad murum prsecepitavit semetipsum viriliter in tur-bas; v. 44 — quibus velociter locum dantibus casui ejus, venit per mediam cervicem; v. 45—et cum adhuc spiraret, accensus animo, surrexit: et cum sanguis ejus magno fluxu deflueret, et gravissimis vulneribus esset..., cursa turbam pertransiit; v. 46 — et stans supra quandam petram prseruptam, et jam exanguis etfectus, complexus intestina sua,

utris-que manibus projecit super turbas, invocans domi-natorem vitse ac spiritus, ut haec illi iterum redde-ret: Atque ita vita defunctus est.

Judas — Ev. S. Matheus cp. 27 —Et projectis ar-genteis in templo, recessit et abiens laquo se sus-pendit.

Saul—I L. Reis cp. 31; v. 4 — Dixitque Saul ad armigerum suum: Envagina gladium tuum et per-cute me : ne forte veniant incircuncisi isti, et inter-ficiant me, illudentes mihi. Et noluit armiger ejus; fuerat enim nimio terrore perterritus; anipuit itaque Saul gladium, et irruit super eum ; v. 5 — quod cum vidisset armiger ejus, videlicet quod mortuus esset Saul, irruit etiam ipse super gladium suum, et mor-tuus est cum eo...»

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A Biblia descreve ainda a morte de Achitophel, conselheiro de David —II L. Reis, cp. 17; v. 23, a de Zambri — III L. Reis, cp. 16; v. 18, a de Pto-lomeu Macrom — II L. Machabeus, cp. 10; v. 13.

Vê-se pois que o suicídio entre os Hebreus foi muito raro até á invasão Romana. Depois d'esta epo-cha os suicídios são mais frequentes, mas não tanto como nos outros povos, como o attesta o historiador Joseph. Depois da dispersão dos judeus e da sua re-provação, as perseguições atrozes executadas contra esta raça infeliz explicam o augmento dos suicidas. Era Iork, quinhentos Judeus matam-se uns aos outros, preferindo morrer ás mãos dos seus nacio-naes a serem maltratados pelos incircumcisos.

Os Celtas, que formaram outr'ora a nação mais numerosa do universo, tinham padres e doutores, chamados Druidas, cuja moral adquiriu uma celebri-dade tal que era julgada superior á dos Gregos e Romanos. Os Druidas ensinavam que ha uma divin-dade que anima o universo, que partes consideráveis d'esta divindade habitam os corpos mais vastos do Cosmos, e que por conseguinte se devem adorar as-estrellas, as florestas, os grandes rochedos e os ma-res; que as almas dos homens são immortaes, d'uma origem divina e submettidas á métempsycose. Ne-nhum povo despresou tanto a vida como os Celtas que, segundo conta Valério Maximo, celebravam o dia de nascimento com choros e os funeraes com can-tos. Dar a vida, não era um sacrifício para elles. Sempre promptos a apressar a morte e despresando

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a velhice, á qual assignalavam, como habitação, ura subterrâneo cheio de animaes venenosos, julgavam ter nas suas mãos e nas suas espadas o meio para pôr termo á existência. Os velhos, não desejando uma habitação tão desagradável como a que lhe era des-tinada se morressem de doença ou da propria velhi-ce, costumavam precipitar-se do cimo de certos ro-chedos consagrados a este uso. Ainda hoje existe na Suécia um monumento d'esté antigo costume. Origi-nários do Oriente, os Celtas espalharam-se pelo Nor-te e OccidenNor-te, fazendo passar para os Gregos os princípios da alma do mundo e a métempsycose; es-tes transmittiram-os aos Romanos.

Pythagoras ensinava, embora com outra forma, a philosophia do Oriente, que elle tinha percorrido, principalmente do Egypto, cujos padres o iniciaram nos mystérios mais secretos da sua religião. Assim, elle ensinava que cada objecto é um monada, isto é, uma unidade, na qual se encontra uma parcella da virtude, da essência, do fogo intellectual que anima O universo e que, imprimindo á materia bruta o mo-vimento e a forma, cria as hierarchias dos deuses inferiores, dos génios, das almas do mundo.

Depois da morte de todos estes seres, o seu prin-cipio persistente volta, depois de certas transforma-ções, á origem que não abandona senão para ir ani-mar outros corpos, guiado e dirigido por uma ordem desconhecida. Pythagoras, partidário convicto da mé-tempsycose dizia, com imperturbável sangue-frio, que se recordava perfeitamente ter sido

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successiva-mente (Ethalida, filho de Mercúrio, morto por Me-neias no sitio de Tróia, Hermontino, Pirrho, pesca-dor de Delos e emfim Pythagoras!

Platão, mais fiel observador das leis da natureza, quiz conciliar os dois instinctos que dominam a hu-manidade: o instincto da conservação e o desejo de ser feliz. D'ahi esta maxima, largamente ensinada por Socrates : «é prohibido abandonar um posto mili-tar sem consentimento do general». Portanto, Platão não prohibia o suicidio d'uma maneira geral e abso-luta, porque isso seria conceder muito ao apego da vida em desproveito do desejo de ser feliz, mas re-servava-o para situações difficeis, admittindo que a vida era incompatível com a desgraça. Cicero parti-lhou esta opinião, como se vê das suas palavras: «o Deus que tem sobre nós um poder soberano, não quel-que deixemos a vida sem sua permissão; mas quan-do elle nos faz nascer um grande desejo de morrer, então o verdadeiro sábio deve passar com prazer d'estas trevas ás luzes celestes». A segunda e a ter-ceira academias e bem assim o scepticismo e o Pyr-rhonismo, que ensinavam que a honra e a infâmia, a justiça e a injustiça não são senão opiniões humanas, defendiam o direito do suicidio, principalmente nos casos em que a infelicidade era evidente. Os cynicos, que despresavam os reis, os magistrados, a nobreza, a gloria, a sciencia e artes, fundaram uma philoso-phia triste e brutal que ensinava o suicidio. O pri-meiro e mais tristemente celebre d'entre os cynicos, Diogenes, censurou Speusippe pela sua falta

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de.co-ragem e offereceu ura punhal a Antisthenes corao remédio para curar seus males; o próprio Dio-genes, accommettido por uma febre violenta, suici-dou-se.

Zenão de Cittia, aproveitando-se das doutrinas em voga na Grécia, fundou um systema philosophic/) cheio de pensamentos sábios e sustentou-o com tal dialéctica, que obteve o apoio das escolas e a sym-pathia de muitas nações e mesmo de alguns reis. Ci-cero resume assim esta nova philosophia, a philoso-phia stoica, defendida e praticada por Séneca, Epi-cteto, Plutarco e outros — sendo a natureza que pres-creve os nossos deveres, podemos dizer que todos os nossos pensamentos, mormente aquelles que se refe-rem á escolha da vida ou da morte, a ella se devem referir. Todo o homem que, na sua posição social, vê mais elementos conformes á natureza, deve viver: mas, aquelle em cuja vida predominam as causas do soffrimento, deve morrer. —

Zenão foi um apostolo e uma victima do suicídio-Segundo conta Diogenes-Laërc, Zenão, na. edade de 98 annos, tendo fracturado um dedo e considerando este accidente como um aviso para morrer, exclamou: «En adsum, quid me urges precor?» e suicidou-se. Os legisladores romanos abraçaram, com pequenas excepções, estas doutrinas e promulgaram o celebre decreto— «Mori licet cui vivere non placet.» Mas nin-guém levou tão longe esta philosophia como Séneca, o philosopho vão e illogico por excellencia. Para

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Sé-neca, o verdadeiro sábio deve ter uma constância in-quebrantável; esta constância fará a sabedoria que trará comsigo a felicidade.

Séneca, pondo de parte a modéstia, julga ter atj tingido um tal estado e declara-o publicamente. Jul-ga-se superior á divindade, porque esta é sabia por natureza e elle tornou-se sábio pelo seu trabalho. Orgulha-se de ter adquirido a constância d'uni Deus, quando a naturesa lhe dera apenas a fraquesa d'um homem. «Est aliquid quo sapiens antecedat Deum ; ille nattírae beneficio, non suo, sapiens est: ecce res ma-gna habere imbecellitatem hominis, securitatem Dei».

Séneca affirma que a dôr é sempre ligeira, com-tanto que não intervenha a imaginação— «ad opinio-nem dolemus.» Ainda mais, sustenta que a doença, a dôr, a pobresa, o exilio e a morte, são coisas abso-lutamente indiferentes — «Indifferentia esse dico nec mala, nec bona tanquam morbum, dolorem, pauper-tatem, exilium, mortem.» Mas, e segundo elle dizia, tinha adquirido a sabedoria e a tranquilidade que acontecimento algum poderia perturbar e, apenas com o receio da inconstância da fortuna—«cum pri-mùm illi cœpeiït supecta esse fortuna», mata-se, não para terminar as suas dores, porque isso seria ser vencido — «sic mori vinci est», mas porque é próprio d'um louco o viver para sofrer — «stultus, qui dolo-ris causa vivit.»

Philosopho inconsequente, que não teve a coragem de sustentar a sua doutrina com o exemplo ! — Para

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Aristippe de Cyrene o supremo bem está na voluptuo-sidade, venha d'onde vier, custe o que custar; na

naturesa nada ha justo ou injusto, honesto ou des-honesto, tudo depende dos costumes e das leis; o verdadeiro sábio deve olhar a vida e a morte com a mesma indiferença.

Hegesippe, commentando estas doutrinas, fez des-cripções tão eloquentes das misérias da vida e do praser da morte voluntária, que os ouvintes, conven-cidos, mataram-se em tal numero, que o rei Ptolomeu, querendo pôr fim á destruição dos seus vassallos, prohibiu a publicação dos princípios d'Aristippe.

D'esta exposição se vê que as doutrinas philoso-phicas e religiosas do paganismo concluíam, d'uma maneira mais ou menos absoluta, em favor do suicí-dio. Nem isto deve admirar. Os philosophos pagãos, privados das luzes da revelação e tendo apenas ao seu dispor os recursos da razão, faziam consistir o fim moral da humanidade na felicidade individual. Mas, observando que a felicidade ou não existia ou não podia durar muito, concluíram que o homem se podia subtrair á infelicidade pela morte voluntária. Tal era a doutrina ensinada pelo paganismo. Com o advento de Jesus-Christo, a face moral do mundo transformou-se. O Homem-Deus ensinou de novo a verdade eterna; explicou e commentou o espirito das leis moraes dadas ao povo Hebreu; e a sua doutri-na, embora pregada por homens do povo, mas fun-dada sobre a justiça e sabedoria divinas, espalhou-se

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rápida e largamente e destruiu o principio que per-mittia a morte voluntária, ou fosse para honrar a divindade, ou para pôr termo ás misérias da vida. Mas o elemento civilisador christão teve de vencer

grandes difficuldades para arrancar dos espíritos a*

ideia do suicídio que os elementos greco-romano e germano tão poderosamente tinham enraizado ; logo, porém, que o pensamento christão se fixou profun-damente nas consciências, o suicídio tornou-se extre-mamente raro.

Santo Agostinho, bispo de Hippona, combateu as theorias favoráveis ao suicídio com uma argumenta-ção tâo viva e poderosa, fundando-se nas prescri-pções feitas por Moysés e Jesus Christo, que os pou-cos adversários não tornaram mais a apparecer em campo. Dentro em pouco os concílios sanccionaram as doutrinas d'esté padre por tantos títulos illustre, como o concilio d'Arles, o de Auxeire e o de Troyes. Mas a fé dos nossos antepassados não devia perma-necer sempre tão viva; o tempo enfiaquecel-a-hia e tanto mais quanto se afastava do seu principio. A' tibieza succedeu a duvida, depois a incredulidade e por ultimo a indifferença, o peor mal moral em que o homem pôde cahir. Eutão vieram os espíritos, cha-mados philosophicos, que não quizeram submetter-se ás leis religiosas da sua pátria. Exhumando do pó as antigas doutrinas gregas e romanas, preconisaram de novo o suicídio, já pelos escriptos, já pelo exemplo. Alguns auctores, como Samuel Puffendorf e

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Mo-rus, teem até sustentado que os Padres da Egreja ensinaram uma moral favorável ao suicídio. Dado o conselho e o exemplo, o suicídio deseuvolveu-se pro-digiosamente e em nossos dias é uma coisa banal um homem matar-se e até é considerado como um homem valente e corajoso !

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Nem as leis religiosas nem as leis civis admittem a existência de crime quando não ha liberdade mo-ral, intenção ou vontade criminosa. E, portanto, ne-cessário investigar se o suicídio é um acto de fria razão, de vontade livre e por conseguinte imputável áquelle que o commette, ou se elle é um acto de ra-zão prevertida, de vontade sem liberdade, um acto de alienação mental e por isso mesmo não imputável.

A maior parte dos theologos e moralistas consi-deram o suicídio como um crime, tendo como causas principaes as paixões, a duvida e a falta de crenças e práticas religiosas. Alguns medicos, ao contrario, não admittem o suicídio sem. um estado d'alienaçao mental, mais ou menos pronunciado, que precede ou acompanha o acto.

O demasiado exclusivismo d'estas duas opiniões resulta de que os moralistas admittem o principio da liberdade na sua maxima extensão, emquanto que os

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que professam a doutrina da não-imputabilidade, ne-gam a existência da liberdade moral, dizendo como alguém, que o homem nao é uma força, nem uma causa, mas um resultado, um effeito, uma espécie de machina cega e inerte que trabalha como um reló-gio. Parece-nos poder affirmai" que a verdade está no meio termo. E com effeito, negar a existência da liberdade moral, é um erro contra o qual protestam o sentimento, a razão e o consenso unanime do gé-nero humano. Não somos machinas automáticas, re-gidas só pelas leis da mechanica, nem simples plan-tas submettidas só ás leis da phisiologia. Se assim fosse, teríamos de cumprir fatalmente o nosso desti-no, não haveria actos humanos, não existiria o bem nem o mal moral. Os assassinatos, os envenenamen-tos, o roubo — todos os crimes;—a probidade, a justiça,,a bondade — todas as virtudes, seriam ape-nas funcções d'uma organisação diversamente com-binada e o assassino teria direito de se proclamai-innocente e de dizer ao magistrado: «J'ai tué mon semblable aussi nécessairement que vous êtes le ven-geur de sa mort; chez moi, comme chez vous, le tem-perament fait tout par l'impulsion de l'irrésistible nature; j'ai dû être le tigre qui devore sa proie, et vous avez dû être le chasseur qui le poursuit; vous êtes plus heureux que moi, mais je ne suis plus cou-pable que vous. Si le magistrat était fataliste, il pourrait bien condamner l'assassin; mais il lui serait impossible de répliquer á sa harangue». Pois que! o homem teria o triste privilegio de se tornar

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assas-sino, ladrão, falsario, depois de maduramente ter pe-sado o pró e o contra, e não poderia pôr termo á vida quando o julgasse conveniente? Em que se fun-da a sociefun-dade para condemnar o assassino? Em que elle procede com descernimento, em que elle sabe o que faz. Effectivamente, a instrucção prova que o culpado tomou as suas precauções, previu todas as circumstancias, caminhou com lentidão, mas resolu-tamente para o seu fim. A's vezes, as precauções são de tal ordem que o crime não é descoberto. De ma-neira que todos os dias se praticariam crimes em pleno uso da razão e o homem que attentasse contra a sua vida, uma vida de dores, de privações e de miséria, seria um louco !

O senso commum—auctoridade irrecusável,—con-tradiz tal opinião.

Todos os seres receberam faculdades em harmo-nia com o fim que lhes destinou a natureza; ora o fim do homem é a vida moral que resulta da lucta entre o bem e o mal, entre o justo e injusto; o ho-mem tem faculdades antagonistas coordenadas para o mesmo fim, faculdades animaes e psychicas, oppos-tas pela sua natureza e tendência, em lucta cons-tante; umas vezes com vantagem do organismo, ou-tras vezes com vantagens do psychisme

O homem é pois o supporte de duas potencias, de duas vontades, vontade da carne e vontade da alma; mas é um supporte activo, racional e livre, podendo dar preferencia a uma ou a outra d'estas vontades. Estas duas vontades não estão, como entendem

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ai-guns, n'um estado de equilíbrio perfeito, de modo que fosse tão fácil praticar o bem como o mal.

, E' possivel que o primeiro homem fosse creado n'um tal estado de perfeição; é mesmo possivel que depois da peccado original, alguns seres privilegiados gozem d'uni harmonioso concurso das faculdades, mas isto é a excepção; na maioria dos homens, rompeu-se o equilíbrio a favor da vontade orgânica, cujo poder chega algumas vezes a abafar a vontade moral mais ou menos completamente, prejudicando assim o exer-cício da liberdade. Alguns exemplos. Um ecclesias-tico, homem bastante illustrado, ouvia incessante-mente vozes que ameaçavam expulsai o de casa; Fo-villa procurou demonstrar-lhe que não eram reaes as ameaças e injurias que elle julgava ouvir «hé! mon-sieur, repondait-il, je dois donc aussi douter de tout ce que vous me dites, je dois douter que je vous vois, que je vous entends.»

Um aldeão prussiano julga vêr e ouvir um anjo que, em nome de Deus, lhe ordena que immole seu filho sobre uma fogueira. O aldeão ordena a seu pró-prio filho que leve uma pouca de lenha para o logar designado; o pae estende-o sobre a lenha e immola-o. Ha monomaniacos que se julgam imperadores, reis, papas, generaes, etc. D'estes exemplos e de muitos outros que se poderiam apresentar, vê-se que o po-der orgânico avassalla, algumas vezes, a vontade mo-ral; o insensato é enganado pelos seus instinctos, pelas suas sensações internas e externas, pela pro-pria intelligencia.

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Da perversão material dos órgãos resultam func­ ções egualmente pervertidas; o espirito percebe, com­ para, julga segundo dados falsos para nós, mas ver­ dadeiros para o alienado; e a liberdade, assim enga­ nada pelas faculdades orgânicas e psychicas, não permitte senão actos insensatos, algumas vezes cri­ minosos, mas não imputáveis. A vontade orgânica pôde portanto avassallar mais ou menos completa­ mente a vontade moral, assim como o despotismo pôde enfraquecer até extinguir o sentimento de liber­ dade social que a natureza gravou no coração dos povos. Mas o poder orgânico nem sempre pôde ser considerado como absoluto e irresistível.

Escudado na educação, na razão e na religião, o liomem pôde vencer as suas mais violentas paixões e os hábitos profundamente enraizados. Santo Agosti­ nho pôde combater os seus vicios e tornar­se um dos mais virtuosos e dos mais illustres doutores da Egreja, e Santo Antonio pôde subtrair­se ás allucinações eró­ ticas que, sob o nome de tentações, vinham experi­ mentar a sua castidade. O estudo imparcial do suici­ dio não nos permitte acceitar d'uma maneira abso­ luta uma das duas opiniões que deixamos expostas. Não se pôde dizer que o suicídio é sempre um acto de loucura. E na verdade, um individuo que segue a doutrina materialista, procura a felicidade na satisfa­ ção dos seus desejos e necessidades; mas, por quaes­ quer circumstancias, não pôde gosâr as suas satisfa­ ções anteriores e cahe n'uma série successiva e inter­ minável de sofrimentos pbysicos e moraes; este in­

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dividuo, em conformidade com as suas crenças, admitte que o nada é o termo de todas as coisas, e portanto mata-se, preferindo a morte a uma vida de ignomi-nia, de miséria e de sofrimentos.

Onde está aqui a loucura? Onde estão as lesões das faculdades instinctivas, moraes e intellectuaes? Apreciar o seu estado actual, comparal-o ao pas-sado, julgal-o insupportavel e matar-se, é um acto de loucura? Não será antes exhibit- uma sã razão, mos-trar lógica, vontade e liberdade? E nem se diga que o suicida, ainda mesmo aquelle que tomou a resolu-ção de se matar depois de madura reflexão no mo-mento mesmo em que vai pôr em execução a sua idéa, se encontra n'um verdadeiro estado de delírio, como o attestam a agitação, a angustia, as hesitações, a pallidez e o desespero pintado no seu rosto. Esta exaltação moral existe efectivamente, mas prova apenas que o homem, em face d'uma decisão supre-ma, não pôde conservar sempre o sangue-frio, agi-ta-se e inquieagi-ta-se. É, de resto, o que vemos cons-tantemente.

Um individuo que se sujeita a um concurso pu-blico de cujo resultado dependa o seu futuro, turba-se, inquieta-se a ponto de algumas vezes se lhe paraly-sar a memoria; o ladrão hesita muitas vezes antes de commetter o seu primeiro delicto. O assassino, o parricida, a adultera e emfim todos os grandes cri-minosos terão apresentado, no momento em que vão commetter o crime, uma horripilaçao nervosa que mostra, n'alguns casos, a lucta tremenda travada no

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seu espirito entre o justo e o injusto, as paixões e o dever.

Ora o suicidio é, sem duvida, um acto bastante grave para perturbar aquelle que o vae praticar, por­ que, ou se trata d'um crente e então lia a lucta en­ tre o dever e o crime ou se trata d'um incrédulo, e, ao menos para este, o instincto da conservação, a existência d'um pae, d'uma esposa, de filhos, fazel­o­ hão vacillar no ultimo momento; portanto, ou devo concluir que o assassino, o ladrão, a adultera, etc., são loucos e que todo o género humano está na emi­ nência da loucura, porque todos os homens estão su­ jeitos a emoções e á tortura das paixões, e que por conseguinte a penalidade é uma monstruosa injusti­ ça, ou que a agitação, a angustia, a pallidez, etc., não demonstram que o suicida é um louco. E' esta a conclusão forçada a que teem chegado aquelles que consideram o suicidio sempre como um acto de lou­ cura. Ha, efectivamente, escriptores que teem sus­ tentado que o homicídio deveria ser considerado como um acto de loucura; alguns chegam mesmo a dizer — que todos os crimes são monstruosidades moraes que só se podem explicar por desordens da razão!

O grande erro d'alguns medicos alienistas é vêr doidos em toda a parte.

Mas, ha mais; nem todos os suicidas apresentam, no momento em que vão praticar o acto, essa face pallida, essas hesitações, angustias, etc., onde os nossos adversários vêem tão nítidos symptomas de loucura.

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Um individuo, desgostoso da vida, resolve ma-tar-se e escolhe o género de morte. Consulta o seu medico, amigo e commensal, sobre que ponto seria preciso applicar a arma para que a morte fosse ins-tantânea; o medico, que desconhece as intenções do seu cliente, diz-lhe que para a morte ser instantânea seria preciso dirigir o projéctil sobre o globo ocular, porque o cérebro seria attingido. Este individuo, em occasiao opportuna fez o que lhe indicou o medico, mas, talvez por um movimento demasiado brusco do dedo, a bala attingiu o bordo externo da arcada su-praciliar e dividiu-se em dois fragmentos; um feriu o pavimento, o outro abriu o globo ocular e dilace-rou todas as partes molles. O suicida julga-se mor-talmente ferido, deita-se e espera os acontecimentos. N'este tempo chega, casualmente, o medico. —«Eh bien, docteur, lui dit S., j'ai suivi vos préceptes, je viens de me tirer un coup de pistolet dans la tête». Calcula-se o eífeito que estas palavras produziram no medico; o exame que faz é superficial e julga que poucos instantes de vida restam ao seu amigo. Pres-creve uma poção calmante e vae a sahir para cha-mar um collega, quando S. o chama e lhe diz: «Appro-chez, docteur, et assurez vous si mon pouls et mon cœur battent plus fortemente que d'habitude. Je vous declare, je ne suis aucunement emu, ce que j'ai fait, je l'ai exécuté de sang-froid, et je ne comprends pas comment un homme de bon sens, quand il a bien pris la resolution de se débarrasser de l'existence, peut s'en trouver plus affecté que de quelque acte que ce

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soit.» O medico, constatou efectivamente, que o pulso era normal. Pouco tempo depois S. restabeleceu-se e nunca mais tentou contra a sua vida.

Se é verdadeiro o facto apresentado pelo doutor Sarlandière, nós devemos concluir que muitas vezes o homem se suicida em pleno uso de suas faculdades mentaes e com um sangue-frio absoluto. Napoleão, desde que começou a retirada da Russia, receiando ser aprisionado pelos cossacos, trazia ao pescoço um pouco de veneno que fora preparado por Ivan e do qual se chegou a servirem momento opportuno. Po-rém, o tempo alterara o veneno, que não chegou a produzir a morte.

Não ha aqui um motivo real, raciocínios lógicos, consequências d'um principio posto?

Poderíamos multiplicar os factos para mostrar o sangue-frio que muitos suicidas apresentam nos últi-mos momentos, mas poucos mais nos bastam. Bona-parte, seguido d'alguns officiaes e dos seus dois ami-gos, Monge e Bertholet, embarcou no Muiron, acom-panhado da corveta la Carrère, e sahiu de Alexandria a 12 de agosto. No caminho, viram ao longe alguns navios, que suppozeram ser uma frota ingleza.

« Se forem os inglezes e nos aprisionarem, disse Napoleão, o que devemos fazer? sujeitar-m'o-nos ao captiveiro? Impossivel!» Depois de curto silencio, o grande general diz: «Seria preciso matar-m'o-nos!...

«Sim, gritou Monge, eis a única salvação». «Pois bem, encarregae-vos d'essa missão. Vou para o meu posto.»

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No entretanto approximavam'-se os navios; mas elles são neutros e seguem o seu caminho.

Os officiaes procuram Monge e encontraram-no nos paioes com lume na mao e prompto a fazer ir o navio pelos ares. Todos estes homens são loucos?

A historia romana apresenta-nos um exemplo convincente. Othão, vencido por Vitellius e desillu-dido da fortuna, resolve matar-se, achando preferí-vel que um morra por todos, a morrer todos por um. «Meus caros companheiros, diz elle a seus solda-dados, as disposições em que vos vejo, e os testemu-nhos commoventes da Vossa affeição tornam este dia bem mais feliz para mim do que aquelle em que me elevastes á dignidade de imperador; não me recuseis uma prova de afecto ainda maior; deixae-me morrer honrosamente por tão valentes cidadãos. Se eu fui digno do império romano, não devo receiar sacrifi-car-me por minha pátrias.

Suetonio, cujo pae acompanhava o imperador na qualidade de tribuno, conta que Othão se despedira dos seus amigos, escrevera cartas a sua irmã e a Mes-salina, viuva de Nero, que elle tinha querido despo-sar e se suicidara na madrugada do dia seguinte.

Se o suicídio é sempre um acto de loucura, eu pergunto : porque respeitam geralmente os testamen-tos dos suicidas? Um individuo que decidiu matar-se, o que se vae bater em duello e portanto expõe-se a commetter um homicídio ou um suicídio, costuma pre-ludiar esse acto pela redacção do seu testamento; ora esses testamentos são geralmente acceites e

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exe-cutados pelos donatários. Sob este ponto de vista ainda o suicidio não pôde ser sempre considerado como um acto de loucura, porque então o testamento seria nullo aos olhos da moral e da sociedade.

«Si un homme se tue sans un motif réel, diz De-mazy, cet homme est un fou. S'il se tue pour fuir le deshonneur, pour échapper á ses tourments, c'est qu'il préfère la mort á la flétrissure, le néant du corps au martyre de l'ame ; la douleur l'emporte sur l'amour de la vie. C'est là, sans douter, une action que la morale condamne, que la pieté seule pardonne mais cette action n'est pas en elle-même un signe de folie ; elle n'est pas incompatible avec le libre usage de la raison».

Portanto, sustentar que todos os suicídios são actos de alienação mental, é um erro grave e peri-goso pelas consequências moraes que tal doutrina traria comsigo.

Por outro lado, sustentar que o suicidio é sempre um acto irreligioso, de fria razão, de vontade livre e, imputável, é um principio contrario á verdade e prejudicial ás leis da humanidade e á caridade evan-gélica.

Um infeliz, fulminado por um desespero subito, perde a cabeça e precipita-se immediatamente. Um monomaniaco ouve uma voz interior que lhe repete incessantemente: mata-te; e elle mata se para

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obe-decer a este poder superior, a esta ordem a que se não pôde subtrahir. Alguns alienados matam-se por se julgarem arruinados, abandonados pelos seus pa-rentes, trahidos pelos seus amigos. Outros não vêem senão perigos por toda a parte; ora assassinos que os querem matar, ora policias que os querem pren-der; matam-se para se subtrahir á deshonra, à tor-tura, á infâmia. Enganados pelas suas sensações in-ternas e exin-ternas, pelas suas faculdades intellectuaes e moraes, alteradas, pervertidas, não podem julgar convenientemente o seu estado, as suas relações com os objectos exteriores. Em summa, são verdadeiros alienados que tem a consciência da sua acção, que tem vontade de se matar, mas que fundam esta von-tade em motivos imaginários, em concepções deliran-tes, em aberrações de juizo.

A irreligião e as paixões por um lado, a loucura por outro, conduzem ao suicídio. D'aqui os dois gé-neros de suicídio que alguns auctores chamam livre

e maníaco, conforme elle apresenta caracteres de

li-berdade moral ou de loucura, d'imputabilidade ou não imputabilidade.

As proposições que vamos estabelecer referem-se apenas ao suicídio livre, o único que cahe debaixo da alçada da lei, como acto voluntário que é. No pro-logo apresentamos as razões porque não estudamos o suicídio maníaco.

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Estabelecida a existência do suicídio livre, vamos demonstrar que elle é um crime perante a divindade e perante a humanidade. E nâo nos parece de pouca importância esta parte do nosso trabalho, dada a dif-ference de opiniões que os philosophos e os moralis-tas têm emittido sobre o assumpto. Efectivamente, uns, condemnam o suicídio d'uma maneira absoluta, ou condemnam-o em principio, reservando-o para certos casos, certas situações por elles determinadas; outros, preconisam-no como um direito da humanidade, admittindo que o homem pôde e deve mesmo deixar a vida, quando ella lhe desagrade. Esta diversidade e antagonismo de opiniões sobre um assumpto tão importante—qual é o direito de morte que o homem se possa arrogar, é a consequência do antagonismo philosophico que, desde tempos inimemoriaes, divide os moralistas.

Como facilmente se comprehende, a moralidade do suicídio relaciona-se com os mais altos princípios de philosophia, e a solução da questão que me pro-ponho, suppõe demonstrada a existência d'um Deus creador, a existência d'uma alma immortal, i usce-ptivel de castigos e. recompensas n'uma .vida futura e bem assim a existência do livre arbítrio. Não me proponho demonstrar taes proposições e, portanto, o que vou dizer só pôde ser admittido por aquelles que acreditarem em taes princípios; os outros, aquelles que nâo conhecem taes princípios poderão estudal-os em tratados de theologia, onde encontrarão larga abundância d'argumentos.

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Amareis o Senhor vosso Deus com todo o vosso co-ração, com toda a vossa alma, e com todo o vosso es-pirito.

Amareis o vosso proximo como a vós me$mos. To-da a lei e os prophetas, diz Chris to, se reduzem a es-tes mandamentos (S. Matheus, xxn, v. 37, 39, 40.)

Portanto os. deveres do homem referem-se ao creador e á humanidade. Estes deveres são sagrados e tão imperativos que o seu não cumprimento, a tor-nar-se geral, traria comsigo a destruição de toda a espécie humana.

O suicídio é um crime para com a Divindade —

Só Deus tem direitos sobre a vida. O homem não pôde ajuntar um só minuto á sua existência — Tu es,

Domine, qui vitae et mortis habes potestatem —

(Sapien-tia, C. xvi, v. 13.)

O Suicídio é prohibido pela lei natural — Deus,

creando o mundo animado, submetteu-o a duas gran-des leis ou instinctos, — !.• conservação do individuo, — 2.° conservação da espécie. Estas duas grandes leis regem o mundo orgânico e o homem, que faz parte d'esté reino, recebeu do seu creador ordem for-mal de lhes obedecer: crescite et muttiplicamini,

Gene-sis, C. I, n.# 28. — Os instinctos são leis primordiaes

que é preciso respeitar, e o instincto da conservação leva o homem a amar-se a si mesmo, a conservar-se incessantemente e por todos os meios possíveis.

O receio da morte é geral, universal e a fuga ir-reflectida do perigo, o medo e a aversão pelos

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sof-frimeiitos dependem essencialmente do instincto da conservação. «Les animaux, diz Broussais, et les en-fants, qui ne réfléchissent guère, tremblent et recu-lent, si on feint de les précepiter par un* fenêtre, dans un puits, et on les voit s'attacher et s'accrocher à tous les corps qui peuvent les retenir et les sau-ver.»

O homem passa a vida lactando contra a morte, procurando evital-a ou ao menos esquecel-a, e a me-dicina, a philosophia e a religião são outros tantos remédios que incessantemente o homem oppõe ao re-ceio da morte. Nós receamos a morte, mesmo sem saber, sem pensar até em que ella consiste, aonde nos conduz, porque a naturesa nol-o ordena, pintan-do com cores sombrias as scenas que a cercam. Por isso mesmo a justiça humana, querendo ferir o ho-mem no seu instincto mais profundo, não encontrou um freio mais seguro para oppôr a um crime do que a pena de morte. Por outro lado, a nossa conserva-ção é um sentimento tão natural, que o homicídio, expressamente prohibido pelo Decálogo, é todavia p'eimittido para conservar a propria existência, com-tanti) que se não vá além do que exige a necessida-de d'uma justa necessida-defesa—«Vim vi repellere omnes

le-ges, omnia que jura permittunte* (S. Thomaz, Part. 2.* Û.& quœst. 64, art. 7). «L'attachement à la vie est

donc un sentiment profondément empreint dans le cœur de l'homme comme chez tous les animaux. Tou-tefois, on voit presque toujours ces derniers remplir jusqu'à là fin le rôle qui leur a été départi sur la

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scène du monde, tandis que le roi de la création se livrant fréquemment au suicide, abandonne son poste tantôt comme un lâche déserteur, tantôt comme un furieux qui n'a plus même l'instinct ordinaire de la brute. Il y a nécessairement dans la nature humaine quelque chose de faussé, de dégénéré, de corrompu !» (Descuret, La Médecine des passions).

O amor da vida e o horror á moite, duplo senti-mento que a naturesa gravou no âmago do mundo vivo,, deveriam ser suficientes para impedir o ho-mem de se matar. E assim todo "o ser que escutasse os seus instinctos e obedecesse á sua impulsão, nunca attentaria contra a sua existência. Mas os preceitos da lei natural, embora fundados sobre a constituição da naturesa humana, foram abafados pelas paixões, o sensualismo, pela ignorância, e emfim por todos os males que entraram no mundo após o peccado de Adão, pelo que o creador os ensinou de viva voz e por uma revelação expressa aos nossos protoparen-tes. E efectivamente, quando Deus, após o Diluvio, fallou a Noé, disse-lhe: «Sahe da arca, tu e tua mu-lher, teus filhos e suas mulheres; que saiam também todos os animaes que estão comvosco. Entrae na ter-ra e ahi crescite et multiplicamini. Eis assim confir-mada, pela bocca do creador a lei natural da conser-vação individual. Ora, esta lei obriga os homens de todas as edades, de todos os paizes e de todas as re-ligiões. Portanto, suicidar-se não obstante a ordem positiva da Divindade, é praticar um acto contrario á lei natural.

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Os descendentes de Noé seguem por algum tempo os preceitos da lei natural, mas as iniquidades re-começam dentro em pouco, e então Deus escolhe um povo para depositário dos princípios da verdadeira religião.

Abrahão é pae d'esté povo escolhido por Deus. Até á sua chegada ao monte Sinai, os Israelitas só tinham conhecimento da moral pelas luzes da razão e pela tradição dos seus maiores.

Mas, depois dos maus exemplos que receberam no captiveiro do Egypto, era necessário, como diz Ber-gier, intimar-lhes as leis moraes d'uma maneira po-sitiva, com todo o apparato da magestade divina, es-crevel-as e sanccional-as com castigos e recompen-sas,

— Um dos dez mandamentos da lei dada a Moy-sés, e escripta pelo próprio punho de Deus, diz: non

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mandamento não era mais do que a corroboração do preceito indicado a Noé. «Quicumque effuderit huma-num sanguinem, fundetur sanguis ejus; ad imaginem

quippe Dei factus est homo.* (Todo aquelle que der-ramar o sangue do homem, será castigado pela effu-são do seu próprio sangue : porque o homem foi feito á imagem de Deus). (Genesis, cap. IX, v. 6).

Entre os tratadistas do suicidio tem-se discutido a significação do non occides.

Querem os que defendem o suicidio que este man-damento se refira simplesmente ao assassinato e não ao suicidio.

Ora este modo de vêr não nos parece rasoavel. Efectivamente, Deus, quando prohibe o levantar fal-sos testemunhos, diz: «non loqueris contra proximum tuum falsum testimonium.* Portanto, se Deus tivesse em vista prohibit' somente o homicídio do nosso se-melhante, teria a pari, empregado um outro modo de dizer, este, por exemplo : non occides proximum

tuum. Deus pois, prohibindo o homicídio d'uma

ma-neira tão lacónica e absoluta, teve em vista não só o homicídio de si mesmo, mas ainda o homicídio d'ou-trem.

E se alguma duvida houvesse sobre a interpreta-ção d'esta passagem, ninguém melhor que os Hebreus nol-a poderia tirar, pois que tudo leva a crer que Moysés lh'a explicasse convenientemente. Ora, os Judeus tiveram sempre o suicidio em grande abomi-nação, como nol-o indica o historiador Joseph, pela se-guinte passagem do discurso que elle dirigiu aos seus

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companheiros d'armas que se queriam suicidar. «C'est pourquoi nôtre trés-sage législateur, sachant l'horreur que le Seigneur a d'un tel crime, a ordoné que les corps de ceux qui se donnent volontairement la mort demeurent sans sépulture jusqu'après le cou-cher du soleil; quoiqu'il soit permis d'enterrer aupa-ravant ceux qui ont été tués dans la guerre».

Não se diga que em nenhuma parte da Biblia se encontra uma prohibiçâo expressa e formal do suicí-dio, para d'aqui concluir que o suicídio é permittido pela Biblia.

Se é certo que não encontramos no antigo testa-mento passagem alguma onde se prohiba formalmente o homicidio de si mesmo, não é menos certo, que Flá-vio Joseph, no seu discurso, declara que o legislador dos Judeus considerava a morte voluntária como um crime e tratava os seus cadáveres como os dos cri-minosos que tinham sido executados por sentença de juizes.

Portanto, segundo a lei Mosaica, o suicídio é um crime.

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Jesus-Christo vem ao mundo para o salvar e não para o condemnar.

A sua missão não é só para os Judeus, é para to-dos os povos : e a sua lei, que não é senão a sancção e a extensão a todo o género humano da lei dada no monte Sinai exclusivamente aos Hebreus, prohibe egualmente o homicídio em geral.

Quando um dos principaes de Jerusalem lhe per-guntou: «Bom mestre, que devo eu fazer para pos-suir a vida eterna?» Jesus respondeu: «mandata nosti» ; non occides.. . (S. Lucas, cap. XVIII, v. 20).

Os apologistas do suicidio sustentam ainda que este acto não é prohibido pelo Evangelho. Effectiva-mente, não encontramos no Novo Testamento uma prohibição especial e positiva; mas além da repeti-ção do non occides, a morte voluntária é indirecta-mente prohibida por todas as passagens do Evange-lho, onde se recommenda a paciência nas afflicções,

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e que promettem a esta virtude uma recompensa eterna.

Jesus Christo foi perseguido, flagellado ;é crucifi-cado pelos Judeus: como homem, elle teria podido evitar pela fuga ou pelo suicídio os maus tratos que lhe infligiram, mas a sua missão era instruir-nos pelo preceito e pelo exemplo. «Et qui non accipit cru cem suam et sequitur me, non est me dignus.» (S. Ma-theus, cap. X, v. 38).

Para fazer saber a seus discipulos que a felici-dade só existe no céo, e que para a merecer elles ti-nham de soffrer as preseguições e praticar a virtude, disse-lhes: «Amen, amen, dico vobis, quia plorabitis, et flebitis vos, mundus autem gaudebit ; vos autem contristabimini, sed tristitia vestra vertetur in gau-dium. —Et vos igitur nunc quidem tristiam habetis, iterum autem videbo vos, et gaudebit cor vestrum; et gaudium vestrum nemo toilet a vobis. (S. João, cap XVI, v. 20 e 22).

Vê-se pois que, contrariamente aos antigos philo-sophos, Christo não aconselha o suicídio áquelles a quem a infelicidade attingir profundamente; mas pro-clama estas palavras que devem reanimar a coragem dos que soffrem: «Felizes são os que choram, porque elles serão consolados. Felizes os que soffrem, porque d'elles é o reino dos céus... » (S. Matheus, v. 5, 10, 11 e 12).

Houve quem ousasse afíirmar que Christo, entre-gando-se á morte voluntariamente, commetteu um suicídio.

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«Christo não excitou os Judeus a matal-o, diz Bergier, fez-lhes sentir o crime que iam praticar.»

E na verdade, Christo nao se deixou matar por desgosto da vida ou pela impaciência causada pela dôr, mas somente para remir o género humano do peccado original, para salvar os mesmos que o cru-cificaram.

Christo offereceu-se para victima da nossa re-dempção, com pleno poder de dar a sua vida e de a

recuperar : « Nem tollit earn a me ; sed ego pono earn

a meipso, et potestatem habeo ponendi earn et po-testatem habeo iterum summ endi earn : hoc mandutum accepi a Patre meo» (S. João, cap. x, v. 18), e com inteira certeza de a recuperar três dias depois.

Ora o expôr-se a uma morte certa para salvar a vida a um grande numero de cidadãos, não é um suicídio, mas um acto de heróica coragem ; fazer este sacrifício para salvar o mundo inteiro d'um supplicio eterno, é um acto da caridade divina.

Christo, ao abandonar a terra, deixou uma aucto-ridade infallivel, encarregada de ensinar os povos e de lhes fazer conhecer a sua moral.

Esta auctoridade é a Egreja, a quem Christo dis-se: «Et ego rogabam Patrem et alium Paraclitum dabit vobis, ut maneat vobiscum in eternum — Spi-ritum veritatis, quem mundus non potest accipere, quia non vidit eum, nec scit eum. Vos autem cognos-cetis eum, quia apud vos manebit, et in vos erit». (S. JOÎIO, Cap. xiv, v. 16 e 17); a Egreja a quem

Christo disse : «Data est mihi omnis potestas in coelo

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et in terra. — Euntes ergo docet omnes gentes, ba-ptisantes eos in nomine Patris et Filii et Spiritui Sancti. — Docentes eos servare omnia quaecunque mandavi vobis et ecce ego vobiscum sum omnibus diebus, usque ad consummationem sseculi» (S. Ma-theus, Cap. xxvm, v. 18 a 20); a Egreja a quern S. Paulo chama a base e a columna inquebrantável da verdade ( . . . quae est Ecclesia Dei vivi, columna et firmamentum veritatis (Ep. a Thimotheo, Cap. in, v. 15). Ora, a Egreja declara que o suicídio é um crime e quem o commette pecca ao mesmo tempo contra a justiça e contra a caridade. O direito ca-nónico recusa a sepultura ecclesiastica a todos aquel-les que se mataram por desespero ou cólera, a nao ser que, antes de morrer, tenham dado signaes ma-nifestos de arrependimento. «Negatur ecclesiastica sepultura se ipsos occidentibus ob desperationem, vel iracundiam, nisi ante mortem dederint signa pseni-tentise (Rituale Eomanum).

Todas as seitas do christianismo condemnam a morte voluntária tão severamente como a Egreja. O próprio Al-Korâo diz no livro iv: »Ne vous tuez pas vous-mêmes, car Dieu est miséricordieux. Quiconque agira ainsi par iniquité et méchanceté, sera consumé par le feu. Certes, cela sera facile á Dieu». Os antigos philosophos pagãos, embora limitados ás luzes da razão, interpretavam muitas vezes as leis naturaes da mesma maneira que a Egreja. Nós já vimos que Pythagoras e Platão ensinavam que não é permittido ao homem o matar-se sem permissão do

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Sêr Supremo; Socrates, preparando-se para beber cicuta, diz aos seus discípulos que os deuses nos pozeram n'esta vida como n'um posto que não deve-mos abandonar sem sua licença; Cicero e Epicteto seguem as mesmas doutrinas; Virgílio olhava os sui-cidas como criminosos, para os quaes havia um logar reservado no inferno:

«Próxima deinde tenent moesti loca, qui sibi lethum *

Insontes perpetre manu, lucemque perosi Projecere animas....»

«Em seguida occupant o logar proximo os tristes, que a si mesmos deram a morte por sua propria mão, e aborrecidos da vida se suicidaram D.

Considerado sob o ponto de vista puramente re-ligioso, o suicídio é portanto um crime. A lei natu-ral, a lei Mosaica e a lei Evangélica, são três au-ctoridades que se não podem despresar. Crescite, et

non occides: tal é a lei divina; lei positiva, lacónica,

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0 preceito que nos manda amar o nosso proximo

como a si mesmo, isto é, fazer aos outros aquillo que, em egualdade de circumstancias, quereríamos que nos fizessem, e de lhes nao fazer aquillo que na» quereríamos que nos fizessem, impõe-nos deveres para com a humanidade.

O amor do proximo, a caridade, produz a frater-nidade, e a fraternidade é a partilha reciproca do coração, do trabalho e dos bens. O homem que re-nuncia voluntariamente á vida, rere-nuncia também ao cumprimento dos seus deveres paternos. E todavia, estes deveres são tão sagrados, que se Deus, pondo de parte toda a lei positiva, não tivesse gravado na nossa natureza o amor instinctivo para com os nos-sos semelhantes, a humanidade não subsistiria um só momento.

Os deveres que a caridade nos impõe podem-se dividir em: deveres para com a família e deveres para com a Pátria.

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Deveres para com a família

Deus não creou o homem para viver só, mas para viver em sociedade «non est bonum esse hominem solum, fadamos ei adjutorium simile sibi». (Genesis, Cap. ii, v. 18). Portanto, viver em sociedade é uma lei natural para o homem; é mesmo uma necessidade imperiosa. Efectivamente, o homem nâo existe senão pelo concurso de dois seres de sexo diferente: o que constitue a família. Após o nascimento, o homem é o mais fraco e o mais miserável de todos os ani-maes; abandonado a si próprio, morreria bem de-pressa. Durante muito tempo são-lhe necessários os cuidados de seus pães, que lhe dão uma segunda vez a vida pela alimentação que lhe preparam, pela ter-nura com que o protegem contra os elementos phy-sicos, pela educação que lhe dão e pelos principios de virtude e de moral que fazem germinar em seu coração.

Amor materno, amor filial, taes são os principios da lei natural, commum ao homem e aos animaes, que levam os pães a ter cuidado com os filhos, e es-tes a amal-os.

Se os pães, por um motivo qualquer, deixam vo-luntariamente a vida antes do termo assignalado pela natureza, quem terá cuidado com os filhos, quem terá para elles os carinhos d'um pae; quem os alimenta-rá; quem reanimará os seus membros entorpecidos pelo frio; quem dirigirá os seus passos vacillantes; quem dará sciencia ao seu espirito e verdade á sua

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alma? A caridade publica? Mas é um roubo recorrer a ella sem absoluta necessidade.

Por outro lado, os filhos devem honrar, respeitar e soccorrer seus pães. E' um dever imposto pela lei natural, pela lei divina e até pela lei civil. Se a creança se suicida, quem cuidará de seus pães quando forem velhos ou estiverem doentes; quem lhes dará o pão quotidiano; quem .os guiará, se chegarem a cegar; quem fechará os seus olhos, quando vier a morte; quem defenderá a sua memoria? Será ainda a caridade publica?

Aina o teu proximo coiro a ti mesmo. Honra teu pae e tua mãe.

Tal é a lei religiosa.

0 suicida falta aos seus deveres para com a Pátria

A associação d'um numero maior ou menor de fa-mílias que vivem no mesmo paiz, sob a égide prote-ctora das mesmas leis, fallando a mesma lingua e obedecendo aos mesmos usos, constitue a Pátria. As famílias, associando-se para constituir a Pátria ou nação, põem em commum as faculdades physicas, in-tellectuaes e moraes que possue cada um dos mem-bros em particular.

E' d'esta união de todas as faculdades que nasce a vida da Pátria que só é para os seus membros uma

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providencia forte e durável quando cada um d'elles exerce os seus direitos em justa proporção, e cumpre os seus deveres com religiosa exactidão. Ora, na na-ção, qualquer que seja a forma do governo, nenhum cidadão é inutil, todos teem um logar a occupar. Quer o cidadão nasça nos ricos palácios régios ou na humilde cabana do proletário; quer seja um patrício illustre ou um humilde plebeu, todos teem deveres sagrados a cumprir para com a Pátria desde que foram ado-ptados como filhos. Estes deveres são variáveis com a posição dos individuos e o logar hierarchico que cada um occupa. Um, pela sua posição elevada, pela sua sciencia e os seus talentos, presta á Pátria serviços de primeira utilidade; outro, nascido na pobreza, en-trega-se a um trabalho manual, vil na apparencia, mas que nem por isso deixa de ser menos util e, até ás vezes, indispensável.

Pôde dizer-se d'uma maneira geral, que n'um es-tado, nenhum membro é absolutamente inutil, nem mesmo o rico que passa a vida a dormir, a comer e a divertir-se, porque o seu ouro recompensa e paga o trabalho dos que o servem. O mendigo mais repel-lente não é um ser inutil; o criminoso mais endure-rido não é ainda um ser inutil; sem as misérias hu-manas, a caridade não existiria; e, com certeza, as virtudes moraes são tão necessárias, senão mais, á vida d'uma nação do que a sciencia, as artes e as outras vantagens materiaes.

A familia produz e nutre os filhos. A Pátria ado-pta-os, dá-lhes sciencia, conhecimentos das artes, os

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grandes princípios de moral ; fal-os cidadãos e destina a cada um, segundo a sua capacidade, uma funcção a exercer. A Pátria é, pois, qual mãe que dá a seus filhos mais do que o que pôde receber d'elles. Pelo concurso que pede a cada cidadão, torna-o participante de todas as vantagens que resultam da actividade de todos os outros membros.

Portanto, todo o cidadão que se mata voluntaria-mente commette um crime para com a Pátria, pra-tica uma acção que fere todo o sentimento d'ordem, de justiça, de gratidão e de fraternidade. Mas, diz Montesquieu: «quando eu estou acabrunhado pela dôr, pela miséria, pelo desprezo, porque me querem impedir de pôr fim aos meus sofrimentos, e privar -me cruel-mente d'um remédio que está nas minhas mãos? Porque querem que eu trabalhe para uma so-ciedade a que já não quero pertencer ; que eu tenho a pesar meu uma convenção que foi feita sem o meu consentimento?» O homem, só pelo seu nascimento, faz com a humanidade um contracto reciproco, regu-lado pelo creador e baseado sobre os princípios da justiça e sabedoria eternas.

A familia e a Pátria são as primeiras a cumprir as clausulas iniciaes d'esté contracto e isto por lar-gos annos. Desde que a creança, tornada adulto, ac-ceitou esta convenção social, embora feita sem o seu consentimento prévio, pela fruição de todas as van-tagens que a pátria e a familia lhe adquiriram, mui-tas vezes á custa da vida de muitos dos seus mem-bros perdida nos trabalhos, nos combates, etc.; desde

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que elle consentiu em ser um membro da grande fa-mília humana, nâo pôde já separar-se d'ella quando quizer, com prejuízo e sem consentimento d'esta so-ciedade. Mas diz Montesquieu: «A sociedade é fun-dada sobre uma vantagem mutua ; mas quando ella se me torna onerosa, quem me impede de renunciar a ella?4

Ao crente eu diria : a vontade divina ; ao cidadão direi : impede-t'o a sociedade que tem o direito de te exigir alguns pequenos serviços em recompensa dos immensos sacrifícios que ella fez por ti. De resto, o que entendes por tornar-se-te a sociedade onerosa ? A sociedade deu-te tanto quanto podia, todas as van-tagens physicas, intellectuaes e moraes que convi-nham á posição social a que foste destinado ; não te prometteu evitar os males próprios á tua natureza, dependentes da tua imaginação, da tua imprudência, dos teus vicios ?

E se alguns males a sociedade te occasiona, não são elles próprios da constituição das coisas huma-nas que ella nâo pôde mudar, ou do despreso que pe-las suas leis teem os indivíduos viciosos e rebeldes ? E se, para a deixar, pretextas a depravação e a des-obediência, não darás tu um funesto exemplo?

De resto, esta opinião não é só nossa, e Montes-quieu não pôde ter razão contra todo o mundo. E com effeito, desde a mais alta antiguidade, os legisladores pensaram que a sociedade tinha o direito de punir o suicidid, e todos o puniram, embora d'uroa maneira différente e mais ou menos rigorosa; julgaram que a

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politica se devia unir á religião para se opporem a um crime que as ultrajava a ambas.

Os Hebreus tratavam os cadáveres dos suicidas como os dos criminosos executados por sentença dos juizes e não lhes davam sepultura senão depois do pôr do sol.

Os Arménios amaldiçoavam e queimavam as ca-sas habitadas pelo suicida.

Os legisladores Gregos e Romanos, reconhecendo a legitimidade da morte voluntária em certos casos graves e determinados, infligiam penas infamantes áquelles que se matavam por fraquesa, sem motivo imperioso e sem permissão dos magistrados. As leis Athenienses ordenavam que a mão, que tinha com-mettido tal crime, fosse cortada e queimada em se-parado. Em Thebas, os cadáveres dos suicidas eram queimados com infâmia e privados das preces da re-ligião. Platão aconselhava que se enterrassem em lo-gares afastados, sem cerimonias, sem inscripção, e

que se consultassem devotamente os padres sobre a

forma dos sacrifícios expiatórios. Uma lei de Tarqui-nio o Antigo, privava da sepultura o corpo do cida-dão suicida. Mais tarde, as leis romanas, favoráveis ao suicídio produzido pelo desgosto da vida, annulla-vam os testamentos e confiscaannulla-vam os bens dos cri-minosos que se matavam para se subtrahir a uma pena infamante.

As leis canónicas, apoiadas sobre uma tradição constante e sobre as constituições dos Pontífices, re-cusam as honras da sepultura ecclesiastica, isto é, a

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entrada e as preces da Egreja, aos corpos dos que se matavam por desespero ou furor, a não ser que tenham dado signaes de alienação mental ou de ar-rependimento. «Negatur ecclesiastica sepultura se ipsos occidentibus ob desperationem, vel iracundiam (non tamen si ex insânia se occidat), nisi, ante mor-tem, dederint signa poeniten^iœ.u Depois do estabe-lecimento do Christianismo, todas as legislações ci-vis, modeladas pelas leis ecclesiasticas, prescreveram penas severas contra os suicidas. Na Inglaterra, os corpos eram lançados á via publica e os bens dos suicidas confiscados a favor da coroa. Era França, no xin século, os bens do suicida eram confiscados em proveito do senhor da terra onde se praticava o cri-me, e o seu cadaver, depois de ter sido arrastado pe-las ruas da cidade, era pendurado pelos pés e priva-do de sepultura.

Mais tarde fizeram-se diversas modificações a es-ta lei: a constituição de Carlos v approximou-a da lei romana e só era applicada áquelles que se mata-vam com sangue-frio e uso da razão, e com receio do supplicio. Todas estas leis cahiram em desuso. Na Inglaterra illude-se a sua execução por um attestado do medico que declara que o suicida era alienado. A philosophia do século xvm contribuiu muito para a abrogação das penas impostas ao suicida pelas leis antigas.

«O suicídio, diz Beccaria, é um delicto que pa-rece não poder ser submettido a nenhuma pena pro-priamente dita; porque esta pena só poderia cahir

Referências

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