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Genealogia e teoria de gênero em Judith Butler: subversões teórico-políticas

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE UFRN CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES CCHLA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO FILOSOFIA PPgFil

ANDRÉ LUIZ DOS SANTOS PAIVA

Genealogia e teoria de gênero em Judith Butler subversões teórico-políticas

NATAL SETEMBRO, 2020

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ANDRÉ LUIZ DOS SANTOS PAIVA

Genealogia e teoria de gênero em Judith Butler subversões teórico-políticas

Tese apresentada à banca de defesa como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Filosofia no Programa de Pós-graduação em Filosofia PPgFil da Universidade Federal do Rio Grande do Norte UFRN. Orientador: Dr. Alípio de Sousa Filho

NATAL SETEMBRO, 2020

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Paiva, Andre Luiz dos Santos.

Genealogia e teoria de gênero em Judith Butler: subversões teórico-políticas / Andre Luiz Dos Santos Paiva. - Natal, 2020. 171f.

Tese (doutorado) - Centro de Ciências Humanas Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2020.

Orientador: Prof. Dr. Alípio de Sousa Filho.

1. Gênero - Tese. 2. Corpo - Tese. 3. Resistências - Tese. 4. Genealogia - Tese. 5. Crítica - Tese. I. Sousa Filho, Alípio de. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 141:305

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes -CCHLA

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FOLHA DE APROVAÇÃO

ANDRÉ LUIZ DOS SANTOS PAIVA

Genealogia e teoria de gênero em Judith Butler subversões teórico-políticas

Natal, 14 de setembro de 2020

COMISSÃO EXAMINADORA

____________________________________________________ Prof. Dr. Alípio de Sousa Filho

Presidente

____________________________________________________ Profa. Dra. Juliana Ortegosa Aggio

Membro externo UFBA

____________________________________________________ Profa. Dra. Marcia Angelita Tiburi

Membro externo Université Paris VIII

____________________________________________________ Profa. Dra. Anne Christine Damasio

Membro interno UFRN

____________________________________________________ Prof. Dr. Eduardo Aníbal Pellejero

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AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, professor Alipio de Sousa-Filho, pelas leituras atentas e proposições precisas, que foram decisivas para a construção mais segura de um texto que põe em diálogo uma série de importantes autores nem sempre de fácil apreensão.

Aos poucos e bons amigos, por possibilitarem momentos de respiro para as dificuldades do percurso acadêmico e, principalmente, da vida. Por mostrarem que a produção de uma ética da amizade e do reconhecimento é uma possibilidade real para o cotidiano.

Aos meus pais, por terem tornado deles um projeto meu.

Ao PPgFil, por ter proporcionado um espaço de aprendizado e crescimento intelectual em .

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RESUMO:

A teoria de gênero desenvolvida por Judith Butler consolidou-se como um marco nos estudos feministas, de gênero e sexualidades. Em suas construções teóricas, a filósofa dialoga com o pensamento de diversos autores, tais como Hegel, Austin, Derrida, Nietzsche, Kristeva e Foucault, sendo sobre as relações da teoria de gênero em Butler com a teorização acerca do poder e das resistências neste último que se deteve predominantemente a presente tese. Inicialmente, realiza-se um apanhado geral das principais repercussões de diversos autores na obra da filósofa, evidenciando as influências que a teoria da performatividade em Austin e posteriores releituras derridianas exercem no construto teórico de Judith Butler acerca dos gêneros, corpos e sexualidades, assim como as discussões em torno do reconhecimento em Hegel; a desontologização em Nietzsche e a abjeção em Kristeva. Posteriormente, detém-se sobre os diálogos que Butler realiza com as discussões em torno do poder e das resistências em Foucault, num sentido de realização de uma genealogia do gênero enquanto categoria analítica de uma determinada distribuição dos poderes no campo social e político. Nesse sentido, é possível depreender que a concepção foucaultiana de poder permeia as discussões realizadas por Butler no campo dos gêneros, de forma que a filósofa vislumbra o caráter normativo da categoria gênero, bem como encontra nela também as possibilidades de subversão operadas a partir das lutas e resistências exercitadas pelos sujeitos que, a partir da diferença na esfera de sexo-gênero, permitem o questionamento e a modificação dos lugares simbólicos que sustentam as relações de dominação nesse campo. Por fim, explicita-se como, para chegar a essas constatações, o que Butler operou foi uma genealogia do gênero, a partir da concepção foucautiana, acrescida de diálogos com o pensamento psicanalítico, de maneira a constituir uma teoria crítica com elevado potencial de transformação epistemológica e política.

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ABSTRACT:

The gender theory developed by Judith Butler has consolidated itself as a milestone in feminist, gender and sexuality studies. In her theoretical constructions, the philosopher dialogues with the thoughts of several authors, such as Hegel, Austin, Derrida, Nietzsche, Kristeva and Foucault. This dissertation focus on the relations of gender theory in Butler with the theorization about power and resistance in the latter author. Initially, a general overview of the main repercussions of different authors in the work of the philosopher is carried out, evidencing the influences that the theory of performativity in Austin and subsequent Deredian reinterpretations; the discussions around recognition in Hegel; deontologization in Nietzsche; and the abjection in Kristeva exert on Judith Butler's theoretical construct about genders, bodies and sexualities. Subsequently, it focuses on the dialogues that Butler conducts with the discussions around power and resistance in Foucault, in the sense of realizing a genealogy of the gender as an analytical category of a given distribution of powers in the social and political field. In this sense, it is possible to infer that the Foucaultian conception of power permeates the discussions carried out by Butler in the field of genders, so that the philosopher sees the normative character of the gender category, as well as finds on it the possibilities of subversion operated from the struggles and resistances exercised by the subjects who, from their differences in the sex-gender sphere, allow the questioning and the modification of the symbolic places that support the relations of domination. Finally, it is made clear how, in order to arrive at these findings, what Butler operated was a genealogy of the gender from his Foucautian conception plus dialogues with psychoanalytic thinking, in order to constitute a critical theory with a high potential for epistemological and politics transformation.

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Cabe a mim saber, é claro, e aos que trabalham no mesmo sentido, cabe a nós por conseguinte saber que campos de forças reais tomar como referência para fazer uma análise que seja eficaz em termos táticos. Mas, afinal de contas, é esse o círculo da luta e da verdade, ou seja, justamente, da prática filosófica. (Michel Foucault)

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INTRODUÇÃO

A presente tese tem como objeto central de estudo a teoria de gênero desenvolvida pela filósofa norte-americana Judith Butler, dando destaque às repercussões do pensamento foucaultiano nas teorizações da autora sobre o tema. A partir de um conhecimento prévio da obra da autora, o recorte almejou enxergar a influência que o pensamento de Michel Foucault exerceu na construção da teoria de gênero de Butler, na qual é possível encontrar de forma clara o alinhamento teórico de Butler com o empreendimento genealógico foucaultiano. A própria autora, repetidas vezes e em diferentes obras, afirma realizar uma genealogia do gênero e dos corpos.

A questão inicial que mobilizou o desenvolvimento da pesquisa foi

principais repercussões do pensamento de Michel Foucault na teoria de gênero de Judith ue a teoria de gênero de Judith Butler realiza um empreendimento genealógico que, ao definir o gênero enquanto performativo, tanto explicita as relações de poder existentes na imposição do gênero nos processos de subjetivação, quanto possibilita a emergência do conceito de gênero enquanto uma categoria de dessujeição.

Apesar das influências de Foucault no pensamento de Butler serem notáveis e constantemente apontadas, num levantamento da fortuna crítica da obra da autora, constatamos a inexistência de estudos sobre essas influências, de forma que os trabalhos existentes apenas detêm-se em pontos restritos. Uma lacuna que este nosso estudo pretendeu sanar. Além desse aspecto específico, nossa pesquisa visou também contribuir, num contexto geral, com a consolidação da incipiente relação dos Estudos de gênero e sexualidades e Filosofia no Brasil. Inserindo-se no campo dos Estudos queer, nossa pesquisa aproxima a filosofia brasileira desse campo no qual, em contexto internacional, as produções abundam.

A pesquisa foi desenvolvida tendo por base principal as obras de Judith Butler que tratam diretamente das temáticas do gênero e do corpo como objetos principais, a saber: Gender trouble: feminism and the subversion of identity; Bodies that matter: on the d ; e Undoing gender. A partir dessas obras, foram selecionados outros trabalhos da filósofa norte-americana, bem como os textos de Michel Foucault e outros filósofos citados pela autora, a partir dos quais também se recorreu a textos não citados por Butler, mas que contribuem com as discussões empreendidas.

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Para uma aproximação mais segura com os autores estudados na tese também se recorreu a comentadores de suas obras. Por fim, textos advindos da Filosofia e das áreas das humanidades, atrelados à perspectiva dos estudos de gênero, sexualidades e/ou queer, também foram utilizados como ferramentas teóricas para a análise pretendida com a pesquisa.

A tese foi dividida em duas partes. Na primeira delas, se traça as principais influências filosóficas encontradas na teoria de gênero de Judith Butler. Constituída por dois capítulos, neles é apresentado o mapeamento das bases filosóficas do pensamento de Butler, de modo a permitir o conhecimento de outras influências e referências teóricas que não apenas aquelas advindas da obre de Michel Foucault na elaboração da teoria de gênero proposta pela autora. Na segunda parte, constituída de três capítulos, é apresentado o pensamento teórico de Foucault e suas repercussões na obra de Butler acerca do gênero. Na primeira parte da tese, cada subcapítulo é dedicado a uma temática específica na teoria de gênero em Butler, com os respectivos aportes teóricos dos quais essa temática é mais tributária. Já na segunda parte, os primeiros subcapítulos de cada capítulo dedicam-se a discussões específicas dos pensamentos de Butler e de Foucault, resguardando sempre aos últimos subcapítulos a explicitação das repercussões mais notáveis do pensamento foucaultiano na teoria de gênero em Butler.

No primeiro capítulo, as análises focam na ideia de gênero desenvolvida por Butler em sua teorização. Para isso, expõe-se inicialmente os pressupostos linguísticos encontrados na teoria de gênero de Butler, com seu recurso à teoria dos atos de fala de Austin e posteriores releituras dessa teoria por Derrida. Num segundo momento, expõe-se como Butler opera a desontologização do sujeito generificado, através, principalmente, da crítica que ela realiza acerca da ideia de sujeito como concebida por segmentos do movimento feminista. Após isso, é discutido como o gênero consolida uma estrutura específica de inteligibilidade humana, e como essa estrutura estabelece critérios para o reconhecimento, momeno no qual se destaca o dialógo de Butler com o pensamento de Hegel. Por fim, expõe-se qual o lugar que a filósofa reserva para a repetição e paródia como possibilidades de subversão dos performativos de gênero.

No segundo capítulo, foca-se na questão do corpo e da diferença sexual. Assim, inicialmente é exposto como Butler trata da questão do corpo e de sua colocação enquanto marco de consolidação da ideia de diferença sexual a partir da ideia de materialidade, concepção à qual ela sobrepõe, como crítica, uma perspectiva performativa do sexo e dos corpos. Após isso, é evidenciado o diálogo que Butler realiza com a psicanalista Julia

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Kristeva, da qual ela toma de empréstimo as discussões em torno do conceito de abjeção, que consolidaria as fronteiras dos corpos e da cultura possibilitadoras da inteligibilidade humana. Já a parte final do capítulo é dedicada ao que Butler denominou de metafísica da substância , que possibilitaria a ideia de diferença natural dos corpos, momento no qual a autora recorre à genealogia da moral realizada por Nietzsche para justificar sua genealogia do gênero e dos corpos, vislumbrando esses como indissociáveis, razão pela qual se conclui no segundo capítulo que, à maneira do gênero, a produção dos corpos ocorre de forma performativa.

No terceito capítulo, que abre a segunda parte da tese, inicia-se expondo a concepção de poder encontrada em Michel Foucault. Para isso, é exposto como Foucault desenvolve uma concepção do poder como produtivo que extrapola uma concepção jurídica e negativa do mesmo a partir de suas teorizações acerca das disciplinas e do biopoder. Após isso, a questão do corpo é destacada enquanto um marco no pensamento foucaultiano que encontra nos corpos o principal objeto de investimento do poder, concepção que alcança seu ápice no conceito de dispositivo da sexualidade, o qual consolida a concepção produtiva do poder levando em consideração tanto seus aspectos de disciplina e controle, como suas possibilidades de resistências.

Ainda no mesmo capítulo, em seu terceiro subtítulo, inicia-se a conexão do pensamento foucaultiano com o de Judith Butler. Nesse momento, é mostrado como a concepção de poder, anteriormente exposta, é inserida na teoria de gênero da filósofa norte-americana. Para isso, discute-se como a concepção de poder produtivo é inserida por Butler em seu pensamento num movimento que explicita seu caráter também performativo. Assim, a autora conecta poder, desejo e produção de subjetividades para pensar possibilidades de agência e resistências políticas. Após isso, é mostrado como a concepção de poder encontrada em Butler, ainda que grandemente tributária da concepção de Foucault, também traz consigo um forte dialógo crítico com a psicanálise, principalmente no que tange aos aspectos relacionados às proibições e constituições das fronteiras dos corpos e das subjetividades, momento no qual se evidencia a maneira como Butler se aproxima dos conceitos de simbólico e inconsciente de forma a questionar a forma como eles aparecem no pensamento psicanalítico.

Fechando o terceiro capítulo, é realizada uma síntese de como as discussões anteriormente feitas aparecem na teorização no campo do sexo e gênero. Nesse momento, são expostas as apropriações realizadas por Butler do pensamento foucaultiano no que tange aos aspectos produtivos do poder na fabricação dos gêneros inteligíveis. Nessa

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aplicação, fica evidente o jogo que a autora realiza entre gênero e corpo, através do recurso à ideia de performatividade, enquanto instância regulatória da produção da inteligibilidade de gênero, utilizando-se da ideia de materialidade dos corpos.

No quarto capítulo, o foco recai sobre as resistências, aspecto indissociável das relações de poder quando se trata da abordagem do assunto em Michel Foucault. Assim, na primeira parte do capítulo, é exposto como Foucault analisa os processos de resistências enquanto coextensivas ao poder, o que fortalece sua ideia do poder enquanto produtivo. Para ele, seja através das transgressões, seja através das dissidências, é possível identificar uma multiplicidade de formas de resistência e lutas com potencial de transformação das distribuições do poder. Seguindo com a temática das resistências, no segundo subtítulo do capítulo, expõe-se o pensamento e a política queer enquanto uma expressão de resistência, e, a partir de Butler, mostra-se como, para que esse campo mantenha seu potencial subversivo, é indispensável uma postura crítica frente a ele mesmo, num processo no qual o queer se manteria aberto aos vários atravessamentos emergentes no espaço teórico e político da abjeção.

Para finalizar o capítulo, realiza-se a análise dos reflexos dos pensamentos de Foucault, no que tange às resistências, e de Butler, em sua especificidade queer, nas políticas identitárias. Assim, é analisado como a crítica à noção de identidade se institui nos pensamentos dos dois autores, enquanto algo que possibilita a reflexão sobre seus fundamentos. Assim, Butler aproxima-se da categoria mulher como sujeito do feminismo, explicitando o caráter performativo da produção das identidades e das resistências. Para isso, ela dialoga com Foucault na identificação do caráter excludente da fabricação das identidades, advogando, assim como fez o filósofo francês, um uso estratégico das identidades. Encerrando a última parte do capítulo, é explicitado como o campo queer pode operar enquanto um lugar aberto de crítica às perspectivas identitárias tradicionais. No último capítulo, é demonstrado como Butler realiza, a partir da concepção foucaultiana, uma genealogia do gênero. Para isso, antes de pensar suas especificidades, expõe-se a trajetória percorrida por Foucault na passagem de sua arqueologia para seus estudos genealógicos, através dos quais foi possível a construção conceitual das ideias de campos discursivos e de relações de saber-poder. Após isso, analisa-se como a genealogia se configura a partir de um exercício crítico de diagnóstico do presente, o qual não encontra um modelo rígido e prévio de análise, mas busca acompanhar as movimentações do poder e seus possíveis pontos de ruptura com a intenção de permitir a modificação dos campos discursivos e práticas a eles associadas.

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Por fim, é explicitado a construção da genealogia de gênero em Butler que, questionando as normatividades, permite a abertura à transformação no campo das relações de sexo-gênero. Assim, o exercício teórico realizado pela autora permite uma postura crítica em relação a própria filosofia contemporânea e, mais especificamente, em suas relações com os estudos de gênero. Isso ocorre pela implicação necessária entre a produção do conhecimento e política, através da qual não apenas aparatos epistemológicos são postos em questão, mas também relações sociais e aspectos culturais importantes dos marcos de inteligibilidade e lutas por reconhecimento.

Nesse sentido, a presente tese se coloca também enquanto um exercício de crítica. Essa é posta em funcionamento através de uma produção intelectual específica que, objetivando pensar a genealogia e a teoria de gênero em Judith Butler permite, enquanto uma espécie de efeito colateral necessário, repensar o espaço da crítica e dos estudos de gênero no edifício da filosofia institucionalizada, interrogando-a acerca do que pode ou não ser objeto de reflexão filosófica, bem como acerca da finalidade do pensamento filosófico em seus imbricamentos com a cultura e política.

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1. O GÊNERO PERFORMATIVO

1.1. Alguns pressupostos conceituais-linguísticos do gênero performativo

Judith Butler, em suas discussões acerca do gênero (1993, 1999, 2004), apresenta o caráter performativo do gênero destacando sua importância na construção dos processos de inteligibilidade humana na estrutura generificada e binária na qual vivemos. A performatividade nessa teoria está atrelada a uma repetição das normas de gênero que estão encadeadas numa lógica heterossexual dos corpos e desejos. Nesse sentido, a ideia de performatividade mostra como uma matriz de inteligibilidade de sexo-gênero binária impõe uma fabricação específica dos gêneros.

O conceito de gênero performativo, ou seja, a postura do gênero enquanto discurso normativo materializado em ato, seria, para Butler (1999, 2004), a ideia privilegiada para se pensar a construção do gênero, e, consequentemente, da inteligibilidade humana. Assim, seria na repetição do gênero por sujeitos determinados que estaria o lugar de sustentação da própria ideia de gênero, bem como da matriz de inteligibilidade binária normativa masculino-feminino, e também as possibilidades de questionamento dessa mesma norma.

O conceito de performatividade em Butler dialoga em grande medida com a teoria dos atos performativos de Austin (1990) e a releitura desse autor desenvolvida por Derrida (1971). Para Austin (1990), os atos performativos estabelecem a possibilidade de outra concepção de linguagem que, estando atrelada à performatividade, vincula-se aos usos em contextos reais da língua, e não a uma linguagem ideal. Austin (1990) realiza a distinção entre os atos de fala constativos e performativos, sendo os primeiros atos que descrevem e os segundos atos que fazem, praticam algo. Nesse sentido, nos atos performativos a própria fala realiza a ação através de um enunciado, alimentando e criando ao mesmo tempo a realidade social.

Já a partir dessa leitura inicial do filósofo britânico, é possível identificar aspectos que serão relevantes na teoria de gênero desenvolvida posteriormente por Butler. Nesse sentido, o foco que Austin (1990) dá ao contexto de execução enquanto campo possibilitador do ato performativo, bem como a impossibilidade de se analisar esse tipo de ato enquanto verdadeiro ou falso, substituindo esse aspecto pela questão da sua eficácia ou fracasso, são características que, acrescidas das posteriores críticas realizadas por Derrida (1971), darão esteira teórica para a consolidação do conceito de gênero

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performativo. Esses aspectos dos atos de fala performativos em Austin (1990) são possíveis, pois

La

contexto de la teoría de actos de habla la categoría alude, principalmente, a realizar aquello que se enuncia. [...] Son emisiones gramaticalmente correctas las que, sin pretensiones de verdad, tienen la propiedad de hacer y en el peor de los casos de fracasar. Por ello, la finalidad de los enunciados performativos antes que describir o constatar la verdad o falsedad de los acontecimientos es producir una transformación de lo dado o crear realidad mediante una locución performativa (DE SANTO, 2013, p. 372).1

É especialmente importante nas teorizações desenvolvidas por Butler a questão da impossibilidade de se decidir pela veracidade ou falsidade dos atos performativos. Nesse contexto, Butler (1999, 1993) radicalizará esse aspecto da teoria dos atos de fala para questionar a possibilidade de se defender um gênero como verdadeiro ou, ainda, que uma expressão de gênero possa ser considerada como mais verdadeira que outra. Nesse sentido, os atos performativos de gênero podem ser descritos como manufaturados socialmente, de forma que

Como os atos de fala, os atos de gênero

seriam performativos que estariam fora do regime falso/verdadeiro e apontariam para a fragilidade da normatividade de gênero ao explicitarem que a norma só pode funcionar como uma estrutura de citação e de repetição contínua. Corpos performam gêneros, e o fazem pela repetição, sem nunca serem idênticos a si mesmos (RODRIGUES, 2012, p. 153).

Essa repetição, para Austin (1990), exige contexto e intencionalidade, e serão sobre esses aspectos que incidirão as críticas derridianas (1971), as quais Butler aderirá de forma a complexificar e radicalizar o caráter construído das expressões de gênero, o que culminará com sua reivindicação de completa desnaturalização dessas expressões. Nesse sentido, se para Austin (1990), o campo de exercício dos atos de fala performativos pressupõe um contexto de enunciação específico e um sujeito consciente e intencionado em sua ação, para Derrida (1971) e Butler (1993, 1999, 2004), há uma relativização desses aspectos, o que possibilitará a reconfiguração das próprias experiências performativas.

No que se refere à necessidade de um contexto específico de enunciação para a

falando, é sempre necessário que as cirscunstâncias em que as palavras forem proferidas

categoria performatividade em geral está vinculada com efe , executar ou fazer , bem como representar ou interpretar . Especificamente, no contexto da teoria dos atos de fala, a categoria se refere, principalmente, ao fazer o que se enuncia. [...] São as emissões gramaticalmente corretas que, sem pretenções de verdade, têm a propriedade de fazer e, na pior das hipóteses, de fracassar. Portanto, o objetivo das declarações performativas, antes de descrever ou constatar a verdade ou falsidade dos acontecimentos, é produzir uma transformação do dado ou criar a realidade através de uma locução performativa tradução nossa).

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sejam, de algum modo, apropriadas grifos do autor). Assim, a ausência de contexto correto e invariável inviabiliza o ato performativo, constituindo o que o autor denomina de performativos infelizes ou fracassados. Dessa forma, presume-se que o contexto de enunciação é prévio ao sujeito do enunciado e, além disso, que esse sujeito é sempre um sujeito consciente dos atos que produz, de forma que, na teorização austiniana, acaba-se por impor a necessidade da delimitação exaustiva do contexto (NAVARRO, 2008).

Ora, tanto o aspecto do contexto delimitado e prévio ao ato, como a exigência de um sujeito consciente que torna possível os atos performativos felizes são questionados pelas críticas realizadas ao filósofo inglês por Derrida (1971). Nesse sentido ele afirma:

debo considerar como conocido y evidente que los análisis de Austin exigen un valor de contexto en permanencia, e incluso de contexto exhaustivamente determinable, directa o teleológicamente; y la larga lista de fracassos (infelicities) de tipo variable que pueden afectar al acontecimiento del performativo viene a ser un elemento de lo que Austin llama el contexto total siempre. Uno de estos elementos esenciales y no uno entre otros sigue siendo clássicamente la conciencia, la presencia consciente de la intención del sujeto hablante com respecto a la totalidad de su ato locutorio. Por ello, la comunicación performativa vuelve a ser comunicación de un sentido intencional, incluso si este sentido no tiene referente en la forma de una cosa o de um estado de cosas anterior o exterior. Esta presencia consciente de los locutores o receptores que participan en la realización de un performativo, su presencia consciente e intencional en la totalidad de la operación implica teleológicamente que ningún resto escapa a la totalización presente (p. 17).2 A teleologia do ato performativo encontrada em Austin é questionada por Derrida devido a possibilidade de modificação do próprio ato a partir da enunciação de atos infelizes ou fracassados, que, antes de apenas inviabilizarem sua efetividade, podem, ainda, reformular os próprios termos nos quais os performativos são executados. Dessa forma, há o abandono de uma perspectiva necessariamente contextual, consciente e intencionada do ato performativo como aspectos necessários para sua legitimação (DE SANTO, 2013). O contexto passa a ser visto como algo insuficente enquanto referência, pois, em qualquer situação dada, o contexto trará consigo possibilidades específicas de recontextualização ou redescrição interpretativas que extrapolarão as interpretações

Devo considerar bem conhecido e evidente que as análises de Austin exigem um valor de contexto em permanência, e mesmo de contexto exaustivamente determinável, direta ou teleologicamente; e a longa lista de fracassos (infelicidades) do tipo variável que podem afetar o acontecimento performativo se torna um elemento do que Austin sempre chama de contexto total. Um desses elementos essenciais e não um entre outros continua sendo classicamente a consciência, a presença consciente da intenção do sujeito falante com relação à totalidade de seu ato locutório. Portanto, a comunicação performativa volta a ser comunicação de um sentido intencional, mesmo que esse sentido não tenha referência na forma de uma coisa ou de um estado de coisas anterior ou exterior. Essa presença consciente dos enunciadores ou receptores que participam da realização de um performativo, sua presença consciente e intencional em toda a operação teleologicamente implica que nada escapa à total totalização (tradução nossa).

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inicialmente instituídas, constituindo-se assim enquanto um campo insaturável de sentidos (NAVARRO, 2008).

É na esteira dessa crítica que Butler realizará a apropriação do pensamento de Derrida na construção de sua teoria de gênero, partindo, principalmente, do lugar que ocupa a derrocada do sujeito intencional na produção dos atos performativos. Nesse sentido, para a filósofa norte-americana esses atos sustentam-se a partir da citação e repetição de atos que prescindem de um sujeito consciente e soberano de enunciação, o que possibilita a própria sustentação da repetição enquanto algo que apelaria a uma naturalidade originária do ato repetido:

Gracias a este anonimato citacional, los efectos sedimentados logran adquirir el status de ley o autoridad inapelable. Por ello, Butler insiste en que todo acto singular del presente necesariamente es una reiteración de un pasado subsumido y que se fuerza radica en ese peso histórico olvidado. En este sentido, para Derrida y para la filósofa, todo acto singular no es más que una apelación a la cita que borra su condición de tal (DE SANTO, 2013, p. 379).3 Esse aspecto citacional dos atos performativos, em Derrida (1971), deve-se, principalmente, à iterabilidade que engendra um todo significante. Assim, além de não exigir um referente determinado, e por consequência disso, produz-se também a ausência de um significado pré-determinado, pautado estritamente na intenção do sujeito do enunciado. É nesse contexto que, desde Austin (1990), mas por justificativas internas à estrutura e externas contextuais, a ideia de verdade ou falsidade do enunciado performativo é substituída pela questão de sua eficácia, bem como, já a partir de Derrida (1971), das possíveis alterações de sua produção quando do fracasso desses mesmos enunciados.

No que tange à iterabilidade, não é possível estabelecer um código prévio fixo que sirva de estruturante unívoco dos enunciados, apesar de que a própria capacidade de

e transmissão desse mesmo código (DERRIDA, 1971). Assim, o caráter iterável dos atos performativos seria a caracecterística presente em todas as expressões dessa modalidade de comunicação. Essa característica levaria a um não privilégio do contexto em relação às possibilidades de ruptura presentes no processo de iterabilidade, que poderiam, inclusive, levar um determinado enunciado a funcionar fora de seu contexto original

citacional, os efeitos sedimentados conseguem adquirir o status de lei ou autoridade inapelável. Por isso Butler insiste que todo ato do presente é necessariamente uma repetição de um passado subsumido e que sua força reside nesse peso histórico esquecido. Nesse sentido, para Derrida e para a filósofa, todo atos singular não passa de um apelo à citação

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(GARCÍA, 2003). No entanto, o que Derrida pretende ao investir no conceito de iterabilidade não é negar as influências que os aspectos contextuais operam nos atos performativos, ainda que não governados necessariamente por uma intencionalidade consciente, mas chamar a atenção [...] precisamente en el carácter citacional, iterable o, incluso, ritual, que requiere toda marca para dar cuenta de su propio carácter

(NAVARRO, 2008, p. 621)4.

É possível notar, assim, que não há em Derrida (1971) uma recusa dos aspectos comunicacionais defendidos por Austin (1990) em sua teoria dos atos de fala, uma vez que uma das principais características do conceito de iterabilidade não é a impossibilidade de comunicação, mas exatamento o inverso disso. O que o filósofo expõe em suas críticas a Austin é a impossibilidade de transformar o aspecto comunicativo do signo numa pressuposta verdade metafísica anterior à própria enunciação, sendo necessário não [...] passar de un concepto a otro, sino em invertir y em desplazar un orden conceptual tanto como el orden no conceptual clási 5, sendo essa a finalidade

primeira do trabalho que Derrida (1971) denomina de desconstrução.

É a partir desse deslocamento na análise que é possível defender a não necessidade de consciência do sujeito do enunciado na emissão de atos performativo, o que, por fim, permitiria a não saturação do contexto:

Sobre todo esta ausencia esencial de la intención en la actualidad del enunciado, esta inconsciencia estructural, si ustedes quieren, impide toda saturación de contexto. Para que un contexto sea exhaustivamente determinable, en el sentido exigido por Austin, sería preciso al menos que la intención consciente esté totalmente presente y actualmente transparente a sí misma y a los otros, puesto que ella es un foco determinante del contexto (DERRIDA, 1971, p. 22).6

Além da questão da intencionalidade do contexto, chama a atenção na releitura realizada por Derrida (1971) o aspecto já citado de possibilidade de pensar os atos performativos a partir de seus fracassos, descentrando, assim, as análises focadas apenas nos performativos felizes ou bem-sucedidos. Para Austin (1990), a eficiência das emissões performativas está necessariamente atrelada à produção do êxito do ato de fala

marcas representem seu próprio caráter significante tradução nossa).

outro, mas em inverter e deslocar uma ordem conceitual tanto quanto a tradução nossa).

Sobretudo essa ausência essencial da intenção na atualidade do enunciado, essa inconsciência estrutural, se vocês quiserem, impede qualquer saturação de contexto. Para que um contexto seja exaustivamente determinável, no sentido exigido por Austin, seria necessário pelo menos que a intenção consciente estivesse totalmente presente e atualmente transparente para si e para os outros, uma vez que ela é um foco

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em realizar o que enuncia, no entanto, como exposto por Derrida (1971), o risco de fracasso, ainda que exposto por Austin como algo que pode afetar a enunciação performativa, não é colocada pelo filósofo britânico como característica essencial, mas, ao contrário disso, como exceção que inviabiliza o próprio ato.

Para Derrida (1971), não é enquanto excessão que o fracasso ou erro deve ser pensado, mas enquanto uma possibilidade sempre presente devido ao caráter aberto de qualquer ato performativo, erro esse que pode, inclusive, alterar as condições necessárias

Nesse sentido,

[...] Austin excluye esta eventualidade (y la teoría general que daría cuenta de ella) con una especie de empeño lateral, lateralizante, pero por ello tanto más significativo. Insiste sobre el hecho de que esta posibilidad sigue siendo anormal, parasitaria, que constituye una especie de extenuación, incluso de agonía del lenguaje que es preciso mantener fuertemente a distancia o de la que es preciso desviarse resueltamente (DERRIDA, 1971, p. 19).7

Essa é uma característica dos atos performativos que contribuirá enormemente com os desenvolvimentos teóricos no campo dos estudos de gênero que Butler (1993, 1999, 2004) realiza através da incorporação do conceito de performatividade na análise da construção, consolidação e manutenção das normatividades de gênero, bem como suas possibilidades de subversão, uma vez que entra em cena a explicitação dos aspectos conflitivos das enunciações performativas (NAVARRO, 2008). Nessa incorporação há destaque para a defesa derridiana de que um enunciado performativo é sempre citação de outro enunciado, o que consolida uma relação sempre aberta com o passado enquanto constituinte e o futuro enquanto algo a ser ainda construído, uma vez que, devido a essa abertura constitutiva, todos os enunciados estão, em alguma medida, condenados a fracassar, sendo essa uma de suas caractísticas estruturais (DE SANTO, 2013, p. 378).

Ao se investir na ideia de fracasso do ato performativo, torna-se possível também

teatralidade (DERRIDA, 1971), aspecto que será também apropriado e repensado por Butler (1993, 1999). A conexão entre esses aspectos se dá de forma tímida na crítica derridiana à teoria de Austin, mas aponta para uma possível influência na centralidade que Butler dá ao aspecto teatral da feitura do gênero (1993, 1999) ao desenvolver sua teoria (DE SANTO, 2013). Nesse sentido, a defesa do gênero enquanto ficção política,

lateral, lateralizante, mas, por isso, muito mais significativo. Ele insiste no fato de que essa possibilidade permanece anormal, parasitária, que constitui uma espécie de extenuação, mesmo de agonia da linguagem tradução nossa).

(22)

consolidada através de processos performativos reiterados ou subvertidos pelas versões que incorporam seus signos por meio da atuação do gênero, torna-se possível devido ao

existência eficaz dos atos performativos.

A partir desses pressupostos linguísticos foi possível a Butler construir uma ontologia desontologizante da categoria gênero, de forma a explicitar seus aspectos arbitrários de construção e consolidação baseados, predominantemte, numa matriz de inteligibilidade heterossexual. Essa matriz deixa de ser pensada enquanto um processo natural, com origem e baseado em uma expressão original de gênero, para ser analisada a partir de um processo performativo de imitação sem original, de forma que,

de otros actos, gestos y prácticas. El género tomado como efecto de acciones reiteradas, sustantivizado y no sustantivo , naturalizado y no natural , es explicado por Butler mediante una categoría dinámica que puede liberarse de un agente previo a la acción (DE SANTO, 2013, p. 382).8

1.2. A desontologização do sujeito generificado

A relação entre o ato performativo e a criação de realidades é a maior contribuição de Austin (1990) e Derrida (1971) à ideia de performatividade posteriormente desenvolvida por Butler (1999). No entanto, como destaca Pinto (2002) ao discutir as influências do pensamento de Austin na performatividade tal como pensada por Butler, no encontro com o conceito, Butler inseriu a questão do corpo na construção do performativo. Dessa forma, ao se falar em performatividade em Butler (1999) fala-se de um sujeito de linguagem que não apenas enuncia e cria realidades, mas que também é criado e materializado enquanto sujeito a partir do performativo, forjando, reiterando e subvertendo a produção da linguagem e dos próprios corpos por ela possibilitados enquanto espaços de enunciação.

É a partir dessa perspectiva performativa corporificada que se deve compreender a construção teórica de Butler acerca da fabricação dos gêneros. Antes de tudo, essa é uma concepção que desnaturaliza as experiências generificadas a partir de uma crítica interna ao conceito de gênero no âmbito dos movimentos feministas. Para Butler (1993, 1999), a apropriação desse conceito operava uma paradoxal naturalização das diferenças

é uma série de imitações de outros atos, gestos e práticas. O gênero tomado como efeito de ações repetidas, substantivado e não substancial , naturalizado e não natural , é explicado por Butler através de uma categoria dinâmica que pode ser liberada de um agente prévio de ação tradução nossa).

(23)

de gênero, constituindo-se enquanto ferramenta que, ainda que explicitando o caráter social das experiências de gênero, acabava por reforçar a continuidade entre sexo, visto como natural, e gênero, enquanto categoria cultural.

Além disso, as discussões empreendidas por Butler contribuem com a consolidação das críticas ao feminismo de segunda onda, que, ao operar no marco heterossexual, branco e de um espaço privilegiado de classe, acabava por invisibilizar experiências marcadas por outros atravessamentos de diferença que engendravam opressões específicas, como nos casos das mulheres negras e mulheres transexuais (BARIL, 2007). É nesse sentido que Butler (1993, 1999, 2004) constantemente alertará em relação ao caráter excludente que qualquer categoria identitária opera, ainda que com finalidade de emancipação como no caso da categoria mulheres no movimento feminista, de forma que,

[...] feminism ought to be careful not to idealize certain expressions of gender that, in turn, produce new forms of hierarchy and exclusion. In particular, I opposed those regimes of truth that stipulated that certain kinds of gendered expressions were found to be false or derivative, and others, true and original. (BUTLER, 1999, p. VIII).9

A partir dessa leitura é possível notar o paradoxo engendrado no investimento na categoria política de mulheres enquanto sujeito do feminismo. Se, por um lado, essa demarcação é necessária para instituir a própria inteligibilidade do movimento, por outro, a demarcação dos sujeitos do movimento acaba por operar exclusões a partir de categorias que são sedimentadas, como as de sexo e gênero distintos e binários, bem como uma expressão de sexualidade específica, a heterossexual (ROSA, 2012). Ou seja, o que Butler defende em sua crítica à apropriação do conceito de gênero é que a operação do movimento feminista pode, ao naturalizar uma certa expressão dos gêneros, produzir um efeito diverso ao desejado inicialmente, qua seria a superação da opressão das mulheres. Sobre a especificidade da leitura realizada por Butler, Baril (2007) afirma:

ne certaine utilisation de la catégorie femmes Elle soutient que les femmes Ainsi, le recours à de telles catégories identitaires

le caractère factice et construit de cette catégorie (p. 69).10

produzam novas formas de hierarquia e exclusão. Em particular, opus-me aos regimes de verdade que estipulavam que certos tipos de expressões de gênero eram falsas ou derivadas, e outras verdadeiras e

tradução nossa).

so da categoria de mulheres gera os efeitos opostos de uma liberação. Ela argumenta que as mulheres são os efeitos de enunciados performativos elaboradas num

(24)

É essa interpretação crítica que permite a Butler articular de forma precisa o campo dos gêneros com a constituição, consolidação e manutenção de uma determinada organização política e cultural, de forma que

gender from the political and cultural intersections in which it is invariably produced (BUTLER, 1999, p. 06)11. Nesse sentido, antes de qualquer possibilidade

de naturalização do sistema de gênero binário, o que é defendido pela filósofa é a artificialidade dos construtos de gênero que acabam, devido ao seu caráter repetitivo, naturalizando a relação entre uma determinada anatomia, ou sexo, e expressões de gênero e sexualidade específicas.

Para Butler (1999), a ideia de um sistema de gênero que reflete diferenças sexuais naturais não se sustenta, uma vez que é o próprio processo de naturalização que impõe essa relação de mimetismo. Apesar de suas críticas em relação às perspectivas feministas que adotam para si esse pressuposto, não é possível definir o pensamento de Judith Butler como pós feminista, uma vez que, através de sua crítica, não há a intenção de suplantar as teorias e políticas feministas, mas radicalizá-las através de uma crítica interna (BUTLER; TOHIDI, 2017). Esse aspecto permite também destacar o não abandono da própria categoria mulheres, mas apenas uma postura de uso estratégico dessa identidade para a ação política, mantendo o conceito aberto a ressignificações para que esse não opere processos de exclusão que inviabilizem a agência de sujeitos determinados (BARIL, 2007).

Essa compreensão e apropriação do feminismo, bem como do conceito de mulheres, relaciona-se com a própria concepção de identidade que atravessa a teorização de Butler. Nesse sentido, o gênero seria um aspecto indissociável da constituição subjetiva em nossa cultura, sendo impossível pensar o gênero enquanto categoria pré ou pós identitária, uma vez que os moldes de inteligibilidade que possibilitam o reconhecimento do sujeito enquanto humano passa, necessariamente, pela sua inclusão nas categorias de gênero disponíveis (BUTLER, 1999). Dessa forma, como defende Baril

quadro heterosexista. Assim, o uso de tais categorias de identidade é paradoxal, pois visa, por um lado, liberar o grupo-alvo e, por outro lado, incluí-lo, pelo mesmo fato, em uma estrutura normativa rígida e que,

tradução nossa).

-se impossível separar gênero das interseções políticas e culturais nas quais é invariavelmente tradução nossa).

(25)

-ci soit 12.

Essa relação intrínsica entre gênero e constituição identitária dos sujeitos é possível devido a não conexão entre produção de gênero e a pré-existência de um sujeito intencionado e consciente que elegeria seu gênero. Ou seja, o gênero, ainda que se tratando de um construto social específico que engendra as identidades, não pressupõe um agente prévio que o engendre, o que levaria a conclusão da existência de um sujeito anterior às categorias de gênero. Nesse sentido,

For if gender is constructed, it is not necessarily constructed by an I or a we who stands before that construction in any spatial or temporal sense of before . Indeed, it is unclear that there can be an I or a we who has not been submitted, subjected to gender, where gendering is, among other things, the differentiating relations by which speaking subjects come into being. Subjected to gender, but subjectivated by gender, the I neither precedes nor follows the process of this gendering, but emerges only within and as the matrix of gender relations themselves (BUTLER, 1993, p. 07).13

Essa matriz de gênero é uma das responsáveis pela delimitação do campo do humanamente inteligível, mantendo assim relações de coerência que culminam com a determinação linear e excludente entre sexo, gênero e sexualidade, numa dinâmica na qual o pertencimento a uma das categorias binárias pré-estabelecidas impossibilita a identificação com seu par, bem como determina os demais caracteres de sexo-gênero dos sujeitos (BUTLER, 1999).

É a partir da crítica a esse aspecto restritivo e excludente das identidades de sexo-gênero que Butler opera o questionamento do aspecto identitário como marco principal que viabilizaria a agência política dos indivíduos e coletivos. Essa crítica, no entanto, não advoga pelo abandono das identidades ou recusa de seu potencial para a transformação dos marcos sociais de inteligibilidade que regem as experiências humanas, uma vez que a unificação possibilitada pelo marco identitário potencializa a ação política. O que a filósofa propõe a partir da subversão do próprio conceito de identidade é uma utilização aberta dos marcos identitários, com a finalidade de evitar uma imposição rígida que acabe por excluir experiências e grupos que não se adequem aos marcos normativos

12

segundo ela, sempre já sexuada no nível social, no sentido de que não é possível, na estrutura dominante, tradução nossa).

eu ou um nós que encontra-se antes dessa construção em qualquer encontra-sentido espacial ou temporal de antes . De fato, não está claro que possa haver um eu ou um nós que não tenha sido submetido, sujeito ao gênero, onde generificar é, entre outras coisas, as relações diferenciadoras pelas quais os sujeitos falantes passam a existir. Submetido ao gênero, e subjetivado pelo gênero, o eu não precede nem segue o processo desse generificação, mas

(26)

estabelecidos pelos movimentos de minorias, o que ocasionaria a produção de exclusões que imporiam uma postura antagônica à defendida pelos próprios movimentos. Dessa forma,

Selon Butler, les politi

des catégories identitaires, comportent à la fois des avantages et des incovénients. -forma unifiée pour des groupes afin de revendiquer leurs droits, en leur procurant une certaine stabilité et fixité.

groupes donnés, à gommer les différences entre les personnes et à taire les discussions et les conflits inhérents à tout regroupement. De cette façon, les

ou .14

Nesse sentido, o que Butler reinvidica é a necessidade de desnaturalização das identidades sexuais e de gênero que permita o vislumbre dos gêneros não como realidades prévias aos sujeitos, mas como um campo normativo que delimita o próprio espaço que possibilita, ou não, a identificação dos sujeitos enquanto humanos. As expressões de gênero seriam, assim, a postura em ato de uma cópia sem original que possibilitaria aos sujeitos seu ingresso no próprio campo normativo da cultura. Ou seja, não haveria uma verdade ontológica dos gêneros, mas uma construção artificial que, como principal ferramenta de consolidação, utilizaria o recurso à naturalização dessas expressões.

Ao questionar a pretensa naturalidade das expressões de gênero binárias, Butler conclui que there is no gender identity behind the expressions of gender; that identity is performatively constituted by the very expressions

(BUTLER, 1999, p. 33)15, de maneira que se torna impossível reivindicar uma verdade

dos gêneros que se localize de forma anterior ao sujeito. Não haveria, assim, um gênero original que passaria a ser repetido através de atos performativos, mas a produção paródica da própria ideia de original baseada na pretensa naturalidade das expressões de gênero. É a partir desse pressuposto que Butler opera uma desontologização do sujeito generificado, o que possibilita pensar alternativas no que se refere à postura do gênero em ato que deixem em aberto o estatuto de veracidade ou falsidade dessas expressões,

-se na identidade específica de um grupo de pessoas (mulheres, gays e lésbicas etc.) e, portanto, acerca das categorias de identidade, tem-se vantagens e desvantagens. Por um lado, eles fornecem uma plataforma unificada para os grupos reivindicarem seus direitos, proporcionando-lhes certa estabilidade e firmeza. Por outro lado, esse tipo de política tende a homogeneizar os grupos dados, apagar as diferenças entre as pessoas e silenciar as discussões e conflitos inerentes a qualquer agrupamento. Dessa maneira, as políticas identitárias normalizam as pessoas, para forçá-las a entrar na definição fixa de identidade ou grupo (ou categoria de identidade) ou excluem aqueles que se recusam a fazê- tradução nossa).

(27)

uma vez que, se genders can be neither true nor false, neither real nor apparent, neither original nor derived. As credible bearers of those attributes, however, genders can also be

rendered thoroughly and 16.

Dado que o campo do gênero se constitui enquanto espaço de produção da própria inteligibilidade humana, ao reivindicar possibilidades outras de expressões de gênero, o que se defende, por consequência, é a revisão do próprio conceito de humano. Ora, assim como os conceitos de homem e mulher, masculino e feminino, o conceito de humano se sustenta a partir de generalizações que implicam a adesão a pressupostos assimilados como universais, naturais e inevitáveis (ROSA, 2012). No entanto, se o recurso à originalidade que justifica a reprodução de determinadas performances sociais é abandonado em detrimento de uma leitura que abdica da pretensão de estabelecimento de uma ontologia inevitável para a experiência humana, passa a ser possível pensar o campo do humanamente inteligível, assim como as expressões de gênero que o possibilitam, enquanto marcos normativos passíveis de alteração.

O marco de inteligibilidade humana no que tange às suas expressões de gênero passa, assim, a ser visto como um espaço de produção de hierarquias. Essa hierarquia é baseada na constituição da diferença sexual enquanto categoria natural para a consolidação do molde binário de gênero. É contra essa naturalização que opera a teoria de gênero desenvolvida por Judith Butler, de forma que o caráter culturalmente construído das expressões de gênero é explicitado, bem como as relações políticas que sustentam essa hierarquia. Nesse sentido,

même métaphysique. Elle rappelle que ces divers éléments ont été juxtaposés ormative et hétérosexiste (BARIL, 2007, p. 63).17

Essa perspectiva permite, além de um questionamento teórico, o investimento num pensamento que possibilita a ação política, num sentido de propor a necessidade de revisão do campo normativo e simbólico que sustenta o sistema binário de gênero com a finalidade de ampliar o campo do humanamente inteligível. Assim, o ideal de gênero é questionado em sua pretensão de estabelecimento de uma ontologia teleológica para a

eros não podem ser verdadeiros nem falsos, nem reais nem aparentes, nem originais nem derivados. Como portadores credíveis desses atributos, no entanto, os gêneros também podem se tornar

tradução nossa).

sexo , gênero, sexualidade, orientação sexual e identidade sexual não compartilham nenhum elo estrutural, necessário ou mesmo metafísico. Ela lembra que esses vários elementos foram justapostos culturalmente para se encaixarem em uma matriz de poder heteronormativo e

(28)

consolidação das experiências humanas, o que abre espaço para a construção de outra ética de sexo-gênero, pautada na desnaturalização das experiências.

Ao questionar o campo normativo de pretensões naturais, Butler explicita o embuste presente na instituição do essencialismo na definição dos gêneros. Nesse sentido, não haveria uma essência ou naturalidade dos gêneros, o que, por consequência, explicita o equívoco que seria pensar as expressões de sexo-gênero enquanto estáveis e substanciais (BARIL, 2007). Com isso, pode-se notar duas formas de pensar as experiências de gênero, uma de pretensão natural e inflexível, o que coincidiria com o que, para alguns autores, seriam as representações ideológicas18 do gênero (HÉRITIER,

1996; DE SOUSA FILHO, 2017); e uma perpectiva crítica que defende a desontologização dessas experiências, distinção sobre a qual Butler (1999) afirma:

We may be tempted to make the following distinction: a descriptive account of gender includes considerations of what makes gender intelligible, an inquiry into its conditions of possibility, whereas a normative account seeks to answer the question of which expressions of gender are acceptable, and which are not, supplying persuasive reasons to distinguish between such expressions in this question that attests to a pervasively normative operation of power, a fugitive Thus, the very description of the field of gender is no sense prior to, or separable from, the question of its normative operation (P. XXI).19

É esse vínculo entre as experiências de gênero e um determinado campo normativo que permite a Butler pensá-las enquanto performativas. Nesse sentido, a ideia de performatividade ocupa o conceito anteriormente estabelecido enquanto identidade de gênero, num processo no qual o gênero deixa de ser entendido como algo que o sujeito é, para ser inserido no campo de uma prática que o sujeito faz e que o produz como sujeito (BUTLER, 1999; LLOYD, 1999).

A compreensão do gênero enquanto um fazer performativo não inviabiliza pensar o sujeito, tampouco leva à sua negação. O que ocorre é uma mudança no foco analítico,

18 Acerca do conceito de ideologia, De concerce, então, por um

lado, aos processos de fundação, legitimação, consagração e sancionamento, pela via imaginária e simbólica, dos sistemas humanos de sociedade; o que implica sempre um certo grau de produção de desconhecimento da origem das instituições sociais que tornam esses sistemas possíveis. Poe outro lado, concerne também semper à eufemização da sujeição ou dominação a que são submetidos os indivíduos sob

p. 240).

demos ser tentados a fazer a seguinte distinção: uma perspectiva descritiva do gênero inclui considerações sobre o que torna o gênero inteligível, uma investigação sobre suas condições de possibilidade, enquanto uma explicação normativa procura responder à pergunta de quais expressões de gênero são aceitáveis e quais não são, fornecendo razões persuasivas para distinguir entre essas expressões dessa maneira. A questão, no entanto, sobre o que se qualifica como gênero já é, em si, uma questão que atesta uma operação de poder amplamente normativa, uma operação fugidia de qual será o caso sob a rubrica de qual é o caso . Assim, a própria descrição do campo de gênero não faz sentido a priori ou

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uma vez que o sujeito deixa de ter estatuto ontológico anterior aos seus atos de gênero (LLOYD, 1999), ou seja, não há primeiro o sujeito que engendraria o gênero, mas um sujeito que se estabelece na própria fabricação dos gêneros através da performatividade. Esse movimento ocorre porque, a partir da perspectiva da performatividade de gênero, é a própria linguagem e discursos que possibilitam sua emergência, sendo esses anteriores ao sujeito e não o inverso disso (SALIH, 2012), o que permite a Butler utilizar a performatividade como categoria filosófica (NAVARRO, 2008) que possibilita a desontologização da própria ideia de sujeito generificado.

1.3. Inteligibilidade humana e matriz de gênero

A leitura performativa do gênero em Butler desnaturaliza e desontologiza essa categoria, no entanto, isso não opera uma exclusão do gênero do campo do que constitui os sujeitos. Esse movimento se opera, pois, se por um lado, o gênero não pode ser pensado como possuindo existência anterior ao sujeito e aos atos que o tornam viável, por outro, esse sujeito só se consolida enquanto humanamente inteligível se inserido numa das expressões performativas de gênero aceitas. Ou seja, o gênero como ato performativo corporificado não é prévio ao sujeito, uma vez que emerge no mesmo momento da emergência do próprio sujeito, mas, para que esse seja reconhecido enquanto tal, é necessário sua adesão à matriz de gênero normativamente instituída, uma vez que the matrix of gender relations is prior to the emergence of the human 1993, p. 07)20.

É o caráter prévio das normas de gênero em relação à experiência dos sujeitos sócio-historicamente localizados que engendra relações normativas para a adesão dos sujeitos à matriz de inteligibilidade no campo do gênero. Nesse sentido, uma série de estratégias sociais operam para garantir a conformidade dos sujeitos às expressões de gênero o mais próximas possíveis do ideal regulatório que as instituem. Sobre o caráter compulsório na imposição de gêneros inteligíveis aos sujeitos Butler afirma:

Hence, as a strategy of survival within compulsory systems, gender is a performance with clearly punitive consequences. Discrete genders are part of regularly punish those who fail to do their gender right. Because there is neither which gender aspires, and because gender is not a fact, the various acts of gender create the idea of gender, and without those acts, there would be no gender at all. Gender is, thus, a construction that regularly conceals its genesis;

(30)

the tacit collective agreement to perform, produce, and sustain discrete and polar genders as cultural fictions is obscured by the credibility of those productions and the punishments that attend not agreeing to believe in them; historical possibilities materialized through various corporeal styles are nothing other than those punitively regulated cultural fictions alternately embodied and deflected under duress (BUTLER, 1999, p. 178).21

gênero ocorrem. Nesse sentido, nem a leitura voluntarista nem a leitura determinista para a constituição dos sujeitos generificados dão conta da complexidade do processo. Numa perspectiva voluntarista, os sujeitos são pensados enquanto completamente autônomos na definição do seu gênero, o que invisibiliza todos os processos normativos, com expressões de coação inclusas, que delimitam as possibilidades dessa escolha. Já uma leitura determinista trata esse campo normativo como completamente rígido, não passível de modificação ou subversão, o que acaba por excluir qualquer possibilidade de agência do sujeito frente às determinações, sejam elas de caráter natural ou social, do gênero.

Assim, em Butler, encontramos uma leitura que possibilita uma visão mais complexa do processo de constituição dos sujeitos generificados. Nesse sentido, instituem-se relações específicas que tanto constrangem os indivíduos em direção a uma matriz de inteligibilidade a partir da instituição de normas, tabus e expectativas (CHAMBERS, 2007), o que impossibilita a escolha do gênero enquanto processo descolado do campo social e político no qual ocorre (SALIH, 2012), como também possibilitam a reformulação das normas na própria colocação em ato da partitura de gênero a partir de citações não contextualizadas que podem, além de produzir punições para os sujeitos que assim agem, modificar a própria matrix de gênero. Dessa maneira,

Butler contends (throughout her work) that the practices that produce gendered subjects are also the sites where critical agency is possible. Gender is simultaneously a mechanism of constraint (a set of norms which define us as

com consequências claramente punitivas. Os gêneros discretos fazem parte do que humaniza os indivíduos na cultura contemporânea; na verdade, punimos regularmente aqueles que não conseguem fazer seu gênero corretamente. Como não existe uma essência que o gênero expresse ou externalize, nem um ideal objetivo ao qual o gênero aspira, e porque o gênero não é um fato, os vários atos de gênero criam a idéia de gênero e, sem esses atos, não haveria absolutamente gênero. O gênero é, portanto, uma construção que oculta regularmente sua gênese; o acordo coletivo tácito de realizar, produzir e sustentar gêneros discretos e polares como ficções culturais é obscurecido pela credibilidade dessas produções e pelas punições que ocorrem por não se concordar em acreditar nelas; a construção compele nossa crença em sua necessidade e naturalidade. As possibilidades históricas materializadas através de vários estilos corporais nada mais são do que aquelas ficções culturais reguladas punitivamente alternadamente

(31)

normal/abnormal) and a locus for productive activity (LLOYD, 1999, p. 200).22

É através desse processo muitas vezes paradoxal que o sujeito generificado se institui, de forma que se pode concluir que a matriz de gênero opera de forma indissociável da produção da inteligibilidade humana. Isso ocorre a partir da delimitação da coerência entre sexo, gênero e sexualidade enquanto uma relação naturalizada que engendra o sujeito moderno (HAWKESWORTH, 1997). Nesse sentido, a partir da repetição dos atos estilizados de gênero, o próprio campo do humanamento inteligível vai sendo instituído e, ao mesmo tempo, reformulado, de forma que

The rules that govern intelligible identity, i.e., that enable and restrict the of gender hierarchy and compulsory heterosexuality, operate through repetition. Indeed, when the subject is said to be constituted, that means simply that the subject is a consequence of certain rule-governed discourses that govern the intelligible invocation of identity.The subject is not determined by the rules through which it is generated because signification is not a founding act, but rather a regulated process of repetition that both conceals itself and enforces its rules precisely through the production of substantializing effects. In a sense, all signification takes place within the orbit of the compulsion to repeat;

that repetition (BUTLER, 1999, p. 185).23

1.4. Reconhecimento, desejo e gênero

É o campo instituído para o humanamente inteligível que possibilitará, ou não, o reconhecimento social dos sujeitos. Para o desenvolvimento teórico das relações entre o campo de inteligibilidade humana e reconhecimento social, Butler recorre constantemente em seus escritos ao pensamento de Hegel. Dessa forma, a partir, principalmente, das discussões acerca da dialética entre senhor e servo empreendidas por Hegel, Butler buscará analisar as possibilidades de reconhecimento humano no que tange especificamente à produção dos sujeitos generificados.

sujeitos generificados também são os locais onde a agência crítica é possível. O gênero é simultaneamente um mecanismo de constrangimento (um conjunto de normas que nos definem como normal/anormal) e um local para a

tradução nossa).

de um , regras que são parcialmente estruturadas por matrizes hierárquicas de gênero e heterossexualidade compulsória, operam através da repetição. De fato, quando se diz que o sujeito é constituído, isso significa simplesmente que o sujeito é uma conseqüência de certos discursos governados por regras que governam a invocação inteligível da identidade. O sujeito não é determinado pelas regras pelas quais é gerado porque a significação não é um ato fundador, mas um processo regulado de repetição que se oculta e aplica suas regras precisamente através da produção de efeitos substancializadores. De certo modo, toda significação ocorre dentro da órbita da compulsão de repetir; gência , então, é localizar-se na

(32)

A análise do reconhecimento em Hegel é precedida pela discussão acerca do desejo (Begierde), de forma que é a partir dele, em seu processo de negação e consumo do objeto, que se inicia o movimento que pode propiciar o reconhecimento (WILLIANS, 1997)24. O que ocorre nesse movimento é a transição entre o momento do desejo, uma

vez que a lógica de sua satisfação elimina a possibilidade de reconhecimento entre auto-consciências (GADAMER, 1976), e o momento da busca pelo reconhecimento, dialética necessária para a superação do paradoxo no qual o desejo encontra-se devido a sua necessidade de destruição do objeto (NEUHOUSER, 2009). Assim, no lugar da destruição, a lógica do reconhecimento possibilita a emergência de uma realidade intersubjetiva (KOJÈVE, 1969).

A luta é estabelecida enquanto primeiro momento da tentativa de consolidação do reconhecimento, no qual as duas autoconsciências arriscam a própria vida, engendrando,

assim, uma luta de vida ou morte -de-si é determinada

de tal modo que elas se provam a si mesmas e uma a outra através de uma luta de vida ou

reconhecimento mútuo, dado que só faz sentido a luta entre autoconsciências capazes de reconhecer uma a outra. A luta de vida ou morte ocorre no âmbito da autodeterminação que tem por finalidade a negação do outro, sendo indispensável o risco à vida para produção do reconhecimento enquanto autoconsciência (MENESES, 2011).

No entanto, se há morte, há a negação do ser, do puro ser natural que é pré-requisito para a autoconsciência. Assim, na morte não se obtém o reconhecimento, uma vez que o outro é eliminado e a negação que ocorre na luta não conserva o que é negado. Depreende-se disso que o reconhecimento é necessariamente recíproco. Para que haja reconhecimento as duas consciências-de-si devem agir diferenciadamente (KOJÈVE, 1969). São esses dois momentos que proporcionam o estabelecimento da dialética senhor-servo25 enquanto possibilidade de consolidação do reconhecimento. Assim,

24 Uma tradução mais adequada para Begierde poderia ser apetite, uma vez que a relação com a destruição

do objeto fica mais explícita nessa segunda tradução. Redding (2009) argumenta que Begierde é um termo

que traz consigo cono Heg

appetite (p. 97) - tradução nossa). Essa é

Begierde, suggests animal appetite rather than the anthropocentric sense conveyed by the French le desir and the English desire

alemã para desejo, Begierde, sugere appetite animal ao invés do sentido antropocênctrico convencionado pelo francês le desir e o inglês desire - tradução nossa). Manteremos aqui o termo desejo devido a ser o mais utilizado entre os comentadores, bem como por esse ser o termo escolhido na tradução do texto de Hegel na qual nos apoiamos, mas com a ressalva desse sentido que, inicialmente, não é explícito em desejo.

25 Na tradução da Fenomenologia do Espírito utilizada por nós aqui, o termo escolhido é escravo. No

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