• Nenhum resultado encontrado

Judith Butler, a performance e a psicanálise :um estudo epistemológico

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2017

Share "Judith Butler, a performance e a psicanálise :um estudo epistemológico"

Copied!
128
0
0

Texto

(1)

UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

MESTRADO EM PSICOLOGIA

JUDITH BUTLER, A PERFORMANCE E A PSICANÁLISE: UM ESTUDO EPISTEMOLÓGICO

Autora: Karla Christianne Cardoso Batista Orientadora: Professora Drª. Ondina Pena Pereira Co-Orientadora: Professora Drª.Deise Matos do Amparo

(2)

Karla Christianne Cardoso Batista

JUDITH BUTLER, A PERFORMANCE E A PSICANÁLISE: UM ESTUDO EPISTEMOLÓGICO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação “Strictu Sensu” em Psicologia da Universidade Católica de Brasília, como requisito para a obtenção do título de Mestre em Psicologia.

Orientadora: Profª. Drª. Ondina Pena Pereira Co- Orientadora: Profª Drª. Deise Matos do Amparo

(3)

TERMO DE APROVAÇÃO

Dissertação defendida e aprovada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Psicologia, defendida e aprovada, em 21 de setembro de 2007, pela banca examinadora constituída por:

____________________________________________________ Professora Doutora ONDINA PENA PEREIRA

Orientadora – Universidade Católica de Brasília - UCB

____________________________________________________ Professora Doutora DEISE MATOS DO AMPARO Co-Orientadora - Universidade Católica de Brasília – UCB

___________________________________________________ Professora Doutora BERENICE BENTO

Membro convidado – Universidade de Brasília – UnB

__________________________________________________ Professora Doutora VIVIANE LEGNANI

(4)

Dedico este material aos performáticos Batista, Dagmar,

(5)

AGRADECIMENTOS

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes, pela concessão de bolsa de estudos - integral, o que possibilitou minha dedicação exclusiva no processo de elaboração deste trabalho.

À minha querida e respeitosa Professora Drª. Ondina Pena Pereira, orientadora e cúmplice neste desafio que se tornou esta dissertação, pela coragem, competência, ousadia, compreensão e escuta. Agradeço, sobremaneira, pela intervenção no momento mais decisivo, o de enfrentamento do tema deste trabalho, possibilitando que o meu desejo conduzisse todo o processo de construção deste caro material.

À Professora Drª. Deise Matos do Amparo, pelas orientações e contribuições desta proposta de trabalho.

À Professora Drª. Viviane Legnani, uma forte referência acadêmica e companheira de longa data, pela disponibilidade e participação na avaliação desta construção, por ora encerrada.

À Professora Drª. Berenice Bento, pela receptividade do assunto e sua composição na banca examinadora desta dissertação.

Aos meus caros amigos Cláudio, Daniel, Higor, Renata, Flávia, Paulinha, Ângela e Vivi, grandes companheiros de performance, divido com vocês os bônus desta trajetória.

(6)

SUMÁRIO

RESUMO vii

ABSTRACT viii

INTRODUÇÃO 1

CAPÍTULO I – O MÉTODO ARQUE-GENEALÓGICO COMO FUNDAMENTO

CRÍTICO DE JUDITH BUTLER 7

CAPÍTULO II – A PSICANÁLISE PELO AVESSO 18

2.1. A base estruturalista em alguns argumentos feministas 18

2.2. Crítica ao estruturalismo 22

2.3. A Psicanálise de Lacan e a mascarada 28

2.4. Freud e o modelo melancólico 44

2.5. Crítica de Butler 62

CAPÍTULO III – A PERFORMANCE COMO ATO DE FALA 77

3.1. Conceituando a performance 77

3.2. A performatividade como ato 87

3.3. A crítica psicanalítica sobre a performatividade de Butler 97

CONSIDERAÇÕES FINAIS 106

(7)

RESUMO

O presente trabalho propõe uma discussão epistemológica sobre a temática de gênero desenvolvida por Judith Butler. Gênero aqui é entendido como uma representação que é

performativamente constituída com a aparência de uma fixidez interior. Uma vez que o gênero passa a ser interpretado como performance sobre a superfície corporal, cria-se o campo para a desconstrução do processo de naturalização das categorias distintivas entre os gêneros masculino e feminino, homem e mulher. O objetivo geral deste estudo foi o de introduzir questionamentos à teoria psicanalítica acerca deste tema, que se apresenta como dispositivo questionador dos processos de construção das identidades, dentre as quais algumas vão se constituindo em um caráter de exclusão. Assim, foi realizada uma exegese da teoria de gênero de Judith Butler, visando elucidar, no pensamento da autora, as bases epistemológicas sobre as quais se apóia o dimorfismo na teoria psicanalítica. Os resultados decorrentes desta exegese apontam para as práticas significantes que produzem, regulam e desregulam as identidades e, ainda, criam dispositivos capazes de produzir fissuras nos discursos heterossexistas. Não se trata de um discurso meramente reivindicativo de liberdade para as identidades marginais, não normatizadas, pois esse discurso corre o risco de permanecer refém de uma ordem já estabelecida. Trata-se, antes, de reescrever as possibilidades já existentes, mas que ainda são significadas como abjetas e, por conseguinte, tidas como culturalmente ininteligíveis.

(8)

ABSTRACT

The current research proposes an epistemological discussion of the gender issue as it is developed by Judith Butler. Gender is thus understood as a representation which is perfomatically constructed with the regard of an internal fixity. When gender is interpreted as a performance upon the body surface, the field for the deconstruction of the process of naturalisation of categories such as male/female, men/ women is then created. The main goal of this research is to introduce questions regarding psychoanalytical theory arisen by the above mentioned process which represents a questioned disposal of the identities’ construction process; and in which some of them are being constituted within an excluded manner. As a result, an exegesis of the gender theory of Judith Butler has been done here, with the goal of elucidating, from the author’s point of view, the psychoanalytical theory’s bases of dimorphism. The results from this exegesis show these important practices as an issue which produces, regulates and deregulates the identities and yet; it creates disposals able to produce cracks in the heterosexist discourse. It doesn’t mean a discourse with a sense of a demanding freedom for excluded identities, non-normative, due to the fact that the former runs the risk to be maintained as a “hostage” of an established order. On the other hand, it means rewriting the possibilities already existed, but they are still been interpreted as abject and as a consequence they are been culturally unintelligible.

(9)

INTRODUÇÃO

O objetivo do presente trabalho é introduzir, no campo da teoria psicanalítica, alguns questionamentos que pesam a respeito do gênero. Trata-se de pensar os desdobramentos da teoria do gênero a partir da modalidade de exclusão do feminino do campo da linguagem. Para tanto, realizei uma exegese da teoria de gênero de Judith Butler, na busca de explicitar o que a autora, com base no método genealógico de Foucault, aponta como os pressupostos do binarismo sexual da Psicanálise. Para combater tal binarismo, Butler postula que o gênero seria algo de ordem performática, que faz intercessão com outras dimensões como etnia, raça, sexo, classe etc. Assim, elucidar tal conceito permitiu entender a performance como uma proposta que escapa ao discurso heteronormativo.

Dentre os inúmeros estudos contemporâneos que têm como objeto a desnaturalização das categorias distintivas entre os gêneros – masculino/ feminino, homem/ mulher – o pensamento de Judith Butler (2003) se destaca, na medida em que assume uma posição epistemológica de desconstrução das próprias bases da cultura falocêntrica. Assim, nesse estudo de caráter epistemológico, procurei esclarecer, de acordo com Butler, os fundamentos da cultura falocêntrica e a sua presença na teoria de Lévi-Strauss, assim como na teoria psicanalítica de Freud e Lacan.

Em Freud, Butler compreende a bissexualidade como conceito que reforça um discurso heteronormativo. Em Lacan, apesar de todas as suas tentativas de escapar ao falocentrismo, Judith Butler mostra a vanitude da identificação entre falo e “pênis” através da estratégia de discussão sobre a mascarada.

(10)

tais teorias também são passíveis de críticas, na medida em que supõem uma categoria generalizada, o que leva muitas vezes à sua essencialização.

Butler critica o principal dos pressupostos teóricos feministas, a categoria de mulher, por esta postular uma identidade feminina. Ainda que tal identidade objetive uma representação política com propósitos de luta pela equidade social, no campo da linguagem essa terminação acaba se submetendo a princípios normativos.

Ao se pensar o gênero a partir de um modelo discursivo, isto é, como algo que reflete padrões de comportamentos sociais dentro de uma referência instituída na forma de masculino e feminino, produzidos pela cultura, a tendência é a naturalização dos gêneros, pela identificação imediata com pressupostos anatômicos.

A constituição da identidade, como aponta Foucault (1999a), pressupõe a produção destas e sua imposição, de modo a padronizar sua representação no campo discursivo. Assim, se por um lado, as identidades são determinadas como uma exigência de regulação social, por outro, percebe-se as não-identidades sendo também construídas, mas, estas, em caráter de exclusão.

Nessa ótica da exclusão, pode-se incorrer em discursos de patologização de indivíduos que não se ‘enquadram’ a imposição do gênero como proposta pela estrutura binária, estabelecendo fronteiras de marginalização, como é o caso exposto por Foucault (1983) do hermafrodita Herculine Barbin, que o autor afirma ser um caso de impossibilidade identitária.

(11)

aposta do princípio de universalização, fixar as identidades a partir de sua substancialização.

Tal pretensão se baseia na prerrogativa da opressão masculina sobre a feminina ao longo da história da civilização. Contudo, essa história de opressão vem sendo questionada como algo que serviu e serve para objetivos teóricos de colonização e instrumentalização para a confirmação de uma ideologia que irá forjar a construção de “um ‘Terceiro Mundo’ ou mesmo um ‘Oriente’ em que opressão de gênero é sutilmente explicada como sintomática de um barbarismo intrínseco e não ocidental (p. 21)”.

Para Butler, essa postura feminista, cujo fundamento é a sociedade patriarcal, deve ser repensada, já que ela permanece nos limites de uma matriz binária, na qual se inscreve a estrutura da heterossexualidade compulsória. Isto é, a estratégia feminista é a reivindicação dos mesmos direitos já estabelecidos aos homens, como sendo direitos que também dizem respeito às mulheres. O problema é que, na luta pela aquisição destes mesmos direitos, percebe-se uma tensão na ocupação de lugares, lugares que são encerrados por uma oposição, ora masculina ora feminina, determinado pela estrutura da heterossexualidade presumida.

(12)

Ainda dentro da lógica das oposições binárias, desenvolveu-se um argumento feminista que propõe a impossibilidade de emancipação da identidade feminina, porque tal identidade, na verdade, não existe. Segundo essa fórmula, a mulher estaria circunscrita em uma economia que privilegia o masculino em detrimento do feminino, cujas raízes remontam à estrutura de parentesco estabelecida por Lévi-Strauss. Assim, a categoria das mulheres seria o irrepresentável, devendo-se a uma ausência de significantes que dêem conta dessa representação lingüística que não pode ser única, mas plural.

Esse argumento, desenvolvido principalmente por Luce Irigaray (1985), acaba sendo uma justificativa da inexistência do feminino e se dá nos termos em que é colocada a crítica de Butler ao próprio movimento feminista. Segundo Butler, a proposta de emancipação da mulher pelo movimento feminista está calcada na disputa entre masculino e feminino por um lugar e este lugar está determinado pelo falo. Sendo assim, a posição feminina se lançaria na conquista desta posição de poder determinada pelo falo, e não na aquisição da feminilidade por outra via. Dito de outra forma, não existe a posição da mulher no campo da linguagem, por este estar circunscrito ao discurso do masculino hegemônico.

Por essa perspectiva, a autora leva a pensar na fabricação do gênero atrelado a uma determinação de identidade construída nos limites da lei, e, por conseguinte, ao gênero não caberia alternativas de significação diferentemente do que já está determinado.

(13)

autora o gênero não estaria localizado em uma esfera de substância predisposta a emergir, ao contrário, sua emergência decorre do ato da existência e não como forma representativa.

Meus questionamentos me levaram a pensar em que medida estas implicações performáticas são representadas no contexto atual, de forma a não serem significadas em uma acepção moral negativa? Em decorrência dessa primeira pergunta, interroguei-me também sobre a forma como a teoria psicanalítica vem abrindo sua escuta clínica no sentido de apreender essas modalidades performáticas, de forma a não compactuar com a normatização que estabelece as diferenças como distúrbio.

Em outras palavras, até que ponto pode-se questionar a escuta psicanalítica contemporânea à luz da problemática crítica destas noções de gênero, que colocam em questão o próprio caráter revolucionário da Psicanálise? A Psicanálise, ao postular uma concepção de sujeito perpassado por determinações inconscientes e por uma sexualidade polimorfa, apresentaria uma ruptura com esse sistema discursivo de ordem moral, porém, o caráter subversivo desta teoria fica comprometido quando enraíza seus pressupostos dentro da instituição da heterossexualidade compulsória.

Portanto, assim como foram observadas as próprias incoerências no interior dos pressupostos feministas, percebe-se também as incoerências na teoria psicanalítica no que diz respeito à posição significante da mulher, a saber, o falo da falta (Kehl, 1998). O que torna o gênero um dispositivo de discussão importante dentro da teoria psicanalítica é o grau de complexidade que ele deflagra sobre a cristalização das posições sexuais nesta teoria.

(14)

No primeiro capítulo, foi exposto o método utilizado por Judith Butler, ou seja, o método arqueológico e genealógico de Foucault, fundamentado na genealogia de Nietzsche, de forma que se possam entender os pressupostos teóricos utilizados pela autora na sua análise sobre as práticas discursivas.

No segundo capítulo, foi apresentada a crítica de Judith Butler sobre as bases teóricas da Psicanálise, considerando a idéia de constituição das identidades sexuais pela Psicanálise como equivalente à aquisição de gênero.

(15)

CAPÍTULO I

O MÉTODO ARQUE-GENEALÓGICO COMO FUNDAMENTO CRÍTICO DE JUDITH BUTLER

A proposta metodológica deste trabalho é a realização de uma exegese da teoria de Judith Butler sobre o gênero, e nesta perspectiva será explicitado o método arqueológico e genealógico desenvolvido por Foucault, a fim de que se possa entender a análise, realizada por Butler, dos fundamentos da teoria psicanalítica, assim como a sua construção do conceito de performatividade do gênero.

O método utilizado pela autora parte da perspectiva foucaultiana, na qual o sujeito é considerado como um efeito discursivo, isto é, as formações discursivas surgem de um jogo de forças que se atualiza nas relações entre os sujeitos sob uma forma que não é linear e nem ao menos evolutiva no decorrer do tempo (Faé, 2004).

(16)

Para tanto, a metodologia desenvolvida por Foucault desvela, através da história, a constituição do sujeito dentro de uma cadeia discursiva que o determina e legitima uma subjetividade. Sendo assim, o sujeito emerge a partir de formações discursivas e não como um ente que traz em sua constituição uma essência própria ao ser humano. Como corolário, a subjetividade se apresenta constituída em uma estratégia discursiva inerente a um determinado contexto histórico.

Tal perspectiva impõe uma objetividade que se atém ao estudo do poder das disciplinas, da produção da verdade e dos saberes, das práticas discursivas e da produção da norma social (Dallabrida, 2002).

(...) Isto é, em minha opinião, o que deve ser levado a cabo: a constituição histórica de um sujeito de conhecimento através de um discurso tomado como um conjunto de estratégias que formam parte das práticas sociais (Foucault, 1986, p. 16, citado por Dallabrida, 2002, p. 26).

Nesse sentido, a história passa a ser pensada como um território de relações de força, nas quais são constituídos os jogos de poder. Para Foucault, o poder se apresenta na ligação entre força e relação, e o funcionamento deste poder opera em rede nas sociedades constituídas (Dallabrida, 2002).

(17)

história-reminiscência, reconhecimento; outro é o uso dissociativo e destruidor da identidade que se opõe à história-continuidade ou tradição; o terceiro é o uso sacrificial e destruidor da verdade que se opõe à história-acontecimento (Foucault, 1999b, p. 33)”.

Nietzsche, segundo Foucault, trata de fazer um uso da história distinto dos modelos convencionais da antropologia e da metafísica, quebrando, ou ‘destruindo’, sua seqüência dentro de um padrão evolutivo dos fatos.

Nessa perspectiva, a proposta da genealogia como método se apresenta como uma inovação hermenêutica dos discursos, propondo um rigor mais acentuado, isto é, o intuito deste método não é a significação dos discursos, e sim, o questionamento sobre os mesmos, no sentido de entender o que impulsionou o emissor a produzi-lo e que significado teria este discurso para o emissor quando tal foi pronunciado (Dallabrida, 2002).

Cabe considerar que o método genealógico proposto por Nietzsche pretende evidenciar os juízos morais que estão por trás da “formação dos sistemas de pensamento (Dallabrida, 2002, p.30)”, ou seja, a manifestação de uma subjetividade que os mantém sob uma perspectiva avaliativa, logo, o que é posto em questão é a veracidade, ou seu contrário, onde tais juízos ou sistemas de pensamento evidenciam os interesses que os mantêm e os motivam.

(18)

É a partir deste ponto que surge o interesse de Foucault, no mapeamento da emergência dos discursos que apontam para a emergência de forças, as quais promovem “um embate de campos de ação em que os sujeitos estão envolvidos e, portanto, essas forças constituem as relações de poder no cotidiano da história (Dallabrida, 2002, p. 31)”.

Nesse sentido, Foucault se utiliza da genealogia como uma proposta de ir a fundo na análise da produção de um discurso onde é delimitada a singularidade de um acontecimento.

Nesta perspectiva é que se torna imprescindível a influência do método genealógico proposto por Nietzsche para Foucault: o primeiro entendia a genealogia como não sendo uma procura de segredos sobre a essência das coisas, mas como uma busca dos segredos do que as coisas são em essência, ou de como as essências foram sendo construídas elemento por elemento a partir de formas desconhecidas (Foucault, 1999b).

Para que se possa entender o método proposto por Foucault, far-se-á uma sucinta explanação acerca do método arqueológico e genealógico reconstruído por este autor, a fim de que fique claro as bases dos argumentos implementados por Judith Butler, e, por conseguinte, a exegese realizada do material em questão, a saber, Problemas de Gênero: Feminismo e subversão da identidade.

(19)

O emprego dos conceitos de descontinuidade, de ruptura, de limiar, de limite, de série, de transformação, coloca, a qualquer análise histórica, não somente questões de procedimento, mas também problemas teóricos. (...) permite repensar a dispersão da história na forma desse conjunto; autoriza reduzir a diferença característica de qualquer começo, para retroceder, sem interrupção, na atribuição indefinida da origem; graças a ela, as novidades podem ser isoladas sobre um fundo de permanência, e seu mérito transferido para a originalidade (Foucault, 1987, p. 23).

Segundo Machado (1982), o foco da arqueologia recai sobre as inter-relações dos saberes dentro do campo conceitual, descartando a racionalidade científica, no sentido em que esta responde por uma norma e uma verdade estabelecida a partir de uma lógica conceitual dos fatos. Sendo assim, este domínio de análise estaria circunscrito ao campo da epistemologia. “(...) a arqueologia realiza uma história dos saberes de onde desaparece qualquer traço de uma história do progresso da razão (Machado, 1982, p. 11)”.

Conforme o mesmo autor, a importância da epistemologia para a análise arqueológica é a de definir as condições de possibilidade dos saberes, sendo que todo registro histórico é característico de uma epistemologia dada.

Ainda que os objetos de estudo da epistemologia sejam os mais variados, pode-se caracterizá-la como um estudo sobre a história da ciência, sob a ótica da filosofia, cujo fundamento é o de problematizar a racionalidade científica (Aleixo, 2005).

(20)

dos preconceitos, o abandono dos mitos, o que torna possível o progressivo acesso à racionalidade; ela é um instrumento filosófico de clarificação do conhecimento que tem como norma a própria racionalidade científica em seu mais alto grau de elaboração. A epistemologia é, portanto, uma filosofia que tematiza a questão da racionalidade através da ciência, por ela ser considerada como atividade racionalista por excelência (Machado, 1982, p. 09).

Sendo assim, a epistemologia se apresenta distinta da arqueologia, no sentido em que para aquela as análises recaem sobre a racionalidade científica, enquanto que a arqueologia se debruça sobre os saberes dentro de um campo de formação conceitual. Porém, tal método identifica-se com a epistemologia por se utilizar das mesmas bases, mas com propósitos diferentes.

Para ser capaz de perceber as ciências humanas como saberes, portanto, Foucault buscou escavar as condições históricas, sociais e culturais que propiciaram o surgimento destes saberes, baseando-se não numa análise do conhecimento (como utiliza a epistemologia), mas realizando uma análise histórica e filosófica dos saberes, análise esta baseada em fatos (Aleixo, 2005, p. 22).

Dentro desta ótica, tem-se como objetivo principal da arqueologia a localização de uma ordem oculta aos saberes em uma epistemologia dada, isto é, através deste método é descartada a idéia de uma substância por trás das coisas, a serem alcançadas através do método científico.

(21)

como práticas, e, por conseguinte, as formações discursivas são compreendidas como possuindo uma constelação de regras que determinam em distintos momentos históricos as possibilidades de existência da função enunciativa (Aleixo, 2005).

Explicitando melhor, na análise implementada pela arqueologia o que é verificado são as mais diversas relações de uma cadeia discursiva que tomam por verdade o seu próprio discurso como condição de validade e a própria produção e legitimidade de discursos que atendam a este princípio de validade.

Cabe esclarecer que a arqueologia não realiza uma análise de discursos que não possuem uma materialidade concreta, ou ainda, uma análise no sentido de uma semiótica, e nem ao menos uma verificação dos princípios lógicos entre uma teoria e seu método.

Ainda, dentro da especificidade do método arqueológico, cabe apontar dois outros conceitos trabalhados por Foucault, que dizem respeito à noção de precursor e a noção de arquivo. Acerca do primeiro, Foucault, pela própria característica do método que descarta a idéia de uma essência por trás das coisas, também descarta a noção de um precursor, como sendo alguém que criou um sistema teórico de pensamento da ordem de uma originalidade que é desenvolvida por seus sucessores.

Sendo assim, de acordo com Aleixo (2005) “(...) o filósofo pensa o autor como resultante de linhas de força estratégico-teóricas, e não como um sujeito capaz de instaurar inovações e rupturas a partir de sua própria genialidade (p. 09)”.

(22)

acontecimentos e coisas. Mas tal idéia se interliga a dois outros pressupostos que seriam a noção de positividade e a de a priori, para que a idéia de arquivo faça sentido (Foucault, 1987).

Segundo Foucault (1987), um a priori é estabelecido a partir da positividade de um discurso, isto é, a positividade de um discurso se revela na permanência histórica de uma unidade discursiva através do tempo, algo instaurado pelo campo enunciativo e que permanece enquanto fato. Sendo assim, estaria estabelecido o campo de princípios onde os fatos subsistem, em que os enunciados além de sentido e verdade, possuem uma história. Nas palavras de Foucault:

(...) todas essas figuras e individualidades diversas não comunicam apenas pelo encadeamento lógico das proposições que eles apresentam, nem pela recorrência dos temas, nem pela pertinência de uma significação transmitida, esquecida, redescoberta; comunicam pela forma de positividade de seus discursos. Ou, mais exatamente, essa forma de positividade (e as condições de exercício da função enunciativa) define um campo que, eventualmente, podem ser desenvolvidos identidades formais, continuidades temáticas, translações de conceitos, jogos polêmicos. Assim, a positividade desempenha o papel do que se poderia chamar um a priori histórico

(Foucault, 1987, p. 146).

(23)

ponto seria o de tornar compreensível a exclusividade de um discurso, no intuito de verificar suas características enquanto formação discursiva única; o terceiro elemento seria o de descartar a noção de autor, e, por conseguinte, a noção de obra; e, por último, “reescrever o que foi escrito a partir de suas condições exteriores de possibilidades (Aleixo, 2005, p. 16)”.

Assim, é imprescindível a esse tipo de método analisar o jogo inerente às positividades que permitiram a formação das regras discursivas, ou seja, trata-se de elucidar o modo pelo qual se tornou possível a constituição dos elementos enunciativos, através da análise dos elementos não-enunciativos (Aleixo, 2005, p. 16).

Sendo assim, a análise arqueológica se ocupa em evidenciar pelo recurso histórico a produção de verdades através da análise da positividade dos discursos que designam saberes de uma época dada, buscando as condições de possibilidade do surgimento de tais discursos que caracterizam determinadas formas de saber (Aleixo, 2005).

Em se tratando da genealogia, a questão em foco é o poder e suas derivações políticas, cujo intuito é o de verificar a emergência e a própria transformação do saber como o efeito que legitima formas de normatização das práticas discursivas.

(24)

não existindo saber neutro. Todo saber é potencialmente político por implicar complexas relações de poder (Aleixo, 2005).

Com efeito, a análise genealógica visa desmascarar a idéia de uma neutralidade do conhecimento, em que tal conhecimento se apóia em uma determinada ideologia que pretende, em última instância, a partir das condições políticas, formular saberes sobre os sujeitos.

(...) Se a questão da ideologia pode ser proposta à ciência, é na medida em que esta, sem se identificar com o saber, mas sem apagá-lo ou excluí-lo, nele se localiza, estrutura alguns de seus objetos, sistematiza algumas de suas enunciações, formaliza alguns de seus conceitos e de suas estratégias; é na medida em que, por um lado, esta elaboração escande o saber, o modifica, o redistribui, e, por outro, o confirma e o deixa valer; é na medida em que a ciência encontra o seu lugar em uma regularidade discursiva e, por isso, se desdobra e funciona em todo um campo de práticas discursivas ou não (Foucault, 1987 p. 209-210).

Para concluir, as análises genealógicas decorrem das análises arqueológicas, ou seja, enquanto uma se atém a como os processos históricos possibilitaram o surgimento de determinados saberes tendo como base as análises das positividades como fundamento destes saberes, para a genealogia o interesse recai sobre os motivos pelos quais emergiram e se transformaram estes saberes, levando em consideração a condição política e ideológica que determinaram tais fatos, isto é, o propósito a que servem estes saberes constituídos.

(25)
(26)

CAPÍTULO II

A PSICANÁLISE PELO AVESSO

2.1. A base estruturalista em alguns argumentos feministas

No decorrer da história do movimento feminista, Butler (2003) observa que tal movimento esteve alienado à idéia de que as sociedades matriarcais e matrilineares antecederam às estruturas de patriarcado, para justificar as formas de opressão sofridas pelas mulheres ao longo da história. Porém, esta modalidade de construção da teoria feminista, questionada por Butler, não se sustenta nos tempos atuais, por esta teoria permanecer atrelada à estrutura da oposição binária homem/ mulher própria do patriarcado. Assim cabe ao gênero, como proposto por Judith Butler questionar tal assertiva, própria da estrutura binária.

Nessa perspectiva, a construção dessas origens - as sociedades matriarcais e matrilineares - tende a cristalizar uma verdade sobre essa forma de opressão, reificando a estrutura de oposição binária. Isto fecha a causa feminista na exclusividade da luta e a emancipação das mulheres impedindo a inserção nesta causa de questões outras como a opressão racial, de classe e, por conseguinte, uma discussão mais elaborada sobre a complexidade do gênero.

(27)

é a suposição imaginária de algo anterior a esta lei. E como desdobramento deste raciocínio, percebe-se a produção de uma linearidade ideológica, que pode incorrer em

ideais normativos problemáticos “(...) A história das origens é, assim, uma tática astuciosa no interior de uma narrativa que, por apresentar um relato único e autorizado sobre um passado irrecuperável, faz a construção da lei parecer uma inevitabilidade histórica (Butler, 2003, p. 64)”.

A partir da desconstrução proposta por Butler, é possível a emergência do gênero como um construto que irá abranger modalidades de discussão para além das categorias impostas pela oposição binária homem/ mulher, masculino/ feminino.

Como corolário desta postura, percebe-se a ruptura do feminismo com uma proposta essencialista e a imposição do gênero como temática de subversão que remeteria a sua reconfiguração dentro de um caráter que respeita a sua própria complexidade que, em última instância, desvela as formas de estruturação social.

Butler (2003) argumenta que contemporaneamente são verificados alguns esforços contra essa forma de hierarquia do gênero, cuja finalidade é inserir formas outras de opressão que integrem a complexidade do gênero. Porém, a pergunta que a autora faz é se estas formulações teóricas se associam a pressuposições fictícias com objetivos de instituir ideais normativos.

(28)

Dito de outra forma, o sexo se apresentaria como uma categoria natural dado por um aparato biológico e o gênero seria uma imposição cultural.

De acordo com a perspectiva lévi-straussiana, a cultura submete a natureza com o propósito de garantia da existência grupal. Assim, o interdito, a lei do parentesco, serve de intervenção da cultura sobre a natureza, de forma a regularizar e disciplinar esta última, sendo o tabu do incesto a própria intervenção. Cabe considerar que esta intervenção opera na emergência de uma falta ou ainda na “distribuição aleatória de um valor cujo uso apresenta fundamental importância (Lévi-Strauss, 1982, p.72)” e não apenas para regular as relações entre os sexos (Tavares, 1989).

Nessa perspectiva, a escassez do produto impõe a intervenção, de forma a distribuir de forma justa os bens entre o grupo. Entenda-se que entre tais bens encontram-se as mulheres. Assim, à mulher é atribuído um valor tal qual o alimento “ (...) valor, cujo uso é de vital importância (Lévi-Strauss, 1982, p.77)”.

Tal é a condição da mulher na perspectiva de Lévi-Strauss algumas teorias feministas se utilizam desta base teórica para justificar a oposição natureza versus cultura. Mais adiante, farei uma descrição pormenorizada do estruturalismo antropológico, de forma que fique evidente o seu desdobramento na teoria psicanalítica que implicitamente utiliza para justificar sua proposta da constituição do sujeito.

(29)

(...) A relação binária entre cultura e natureza promove uma relação de hierarquia em que a cultura ‘impõe’ significado livremente à natureza transformando-a, conseqüentemente, num Outro a ser apropriado para seu uso ilimitado, salvaguardando a idealidade do significante e a estrutura de significação conforme o modelo de dominação (Butler, 2003, p. 66).

Neste tipo de pensamento, poder-se-ia apontar a mesma problemática discutida anteriormente sobre a linearidade de determinadas teorias que trafegam nesta visão de um a priori da lei, e, a partir deste fato, justificam uma relação entre causa e efeito conseqüente dessa suposição de um antes e a ‘materialização’ deste depois presentes na cultura, como construtos de uma verdade universal.

O caráter de legitimidade desta formulação teórica irá autorizar, como observa Butler (2003), o enraizamento de assertivas que estabeleceriam o feminino associado à natureza, devendo este ser dominado e subordinado, assim como não restaria para a cultura outra forma de escapar ao correlativo do masculino como o poder de subjugar a natureza.

Dessa ideologia decorreriam inúmeras outras lógicas misóginas, que pressupõem essa cisão entre masculino e feminino como é o caso do próprio cartesianismo que, por meio do seu silogismo, assegura essa dicotomia, quando divide o corpo e a mente, onde o corpo estaria subordinado à mente, nos termos de um inferior que se assujeita a um superior.

(30)

submissão seriam as críticas que se defrontam e questionam esses princípios, produzindo possibilidades outras de pensamento que colocam em questão os domínios totalizadores do conhecimento.

2.2. Crítica ao estruturalismo

Com efeito, Butler (2003) questiona o estruturalismo de Lévi-Strauss a partir da crítica que antropólogas e antropólogos formulam sobre a subordinação da natureza pela cultura, e ainda, a falibilidade do sistema de parentesco como proposto por Lévi-Strauss. Assim tem-se Marilyn Strathern (1980, 1988), David Schneider (1968, 1984), Clifford Geertz (1997) entre outros, como questionadores do estruturalismo.

Strathern propõe relacionar o gênero à questão do simbolismo de maneira geral, isto é, a diferença sexual serviria a simbolizações relacionadas às diversas esferas do social. Assim, sua estratégia de análise é a de conduzir o gênero, enquanto marcação da diferença simbólica, para além do seu próprio território, de forma que este possa sugerir reflexões sobre a sociedade como um todo. Strathern procura entender o sexo como fonte de simbolização e não como categoria fixa, pois, de acordo com esta última posição, o sexo levaria a justificar discursos de opressão do masculino sobre o feminino, ou até mesmo à oposição natureza versus cultura, tal como formulada no pensamento de Lévi-Strauss.

(31)

pacífica de Yep. E mais, tal autor suspeitava das projeções realizadas por antropólogos acerca de seus estudos, alegando que o sistema de parentesco era uma cultura poderosa de símbolos e significados.

Geertz apresenta ao estruturalismo a crítica mais pertinente para os propósitos deste trabalho. Por isso, detenho-me mais neste autor do que nos dois últimos, o autor sustenta a pluralidade de configurações culturais da própria natureza. Esta pluralidade joga por terra a hierarquia do gênero atrelada à lógica de gênero fabricado para se sobrepor ao sexo. O desdobramento desta crítica derruba a idéia da supremacia de um sexo natural, o masculino.

Cabe considerar que a crítica que Geertz (1997) faz ao estruturalismo antropológico pode muito bem incidir sobre o próprio movimento feminista que se utilizou da teoria de Lévi-Strauss para escapar ao universalismo do patriarcado. Tal é, porque, como analisado anteriormente, a adoção do estruturalismo lévi-straussiano fez o feminismo incorrer na mesma problemática de oposição binária, ao se referir à subordinação da natureza pela cultura, que aprisiona o gênero dentro de categorias polarizadas, nas quais a teoria psicanalítica fundamenta a sua noção de sujeito.

(32)

vê-se produzir um sexo natural, o masculino. Logo, este feminismo se justificará por meio desta subjugação, como o sexo/ gênero negativo.

Dito de outra forma, a mudança de foco pelas teóricas feministas da subjugação do feminino pelo patriarcado, apenas deslocou a atenção de um pólo para outro, pois ao pressupor a natureza como correlativo da mulher e a cultura como análoga ao homem, verifica-se uma discussão ainda nos termos da oposição binária, na qual o feminino permanece na condição de inferioridade sobre o masculino. O que permite observar o mesmo tipo de linearidade ideológica produzida por este viés, com pretensões universalizantes.

Para que se possa entender com maior clareza a fundamentação psicanalítica - sobretudo Lacan - acerca do gênero, é imprescindível apresentar sinteticamente o raciocínio de Lévi-Strauss sobre as regras de parentesco que fundaria a Lei e, por conseguinte, a dimensão simbólica como a esfera de representação e regulação desta Lei.

Conforme postula o estruturalismo, a Lei - no singular -é instituída através de um sistema universal de trocas reguladoras que solidificam as regras de parentesco. Nesse sistema, os objetos de trocas seriam as mulheres, que assegurariam as diferenciações parentais como ofertas de um clã para outro sob a forma de dote por meio do casamento. Isto é, as mulheres representariam uma espécie de moeda cuja significação simbólica seria a consolidação e definição do vínculo social entre os homens, e sua própria masculinidade (Lévi-Strauss, 1982).

(33)

(...) a troca não vale somente o que valem as coisas trocadas. A troca, e, por conseguinte a regra de exogamia que a exprime, tem por si mesma um valor social. Fornece o meio de ligar os homens entre si e de superpor aos laços naturais do parentesco os laços daí em diante artificiais (...) da aliança governada pela regra (Lévi-Staruss, 1982, p. 520-521).

Sendo assim, a mulher representaria o objeto de garantia da identidade masculina dentro de uma estrutura exogâmica. A mulher, longe de ter uma identidade, é tornada o signo de uma troca ritualística na qual sua função era ser excluída de um grupo original e recebida por outro grupo, como lugar de permuta patronímica. Portanto, ainda que assegurasse o nome masculino, como objetivo funcional, a ela não era cogitado o direito de uma identidade, e, por conseguinte sua inscrição significante, ou seja, a mulher aqui é marcada como uma ausência significante.

Por este viés, percebe-se o lugar de subordinação imposto às mulheres nesta perspectiva estruturalista, conferindo uma identidade masculina e a falta desta mesma identidade à mulher. A aquisição desta identidade é consolidada por meio da troca social que pressupõe a existência de um laço social entre os homens, uma união entre eles através da garantia desta identidade que revela uma diferença, o nome próprio, que é assegurado pela semelhança nos termos da masculinidade, do patriarcado e da patrilinearidade.

(34)

entendida como uma totalidade sistemática, então ela subtrai a diferença entre significante e significado.

(...) A ruptura pós-estruturalista com Saussure e com as estruturas identitárias de troca encontradas em Lévi-Strauss refuta as afirmações de totalidade e universalidade, bem como a presunção de oposições estruturais binárias a operarem implicitamente no sentido de subjugar a ambigüidade e abertura insistentes da significação lingüística e cultural. Como resultado, a discrepância entre significante e significado torna-se a différance operativa e ilimitada de linguagem, transformando toda referência em deslocamento potencialmente ilimitado (Butler, 2003, p. 70).

À luz dessa différance, Butler (2003) dialoga com Irigaray (1985) acerca do tipo de relação que é estabelecida entre os homens, de forma que a eles é permitida uma individualidade assegurada pelo nome próprio e para a mulher isto é negado, a não ser como portadora do sobrenome do marido, conferindo a elas o lugar de pertença ao masculino. Butler parece insinuar, em concordância com Irigaray (1985), sobre um desejo homossexual que é explícito e depois oculto, o que para Irigaray parece ser o alicerce da economia falocêntrica, que se utiliza da mulher como objeto de troca de forma a ostentar a heterossexualidade entre os homens.

Com efeito, o estabelecimento da identidade masculina está sedimentado nesta

(35)

A desconstrução da tese de Lévi-Strauss sobre o tabu do incesto, que institui a heterossexualidade exogâmica, deixa entrever um tabu anterior, que é o próprio tabu da homossexualidade como uma restrição a uma sexualidade anterior à Lei, uma sexualidade mais natural e difusa.

Para Lévi-Strauss (1982), a mulher como o centro da estrutura simbólica teria como correlato a significação das palavras, como algo a ser trocado, então, por esta ótica, poder-se-ia pensá-la como fonte de significação para um significante.

Lévi-Strauss (1982) supõe que a proibição do incesto, instauradora da Lei, regula e determina a economia de uma heterossexualidade exogâmica e naturaliza tanto a heterossexualidade como a agência sexual masculina. No entanto, são produções discursivas não explicadas, já que presumidas.

O desejo incestuoso, decorrente do tabu do incesto, para Lévi-Strauss, é uma verdade cultural universal, mas não enquanto ato e sim como fantasia, o que apóia a teoria de Freud. Sobre o assunto, Butler (2003) argumenta que a existência desta proibição não garante que ela seja respeitada, ao contrário, o caráter de erotização envolvido nesta proibição mobilizaria os desejos mais intensos sobre essa restrição, e, em última instância, a própria prática incestuosa, como é freqüente em algumas culturas.

(36)

para as estruturas parentais, e como conseqüência desta sanção, a fala surgirá sob condição de insatisfação, deflagrando uma série de deslocamentos libidinais ocorridos no campo da linguagem.

A fala como condição de insatisfação inscreve o sujeito no campo da linguagem pela interdição do incesto, que fundaria o gozo original ocultado pelo recalque. No retorno deste signo, o substituto do gozo, este é barrado pelo significante, cuja busca de significação é a tentativa de recuperação do prazer original, que é irrecuperável. Em decorrência dessa proibição, o sujeito não tem outra alternativa a não ser produzir a fala como representação desta insatisfação que nunca cessa. É disso que será tratado no item adiante, centrando na forma como se constitui o lugar do feminino nesse jogo de relações instaurado pela Lei.

2.3. A Psicanálise de Lacan e a mascarada

O Ser do sujeito na teoria lacaniana é designado por uma estrutura de linguagem em Nome-do-Pai. O sujeito se funda pela inscrição da lei paterna e suas diferenciações, que delimita as próprias posições sexuais.

(37)

diferenciações sexuais a partir das posições entre ‘ser’ e ‘ter’ o falo, que irá pressupor os papéis masculino e feminino na teoria lacaniana.

É dito então, que ‘ser’ o falo é ser o significante do desejo do Outro, é o significante do desejo masculino, onde esse Outro reflete a um outro o desejo deste segundo, o Outro seria o lugar de uma autoelaboração masculina. Às mulheres cabe o lugar de ‘ser’ o falo no sentido de espelhar o poder do falo, na condição de ser esse Outro, sua ausência, sua falta, e a confirmação de sua identidade.

Portanto, segundo Lacan, a mulher seria esse Outro a quem falta o falo, logo ela seria esse falo cuja função é confirmar a um outro masculino que ele possui esse falo e ‘ter’ o falo é garantido pela posição feminina cujo poder é o de assegurar esse falo ao homem. “ Ser o Falo é “encarnar” o Falo como o lugar em que ele penetra, mas também é expressar a promessa de um retorno ao gozo pré-individuado o que caracteriza a relação indiferenciada com a mãe (Butler, 2003, p. 223)”.

O que é exposto pela teoria lacaniana é a reciprocidade da relação existente entre masculino e feminino, na qual a identidade masculina é garantida através da anulação, enquanto falta da identidade feminina (eu só existo porque me reconheço na diferença que ela me evoca). Assim Lévi-Strauss pressupõe o caráter da troca simbólica, na qual a mulher representa o signo de garantia da masculinidade, mas também oculta a différence, aludida anteriormente.

(38)

incestuoso com a mãe. Portanto, o sujeito só vinga se é atravessado pela lógica da castração que vai fazê-lo dar entrada no simbólico como um efeito masculinizante do recalque.

A mulher, nesta construção teórica, será o signo de dependência pelo qual o masculino se reconheceria enquanto tal, e ainda, como o corpo materno que asseguraria o retorno ao gozo indiferenciado. Construção muito semelhante ao papel relegado às mulheres por Lévi-Strauss. “(...) o conflito da masculinidade parece ser precisamente a demanda de um reconhecimento pleno de autonomia, o qual encerrará – também e todavia – a promessa de um retorno aos prazeres plenos anteriores ao recalcamento e à individuação (Butler, 2003, p.76)”.

A mulher, enquanto o falo, possui o poder de refletir a postura auto-referida da masculinidade aos homens. Caso esse poder seja retirado, isso desencadearia o próprio aniquilamento desse sujeito. Para ser o falo, a mulher precisa sustentar essa ilusão de como se fosse, ser o que os homens não são, a falta, de modo que possam estabelecer esta função primordial nos homens. Dessa forma, a mulher seria o lugar de garantias de uma identidade masculina.

(39)

Butler questiona o caráter de autenticidade desse modelo, pois, ambas as posições, masculina e feminina, são significadas e pertencentes ao simbólico, a partir de seus significantes.

Porém, esse ser o falo é, segundo Butler, completamente insatisfatório, de forma que as mulheres jamais poderão refletir essa lei, o que na opinião de algumas feministas exigiria a renúncia das mulheres ao próprio desejo. Tal renúncia já foi anunciada por Freud (1931) na condição de uma dupla renúncia – a dupla onda de recalcamento, renúncia do desejo pela mãe e renúncia do desejo pelo pai, impondo à condição feminina não ter seu desejo próprio, isto é, a feminilidade estaria subordinada pela necessidade difundida do falo.

Nesse sentido, entra em questão a correlação existente entre o falo e o pênis, na qual a posição masculina de ‘ter’o falo é justificada pelo homem ser possuidor do pênis, e que, portanto, não poderia ser o falo. Decorre daí que o pênis não equivale a Lei, então, o homem nunca poderá simbolizar esta Lei. As posições de ‘ter’ e ‘ser’ o falo são entendidas nos termos lacanianos como fracassos cômicos.

Esse aspecto de comicidade da teoria lacaniana sobre as posições sexuais é apresentado na mascarada, que introduz a significação fálica desta teoria, a forma pela qual Lacan justifica a posição da mulher no parecer ser o falo. Logo, a pretensão da mascarada é a de argumentar sobre a condição essencialmente melancólica da posição feminina.

(40)

importante ferramenta dentro da teoria psicanalítica para a discussão sobre o gênero, sobretudo quando a posição feminina, na teoria lacaniana, é dita ser melancólica.

Com efeito, Butler (2003) aponta que Lacan (1998) parece colocar em questão, na significação fálica, a própria realidade do sujeito masculino, sob a forma de uma aparência de realidade, assim como a irrealidade da heterossexualidade, e a própria falta, como atributo feminino, precisando ser mascarada.

A mascarada conforme Lacan é um parecer ser o falo que a mulher tem que representar. Como conseqüência desta exposição, poder-se-ia interpretar a mascarada sob dois aspectos: o primeiro seria de uma significação de aparência do ser nesta ontologia do falo, em que a função da mulher seria a de perpetuar essa ilusão de uma masculinidade do homem como possuidor do falo e desprovido da falta. O segundo, concerne ao questionamento de haver um desejo originário da mulher como sendo algo da ordem de uma essência feminina, ou seja, uma feminilidade anterior à mascarada.

A partir dessas duas apreensões da mascarada, pode-se extrair o caráter de produção performática nesta ontologia sexual, por seu aspecto convincente de aparência, isto em se tratando do papel que é desempenhado pelo feminino na garantia de uma identidade masculina. A segunda apreensão diz respeito a uma supressão do desejo feminino que é ocultado pela mascarada, incorrendo em um essencialismo feminino que põe em questão a economia significante falocêntrica.

(41)

a idéia da mascarada irá pressupor uma melancolia do gênero, o qual Irigaray considera estar no fundamento da feminilidade pressuposta pela Psicanálise.

Dito de outra forma, a feminilidade na teoria psicanalítica pressupõe uma perda não elaborada, isto é, a recusa de uma perda que é criptografada sobre o próprio corpo. Encontra-se aí o primeiro esboço performático na constituição do caráter do sujeito que no caso é a mulher. Seu caráter performático consiste na recusa desta perda objetal e a conseqüente imposição da identificação com este objeto, sob a forma de uma imitação, uma caricatura forjada pela mulher, no escopo de se reportar sempre a este objeto perdido.

O sentido da mascarada em Lacan é ambíguo, pois, ao que parece, ele pretende recorrer a um discurso de retórica para justificar a posição significante da feminilidade na sua teoria, e mais, o que ele pretende com a mascarada, quando ela é considerada como estratégia da incorporação na melancolia?

Parece que Lacan utiliza as explicações da mascarada para dar conta de problemáticas que estão à margem da estrutura da heterossexualidade compulsória, como uma espécie de teoria ‘mágica’, na qual se justificarão dentre outras questões a própria noção de homossexualidade feminina.

(42)

Por mais paradoxal que possa parecer essa formulação, dizemos que é para ser o falo, isto é, o significante do desejo do Outro, que a mulher vai rejeitar uma parcela essencial da feminilidade (que parcela é esta?), nomeadamente todos os seus atributos na mascarada. È pelo que ela não é que ela pretende ser desejada, ao mesmo tempo que amada. Mas ela encontra o significante de seu próprio desejo no corpo daquele a quem sua demanda de amor é endereçada. Não convém esquecer que, sem dúvida, o órgão que se reveste dessa função significante adquire um valor fetiche. Mas, para a mulher, o resultado é que convergem no mesmo objeto uma experiência de amor, que, como tal (cf. acima), priva-a idealmente daquilo que ele dá, e um desejo que ali encontra seu significante. Eis por que podemos observar que a falta de satisfação própria a necessidade sexual, em outras palavras, a frigidez, é relativamente bem tolerada por ela, enquanto a Verdrängung

inerente ao desejo é menor do que no homem (Lacan, 1998, p. 701-702).

Como se observa no trecho acima citado, parece haver qualquer coisa da ordem de um essencialismo - “uma parcela essencial da feminilidade” - suposto na mulher e camuflada na mascarada, que justificaria até a falta de apetite sexual da mulher em decorrência da ausência do ‘órgão fetiche’. Essa é a posição de Irigaray, de que a mulher participa do desejo masculino através da mascarada, e a melancolia aí decorrente se apresenta na recusa da falta do ‘órgão fetiche’. Cabe ressaltar também o endereçamento heterossexual a partir da demanda de amor que se dirige implicitamente nesta passagem do texto a um homem, associando, assim, a feminilidade como atributo de mulheres heterossexuais.

Continuo a citação de Lacan:

(43)

próprio desejo do falo faz surgir seu significante, em sua divergência remanescente, dirigido a “uma outra mulher”, que pode significar esse falo de diversas maneiras, quer como virgens, quer como prostitutas. Daí resulta uma tendência centrífuga da pulsão genital (que pulsão é esta?) na vida amorosa, que torna a impotência, nele, muito mais difícil de suportar, ao mesmo tempo, que a Verdrängung inerente ao desejo é mais acentuada.

Nem por isso se deve acreditar que a espécie de infidelidade que aí se afiguraria constitutiva da função masculina lhe seja própria. Pois, se olharmos de perto, veremos que o mesmo desdobramento é encontrado na mulher, exceto pelo fato de que o Outro do amor como tal, isto é, enquanto privado daquilo que ele dá, é mal discernido no recuo onde vem substituir o ser do mesmo homem cujos atributos ela tanto estima. (Lacan, 1998, p. 702).

Percebe-se aqui a construção lacaniana da identidade masculina e o caráter de significação que o feminino confere ao masculino, permitindo observar a própria diferenciação binária, o que é próprio do masculino e o que é próprio do feminino, deixando entrever o gênero aí como algo hierárquico e, em certo sentido misógino. Talvez tais pontuações se devam ao lugar que tal autor ocupa dentro de uma escala hierárquica do gênero, ou seja, um homem dependente de um Outro feminino que lhe assegure essa posição masculina.

Continua Lacan:

(44)

Assim, em se tratando da homossexualidade, também existe uma diferenciação, diferenciação esta que atribui uma decepção como ‘causa’ da homossexualidade feminina e uma afirmação fálica como efeito da homossexualidade masculina. O que parece insinuar uma depreciação da homossexualidade feminina em relação à masculina.

Finalizando esta citação:

O fato da feminilidade encontrar refúgio nessa máscara, em virtude da Verdrängung inerente à marca fálica do desejo, tem a curiosa conseqüência de fazer com que, no ser humano, a própria ostentação viril pareça feminina.

Vislumbra-se, correlativamente, a razão do traço nunca elucidado no qual, mais uma vez, avalia-se a profundidade da intuição de Freud, ou seja, porque ele afirma que existe apenas uma libido, seu texto mostra que ele a concebe como sendo de natureza masculina. A função do significante fálico desemboca, aqui, em sua relação mais profunda: aquela pela qual os antigos nele encarnavam o Nous e o Logos (Lacan, 1998, p. 702-703).

A partir da longa exposição do texto de Lacan, pode-se inferir que a função da mascarada sobredetermina a feminilidade na afirmação da masculinidade. Lacan aí tenta uma explicação da homossexualidade feminina, como sendo algo provindo de um desapontamento. Essa idéia de desapontamento é rebatida por Butler através do desvelamento da posição não neutra na qual Lacan se encontra.

(45)

conseqüência de uma recusa que desaponta o observador, cujo desapontamento, rejeitado e projetado, é transformado no traço essencial das mulheres que efetivamente o recusam? (Butler, 2003, p.81)”.

Nesse sentido, trata-se aqui de remeter a teoria lacaniana à posição epistemológica a partir da qual ela é formulada, a saber, uma posição heterossexual, a qual precisa naturalizar a homossexualidade feminina como dessexualizada, o que lhe confere um caráter pejorativo. Todavia e em se tratando de uma teoria que toma como base os pressupostos do estruturalismo de Lévi-Strauss (1982), que deixa implícito o tabu da homossexualidade como sendo anterior ao tabu do incesto, não se poderia esperar outra postura a não ser a linearidade de uma explicação que tenta apresentar um caráter de veracidade na postulação da constituição de sujeito pela via da ‘normalidade’, que sustenta a matriz de inteligibilidade.

Ainda acerca do que Lacan vai se referir como a comédia das posições sexuais na mascarada, percebe-se a apropriação de Lévi-Strauss por Lacan quando se refere à mulher como sendo o falo nesta questão, ou seja, a mulher permanece ainda como signo de troca, agora com uma certa maquiagem. Quando é dito que o homem tem o falo, então para se ter algo é preciso que se adquira esse algo, e esse algo obviamente seria a mulher. Portanto, o recurso do poder que tal teoria confere à mulher, como o poder de confirmação da identidade masculina, seria uma estratégia de corroboração do falocentrismo.

(46)

internalizado no ‘eu’ de forma a permanecer existindo dentro do mesmo, através do caráter de preservação que é imposto ao próprio ‘eu’, onde a perda do objeto não se realiza. Então, diz-se que este objeto é redistribuído “numa fronteira psíquica/corporal que se expande para incorporar essa perda. Isso situa o processo de incorporação do gênero na órbita mais ampla da melancolia (Butler, 2003, p. 82)”.

Uma outra leitura da mascarada é realizada por Joan Riviere (1929), na tentativa de explicação da feminilidade, nos termos de uma teoria da agressão e mediação de conflitos. Para Riviere, a aquisição do gênero e a consumação de uma orientação sexual são produzidas mediante resolução de conflitos que têm por objetivo a eliminação da angústia, e não a aquisição da sexualidade.

Riviere se utiliza dos pressupostos de Ernest Jones sobre o desenvolvimento sexual feminino, nas modalidades da homossexualidade e heterossexualidade, a partir dos tipos intermediários, ou seja, em mulheres que possuem atributos masculinos e não são homossexuais, para formular sua proposta sobre uma identidade feminina através da mascarada.

(47)

Porém, Butler (2003) discorda de tal classificação, argumentando que tal ‘percepção’ aludida por Riviere (1929) ilustraria o que Wittig (1985) denomina por “formação imaginária do sexo”, isto é, não é a aparência de uma pessoa que a encerrará em uma orientação sexual dada.

Todavia, Riviere parece discordar deste tipo de percepção. Ao que parece, Riviere busca confirmar uma identidade feminina na mascarada por meio do disfarce de uma masculinidade latente, na qual se insere a agressividade. Ao dissociar a masculinidade da mulher, a autora está pressupondo a mulher fálica como possuindo os atributos da masculinidade em detrimento dos atributos de uma feminilidade, se distanciando da ‘percepção’ cuja tendência é atribuir a aparência de um gênero a uma orientação sexual específica, ou seja, tal mulher, ainda que com atributos masculinos, latentes, não decorreria no registro da homossexualidade feminina.

Nesse sentido, para essa autora, a mascarada seria o recurso a uma feminilidade para ocultação da masculinidade. Esta precisa ficar escondida, de modo a velar uma rivalidade entre os sexos masculino e feminino. Portanto, ao pressupor a mascarada como forma de representação do feminino, ela se diferencia de Ferenczi, pois, para este autor, a homossexualidade masculina é disfarçada em atos e gestos heterossexuais exagerados.

(48)

outros homens. Portanto, a mascarada se revelaria no desejo de castração do homem pelas mulheres.

Butler discorda da formulação de Riviere acerca da mascarada, quando afirma que “Riviere nos faria considerar que tais mulheres mantêm uma identificação masculina não para ocupar uma posição na interação sexual, mas, ao invés disso, para dar continuidade a uma rivalidade que não tem objeto sexual ou, pelo menos, que não tem nenhum que ela nomeie (Butler, 2003, p.85)”. Discorda também dos autores importados por Riviere para discutir a problemática do gênero. Tais autores, entre eles Ferenczi e Jones, encerram a homossexualidade em esteriótipos imaginários (Riviere, 1929). Ao fazê-lo, apresentam-se como signos da heterossexualidade compulsória em suas argumentações, e parecem conhecer a homossexualidade que o próprio homossexual desconhece.

Embora Butler não desconsidere a importância da leitura de Riviere acerca da mascarada, por se distanciar dos tipos intermediários criados por Ernest Jones, sua concepção de feminilidade se confunde com a própria mascarada.

Uma outra leitura sobre a mascarada, derivada do pensamento de Riviere e que reforça a idéia de que a feminilidade é a própria mascarada, é apresentada no argumento de Stephen Heath (1986). Tal autora não só reforça a idéia de uma mulher fálica, como apresenta uma recusa à homossexualidade feminina na justificativa da libido ser masculina. Ou seja, se a libido se apresenta como masculina, então, a feminilidade surge como negação dessa libido para mascarar uma identificação masculina.

(49)

desejo para o objeto feminino, que se apresenta como o Falo. Portanto, o objetivo da mascarada seria o de garantir e justificar a heterossexualidade feminina através da melancolia, que aparece na negação desta libido, e, por conseguinte, impõe a recusa desse Outro feminino que é incorporado e preservado de forma a assegurar a heterossexualidade das mulheres.

A mascarada assim proposta revelaria a recusa da homossexualidade feminina nos termos da recusa da libido como sendo masculina, pois a identificação da feminilidade com esta parcela da libido resultaria em uma identificação com o masculino, e como já exposto anteriormente, a identificação masculina pressupõe, na matriz heterossexual do desejo, o desejo pelo falo, que é o objeto feminino.

A partir da exposição deste raciocínio, Heath (1986) parece sugerir que a homossexualidade feminina estaria associada à aceitação desta libido, e que, portanto, para a homossexualidade feminina restaria uma identificação masculina que não precisa ser mascarada. Isto é, o que fica exposto nesta argumentação é, primeiro, a linearidade e justificativa na produção da heterossexualidade feminina; e, segundo, seria o próprio paradoxo da homossexualidade feminina, pois fica recusada a feminilidade à homossexual, no sentido em que esta se identificou ao masculino.

(50)

da identificação com o masculino, a mascarada assumiria a posição da feminilidade para recusar o desejo homossexual, tendo na melancolia a via primordial de garantia desta feminilidade autêntica, por meio da recusa do objeto e a sua subseqüente preservação.

A função da mascarada a partir desta exposição deixa entrever que tal configuração se coloca contra a homossexualidade feminina e não só em uma oposição ao masculino. Uma vez percebida esta negação da homossexualidade feminina através da mascarada, é preciso também perceber a afirmação desta homossexualidade. Se a função da mascarada é uma operação inconsciente de apreensão da feminilidade em oposição a masculinidade, pode-se constatar, então, nos termos da heterossexualidade compulsória, que é através da melancolia, por sua finalidade de recusa e preservação, que a homossexualidade feminina subjaz de forma latente.

Dessa forma, poder-se-ia pensar tanto a masculinidade como a feminilidade como enraizados em investimentos homossexuais não resolvidos, pelo viés do modelo da melancolia. Todavia, o argumento deste modelo nestas explicações reifica a oposição binária da heterossexualidade compulsória, pela garantia da imposição denatureza sexuais diferentes, que instituem seus opostos por exclusão, e ainda justifica a própria construção da bissexualidade como corolário desta formulação.

(51)

heterossexual, e, no caso das mulheres, sua feminilidade é constituída pela exclusão da masculinidade.

Assim sendo, Butler (2003) aponta que o núcleo do discurso lacaniano se fundamenta na noção de cisão, como o efeito da Lei delimitando as posições sexuais ou como sendo masculino, ou como sendo feminina. Por esse viés, Butler (2003) busca estabelecer um diálogo com Jaqueline Rose (1987), que defende a proposição de que a Lei inaugura essa cisão, determinando a distinção sexual em masculino e feminino. Mas tal autora argumenta que a realidade desta cisão põe em questão o próprio caráter da identidade, o que leva Butler a indagar se isto poderia se remeter a uma realidade anterior à injunção desta duplicidade. Jaqueline Rose, no entanto, apóia Lacan (1998), no sentido de não aceitar uma realidade pré-discursiva que possa ser resgatada, tanto que para ela não existe feminino excluído do campo discursivo. Entretanto, existe uma ambivalência nesta cisão, que se reporta a uma resistência à divisão nos termos de uma bissexualidade interna constituída, desde sempre, como uma instância psíquica no sujeito que a sabotaria.

Nesse sentido, Jaqueline Rose (1987) se distancia do argumento de Lacan de que não existe nada anterior à Lei, por supor uma bissexualidade como ponto de sabotagem desta Lei, e para fortalecer seu argumento, a autora pressupõe que todo o processo de identificação incorre na sua própria frustração, pelo fato da fantasia se ligar a um ideal, e dentro desta idéia, o simbólico se distingue do real.

(52)

recalque funcionaria para escamotear esta exclusão e não para justificar um saudosismo ao gozo perdido, uma vez que esse gozo perdido se remeteria a um passado pré-discursivo, o que gera uma contradição na própria teoria lacaniana.

(...) O fato de que não possamos conhecer esse passado a partir da posição do sujeito fundado não quer dizer que ele não ressurja no discurso como fêlure, descontinuidade ou deslizamento metonímico. Assim como a realidade numenal mais verdadeira de Kant, o passado pré-jurídico do gozo é incognoscível a partir do interior da língua falada; isso não quer dizer, todavia, que esse passado não tenha realidade. A própria inacessibilidade do passado, indicada pelo deslizamento metonímico no discurso contemporâneo, confirma essa plenitude original como realidade última (Butler, 2003, p. 89-90).

O simbólico assim questionado indica a impossibilidade de cumprimento desta Lei, em razão da falta de flexibilização da mesma. Assim, a aquisição da sexualidade nos moldes determinados pelo simbólico decorreria em seu próprio fracasso. Portanto, a idealização deste fracasso na teoria lacaniana é criticada por Butler (2003), no sentido que isto impõe a submissão à Lei que é questionada pelo seu próprio caráter de inautenticidade, o que em última instância resulta na impossibilidade de realização da identidade.

(53)

À luz dessas considerações, que apontam fissuras na teoria da linguagem desenvolvida por Lacan, sobre a estruturação do sujeito, apresentarei adiante a formulação freudiana da constituição do sujeito a partir da apreensão de sua sexualidade, propondo o modelo da melancolia como o fator fundamental na estruturação do caráter e do gênero no sujeito.

A elaboração freudiana sobre o modelo da melancolia e sua importância na formação do caráter, no comentário de Butler, deixa implícita a formação do gênero. Assim, o modelo da melancolia inaugura através da internalização da perda do objeto amoroso a constituição do gênero.

Veja-se o significado deste modelo elaborado por Freud (1917[1915]), para subseqüentemente relacioná-lo a constituição do gênero, assim como as questões suscitadas por Butler a partir desta interligação. Sinteticamente, tem-se que a perda do objeto amado dará início, através da fantasia de incorporação, à internalização do objeto perdido na estrutura do ‘eu’.

(54)

Em O Ego e o id, Freud (1923) postula que o processo de identificação se relaciona à melancolia para que o id possa dar conta da perda de seus objetos, isto é, a identificação na melancolia representa a possibilidade de sobrevivência do sujeito diante da imposição real de aniquilamento proporcionada pelos amores perdidos. Sendo assim, a internalização da perda, segundo Freud, torna-se um processo compensatório de forma a preservar o objeto perdido para o sujeito, em uma tentativa de negociação com o id, cuja proposta é a preservação das características do objeto na estrutura do ‘eu’, como que tentando anular a perda, mas não a negação do investimento neste objeto, agora internalizado, pois os investimentos se voltariam para o objeto dentro do ‘eu’.

A importância da perda dos primeiros objetos amorosos é fundamental na estruturação do ‘eu’, pois, anteriormente a essa perda, a criança vive uma relação fusional com seu primeiro objeto de amor, podendo ser a mãe, ou quem ocupe o lugar da função materna. Portanto, a interrupção desta relação remeterá a criança à primeira sensação de perda, oportunizando a entrada da melancolia, de forma que o candidato a sujeito venha elaborar esse processo através da própria melancolia.

(55)

Portanto, a melancolia como processo resultaria no deslocamento de investimentos externos por investimentos internos, isto é, o investimento no objeto é substituído pelo processo de internalização da perda do outro amado que devolve a libido para o próprio ‘eu’ onde está localizado o objeto perdido/ preservado.

Por esta perspectiva, Butler (2003) argumenta que em O ego e o id o que está em jogo não é somente a estruturação do caráter através da melancolia, mas a aquisição de uma identidade de gênero. Explicitando melhor esta idéia, Butler observa que em decorrência do processo de internalização dos amores perdidos, estes amores são portadores de identidades de gênero distintas, que conforme a Psicanálise, são divididos em dois, masculino e feminino, sendo o feminino constituído na exclusão do masculino, ou seja, as identidades de gênero em Psicanálise são constituídas em oposição a partir desta dualidade.

A importância da melancolia na formação do caráter e constituição do sujeito é justificada pela forma como o ‘eu’ encontrou para sobreviver à perda dos amores e ainda não incorrer no processo de luto, que também é decorrente da perda de amores. Todavia, o luto se distingue do processo de melancolia por não sustentar a permanência deste objeto perdido na estrutura do ‘eu’. O luto por meio de seu mecanismo de atuação trabalha para superar, no sentido de extinguir essa perda, de forma a continuar investindo libidinalmente nos objetos externos.

Referências

Documentos relacionados

Municipal de Economia Solidária de Novo Hamburgo, e colocado em votação em plenária do próprio Fórum, para aprovação, após a leitura em todos os itens, por todos os

Estas dedicatórias, manuscritas, não são passíveis de serem alteradas ou suprimidas em novas edições, como pode ocorrer quando se fala em livro quer seja,

Em 2011, como resultado do pedido de concordata da AMR, a Embraer provisionou um total de US$ 317,5 milhões nos seus resultados do 4T11, devido à possível

Para preparar a pimenta branca, as espigas são colhidas quando os frutos apresentam a coloração amarelada ou vermelha. As espigas são colocadas em sacos de plástico trançado sem

De acordo com os PCNs, a escola deve criar meios que contribuam para a expansão do repertório lexical do aluno de modo que ele seja capaz de fazer adequação de determinados termos

Este processo educativo é de fundamental importância, mostrando assim aos estudantes correlações entre sociedade, cultura e ecologia, contribuindo para o fortalecimento de cada um

5 “A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo – do Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial” (KELSEN, Teoria pura do direito, p..

Nesse contexto, é importante destacar que se há a problemática inerente do meio inserido, situado em preexistência crítica para a conservação, cabe a inserção de métodos,