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A experiência dos profissionais de saúde da UTI neonatal à luz da fenomenologia hermenêutica Heideggeriana

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

A EXPERIÊNCIA DOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE DA UTI NEONATAL À LUZ DA FENOMENOLOGIA HERMENÊUTICA HEIDEGGERIANA

Lucila Moura Ramos Vasconcelos Natal/ RN

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2 Lucila Moura Ramos Vasconcelos

A EXPERIÊNCIA DOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE DA UTI NEONATAL À LUZ DA FENOMENOLOGIA HERMENÊUTICA HEIDEGGERIANA

Natal/ RN 2018

Tese elaborada sob a orientação da Prof.ª Drª. Elza Dutra e apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Psicologia.

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3 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Vasconcelos, Lucila Moura Ramos.

A experiência dos profissionais de saúde da uti neonatal à luz da fenomenologia hermenêutica Heideggeriana / Lucila Moura Ramos Vasconcelos. - Natal, 2018.

160f.: il. color.

Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em Psicologia.

Orientadora: Profa. Dra. Elza Dutra.

1. Pesquisa fenomenológica - Tese. 2. Profissionais de saúde - Tese. 3. UTI Neonatal - Morte - Recém-nascido - Tese. I. Dutra, Elza. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 159.9 Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB-15/710

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5 “... É preciso amor

Pra poder pulsar

É preciso paz pra poder sorrir É preciso a chuva para florir

Todo mundo ama um dia Todo mundo chora Um dia a gente chega E no outro vai embora

Cada um de nós compõe a sua história Cada ser em si

Carrega o dom de ser capaz E ser feliz.”

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6 AGRADECIMENTOS

A Deus pelo dom da vida, pela infinita bondade e sabedoria.

Aos meus pais, Ricardo e Lúcia, meu eterno agradecimento, por tudo o que sou. Por serem o meu porto seguro, meus grandes professores, exemplos de vida, fontes de inspiração. Muito obrigada pelas orientações, pela escuta atenta, pela ternura no olhar, pelo amor incondicional.

Aos meus irmãos, Ricardo e Rafael, meus mestres, obrigada pelo incentivo, exemplo, força aprendizado e afeto.

Ao meu esposo, Rodrigo, meu amor, meu amigo, meu parceiro. Ao seu lado sinto-me mais forte para alcançar os nossos objetivos. Obrigada pelo apoio, pela compreensão e incentivo.

Ao meu lindo filho, Felipe, um recém-nascido que me inspirou a buscar novos projetos, iluminou a minha vida, deu um novo sentido ao meu existir.

A minha orientadora, professora Elza Dutra, por ter acreditado em mim desde o início do doutorado. Obrigada pelas orientações, pelo aprendizado sobre pesquisa. Obrigada por ser tão

inspiradora, por iluminar o meu caminho e possibilitar o meu crescimento enquanto ser-no-mundo.

Aos professores e colegas do GESDH, Grupo de Estudos Subjetividade e Desenvolvimento Humano, obrigada pela troca de informações, pelas ideias compartilhadas e incentivo à

pesquisa.

Às professoras Ana Karina Azevedo e Simone Tomaz Moreira, pelas valiosas contribuições para a minha tese.

A Daphene, Lucas, Mariana e Carol pelo auxílio nas transcrições das entrevistas. Foi muito bom trabalhar com vocês.

A todos os voluntários do estudo, obrigada pela solicitude, disponibilidade e interesse. Aos meus amigos, muito obrigada pela compreensão e incentivo. O mundo é muito mais doce

e radiante com a presença de vocês.

A todas as pessoas que contribuíram direta e indiretamente para que este sonho se tornasse realidade.

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7 Sumário

Resumo... 11 Introdução... 13 Capítulo I: Os sentidos da morte ao longo da história... 31 Capítulo II: Contemplando alguns existenciais da fenomenologia

Heideggeriana... 45 Capítulo III: O profissional de saúde... 67 Capítulo IV: Método: A escolha do caminho... 83 Capítulo V: As narrativas dos participantes: os sentidos de ser profissional de saúde em UTI Neonatal... 95 Capítulo VI: Destecendo a trama da existência: reflexões a partir das

narrativas dos profissionais de saúde... 139 Referências... 150 Anexos... 157

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8 Lista de Figuras

Figura Página

1 O Contexto de Atuação Profissional de Saúde na UTI Neonatal 24

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9 Lista de Tabelas

Tabela Página

1 Número de óbitos notificados e investigados por tipo e ano de ocorrência, na MEJC, Natal/RN

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10 Lista de Siglas

ANVISA Agência Nacional de Vigilência Sanitária BVS Biblioteca Virtual em Saúde

CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior EBSERRH Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares

HUOL Hospital Universitário Onofre Lopes IMI Instituto Materno Infantil

MEJC Maternidade Escola Januário Cicco UTI Unidade de Terapia Intensiva

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11 Resumo

Desde a transferência dos doentes para os hospitais, foi delegado aos profissionais de saúde o papel de promover o cuidado aos pacientes. Nestes locais, a morte é evitada, podendo ser justificada pela ocorrência de falhas e erros. E, em Instituições de saúde específicas, as maternidades, menos se fala na possibilidade da morte, apesar da sua presença em meio à vida. Com a evolução da medicina, e a consequente ampliação das técnicas e tipos de equipamentos a serem utilizados, as maternidades tornaram-se locais munidos de um aparato tecnológico considerado necessário à manutenção da vida, concentrados em uma unidade de terapia intensiva neonatal. Em meio a este contexto, os profissionais de saúde, além de precisarem do conhecimento técnico e do entendimento e cumprimento dos protocolos de segurança, ainda lidam com a angústia e o abalo emocional, ao vivenciarem situações de morte e perdas no cotidiano de trabalho. Diante do exposto, o presente estudo tem como objetivo compreender a experiência de profissionais que atuam em Unidades de Terapia Intensiva Neonatal. A Maternidade Escola Januário Cicco, referência no estado do Rio Grande do Norte para a gestação de alto risco, foi escolhida como campo de estudo. Como orientação metodológica foi utilizada a fenomenologia hermenêutica heideggeriana e, como possibilidade de escuta, a entrevista narrativa. Foram realizadas 9 entrevistas com profissionais de saúde de diversas formações (médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, psicólogos, fisioterapeutas, assistente social). A análise das narrativas foi feita tendo como inspiração o círculo hermenêutico, proposta por Martin Heidegger na Analítica da Existência. As interpretações mostraram os profissionais relatando sentimentos de frustração, impotência, culpa e tristeza diante da morte de recém-nascidos. Também apontam as dificuldades existentes no cotidiano de trabalho. Verificou-se a necessidade de ampliar os projetos, ainda incipientes, de atenção aos profissionais de saúde, com a estruturação de espaços de plantão psicológico e realização de reuniões multidisciplinares de forma a promover uma maior integração entre os diversos profissionais. O estudo também traz reflexões para as instituições formadoras no sentido de instituírem ou ampliarem o espaço na academia para abordar a temática da morte de pacientes. A importância deste estudo está justamente na compreensão da experiência dos profissionais de saúde, com o intuito de gerar contribuições para a comunidade acadêmica, a instituição hospitalar e, consequentemente, para a assistência dos pacientes e de seus familiares. Palavras-chave: Pesquisa fenomenológica, profissionais de saúde, UTI Neonatal, morte, recém-nascido.

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12 Abstract

Since the transfer of patients to hospitals, the role of promoting patient care has been delegated to health professionals. In these places, death is avoided and can be justified by the occurrence of failures and errors. And, in specific health institutions, maternity hospitals, the less is the possibility of death, despite their midlife presence. With the evolution of medicine and the consequent expansion of the techniques and types of equipment to be used, maternities became places equipped with a technological apparatus considered necessary for the maintenance of life, concentrated in a unit of neonatal intensiva therapy. In this context, health professionals, in addition to needing technical knowledge and understanding and compliance with safety protocols, still deal with distress and emotional shock, experiencing death situations and losses in their daily work. In view of the above, the present study aims to understand the experience of professionals working in Neonatal Intensive Care Units. The Maternidade Escola Januário Cicco, reference in the state of Rio Grande do Norte for high risk gestation, was chosen as a field of study. As a methodological orientation was used the heideggerian hermeneutic phenomenology and, as a possibility of listening, the narrative interview. Nine interviews were conducted with health professionals from different backgrounds (doctors, nurses, nursing technicians, psychologists, physiotherapists, social workers). The analysis of the narratives was inspired by the hermeneutic circle proposed by Martin Heidegger in the Analytic of Existence. The interpretations showed the professionals reporting feelings of frustration, impotence, guilt and sadness at the death of newborns. They also point out the difficulties in daily work. There was a need to expand the still incipient projects of attention to health professionals, with the structuring of spaces for psychological counseling and the holding of multidisciplinary meetings in order to promote greater integration among the different professionals. The study also brings reflections to the training institutions in order to institute or expand space in the academy to address the issue of patient death. The importance of this study is precisely in the understanding of the experience of health professionals, in order to generate contributions to the academic community, the hospital institution and, consequently, to the care of patients and their families.

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13 Introdução

O poema nos inspira a refletir sobre o que seria uma UTI Neonatal: Porto seguro? Local assustador? Mão renascedora? Misto de amor e tecnologia? Tantas possibilidades para um local tão peculiar, onde nascimento e morte estão presentes intensamente. Onde a vida aparece em uma fragilidade tamanha que assusta, ao mesmo tempo, que pode promover um encantamento, pela necessidade de zelo e carinho.

A UTI Neonatal

Uma grande escola de valorização da vida Por entre equipos, e leitos e sensores

E monitores e bombas de infusão, A tecnologia aliviando as dores, A esperança alimentando o coração,

Por entre antibióticos e perfusores, Coletas rastreando a infecção,

Profissionais e procedimentos salvadores, Pais e bebês esperando a salvação,

A UTI Neonatal assustadora, Tentando ser a mão renascedora, Tentando ser o manto que alivia,

A UTI Neonatal porto seguro, Oásis da esperança em um futuro, Misto de amor e tecnologia...

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14 Um local em que estão presentes vidas, que brotam como frágeis sementes em terrenos áridos. Vidas-sementes pelas quais alguns cuidadores, como jardineiros dedicados, se desdobram, se empenham para realizar os procedimentos necessários, se envolvem com o seu desenvolvimento ou finitude.

São estes cuidadores que serão contemplados no presente estudo. Nosso convite é justamente para olhar a realidade de uma UTI Neonatal sobre o prisma de quem está lá, imerso no cotidiano do trabalho, marcado pelas aberturas e afetações...

Diante da escuta destes profissionais, apresentamos reflexões sobre as suas experiências, contemplamos o ponto de vista dos trabalhadores que vivenciam grandes dificuldades, angústias e acalentos, que sofrem, se encantam e se surpreendem...

Estas reflexões sobre a realidade dos profissionais, entretanto, não iniciaram com o presente estudo. Partiram da minha atuação, enquanto psicóloga, em instituições hospitalares. Ao acompanhar o trabalho dos profissionais de saúde, pude observar o contexto da prestação de assistência aos pacientes, bem como a maneira como trabalhavam. Além dos momentos em que eu era solicitada pela equipe (médicos, enfermeiros, nutricionistas...) para dar assistência aos pacientes, existiam outros nos quais quem me procurava eram os próprios profissionais para relatarem suas angústias diante da morte de pacientes nas Unidades de Terapia Intensiva, inclusive na UTI Neonatal. Como uma enfermeira que se angustiava profundamente diante da morte de pacientes na UTI. Um sofrimento refletido na sua própria vida e na condição de ser um profissional da área de saúde.

O limite entre a dedicação na assistência ao paciente e o envolvimento, ao ponto de adoecer, é muito tênue. E se apresenta como um desafio constante na atuação dos profissionais. Faz parte da rotina lidar com o sofrimento dos pacientes e a dor da perda dos seus familiares. Por outro lado, diante do sofrimento também ocorria um certo distanciamento, ou não envolvimento. O atendimento era realizado de uma forma automática, com o olhar voltado para

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15 a presença de sintomas, para o controle da medicação e para o funcionamento dos equipamentos.

A inspiração para o presente estudo foi proveniente do desejo de contemplar a experiência dos profissionais de saúde que atuam na UTI Neonatal, seu contexto de atuação e as dificuldades enfrentadas em um ambiente caracterizado pela presença do risco de morte o tempo inteiro. A morte assume um destaque no estudo por fazer parte do cotidiano dos profissionais em um local que existe em função da busca pela cura e da tentativa de evitar a morte.

A morte é o tempo todo lembrada na UTI Neonatal como um fato que ocorre no dia a dia de trabalho. A partir desta constatação, alguns questionamentos foram surgindo: Em uma sociedade que interdita a morte, que valoriza a cura e a vida, como é, para o profissional de saúde, conviver com a lembrança desta possibilidade de finitude o tempo inteiro? Em uma sociedade que valoriza a juventude, como é conviver com a morte de recém-nascidos? Diante da crença, desta sociedade, de que os bebês teriam a vida inteira pela frente, a morte destes seres pareceria injusta ou mais difícil de ser compreendida?

Diante destes questionamentos iniciais, e, na busca por autores que refletissem pelas temáticas da morte, das perdas, do cuidado, tive um “encontro” com um filósofo que influenciou sobremaneira a minha forma de compreender o ser-no-mundo: Martin Heidegger. A ontologia heideggeriana nos oferece a possibilidade de compreender o fenômeno, a experiência do outro, como algo que se desvela em um contexto específico. Como aquilo que se apresenta a partir da compreensão e das afetações dos que estão ali, vivenciando o fenômeno. Ao escrever Ser e Tempo, sua obra mais conhecida, publicada em 1927, Heidegger trouxe à luz a questão do sentido do ser. E, junto com ela, reflexões profundas sobre a existência. Rompeu com a dicotomia entre homem e mundo, ao afirmar que não existe uma separação entre ambos, uma vez que o homem é no-mundo. É também, desde o seu nascimento, um

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ser-16 para-a-morte. E a morte é a possibilidade mais própria, insuperável do homem enquanto projeto.

Mas, ao se deparar com a possibilidade da morte, o ser se angustia por se dar conta que a finitude deixa todos os projetos inacabados, torna todas as escolhas questionáveis, modifica valores, reprograma a vida. Como nos inspira Feijoo (2000, p. 90): “Na angústia frente à constatação do ser-para-a-morte, o ser-lançado surge para a pre-sença de modo mais próprio. Antecipando a morte como possibilidade insuperável e certa, a pre-sença assume todas as suas possibilidades, inclusive a de existir na totalidade do seu poder-ser.”

Diante da iminência da própria morte, a vida pode ser revista. E diante da morte do outro? Heidegger (1927/ 2015) afirma que não temos acesso à experiência vivida por quem morre, no máximo estamos apenas junto. Nós só poderemos saber o que é morrer, quando morremos. Entretanto, a morte do outro nos faz lembrar da possibilidade da nossa própria morte. Algo que nos alerta em meio a um turbilhão de atividades da vida cotidiana. Como a luz distante de um barco em meio às ondas agitadas do oceano.

Para os profissionais de saúde que, no cotidiano de trabalho, lidam com a morte de pacientes, como é viver com a lembrança diária da possibilidade de morte? Escolher trabalhar com a assistência em hospitais implica em assumir também este desafio, além de todas as outras atribuições inerentes ao cargo que ocupa.

A partir da reflexão sobre a realidade dos profissionais de saúde, alguns questionamentos começaram a surgir: Ao escolher esta carreira, esta ocupação, o profissional reflete sobre isso? Se prepara para isso? Podemos nos considerar preparados para lidar com a morte? Durante a atuação profissional, existe um suporte para lidar com tanto sofrimento proveniente das perdas da vida? De que lugar estamos falando?

Vivemos em uma sociedade em um contexto histórico específico. Uma sociedade que valoriza a juventude, a técnica, a vida. Que enaltece os aparatos tecnológicos, o sucesso

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17 profissional, as agendas lotadas de atividades. Uma sociedade que diz correr contra o tempo, como se isso fosse possível.

Para a sociedade que interdita a finitude, a possibilidade assustadora de parar a produtividade e refletir sobre a condução da vida resiste ainda mais à morte de crianças e à morte de bebês. Entretanto, enquanto existe, o ser-no-mundo é ser-para-a-morte. Desde a primeira respiração, esta possibilidade está posta na nossa existência, podendo ocorrer a qualquer momento.

Embora, mesmo que da forma mais difícil, parecemos aceitar quando a morte é de um idoso (que já viveu muito, cumpriu a sua missão). Para uma criança (com a vida toda pela frente) a morte parece injusta e incomoda profundamente. Ao longo deste trabalho, veremos que nem sempre a morte foi vista desta forma, característica da sociedade ocidental contemporânea. Na Grécia Antiga existia “prazo” para o luto de crianças. Não havia a preocupação com os índices de mortalidade infantil, como na atualidade.

Aparentemente, seria contraditório abordar a temática da morte em um ambiente destinado à propagação da vida. Entretanto, estudos demonstram que o Brasil ainda está muito longe de atingir índices de mortalidade infantil considerados “aceitáveis”.O Brasil encontra-se em 90º lugar entre 187 países no ranking das Organização das Nações Unidas (ONU), atrás de países como Cuba, Chile, Argentina, China e México. E apresentando um índice de 19,88 mortes por mil nascimentos vivos. O que demonstra que as estratégias de combate à mortalidade materno-infantil falharam em reduzir significantemente a mortalidade neonatal, cujo componente neonatal precoce (de 0 a 6 dias) sofreu menor redução. (Ministério da Saúde, 2012; Maranhão, Vasconcelos, Trindade et al, 2012; Lansky, Friche, Silva, et al, 2014)

A morte de recém-nascidos, tão pouco divulgada, ainda é mais constante do que supõe o senso comum. A pesquisa Nascer no Brasil, um estudo sobre a mortalidade neonatal no país, foi realizada no período de fevereiro de 2011 a outubro de 2012, por meio de entrevistas e

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18 avaliação de prontuários de 23.940 puérperas. Os resultados indicaram que os óbitos neonatais se concentraram nas regiões Nordeste (38,3%) e Sudeste (30,5%) do Brasil e entre recém-nascidos prematuros e com baixo peso ao nascer (81,7% e 82%). O baixo peso ao nascer, o risco gestacional e condições do recém-nascido foram os principais fatores associados ao óbito neonatal. (Lansky, Friche, Silva, et al, 2014).

No Brasil, 60% da mortalidade infantil ocorre no período neonatal. Cerca de 62% dos óbitos de nascidos vivos com peso superior a 1500g ao nascer são evitáveis, sendo as afecções perinatais o principal grupo de causas básicas, correspondendo a cerca de 60% das mortes infantis e 80% das mortes neonatais. (Ministério da Saúde, 2012)

A mortalidade perinatal afeta desproporcionalmente diferentes classes socio-econômicas e regiões brasileiras. Populações vulneráveis, sobretudo as residentes nas regiões Norte e Nordeste brasileiras, registram piores condições sanitárias e de acesso e uso de serviços de saúde; consequentemente, detêm as mais elevadas taxas de mortalidade infantil do país. (Ministério da Saúde, 2012)

Situada na região Nordeste, a Maternidade Escola Januário Cicco é referência no estado do Rio Grande do Norte para assistência às mulheres com HIV, Pré-Natal de alto risco, histeroscopia. O Relatório de Vigilância Epidemiológica da Maternidade (2016) apresenta o número de óbitos no período de 2010 a 2016 (sendo que os dados referentes ao ano de 2016 contemplam apenas os meses de janeiro a junho).

Tabela 1 – Número de óbitos notificados e investigados por tipo e ano de ocorrência, na MEJC, Natal/RN.

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19 Os dados demonstram a ocorrência de mortes de recém-nascidos ao longo de todos os meses do ano, o que indica a existência de um campo de pesquisa para a investigação tanto das causas das mortes, das consequências das mesmas para os profissionais de saúde, assim como da forma como os mesmos compreendem este fenômeno e lidam com a morte do recém-nascido.

Caracterizada por um aparato tecnológico, pela normatização de procedimentos, pelo atendimento de recém-nascidos de alto risco, a Unidade de Terapia Intensiva Neonatal (UTIN) é um ambiente onde vida e morte estão presentes nos corpos tão delicados dos bebês. A morte de um bebê se transforma no sentido de perda para os pais, às vezes até na sensação de morte em vida.

Muitas vezes, os profissionais que decidem atender em maternidades relatam que irão trabalhar com a vida. Entretanto, em meio a tantos nascimentos, a morte também está presente. A sensação de perigo iminente, a tensão oriunda do risco da perda são constantes no cotidiano da UTI Neonatal.

Para os profissionais de saúde, a morte é como a perda do controle da dor de se deparar com a possibilidade de não salvar a vida, de falhar, de não conseguir. Em uma sociedade caracterizada pelo avanço da medicina e pela busca incessante da cura, a morte é indesejada. E quando ocorre, traz consigo a lembrança dos limites do homem e da possibilidade de falhas. (Bernieri e Hirdes, 2007)

Na sociedade contemporânea, a morte é interditada. Entretanto, nem sempre foi considerada desta forma ao longo da história. Como qualquer fenômeno da vida humana, a morte é contextualizada, adquirindo sentido conforme o momento histórico e social em que é vivenciada. (Ariès, 2003)

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20 O exemplo de uma realidade distinta que propõe uma maneira diferente de falar sobre a morte foi retratado no livro “Qual é a tua obra?” de Mário Sergio Cortella (2015). O autor relata no livro que um general romano ao vencer uma batalha recebia a mais alta honraria: ramos de palmeiras em uma bandeja de prata (de onde se originou o termo salva de palmas, posteriormente imortalizado nos aplausos). Para tanto,

A morte era lembrada em um momento de glória talvez no intuito de conter a vaidade, de rememorar o limite da existência que, por mais gloriosa que seja, terá o mesmo fim das demais. “Lembra-te que és mortal.” Que não és melhor que ninguém. Que assim como tudo na vida passa, este momento de glória também passará. E não deverás ser consumido pela vaidade, que também se finda.

Imagine se, no dia a dia, tivéssemos alguém nos lembrando da condição de mortais. Como o grilo falante, a voz da consciência, também podendo ser denominada, nestas ocasiões, de reflexão sobre a finitude, de angústia. Os profissionais de saúde se deparam com a possibilidade de morte do outro no cotidiano de trabalho, e isto pode levar a uma reflexão sobre a própria finitude. No caso da morte de bebês, a ocorrência destas mortes pode levar a uma reflexão sobre a possibilidade do falecimento do próprio filho e da necessidade de rever algumas escolhas em relação ao uso do tempo livre com a criança e a possibilidade de dedicar mais atenção ao filho. A lembrança da morte, pode, por assim dizer, resignificar a vida.

Como define Heidegger (1927, 2015), o ser-aí é histórico, é um ser-no-mundo, e o mundo dita as regras para a existência, impõe limites. O mundo faz parte do ser-aí como este

(...) “o general ia em direção ao senado e, por lei, um segundo escravo acompanhava a biga a pé. Esse segundo escravo tinha uma obrigação legal: a cada quinhentas jardas, ele tinha que subir na biga e soprar no ouvido do general a seguinte frase: Lembra-te de que és mortal.” (Cortella, 2015, pp. 139).

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21 faz parte do mundo. Ser e mundo são, portanto, indissociáveis, se constituem e se transformam conjuntamente.

Diante desta perspectiva de mundo, inspirada na fenomenologia heideggeriana, ao longo deste estudo, temos como objetivo compreender a experiência de profissionais que atuam em Unidades de Terapia Intensiva Neonatal. Tendo em vista esta temática, foi escolhida como campo de estudo a Maternidade Escola Januário Cicco (MEJC), referência no estado do Rio Grande do Norte para a gestação de alto risco.

A definição do local para a realização da pesquisa foi resultado da minha visita aos hospitais na capital do Estado do Rio Grande do Norte, da conversa com alguns profissionais de saúde e da identificação de uma demanda de sofrimento e da necessidade de suporte, relatada pelos profissionais da Maternidade Escola Januário Cicco. Por assim dizer, abordaremos a questão da morte em um local dedicados à vida, onde as dificuldades e desafios estão presentes cotidianamente.

Dentre os desafios enfrentados pelos profissionais de saúde, os paradoxos se apresentam, contidos nas orientações de conduta: permanecer calmo em ambientes turbulentos de urgência; ser ágil diante de procedimentos difíceis e delicados para salvar uma vida; concentrar-se nos procedimentos mecânicos e na atenção a pacientes e familiares; escolher entre dar apoio aos que estão próximos à morte ou atender aos que exigem outros tipos de cuidados. Não há tempo para tudo. A rotina, caracterizada por uma série de procedimentos, sobrecarrega o profissional e o obriga a fazer escolhas difíceis de realizar. Quando a morte chega, traz, junto com ela, o sentimento de impotência, o medo de falhar novamente, a dúvida do que fazer diante deste fato e sobre o que falar para a família. (Gerow, Conejo, Alonzo, 2009; Silva, Valença e Germano, 2010)

Diante da morte do recém-nascido, alguns dilemas surgem na atuação dos profissionais de saúde, como a dificuldade para dar a notícia para os pais do bebê, a não aceitação de que os

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22 procedimentos realizados não tiveram êxito e a dificuldade para decidir sobre a viabilidade do tratamento. Para uma vida tão frágil, a possibilidade de qualquer erro gera a preocupação com a finitude de um ser. Trata-se de uma linha muito tênue entre a vida e a morte, que gera uma tensão rotineira nos trabalhadores da área de saúde. (Silva, 2007)

Estes paradoxos e dilemas estão presentes na atuação dos profissionais de saúde do mundo contemporâneo. São problemas contextualizados, relativos a uma realidade voltada para a busca da cura e para a interdição da morte. Heidegger (1927, 2015) traz esta reflexão ao falar sobre o impessoal, que dita as regras de conduta necessárias para a sobrevivência do homem no mundo. O impessoal fornece as diretrizes fundamentais para a vida em sociedade. E o homem vive mergulhado no impessoal, nas várias atribuições que compõem a vida cotidiana.

O impessoal delimita os espaços e as regras de conduta que influenciam na condução da vida. Como relata Casanova (2013):

Esta reflexão, proposta por Casanova, serve para lembrarmos a pergunta: De que lugar estamos falando? Na sociedade atual, com o discurso da importância do parto humanizado, e, diante da preocupação crescente com a queda na mortalidade infantil, os protocolos de cuidados para o nascimento dos bebês e com os recém-nascidos, tornaram-se orientações para as práticas dos profissionais de saúde que atuam nas maternidades (Ministério da Saúde, 2012).

“Que tipo de espaço nos espera ao nascermos, que tipo de roupa seremos imediatamente obrigados a usar ou a não usar, que cuidados ou ausência de cuidados vão estar dedicados ao bebê e mesmo ao feto em seus primeiros movimentos existenciais: tudo isso depende sempre e necessariamente em que mundo nascemos. No mundo da ontologia da ciência médica, com suas preocupações sanitaristas incessantes, é claro que uma criança vai ser cercada na primeira infância por uma série de cuidados de higiene visando justamente a proteger o seu estado de saúde pleno. Em uma comunidade indígena, por outro lado, na qual o nascimento é marcado por elementos rituais muito peculiares, é por vezes o pai que faz o parto, que corta o cordão umbilical e que acompanha na oca a relação da mãe com a criança até o momento em que o cordão cai completamente.” (Casanova, 2013, pp. 38)

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23 Estes procedimentos e protocolos fazem parte do mundo dos profissionais de saúde que trabalham em UTI Neonatal. Entretanto, ao percorrer o hospital, também tive a oportunidade de conversar com uma gestora que demostrou uma grande preocupação com o não cumprimento, por todos os profissionais de saúde, dos protocolos de segurança, preconizados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Uma preocupação salutar, uma vez que, uma das causas mais frequentes de morte de recém-nascidos são as Infecções Relacionadas à Assistência em Saúde (IRAS). (Ministério da Saúde, 2012).

O contexto do trabalho em hospitais apresenta grandes desafios que envolvem os cuidados e a busca da cura dos pacientes. Particularmente, em Unidades de Terapia Intensiva Neonatal, os cuidados são intensificados em meio a um aparato de equipamentos e à fragilidade da vida dos recém-nascidos.

Diante do exposto, pode-se analisar brevemente o contexto de atuação do profissional de saúde em UTIN de acordo com a figura apresentada a seguir. A análise breve se dá como uma posição prévia da situação, considerando o olhar de alguém que não pertence a este contexto, que não está atuando, enquanto profissional de saúde em UTIN, mas que construiu um conceito inicial, antes de começar a fase de entrevistas.

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24 Figura 1- O Contexto de Atuação Profissional de Saúde na UTI Neonatal

O profissional de saúde atuante em UTIN apresenta, como desafios, a necessidade constante de conhecimento técnico, que precisa ser aperfeiçoado ao longo do tempo, ao mesmo tempo em que também precisa entender sobre o funcionamento dos equipamentos e se adequar aos novos protocolos de segurança que estão sendo implantados na maternidade.

Estes primeiros desafios compõem a parte técnica e objetiva da atividade realizada, que, por ser conduzida por pessoas, pode apresentar alterações quanto ao cumprimento das determinações do protocolo, o que amplia o risco de ocorrência de eventos adversos.

Os demais fatores envolvem o atendimento aos recém-nascidos com alto risco de morte e, consequentemente, o acompanhamento dos familiares. Como prerrogativa da assistência humanizada, as mães participam ativamente do processo de assistência ao recém-nascido, demandando informações e atenção dos profissionais de saúde. (Ministério da Saúde, 2004)

Neste contexto de atuação, caracterizado por desafios e dificuldades, ocorrem eventos adversos, dentre estes a morte de recém-nascidos. Segundo relatos de profissionais de saúde da

Profissional de Saúde Técnica Protocolos de segurança Mães dos pacientes Bebês em alto risco de morte Equipamentos

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25 maternidade, os mesmos ainda participam do processo inicial de luto, oferecendo suporte aos pais.

Como no caso contado por uma psicóloga que prestou assistência à família enlutada junto com a médica. Segundo o relato, a mãe não aceitava que o filho havia morrido. Mesmo quando o corpo da criança foi entregue aos pais para despedida, ela acreditava que o bebê estava dormindo. Os profissionais precisaram acompanhar o processo de luto, até a mãe compreender que o bebê havia morrido diante da frase “o coração dele parou”. Após o entendimento da mãe, os pais puderam iniciar o processo de despedida do bebê. Algo que gerou muito sofrimento para a família e um grande desgaste emocional para os profissionais de saúde que ofereceram o suporte aos pais.

As informações apresentadas retratam a realidade de atuação dos profissionais de saúde, em meio a tantas exigências e responsabilidades. Trata-se de uma análise sobre o prisma de quem apenas olha pelo lado de fora da janela. Pela metodologia proposta neste estudo, os profissionais foram convidados a narrar uma história de perda, da morte de um recém-nascido, durante a sua atuação na UTIN. Por meio deste convite, tivemos a oportunidade de compreender o modo de atuação de cada profissional, os sentidos atribuídos as suas vivências e a forma como enfrentaram a morte dos pacientes. A forma como o profissional sente e vivencia as suas experiências interfere diretamente na prestação da assistência à saúde.

Além desses fatores, as pesquisas realizadas em banco de dados revelam a necessidade de ampliar os estudos sobre a área, utilizando a abordagem da fenomenologia como forma de compreensão da experiência. Por meio do portal da Capes, a busca na base do Pubmed utilizando os descritores “healthcare professional” and “death” and “newborn” revelaram a existencia de 1.257 publicações. Entretanto, ao adicionar o descritor “phenomenology” aos demais foram localizados duas publicações, ambas fazendo referência apenas ao trabalho de enfermeiros (Silva, Valença & Germano, 2010; Rubarth, 2003). A busca com os descritores

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26 “healthcare professional” and “death” and “newborn” na base da BVS psicologia não localizou nenhuma publicação. O mesmo ocorreu com o portal do scielo.

Os artigos citados revelam que, diante da morte de recém-nascidos, enfermeiros e técnicos de enfermagem apresentam sentimentos de auto-reprovação, baixa auto-estima e culpa. A morte de bebês é vista como uma falha da equipe no processo de cura. No espaço em que os profissionais de saúde trabalham, muito tempo e esforço é direcionado para técnicas que possam prolongar a vida. Quando estas não funcionam são gerados sentimentos de impotência, fracasso, frustração e incapacidade. (Silva, Valença & Germano, 2010; Rubarth, 2003)

Sentimos falta de mais estudos que buscassem compreender a experiência da morte de recém-nascidos em UTI Neonatal, utilizando a fenomenologia hermenêutica heideggeriana como orientação metodológica. Também sentimos falta de estudos que contemplassem os profissionais que compõem a equipe de uma UTI Neonatal (médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, fisioterapeutas, psicólogos). Encontramos estudos dedicados especificamente a uma ou duas categorias de profissionais (médicos e profissionais da área de enfermagem). Como seria ouvir representantes das diversas formações que compõem a equipe multidiciplinar da UTI Neonatal? Este questionamento também contribui para a decisão de contemplar profissionais com formações diversas, mas que precisam trabalhar em conjunto para oferecer assistência aos pacientes e familiares. A partir destes questionamentos foi escolhida uma direção para um caminho que será delimitado nos próximos capítulos.

A importância deste estudo está justamente na compreensão da experiência dos profissionais de saúde que atuam na UTI Neonatal no intuito de gerar contribuições para a comunidade acadêmica, os profissionais de saúde, a instituição hospitalar e, consequentemente, para a assistência dos pacientes e de seus familiares.

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27 A partir do exposto, serão contemplados os capítulos da tese, os quais foram organizados da seguinte forma:

- Capítulo 1: Os sentidos da morte ao longo da história

O capítulo abordará as diferentes concepções de morte para sociedades em contextos históricos específicos. No início do capítulo é apresentada a figura da obra de arte “O grito”. Este quadro foi pintado pelo norueguês Edvard Munch em 1893. O quadro representa o sentimento de angústia do ser humano diante das perdas. Considerei oportuno refletir sobre a morte a partir de uma figura que demonstra o assombro de um ser diante da dor, da perda, do desconhecido. E a fragilidade humana em meio ao crepúsculo de um por-do-sol marcante.

-Capítulo 2: Contemplando alguns existenciais da fenomenologia Heideggeriana

Este capítulo irá discorrer sobre alguns existenciais que compõe a ontologia Heideggeriana. Dentre os existenciais mencionados serão contemplados: no-mundo, ser-com, cuidado, ser-para-a-morte, angústia.

No início do capítulo, está apresentada uma das obras de arte mais conhecidas de Salvador Dalí, “A Persistência da Memória”, datada de 1931. A obra nos faz refletir sobre o nosso entendimento racional do mundo. Na figura, os relógios estão deformados, dando a impressão da diluição do tempo, como algo não fixo ou linear. A escolha desta obra serve como uma inspiração inicial para as valiosas contribuições de Heidegger à compreensão do ser e do tempo.

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28 -Capítulo 3: O profissional de saúde

Neste capítulo estão contemplados aspectos referentes aos profissionais de saúde, as dificuldades enfrentadas, o ambiente hospitalar, o contexto da maternidade e, em particular, da UTI Neonatal.

O início do capítulo é ilustrado com uma parte dos afrescos da Capela Sistina, a obra intitulada “A Criação da Humanidade e sua queda”, pintada por Michelangelo em 1512. A vida é representada pelo toque de Deus na criação, no ser do homem. A escolha desta obra reflete o olhar para o modelo médico, a analogia com a figura de quem cuida da vida e busca evitar a morte: o profissional de saúde, que tantas vezes está com a vida do outro em suas mãos. Em particular na UTI Neonatal, onde os bebês são tão frágeis, às vezes até do tamanho de duas mãos unidas, onde nascimento e morte, criação e queda estão bem próximos.

-Capítulo 4: Método: A escolha do caminho

Este capítulo é dedicado à fenomenologia, enquanto método escolhido para compreender a experiência dos profissionais. A fenomenologia nos convida a ver além das aparências. A olhar o sentido das experiências dos profissionais a partir da narrativa dos mesmos.

Ao longo do texto, o círculo hermenêutico é posto em ênfase, assim como os procedimentos que serão utilizados para as entrevistas, abrangendo os critérios de inclusão e exclusão dos participantes.

Para introduzir este capítulo uma obra prima de Van Gogh, de 1888, “O pintor a caminho do trabalho”. Em um belo dia, sob um sol escaldante, o pintor caminha para o seu trabalho carregando seus instrumentos. No caminho descobrem-se as belas paisagens e um novo

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29 colorido. De forma similar, o pesquisador, ao realizar o estudo, busca compreender o fenômeno, ao mesmo tempo, em que se transforma ao longo da caminhada.

-Capítulo 5: As narrativas dos participantes: os sentidos de ser profissional de saúde em UTI Neonatal

Este capítulo é dedicado aos profissionais de saúde atuantes na UTI Neonatal da Maternidade Escola Januário Cicco. Durante o mesmo são apresentados trechos das narrativas dos participantes a partir das análises realizadas, tendo como inspiração a hermenêutica heideggeriana.

No início do capítulo é apresentada a obra do pintor surrealista Vladimir Kush que retrata a última ceia representada por flores de diferentes espécies reunidas em torno de uma mesa e em meio a um cenário iluminado por um azul celeste. A obra também faz uma homenagem às participantes do estudo que receberam nomes fictícios de flores.

-Capítulo 6: Destecendo a trama da existência: reflexões a partir das narrativas dos profissionais de saúde

Neste capítulo, o pesquisador apresenta algumas reflexões a partir das narrativas dos participantes, não com o intuito de fazer um fechamento. Mas, de assumir a condição daquele que pergunta e tem consciência de que a compreensão do fenômeno parte do olhar de quem interroga (Critelli, 1996). As reflexões iniciais contempladas partem, portanto, do pesquisador que realizou as entrevistas, leu e releu as narrativas, como também as entrelinhas; considerou o que foi dito e o não dito, o que estava explícito e o que estava aparentemente oculto, mas que assumiu um sentido para o observador.

No início do capítulo está representada a obra de Vladimir Kush que retrata uma mulher borboleta dentro de um livro, segurando um casulo, como quem segura um bebê. A homenagem

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30 está portanto nas páginas deste livro, na contemplação das narrativas das mulheres que cuidam dos recém-nascidos e, ao cuidar, vão se transformando.

Ao final deste projeto de tese estão apresentados os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido, de Gravação de Voz. No mais, a partir destas considerações, contempladas na introdução, começaremos fazendo uma retrospectiva sobre os sentidos da morte ao longo da história até a contemporaneidade.

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31 Capítulo 1: Os sentidos da morte ao longo da história

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32 Capítulo 1: Os sentidos da morte ao longo da história

A morte, tratada como o grande mistério da humanidade, sempre fez parte da vida, seja como algo inaceitável, seja como algo naturalizado, como o destino de todas as espécies. As atitudes e crenças sobre a morte estiveram presentes ao longo do tempo, retratando o contexto histórico e social de cada época.

Partindo do pressuposto de que todo comportamento social é historicamente ancorado, iniciaremos um breve relato sobre as vivências da morte em diferentes sociedades ao longo da história da humanidade. Falaremos de atitudes dentro de um cenário que não pode limitar-se a ser o fundo de uma figura, mas, como parte desta, lhe oferece o contorno necessário à existência. Desde o período pré-histórico, o homem demonstrava preocupação com a morte e com o que existiria após a vida. Uma demonstração disto, são os achados arqueológicos nos túmulos dos neandertais, datados de aproximadamente 150.000 anos. Dentro dos túmulos, foram encontrados utensílios domésticos e comida, próximas ao corpo do morto. Ancoradas nestes rituais estava a crença da necessidade de se prevenir para o pós-morte. Neste período, foram encontrados os primeiros indícios de preocupação com o destino dos corpos em locais reservados, como as cavidades de rochas, nas quais os corpos eram colocados de cócoras e cobertos por pedras. (Despelder e Strickland, 2001)

No período Paleolítico Superior (30.000 a 8.000 anos a.C) os corpos eram encontrados em posição fetal, ou de barriga para cima, e havia uma maior a quantidade de alimentos e “É impossível conhecer o homem sem lhe estudar a morte, porque, talvez mais do que na vida, é na morte que o homem se revela. É nas atitudes e crenças perante a morte que o homem exprime o que a vida tem mais de fundamental”.

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33 utensílios domésticos, mais elaborados que os do período anterior. Alguns corpos estavam pintados de ocre vermelho e a posição fetal indicava a busca do renascimento. Para os povos primitivos, a morte anunciava um renascimento, como um ciclo natural de metamorfose e de transmutação. (Morin, 1997; Santos, 2009)

Na antiguidade, os egípcios também criavam vários rituais fúnebres. A construção das tumbas e das pirâmides, enquanto morada dos mortos, revelavam a preocupação com a vida após a morte. Os locais de sepultamento retratavam o estilo de vida da pessoa que havia falecido, e a grandiosidade dos túmulos representava o seu status social. Para compor o local, um aparato de objetos era enterrado junto com o morto, inclusive animais mumificados, como gatos, macacos e falcões, além das estátuas que ganhariam vida como servos. Os ornamentos tinham a finalidade de preservar a morada do indivíduo de tal forma que, quando acordasse, se sentisse em casa e não voltasse para se vingar dos vivos. (Santos, 2009)

Outra crença central da cultura egípcia era a necessidade de preservar o corpo (ka) para o retorno do espírito (ba), em outros tempos. Por isso, a mumificação era tão valorizada, ao ponto de o corpo ficar 30 dias longe da família e retornar como era em vida, inclusive com a conservação de detalhes, como cílios e sobrancelhas. A morte era difundida na sociedade através da mitologia. Os registros das práticas fúnebres estavam contidos no Livro dos Mortos, escritos que ensinavam sobre a forma de pensar e de se comportar em relação à morte. O Livro dos Mortos orientava o pensamento de um povo, servindo também como um guia que orientava o morto para as várias provas que deveria passar com o objetivo de se unir à divindade de Osíris. Caso o indivíduo falhasse, ocorreria uma segunda morte, entendida como o destino para o eterno esquecimento. Este era considerado como o pior dos castigos para um individuo, ser destinado ao esquecimento completo. (Santos 2009)

Para os egípcios, a morte era uma punição dos Deuses. Enquanto punição, a ideia da própria morte trazia o temor do castigo, do abandono e da rejeição. E a morte do outro gerava

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34 o medo da retaliação ou da perda. Além do medo da morte enquanto castigo, havia uma preocupação com o que viria depois, diante da crença de que o pós vida era caracterizado por vários desafios a serem superados. O primeiro dos desafios era o julgamento de Maat, deusa da justiça, da verdade e da ordem. Neste julgamento, a deusa oferecia uma pena a ser colocada em um dos lados da balança, o outro lado era destinado ao coração do morto que deveria ser puro e verdadeiro, ao ponto de tornar-se mais leve que a pena. Todos passariam por este julgamento, do escravo ao faraó. Não havia, portanto, uma distinção social entre vivos e mortos, no que concerne ao destino no pós- vida. O livro dos Mortos era companhia certa em todos os túmulos. Embora não tivesse utilidade alguma, caso o morto não tivesse realizado boas ações em vida. De nada serviriam as orientações, contidas no livro, se o indivíduo não tivesse “crédito” para utilizá-las. (Kastenbaum & Aisenberg, 1983)

A civilização egípcia deixa como legado uma preocupação com o pós-vida, concretizada em uma série de rituais, voltados para trazer o conforto e aparente segurança ao morto. A civilização mesopotâmica (2000 a.c), entretanto, não apresentava a mesma crença em relação a morte. Para os povos que habitaram a mesopotâmia, a existência humana tinha a finalidade de servir aos deuses. A morte ocorreria para todos e não havia uma possibilidade de salvação individual ou coletiva, independentemente das ações praticadas em vida. A imortalidade era um atributo exclusivo dos deuses. Não havia a crença na imortalidade, mas existia o temor de que os mortos poderiam perturbar os vivos. Caberia à família a organização dos rituais fúnebres, e, em particular, ao filho mais velho, a realização de algumas atividades para acalmar o morto como raspar o cabelo, servir alimentos e bebidas e construir um altar para reverenciá-lo. (Santos, 2009)

Os persas (por volta do século VI a.c), por sua vez, defendiam que a morte poderia levar à elevação do espírito. Ao deixar este mundo, o morto passava por uma ponte. Se tivesse praticado boas ações encontraria em bela moça que lhe conduziria ao paraíso. Caso contrário,

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35 uma velha desfigurada lhe perseguiria até que caísse da ponte em direção ao inferno. Para aqueles que praticaram tanto boas quanto más ações, de forma que se igualassem em quantidade e importância, o destino era o limbo, um local em que não sentiam nem alegrias, nem tristezas. Mas, para todos, caberia o julgamento final (que deveria ocorrer aproximadamente em 6.000 d.c), momento em que todo, segundo a crença dos persas, todo o mal desaparecerá e os bons receberão corpos jovens e indestrutíveis. (Kastenbaum & Aisenberg, 1983)

Um aspecto importante a considerar na civilização egípcia, bem como em outras sociedades primitivas, como a dos malaios, é o fato das práticas fúnebres serem constituídas e desenvolvidas pela comunidade. Não havia uma ênfase nas reações individuais. Existiam regras que conduziam toda a sociedade a se comportar diante da ameaça da morte e que, posteriormente, orientavam como minimizar os efeitos negativos que a morte causava no seio da comunidade. O indivíduo fazia parte de algo maior, a sociedade, e a sua morte atingia este coletivo. Por isso, as práticas representavam a união e o poder do grupo sobre a morte. (Kastenbaum & Aisenberg, 1983)

Este breve relato sobre a morte na Antiguidade não poderia deixar de contemplar a cultura grega. Nesta sociedade, havia uma preocupação com a saúde pública. Diante disso, os restos mortais de todos, sem distinção social, eram enterrados fora das cidades. Entretanto, o local e o monumento que representava o morto era de acordo com o nível socioeconômico. Outro aspecto relevante é que o luto era permitido, de uma forma geral, por um período de um ano. Para as crianças que falecessem com até seis anos de idade, entretanto, o prazo destinado ao luto era de apenas um mês. A expressão do luto que se estendesse além deste período estava sujeita à recriminação social. (Àries, 2003; Santos, 2009)

Para os antigos gregos, o pensamento preponderante, em relação ao pós vida, era o da imortalidade da alma. Um defensor desta ideia foi Sócrates. A morte deste importante filósofo foi retratada no século XVIII em um quadro intitulado “A morte de Sócrates”.

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36 A morte de Sócrates. Autor Jacques-Louis David, 1787

Platão descreveu a morte de Sócrates em um dos seus diálogos, o Fédon, relatando uma das formas de compreensão da morte pelos gregos antigos que a associava à imortalidade da alma. A morte era como uma passagem do mundo sensível para o mundo suprassensível. E o que os gregos chamavam de exercitamento para a morte era, justamente, a preparação para este momento de passagem com destino à imortalidade. Uma preparação vivenciada e relatada por Sócrates nos momentos em que esperou pela morte na cadeia, no período entre o julgamento e a ocasião da sua morte.

Durante este período, Sócrates recebia os filósofos e dialogava sobre as suas ideias, refletindo, inclusive, sobre o significado da morte e a condição do ser humano. De acordo com o relato de Sócrates “é melhor estar morto do que vivo”. Mas a condição de morto é dada por uma divindade. Uma vez que “nós, homens, nos encontramos em uma espécie de cárcere que nos é vedado abrir para escapar”. Apenas aos deuses caberia a decisão da hora da morte do homem, no caso de Sócrates a condenação para beber cicuta deixava-o livre para seguir para outro mundo. (p.5)

Diferentemente desta compreensão sobre a morte, outro caminho preconizado pelos antigos gregos, particularmente os estoicos e epicuristas, defendia a naturalização da morte,

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37 enquanto um destino de todas as espécies. Como algo que desagrega o que foi agregado em vida. Vida e morte fariam parte, assim, de um ciclo que terminava com a morte, não existindo a possibilidade de imortalidade da alma. (Nunes, 2012)

Concepções tão distintas inspiraram os antigos gregos a refletir sobre a morte e sobre a forma de conduzir a vida. Morte e vida estão entrelaçados como fios de uma mesma manta. O sentido da morte interfere na existência do ser neste mundo. E, em cada época, as crenças que a sociedade propagava, sobre a morte, influenciaram as pessoas na maneira de compreendê-la e de vivenciá-la.

Em uma sociedade com ideias distintas acerca da morte, preconizava-se o mesmo fim para os bebês que nascessem com alguma deficiência. Em Esparta, não só os bebês como também as pessoas que adquiriam alguma deficiência eram lançadas ao mar ou em precipícios, por não serem consideradas úteis para a sociedade. De forma similar, na Roma Antiga, nobres e plebeus tinham a permissão para sacrificar os bebês que nascessem com algum tipo de deficiência. Crianças com “defeitos” não eram bem vindas ao mundo, deveriam ser mortas ou abandonadas ao relento até a morte. (Santos, 2009)

No início da Idade Média (séc. V ao séc. XII), a morte estava presente no cotidiano e era aceita socialmente como algo simples e familiar. Vivos e mortos coexistiam de forma natural. Morrer era o destino de todas as espécies. Algo previsível também para o ser humano que não temia a morte em si, mas o fato de morrer sozinho. A morte desejada era anunciada. Esperada no leito, como uma cerimônia pública e organizada, conduzida pelo próprio enfermo, que se despedia, realizando as suas últimas vontades e direcionando o ritual fúnebre de preparação para a morte. Neste ritual, estavam presentes, muitas vezes, não só os familiares, a própria comunidade participava e acessava livremente o quarto do morto, inclusive as crianças também presenciavam os momentos de despedida. A morte era domada, domesticada, tão cotidiana quanto a vida. (Ariès, 2003)

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38 Nesta sociedade, as crianças eram vistas como adultos em miniatura, sem distinção quanto às regras sociais ou mesmo a dedicação de maiores cuidados, com exceção dos bebês, conforme relata Ariès (1981): “... um sentimento superficial da criança - a que chamei "paparicação" era reservado à criancinha em seus primeiros anos de vida, enquanto ela ainda era uma coisinha engraçadinha. As pessoas se divertiam com a criança pequena como com um animalzinho, um macaquinho impudico. Se ela morresse então, como muitas vezes acontecia, alguns podiam ficar desolados, mas a regra geral era não fazer muito caso, pois uma outra criança logo a substituiria. A criança não chegava a sair de uma espécie de anonimato”. (p. 4)

Em todo o ritual de despedida, a criança tinha o seu papel definido. Os adultos explicavam a situação e a criança participava de tudo, do velório ao enterro. Não existia uma distinção com os adultos para o enfrentamento da morte, inclusive na vivência do luto e na ida regular ao cemitério. A vivência do luto também era natural, as pessoas poderiam expressar os seus sentimentos e participar de todo o processo, desde a despedida ao enfermo até o acompanhamento do cortejo fúnebre. O receio que as pessoas tinham era da morte brusca, repentina, sem despedida, sem o cumprimento de todo o ritual fúnebre. (Kovács, 1992)

As próprias condições da sociedade como um todo contribuíam para esta morte anunciada: os avanços da medicina ainda eram incipientes, para boa parte das doenças não havia cura, restando à comunidade a aceitação e previsão de que a morte viria logo. As condições sanitárias eram precárias e não havia uma preocupação social em relação a isto. Vivos e mortos coexistiam. As pessoas entravam nos quartos dos enfermos, as crianças brincavam nos cemitérios, locais também utilizados como palcos para danças e jogos. (Ariès, 2003)

Os doentes sabiam que iriam morrer e assim se preparavam para a chegada da morte dentro do seio da família. A morte familiar foi também denominada por Ariès, (2003) de morte domada. E, do ritual de despedida, participavam todos da família, da comunidade, inclusive as crianças. Não havia uma preocupação em isolá-las deste acontecimento, tido como natural.

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39 Após todas as despedidas, a morte vinha como um sono profundo, durante o qual as almas aguardariam o retorno de Cristo para o momento da ressurreição, assegurada pela Igreja. Desta crença na ressurreição surgiu o costume de enterrar os corpos em cemitérios próximos à Igreja, cabendo aos mais ricos a construção de túmulos dentro das capelas. (Kastenbaum & Aisenberg, 1983; Ariès, 2003)

Vale salientar que, na Idade Média, doenças malignas assolaram a Europa, em particular, a peste negra que dizimou mais de 1/3 da população. A morte tornou-se não só uma triste realidade cotidiana, como também, uma forma de punição de Deus para os homens, como um castigo que atingia a todos. Outro evento que contribui para associar a morte à punição foi a atuação da Inquisição que utilizava a tortura e a morte como instrumentos para controlar a ordem preconizada pela Igreja. (Santos, 2009)

Na segunda metade da idade Média (séc. XII ao séc. XV), mudanças sutis começaram a acontecer que influenciaram, de forma decisiva, na maneira das pessoas lidarem com a morte. Com a ideia do Juízo Final, propagada pela Igreja, o morto seria julgado pelas ações executadas em vida. Passou-se a ter uma preocupação com a morte de si mesmo, com a individualidade do morto e com o que este havia feito em vida. A culpa, o pedido de perdão predominava nos momentos próximos a morte. E as cerimônias ganharam um caráter dramático. Os homens buscavam garantias para chegarem ao paraíso, representadas pelos donativos, pelas obras realizadas durante a vida, pela compra de relíquias consideradas sagradas pela Igreja. (Ariès, 2003; Kovács, 1992)

A preocupação com a própria morte se amplia, no período do Romantismo, para o temor diante da morte do outro. O sofrimento com a perda, as lembranças, o culto aos cemitérios se tornaram preponderantes neste período. A morte remetia à ideia de ruptura, da dor de perder o ente querido. Diante deste cenário, a recordação dava uma certa condição de imortalidade ao indivíduo. Os mortos passaram a ser valorizados, tanto quanto os vivos, pelo legado que

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40 deixariam, tantas vezes, representados na concretude das sepulturas individualizadas e majestosas da aristocracia. (Ariès, 2003; Kovács, 1992)

Esta preocupação com a morte do outro vai tomando outras proporções ao longo do tempo, ocupando lugar na forma como a morte era vivenciada. Com o intuito de poupar o outro que está próximo a morte, passou-se a omitir o seu estado. O moribundo que, na Idade Média, conduzia os momentos de despedida, se tornava alheio ao processo, e passava a morrer sozinho, em um leito frio de hospital. Da preocupação com o morto, o incômodo de falar sobre a morte e expressar o sofrimento do luto, estendeu-se para toda a sociedade. Diante deste contexto, origina-se o que Ariès (2003) denomina de morte interditada.

A forma como as crianças vivenciavam a morte do outro também foi se modificando, de acordo com as mudanças sociais que ocorreram ao longo do tempo. A partir do século XVII, a escola passou a ocupar um lugar importante na sociedade, substituindo o aprendizado fornecido às crianças pela imitação dos adultos, na execução dos seus ofícios. A criança foi separada dos adultos e mantida em uma certa distância, antes de ser solta no mundo. Iniciava-se então um longo processo, que perduraria até os dias de hoje, a escolarização. Essa Iniciava-separação das crianças, denominada por Ariés (1981) de enclausuramento, fez parte de um grande movimento de moralização promovido pelos reformadores católicos ou protestantes ligados às leis ou ao Estado.

Entretanto, este movimento não teria sido possível sem a cumplicidade sentimental das famílias. A família tornou-se o lugar de uma afeição necessária entre os cônjuges e entre pais e filhos, algo que ela não era antes. Segundo Ariès (1981), as famílias eram unidas por laços de honra e lealdade, não havendo, necessariamente, afeição entre seus membros, mas sim uma espécie de sociabilidade. Exemplo disto, é um fenômeno muito importante, que começa a ser mais conhecido: a persistência, no fim do século XVII, do infanticídio tolerado. Não se tratava de uma prática aceita, era considerada um crime. Entretanto, era praticado em segredo,

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41 camuflada, sob a forma de um acidente: as crianças morriam asfixiadas naturalmente na cama dos pais, onde dormiam. Não se fazia nada para salvá-las.

Com a importância atribuída à educação, os pais passaram a se interessar pelos estudos dos filhos e a acompanhar o seu desenvolvimento. Esta prática era vista como algo natural nos séculos XIX e XX, mas, anteriormente, não existia desta forma, com tanto zelo, preocupação e solicitude. A família começava a se organizar em torno da criança e a lhe dar tanta importância, que a criança saiu de seu antigo anonimato, tornando-se impossível perdê-la ou substituí-la sem uma enorme dor. Se por um lado não poderia se tolerar a repetição desta dor, por outro tornou-se necessário limitar o número de crianças para melhor cuidar da sua educação. Portanto, essa revolução escolar e sentimental teve como consequência, com o passar do tempo, uma redução voluntária da natalidade, observável a partir do século XVIII. (Ariès, 1981)

Das famílias numerosas nas quais era comum a morte de filhos, a sociedade foi modificando-se para famílias pequenas onde palavras como “planejamento familiar” e “investimento na educação dos filhos” passaram a fazer parte do contexto de vida de, pelo menos, uma parte da população. O filho planejado e desejado vinha ao mundo como um ser que já tinha a missão de realizar um projeto dos pais, como uma fonte de investimento de amor, de cuidados e de realização. A dor da perda destes filhos, ganhou uma nova proporção para a sociedade contemporânea.

Estas mudanças na vida das pessoas, consequentemente nas vivências da morte, também faziam parte de um cenário caracterizado pelos avanços da medicina e, como isto, pela não aceitação da doença como prelúdio da morte. Buscava-se a cura, representada pelo retorno à vida. A partir da década de 1930, os doentes eram encaminhados para os hospitais, locais destinados aos cuidados dos enfermos. No contexto hospitalar, o cuidado com o contágio, distanciava as pessoas próximas. Havia horários a cumprir, aparelhos a programar e uma serie de aparatos que foram se tornando cada vez mais complexos. Aliada a esta complexidade,

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42 crescia, para os profissionais de saúde, a responsabilidade de segurar a vida, de controlar a existência. Formava-se, assim, o cenário para a exclusão social da morte. (Santos, 2009)

No hospital, a morte tornou-se oculta. Evita-se falar da morte para os pacientes, bem como para as crianças, com o intuito de poupá-las. Mas, a criança pode perceber que algo não está bem. Então, as justificativas dos adultos são permeadas por histórias como os antigos contos que escondiam aspectos referentes à sexualidade. Assim como os bebês vêm ao mundo trazidos pelas cegonhas, o avô foi dormir, o pai viajou...Enfim, são contadas histórias inspiradas no conceito de uma morte interditada. Por vezes, estas histórias levam a outros comportamentos, como o medo de dormir e não mais acordar, gerando temores nas crianças. (Pinto & Veiga, 2005)

A contemporaneidade constituiu-se no mundo trazendo outras mensagens sobre a vida e assumindo, como características, a exacerbação do individualismo, a busca incessante do prazer e da felicidade e, consequentemente, a necessidade de evitar o que atrapalhasse esta busca. A morte, o luto, a tristeza, a angústia são todos fatores que não contribuem para o sucesso, a juventude e o controle emocional.

Antes de abordarmos a vivência da morte na sociedade atual, consideramos importante refletir sobre alguns aspectos apresentados por Kastenbaum e Aisenberg (1983) como “condições que contribuíram significativamente para o contexto de vida do qual emergiram as interpretações sobre a morte”: a expectativa de vida, a presença da morte, o senso de possuir reduzido controle sobre a natureza e o status do indivíduo. (p.150)

Em sociedades onde a guerra, a peste, outras doenças, contagiosas ou não, eram frequentes, não se esperava vida longa. No decorrer da história da humanidade, a expectativa de vida do homem era curta, tantas vezes não chegava aos trinta anos. Com a precarização das condições de saúde muitas mulheres morriam no parto, e as crianças nasciam mortas ou faleciam muito cedo. Para as que sobreviviam cabia a luta pela vida, sem espaço distinto para

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43 a vivência de uma infância. O mundo dos adultos era também o seu mundo. Tanto que a hora da morte era assistida por todos, não existia um isolamento no momento do desenlace. Em meio a tantas fraquezas perante às doenças restava ao homem o senso de possuir reduzido controle sobre as forças da natureza, inclusive sobre a sua própria vida.

Somadas a estas circunstâncias, outra característica relevante a ser mencionada é o status social do indivíduo. Que nas civilizações antigas existia para a manutenção da sociedade, para o bem de algo maior, não servindo essencialmente ao benefício do indivíduo isolado em detrimento do grupo social.

Estes fatores foram elencados por Kastenbaum e Aisenberg (1983) como significativos para as interpretações sobre a morte existentes nas sociedades ao longo da história. Analisando os mesmos fatores na época atual, diante de mudanças tão profundas no decorrer do tempo, nos deparamos com uma sociedade que: apresenta um grande desenvolvimento tecnológico e da medicina; conseguiu, com isto, a ampliação da expectativa de vida e a propagação de valores de sucesso e juventude; ao mesmo tempo em que favorece o individualismo e interdita a morte a um espaço tão reduzido quanto o esquecimento relegado ao fracasso e a frustração.

Vivemos em uma sociedade paradoxal que exige velocidade e calma ao mesmo tempo, que dita normas as quais geram ansiedade e, para evitá-la, divulga fórmulas e medicamentos. Existem soluções para o “bem viver” segundo os bons costumes; soluções que aprisionam os que se adequam e excluem os que não conseguem caminhar como os demais. A sociedade do consumo e da busca de soluções imediatas para o alcance do prazer.

Uma sociedade que valoriza os avanços tecnológicos e a juventude. E estes avanços geraram uma noção de controle sobre a vida desde o seu início, durante o seu curso e na necessidade de prolongamento do tempo neste mundo. Em períodos anteriores, a morte predominava em todos os períodos, a gravidez tantas vezes era um risco para a mulher, bem como a morte de recém-nascidos, vista com naturalidade pela comunidade. Na sociedade atual

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44 “a morte conserva-se a uma distância reconfortante ou uma boa distância dos jovens e dos adultos de meia idade. Quem morre? Os velhos (nós, não). A crescente associação estatística entre mortalidade e idade avançada imediata e perpétua para um prospecto distante, remoto”. (Kastenbaum e Aisenberg, 1983, p. 166)

Por isso, a morte de jovens, na contemporaneidade, pode comover, ao remeter à ideia de uma vida interrompida antes mesmo de concretizar os objetivos propostos, antes de dar retorno à sociedade. A morte é destinada aos que se tornaram obsoletos, não são mais produtivos. E, mesmo assim, ela é evitada, interditada, pouco presente nas conversas cotidianas. A morte passa a ter uma participação periférica na vida das pessoas, quando, na realidade, é uma condição inerente ao ser-no-mundo.

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45 Capítulo 2 – Contemplando alguns existenciais da fenomenologia Heideggeriana

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46 Capítulo 2 – Contemplando alguns existenciais da fenomenologia Heideggeriana

“A morte chega cedo”, afinal, que segurança me traz o desconhecido? O caminho que não percorri? O abandono do ente querido? Enquanto certeza incerta, a morte assusta pela imprecisão possível, pela hora não marcada, pelo temor escondido, de quem vive na sociedade que cultua o controle da vida, do início ao fim. A morte, que chega para o outro, não pertence a mim, mas me consome e leva consigo uma parte do que valorizo, algo precioso que perdi.

“O amor foi começado, o ideal não acabou”. A morte interrompe o que foi iniciado ao mesmo tempo que gera o sentimento de perda do que foi e do que poderia ter sido. Sofremos pelo que perdemos e pelo que gostaríamos de ter realizado. A morte do outro nos remete a todos esses sentimentos de incompletude, de insegurança, às vezes de arrependimento e, tantas outras, a uma reflexão sobre a própria vida, seus medos e seus alcances.

A morte chega cedo, pois chega sem avisar. Como a visita que abre a porta sem bater, entra sem cerimônia, leva o que lhe cabe e deixa, quem fica, a chorar. Hoje, um choro mais contido, um ritual mais reservado, um luto mal vivido, mas não menos sofrido. Apenas controlado, em meio a um cenário que prima pelo esquecimento da morte, em detrimento da valorização da vida e da juventude.

O poema de Fernando Pessoa foi escolhido para iniciar este capítulo, por retratar da forma mais bela, que a poesia permite, reflexões fundamentais sobre a morte e a vida que me

A Morte Chega Cedo

A morte chega cedo, pois breve é toda vida O instante é o arremedo de uma coisa perdida. O amor foi começado, o ideal não acabou,

E quem tenha alcançado não sabe o que alcançou. E tudo isto a morte, risca por não estar certo No caderno da sorte, que Deus deixou aberto.

Referências

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