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Cinema, imaginação e espaços poéticos memoriais: antropologia do imaginária no cinema pernambucano de Kleber Mendonça Filho

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA

WENDELL MARCEL ALVES DA COSTA

CINEMA, IMAGINAÇÃO E ESPAÇOS POÉTICOS MEMORIAIS: ANTROPOLOGIA DO IMAGINÁRIO NO CINEMA PERNAMBUCANO DE KLEBER MENDONÇA

FILHO

NATAL/RN 2019

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WENDELL MARCEL ALVES DA COSTA

CINEMA, IMAGINAÇÃO E ESPAÇOS POÉTICOS MEMORIAIS: ANTROPOLOGIA DO IMAGINÁRIO NO CINEMA PERNAMBUCANO DE KLEBER MENDONÇA

FILHO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte para obtenção do título de Mestre em Antropologia Social.

Área de concentração: Antropologia Social.

Subáreas: Antropologia Urbana e Antropologia do Cinema. Linha de Pesquisa: Imagem, Espaço e Tecnologias.

Orientadora: Profa. Dra. Lisabete Coradini.

NATAL/RN 2019

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WENDELL MARCEL ALVES DA COSTA

CINEMA, IMAGINAÇÃO E ESPAÇOS POÉTICOS MEMORIAIS: ANTROPOLOGIA DO IMAGINÁRIO NO CINEMA PERNAMBUCANO DE KLEBER MENDONÇA

FILHO

BANCA EXAMINADORA:

________________________________________ Prof. Dr. José Glebson Vieira – UFRN

PRESIDENTE

________________________________________ Profa. Dra. Lisabete Coradini – UFRN

ORIENTADORA

________________________________________ Profa. Dra. Michelle Ferret Badiali

MEMBRO EXTERNO

________________________________________

Prof. Dr. Marcos Alexandre de Melo Santiago Arraes – UFRN/UFTO MEMBRO INTERNO

_________________________________________ Prof. Dr. Jesus Marmanillo Pereira – UFMA

MEMBRO EXTERNO SUPLENTE

_________________________________________ Profa. Dra. Eliane Tânia Martins de Freitas – UFRN

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AUTORIZO A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

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AGRADECIMENTOS

À professora Lisabete Coradini, minha orientadora do mestrado. Atenta, paciente e assertiva na orientação, sou muito grato por me receber como seu orientando e por acreditar nesta pesquisa.

À banca examinadora constituída pelos professores Marcos Arraes, Michelle Ferret e Lisabete Coradini. Agradeço por aceitarem o convite e se prontificarem em fazer a leitura do texto. Agradeço aos professores Jesus Marmanillo e Eliene Tânia o aceite em serem suplentes externo e interno da banca examinadora.

À banca de qualificação de mestrado constituída pelos professores Ana Laudelina Ferreira, Marcos Arraes e Lisabete Coradini, pelos apontamentos e críticas que fizeram ao texto da qualificação.

Ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, na figura dos coordenadores do PPGAS, professores Carlos Guilherme e Glebson Vieira, e das secretárias, Gabriela Bento e Geíza Fernandes, pela recepção e disponibilidade nesses dois anos e meio.

Aos professores do Departamento de Antropologia, em especial, Angela Mercedes, Edmundo Marcelo, Francisca Miller, Juliana Melo, Lisabete Coradini e Paulo Victor, pelas aulas no mestrado e na graduação.

Aos professores do Departamento de Ciências Sociais, em especial, Ana Laudelina, Berenice Bento, Gabriel Vitullo, Gilmar Santana, Orivaldo Pimentel, pelas aulas no mestrado e na graduação, correções e contribuições para o pensamento crítico. O pesquisador que sou hoje, em parte, deve-se ao empenho de vocês como professores.

Ao professor (in memoriam) Paulo Braz Clemencio Schettino, pelos encontros, discussões e por amar o cinema. Com você, vi, li e compreendi mais sobre o cinema brasileiro, francês e italiano.

À professora (in memoriam) Leilane Assunção, pelas aulas na graduação, uma grande intelectual e amante de cinema.

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Ao Grupo de Pesquisa Linguagens da Cena: imagem, cultura e representação, pelos debates, trocas e leituras compartilhadas. Agradeço a professora coordenadora do LINC, Maria Helena.

Ao Núcleo de Antropologia Visual, pela recepção de um novo integrante nesses dois anos de mestrado. Agradeço a professora coordenadora do NAVIS, Lisabete Coradini.

Aos amigos da graduação por ainda estarem na minha vida. Em especial a Cristiane e Klécia, que nesses dois anos de mestrado estiveram ao meu lado para saber “as novidades”, e pelo ombro amigo, jantares e sorrisos.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, por possibilitar a participação e publicação em eventos científicos nacionais e internacionais, oferecendo auxílios financeiros.

À minha família. Meus pais, Wilma e Marinaldo, agradeço pela segurança, ajuda e amor dado desde sempre. Minhas irmãs, Mariana e Wilmari, agradeço pela paciência – nem sempre é fácil conviver com um irmão que questiona e desconstrói tudo. Agradeço a Davi, meu sobrinho de três anos: com ele aprendi a brincar, dançar, sorrir, imaginar, inventar e sonhar novamente. Agradeço a minha amada avó, Maria do Socorro, pela torcida e pelas sábias palavras. Meus tios e tias, primos e primas, sou grato pela ajuda quando necessária.

À Neto Dourado, meu companheiro, namorado e cúmplice. É preciso ter coragem para enfrentar o mundo em que vivemos, e você ao meu lado fica mais fácil. Agradeço pelas leituras e correções dos vários textos e artigos – mesmo não entendendo tudo você se empenha em fazer o melhor. Pela paciência nos momentos difíceis dessa trajetória.

Aos filmes dos meus sonhos, que fizeram da minha juventude uma tempestade de sentimentos.

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UMA CIDADE toda paredão. Paredão em volta das casas. Em volta, paredão, das almas. O paredão dos precipícios. O paredão familial.

Ruas feitas de paredão. O paredão é a própria rua, onde passar ou não passar é a mesma forma de prisão.

Paredão de umidade e sombra, sem uma fresta para a vida. A canivete perfurá-lo, a unha, a dente, a bofetão? se do outro lado existe apenas Outro, mais outro, paredão?

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CINEMA, IMAGINAÇÃO E ESPAÇOS POÉTICOS MEMORIAIS: ANTROPOLOGIA DO IMAGINÁRIO NO CINEMA PERNAMBUCANO DE KLEBER MENDONÇA

FILHO

Resumo:

Esta dissertação de mestrado tem por objetivo apresentar o cinema de ficção como acervo antropológico imaginário. Nosso objeto é o cinema pernambucano do diretor Kleber Mendonça Filho e seus filmes Aquarius (2016) e O Som ao Redor (2012). Baseando-se nas discussões propostas por Gilbert Durand e Gaston Bachelard sobre imaginação simbólica, espaços poéticos e temporalidades, propomos investigar como o cinema funciona como um produto de representação e construção da realidade social, que fabrica códigos, símbolos, signos alegóricos, mitos e narrativas. Desse modo, tanto a representação quanto a construção da realidade social produzem o imaginário na sociedade. Discutimos a cidade imaginária como o lugar das representações, de criação de imaginações e de narrativas sociais de predominância espaço-temporal. Nesse entendimento, abarcamos uma perspectiva multidisciplinar de envergadura socio-antropológica afim de interpretar e analisar como os filmes contemporâneos que tratam a cidade do Recife como um lugar de intensas transformações relacionados ao espaço urbano desenvolvem discursos dos espaços poéticos memoriais cotidianos da cidade imaginária e da casa. Nesse sentido, a dissertação tem como base uma pesquisa teórica para empreender o cinema como possibilidade de investigação antropológica.

Palavras-chave: Cinema Pernambucano, Antropologia, Imaginário, Gilbert Durand, Gaston Bachelard.

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CINEMA, IMAGINATION AND MEMORIAL POETIC SPACES: IMAGINARY ANTHROPOLOGY IN THE PERNAMBUCANO CINEMA OF KLEBER MENDONÇA

FILHO

Abstract:

This dissertation aims to present fiction cinema as an imaginary anthropological collection. Our object is the pernambuco cinema of director Kleber Mendonça Filho and his films Aquarius (2016) and O Som ao Redor (2012). Based on the discussions proposed by Gilbert Durand and Gaston Bachelard on symbolic imagination, poetic spaces and temporalities, we propose to investigate how cinema functions as a product of representation and construction of social reality, which produces codes, symbols, allegorical signs, myths and narratives. In this way, both the representation and the construction of social reality produce the imaginary in society. We discuss the imaginary city as the place of representations, the creation of imaginations and social narratives of spatial-temporal predominance. In this understanding, we cover a multidisciplinary perspective of socio-anthropological scope in order to interpret and analyze how the contemporary films that treat the city of Recife as a place of intense transformations related to the urban space develop speeches of the poetic spaces memorials everyday of the symbolic city and the house. In this sense, the dissertation is based on a theoretical research to undertake the cinema as an anthropological research possibility.

Key words: Cinema Pernambucano, Anthropology, Imaginary, Gilbert Durand, Gaston Bachelard.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: afresco O Juízo Final...32

Figura 2: pintura A Persistência da Memória...39

Figura 3: frames do filme Cidadão Kane...47

Figura 4: imagens da exposição fotográfica A história dos nossos gestos...50

Figura 5: frames dos filmes Meu Tio, O Exorcista e UP: Altas Aventuras...52

Figura 6 – frames dos filmes O Sexto Sentido, Psicose e A Princesinha...56

Figura 7 – frames de 2001: Uma Odisseia no Espaço...59

Figura 8 – frames do filme Viagem Através do Impossível...60

Figura 9 – frames dos filmes O Piano, Paisagem na Neblina e Os Infiltrados...66

Figura 10 – frames dos filmes Juventude Transviada e A Última Sessão de Cinema...74

Figura 11 – cenografia urbana em Fortaleza...82

Figura 12 – cenografia urbana em Assunção...83

Figura 13 – cenografia urbana em Brasília...84

Figura 14 – cenografia urbana em Brasília...85

Figura 15 – cenografia urbana em São Paulo...87

Figura 16 – pintura Ruines Antiques...103

Figura 17: cenografia da escadaria da Igreja do Santíssimo Sacramento do Passo em Salvador...104

Figura 18: placa evidenciando o lado histórico e social da Escadaria do Passo...105

Figura 19 – cenografia urbana em São Paulo...108

Figura 20 – cenografia urbana em São Paulo...109

Figura 21: “Torrinha” do Departamento de Psicologia da UFC em Fortaleza...112

Figura 22: Escadaria do Bairro do Bixiga em São Paulo...114

Figura 23: Vista aérea evidenciando intensa urbanização no Recife dos anos 1940-1960...119

Figura 24: distâncias/aproximações entre as “Torres Gêmeas” e Brasília Teimosa...121

Figura 25: Respectivamente, Praia de Boa Viagem e Bairro do Pina no Recife...123

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Figura 27: Marco Zero, Recife Antigo...125

Figura 28: Av. Boa Viagem em Recife...127

Figura 29: frames do filme Aquarius. Dia de festa...140

Figura 30: frames do filme Aquarius. Transição entre tempos...141

Figura 31: frames do filme Aquarius. Armário no quarto íntimo...143

Figura 32: frames do filme Aquarius. Álbuns de família...146

Figura 33: frames do filme Aquarius. Noite onírica...149

Figura 34: frames do filme Aquarius. Sandálias e identidades...151

Figura 35: frames do filme Aquarius. Morte e vida...153

Figura 36: frames do filme Aquarius. Invasores e invadidos...156

Figura 37: frames do filme Aquarius. Fantasma, lembrança e pesadelo...159

Figura 38: frames do filme Aquarius. Câncer e cofre...161

Figura 39: frames do filme Aquarius. Sociedade e corrosão...164

Figura 40: frames do filme O Som ao Redor. Enclaves e cotidiano...168

Figura 41: frames do filme O Som ao Redor. Sepultura...170

Figura 42: frames do filme O Som ao Redor. Vigilância e grades...172

Figura 43: frames do filme O Som ao Redor. Trabalhadores e patrões...174

Figura 44: frames do filme O Som ao Redor. Casa-grande & senzala...176

Figura 45: frames do filme O Som ao Redor. Dor e sangue...178

Figura 46: frames do filme O Som ao Redor. Sandálias e Marias...180

Figura 47: frames do filme O Som ao Redor. Memória e afeto...183

Figura 48: frames do filme O Som ao Redor. Vingança...186

Figura 49: frames do filme O Som ao Redor. Antipatia e crueldade...188

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...14

CAPÍTULO 1 – Imaginação Simbólica: o cinema como acervo antropológico imaginário...24

1.1 Introdução...25

1.2 Imaginação, símbolo e imagem...26

1.3 O tempo, o espaço e o imaginário...37

1.4 O cinema como acervo antropológico imaginário...58

1.5 Conclusões intermitentes...75

CAPÍTULO 2 – Estudos Urbanos: cidade imaginária e os espaços poéticos memoriais...76

2.1 Introdução...77

2.2 A cidade imaginária e os espaços poéticos memoriais...78

2.3 A cidade do Recife...116

2.4 Conclusões intermitentes...128

CAPÍTULO 3 – Antropologia do Cinema: espaços poéticos memoriais na obra de Kleber Mendonça Filho...129

3.1 Introdução...130

3.2 Alegorias fílmicas e imaginários no cinema brasileiro...130

3.3 Pós-retomada no cinema pernambucano...134

3.4 Aquarius e os espaços poéticos memoriais da casa...139

3.5 O Som ao Redor e os espaços poéticos dos enclaves fortificados...166

3.6 Conclusões intermitentes...190

CONSIDERAÇÕES FINAIS...191

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...195

FILMOGRAFIA...204

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Introdução

Desde os primeiros anos da graduação em Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio Grande do Norte1 percebi que a Antropologia me colocava como observador das relações sociais. Me chamara a atenção a particularidade com que tratávamos as pessoas em suas interações cotidianas, os conflitos e os rituais simbólicos cotidianos como parte do cultural. Essa esfera é essencialmente antropológica. No centro dessas vivências e convivências, as representações eram construídas pelo corpo, fala, gestos, respirações. A representação social, então, apareceu como mecanismo das relações sociais. Agora, o que influenciava as representações sociais durante as relações sociais? O elemento da cidade, assim, fincou posição de espaço de representação para a interpretação das relações sociais na pós-modernidade. Paixão antiga, desde os 7 anos de idade, o cinema veio como objeto de pesquisa: pensar as possibilidades do cinema em representar, criar e imaginar relações sociais na estrutura da cidade contemporânea.

No grupo de pesquisa Linguagens da Cena: imagem, cultura e representação tive e tenho a oportunidade de refletir sobre essas questões acadêmicas primeiras por meio de discussões e orientações. Coordenado pela professora e ex-orientadora da bolsa de iniciação científica do CNPq, Maria Helena Braga e Vaz da Costa, meu interesse de pesquisar cidade e relações sociais se consolidou durante a produção de artigos, participações em GT’s, congressos e apresentações de trabalhos2, nos dois últimos anos da graduação na UFRN, além do trabalho final do curso de graduação.

1 A licenciatura em Ciências Sociais na UFRN teve início em fevereiro de 2013 e finalizou em janeiro de

2017, quando colei grau. A defesa do Trabalho de Conclusão de Curso foi defendida e aprovada com louvor em dezembro de 2016, e tinha como título do trabalho “Recife Fílmica: narrativas do espaço urbano e a representação das sociabilidades nos curtas-metragens pernambucanos”. Participaram da banca Maria Helena Braga e Vaz da Costa (orientadora), Lisabete Coradini e Gilmar Santana. Posteriormente, após realizar uma série de modificações, o trabalho foi publicado no Dossiê Cidades Médias da Revista Iluminuras, v. 18, 2017, sob o título de “Memórias, narrativas políticas e dicotomias da cidade: olhares fílmicos sobre Recife-PE”.

2 Para citar dois trabalhos que escrevi e publiquei no período da bolsa de iniciação científica: “O outro e a

arquitetura da cidade: as relações de poder em Um Lugar ao Sol” (Doc On-Line: Revista Digital de Cinema Documentário, v. 12, 2017) e “Documentário Pernambucano de Curta-Metragem: espacialidades e narrativas nos filmes Câmara Escura e A Clave dos Pregões” (Ficção e Documentário: memória e transformação social, UNR Editora, 2016), acompanhados de “Memórias e narrativas híbridas no cinema brasileiro contemporâneo” (XI Seminário de Pesquisa em Ciências Humanas, Editora Edgard Blucher, 2016). Durante a graduação e a pós-graduação participei de alguns GT’s que problematizam a temática Antropologia e Cinema – e no meu objeto de pesquisa, a cidade contemporânea brasileira: Reunião Brasileira de Antropologia (GT: Antropologia do Cinema: poéticas e políticas do audiovisual), Reunião de Antropologia do Mercosul (GT: Antropologia e Cidade, Antropologia e Cinema), IUAES World Congress

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Também, o Núcleo de Antropologia Visual, coordenado por Lisabete Coradini, tornou-se durante o mestrado um espaço de conversas e trocas sobre as questões do espaço, da imagem e das tecnologias sociais de representação do cotidiano. Um momento importante nessa trajetória do mestrado foi o curso Poética das Imagens, ministrado pela professora Ana Laudelina Ferreira Gomes, onde pude conhecer e ler obras de autores como Bachelard, Morin, Durand, Hillman, Corbin, Wunenburger e Ricoeur. É desses espaços acadêmicos e do meu interesse em cinema, cidade e representação que a pesquisa de mestrado se desenvolveu e chegou a se tornar, com o amadurecimento que o tempo pesa sob ela, uma necessidade de questionar, por um ângulo – poético, fenomenológico e imaginal – pouco usual na Antropologia, aquilo que já se tornara senso comum: “o cinema é pura representação”. Ao contrário disto, acredito, como pesquisador na área de cinema e amante da sétima arte, que o cinema é uma forma de pensar e sonhar a realidade. É desse cinema que desenvolvo no texto.

Minha proposta é pensar o cinema de ficção pelo olhar antropológico do imaginário. O desafio é justamente o de pensar algo que é expressão – e representação de ideias e valores – por um olhar científico que tem a empiria e o trabalho de campo como a base motora do desenvolvimento do seu objeto e método. Para isso, busquei referências em diversos campos do conhecimento – Geografia Cultural e Urbana, Filosofia do Espaço, Estudos Culturais, Estética, História e Artes –, para resolver, ainda que timidamente, visões por parte dos antropólogos(as) com os filmes de ficção como objeto de conhecimento antropológico: “mera representação”, “não existe trabalho de campo”, “reprodução da realidade social”, “é produto de apenas um autor”. Os diretores de cinema e a sua equipe de produção, ao representarem as realidades sociais conjugam narrativas e o imaginário sobre ela, e este elemento é, na verdade, o que faz do cinema uma expressão artística cultural de cunho simbólico e social.

(GT: Antropologia do Cinema), Simpósio Internacional Pensar e Repensar a América Latina (GT: Cinema, Filosofia e Representação da América Latina), ALAS Colômbia e ALAS PERÚ (GT: Antropologia Urbana), Congresso Argentino de Antropologia Social (GT: Antropologia do Cinema). Das trocas e aprendizagens desses diversos ambientes, sou grato especialmente às(aos) coordenadoras(es) e participantes dos GT’s que contribuíram em todos esses anos com o desenvolvimento dos meus trabalhos: Ana Luiza Carvalho da Rocha, Cornelia Eckert, Debora Breder Barreto, Fernanda Rechenberg, Olavo Ramalho Marques, Andrea Torricella, Jesus Mamanillo Pereira, Ana Paula Alves Ribeiro, Paulo Braz Clemencio Schettino, Urpi Montoya Uriarte, Luís Felipe Kojima Hirano, Alex Vailati, Carlos Francisco Perez Reyna, Matias Godio, Ana Zonotti, Franco Passarelli e Luiz Gustavo Pereira de Souza Correia.

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Expressão artística cultural de envergadura simbólica pois a sétima arte ressignifica os códigos e as imaginações da vida privada e pública e as ilustra em formato de signos simbólicos nos filmes. Se as alegorias fílmicas são evocadas por estes referenciais da linguística universal, ao mesmo tempo as realidades empregadas pelas representações fílmicas repercutem na construção da realidade social. Desse modo, o cinema será expressão artística de cunho social quando os agentes sociais necessitam auto representar ou representar biografias de vida, histórias e crônicas da vida moderna (CHARNEY; SCHWARTZ, 2004). O verbo expressar, por si só, leva-nos a dimensão da projeção das subjetividades: exprimir, demonstrar, exibir, manifestar, articular.

A atividade da representação do eu – e também dos outros – é reconhecida no campo da atuação, da performance e do ritual, e para além disso, somos culturalmente envolvidos por situações sociais que exigem a administração dos nossos corpos, da auto-ficção e da ilusão biográfica como processos de revelação das identidades culturais (KLINGER, 2006; BOURDIEU, 2006). Tanto Charney e Schwartz quanto Klinger inferem que as artes, seja o cinema ou a literatura, são meios de articulação das expressões artísticas simbólicas e sociais. Como disse, o verbo expressar é a variância da agência dos indivíduos na articulação de representações artísticas simbólicas e sociais.

Então, como conceber um diálogo entre Antropologia e Cinema para pensar a cidade imaginária e os espaços poéticos memoriais? Em nosso entendimento, os espaços poéticos memoriais, que se referem aos espaços do cotidiano, imaginados, afetivos da cidade e da casa, serão uma chave da pesquisa de dissertação, os quais desenvolveremos ao longo do texto. Os Estudos Urbanos consentem pesquisar a cidade como um lugar preexistente às formulações mentais dos sujeitos que vivenciam e praticam o espaço urbano. Possibilitam, por meio do método etnográfico, identificar e compreender as evidências simbólicas, as práticas e as ações de engajamento social. A dicotomia casa x rua invade tanto as imaginações públicas quanto as privadas. Por isso que dei vazão no segundo capítulo para a manifestação da cidade imaginária em nossas imaginações sonhadoras e criadoras de sentidos de significação para os espaços de vivência.

Como tratei da cidade imaginária no segundo capítulo, a cidade dos percursos e das lembranças viajantes que voltam no presente em pensamentos afetivos e espacializantes, o cinema discutido no terceiro capítulo vem falar de uma cidade que é

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pensada como movimento, nas artes e na vida cotidiana. A escolha por dedicar todo um capítulo para falar sobre a Cidade Imaginária é estratégica: enquanto que no primeiro capítulo dediquei atenção especial ao fenômeno da imaginação e dos espaços poéticos no cinema, o entreato tem como objetivo inserir a discussão sobre o urbanismo como fenômeno dos olhares e dos sentidos no espaço urbano. Assim, os Estudos Urbanos nos são tão evidentes – e talvez possa provocar uma ruptura momentânea no discurso da dissertação – no capítulo 2, que mesmo não tratando do cinematográfico, é substancialmente realçado pelo imaginativo e pelo poético.

Já o cinema, arte de linguagem e de narrativa, fabrica imagens simbólicas do espaço urbano, e na mimese das relações sociais cotidianas, remodela no tempo e espaços fílmicos o que entendemos em antropologia por imponderáveis fenômenos da

vida cotidiana. Dessa forma, Antropologia e Cinema são duas áreas de compreensão do

mundo social no qual o ser humano vive e reproduz-se singularmente.

O jogo cênico do cinema de documentário é destacado nos estudos de Antropologia Visual, pois o fenômeno híbrido de representação da vida cotidiana esteve marcadamente enfatizado, com ou sem propósito definido, no primeiro cinema e nos filmes que se seguiram na década de 1920. No cinema de ficção, os filmes traziam na imagem fílmica a imaginação e o sonho por um olhar de representação; a “realidade” no cinema de ficção estaria submetida à linguagem cinematográfica: os movimentos de câmera, a modificação do espaço e do tempo, a montagem das películas, a atuação do elenco, o roteiro engenhoso, o capital milionário investido na produção, divulgação, circulação e exibição, fazia – e faz – do cinema de ficção um cinema de inerente reconstrução e reprodução da realidade.

Entretanto, isso não quer dizer que o cinema de documentário seja uma cópia fiel da realidade, pelo contrário, se levarmos em conta o jogo cênico que o cinema de documentário pode construir ele estará num terreno mais ambivalente que o próprio cinema de ficção. Finalmente, escolhi o cinema de ficção por dois motivos: um é que ele

não se preocupa em refletir a realidade, mas em reconstruí-la, e dois porque o cinema de ficção tem como matéria-prima o fantástico, a imaginação e o sonho. Os dois motivos me

parecem ser sumariamente antropológicos: escolher representar a realidade e trabalhar com elementos da imaginação e do onírico das pessoas e da sociedade.

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No passo desses motivos antropológicos propus alcunhar a potencialidade da imaginação simbólica das imagens poéticas dos filmes que produzem uma realidade pictórica a nível simbólico e social. Nesse sentido, Bachelard (1985, 1993) e Durand (1993, 1997) nos serão canônicos nessa proposição empírica do conhecimento filosófico da imaginação simbólica. Baseando-se na fenomenologia do conhecimento, os dois autores, mestre e pupilo, estabeleceram o que acredito ser de grande contribuição para a ciência livre do “positivismo estabelecido”, que é dar realce aos sentidos da imaginação e empreender o não-situado como possibilidade de investigação antropológica.

A entrada na Antropologia do Cinema de filmes de ficção se deu nesse percurso fecundo do pensamento artístico. Problematizar a imaginação simbólica e os espaços poéticos na leitura de Bachelard e Durand para desenvolver sobre o cinema pernambucano e a cidade do Recife – na relação público/privado – é um procedimento ainda inédito nos estudos de Antropologia e Cinema.

Existe uma aproximação bastante desenvolvida nos estudos de Antropologia da Imagem, Antropologia Visual e Antropologia do Cinema (AUGÉ, 1998; CABRERA, 2006; CANEVACCI, 1990; HIKIJI, 1997) em tratar o cinema como objeto de pesquisa. Em um panorama geral, concordo com Caiuby-Novaes (2009, p. 53) quando ela diz que os filmes de ficção são “documentários preciosos sobre nosso imaginário, sobre nossos valores e aspirações. Como antropólogos e cientistas sociais, interessa-nos o cinema como campo de expressão imagética de nossa realidade social”. Igualmente, analisar e pesquisar filmes de ficção “permite-nos extrair insights sobre problemas e conflitos sociais, avaliar os problemas e as crises sociopolíticas dominantes, medos e esperanças, conflitos ideológicos e políticos do momento contemporâneo”, e também “envolve uma dialética de texto e contexto, utilizando textos para ler realidades sociais e contexto para ajudar a situar e interpretar filmes essenciais de época” (KELLNER, 2015, p. 15). Como se pode conferir inicialmente, o cinema é uma arte do imaginário social.

Na discussão dos Estudos Urbanos, entendo a cidade como um lugar propício para a investigação das práticas complexas na ordem das relações de poder que se formam na dinâmica das trocas estabelecidas nos espaços de interação da cidade imaginária. Os autores dos campos da Antropologia Urbana, Geografia Urbana e Filosofia do Espaço e suas problematizações são redefinidas neste trabalho porque

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elaboram, em modelos de entendimento do mundo social, arcabouços reprodutíveis no campo do cinema. Por isso mesmo, os Estudos Urbanos como área de estudo serviram como embasamento teórico para pensar a cidade projetada na imagem fílmica. A partir da discussão dos Estudos Urbanos infiro que a cidade imaginária do Recife é objeto permanentemente narrado, imaginado e sensível às práticas cotidianas, por isso, é filmada, cantada e pintada. Nesse sentido, a cidade do Recife se faz fílmica, cinemática e imagética, obra esculpida desde há muito tempo em todas formas de arte.

Do outro lado, o cinema de ficção é empreendido como matéria-prima para o esquadrinhamento do desdobramento dos discursos sociais em imagens poéticas dos espaços poéticos memoriais. Um dos objetivos é mostrar estes espaços poéticos memoriais como pungências simbólicas no discurso fílmico, trabalhadas pela linguagem cinematográfica. Neste passo, as análises do discurso e da narrativa fílmica cruzada com a compreensão da imaginação simbólica das imagens poéticas dos filmes que tratam do espaço urbano que entra no âmbito da casa nos aportará na ressignificação do imaginário simbólico da cidade. Neste processo de escolha de obras apurei filmes potentes na imaginação sonhadora de recriação do mundo urbano, especificamente do cinema de Pernambuco da Pós-Retomada.

Recentemente, o cinema pernambucano tem desenvolvido uma problematização a nível artístico sobre temas envolvendo o jogo de classes sociais e as relações de poder na sociedade atual. Se hoje existem novas formas de viver em sociedade produzindo assim configurações de sociabilidades no espaço urbano, os filmes investem parte de suas produções na tentativa de compreender como os fenômenos espaciais estão produzindo comunicações no âmbito da cidade. Efetivamente, a partir das representações fílmicas, as produções audiovisuais constroem discursos das questões espaciais, sonoras, estéticas, simbólicas e políticas do viver na cidade. O que dizem estes discursos fílmicos sobre a cidade e suas múltiplas aparências?

Com efeito, os conceitos basilares para este trabalho são identificadores para uma análise interpretativa da produção audiovisual contemporânea pernambucana, tendo em vista que a cidade está inserida em boa parte do material cinematográfico produzido nos últimos anos no país. Dessa forma, defendo a hipótese de que a produção cinematográfica pernambucana contemporânea da pós-retomada representa e significa

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através dos signos alegóricos e do imaginário simbólico uma série de questões pertinentes para análise fílmica antropológica, que prima, principalmente, pela originalidade do discurso e de sua estética das narrativas da cidade. Duas questões centrais que são mostradas por signos alegóricos e pelo imaginário simbólico são a memória e o afeto em relação à casa como lugar de histórias e os enclaves fortificados.

Nesse contexto, as temáticas presentes nos filmes recifenses são as relações sociais que são regidas por lógicas de poder e capital simbólico. Esse ponto pode ser exemplificado através da representação da categorização dos grupos sociais, quando alguns deles detêm de um capital econômico e cultural elevado, frente a outros grupos que estão historicamente alocados em situações de vulnerabilidade. Por outro lado, as relações de poder ocorrem também nos eventos sociais mais sutis da vida cotidiana, que conseguintemente provocam modificações maiores no plano sistemático da cidade.

É a partir dessas relações evocadas, sobretudo, por interações sociais, que são singulares para uma análise antropológica urbana, que se pode construir uma reflexão dos tecidos sociais urbanos tendo como personagens centrais na manutenção dos processos comunicacionais da cidade os sujeitos que criam e transformam suas realidades ao redor. Estas distinções sociais estão presentes nas imagens fílmicas pela dicotomização espacial dos ambientes: externos x internos, dentro x fora, aberto x fechado, públicos x privados. Em muitos casos, as obras fílmicas para problematizar essas dicotomias espaciais constroem signos alegóricos que se relacionam com os processos históricos e identitários da cultura brasileira, que são marcadas da nossa constituição social e histórica nacional (HOLANDA, 2014; RIBEIRO, 1995).

Nesse ínterim, o problema aqui discutido é a transformação do espaço urbano do Recife pelo alto desenvolvimento imobiliário, que acarreta nas novas formas de comunicação na cidade – desse processo de não-comunicação, não-olhar, não-troca, não-contato, os espaços poéticos memoriais reservam os afetos, as lembranças, os medos, os sentimentos dos sujeitos que praticam-na. De fato, é relevante intimar a dicotomização dos espaços que se fazem afetivos e memoriais para os sujeitos. Ou seja, encontros e desencontros na rua e na casa: os espaços dos sujeitos e os espaços dos outros. Essas imagens simbólicas são fabricadas pelos filmes. Na problemática social, compreender e desenvolver uma interpretação dessa dicotomia do viver e do morar a

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partir do olhar antropológico – do Urbano e do Cinema – reverbera-se na necessidade de interpretação da organização simbólica das arquiteturas espaciais, humanas e estéticas da cidade contemporânea através dos filmes que as utilizam como um fenômeno multicultural e heterogêneo nas suas práticas e nos seus processos sociais.

Contudo, mesmo as dicotomizações a nível infraestrutural, como as de dentro e as de fora, são fluídas e navegações para a imaginação simbólica dos sujeitos; assim, as disposições “dentro” e “fora”, “aberto” e “fechado”, “externo” e “interno”, “público” e “privado”, na imagem fílmica se ressignificam. São esses processos fenomenológicos que discuto nos filmes recifenses da pós-retomada, porque contextualizam essas relações.

Os filmes pernambucanos que filmam a cidade do Recife apresentam as identidades das personagens tendo como referências as espacialidades e sonoridades consequentemente construídas pela especulação imobiliária vigente. Como exemplos, os filmes Aquarius (Kleber Mendonça Filho, 2016) e O Som ao Redor (Kleber Mendonça Filho, 2012) colocam suas personagens no contexto simbólico das paisagens urbanas a fim de relacionar no sentido simbólico e metafórico as espacialidades e sonoridades em partida à constante mutação das cores, sabores, cheiros e poéticas dos lugares do Recife – em uma rua e uma avenida. Nesse aspecto, chegam as colaborações de Bachelard (1988a, 1998, 1988b) e Durand (1993, 1997) para a elaboração de uma interpretação das imagens poéticas e dos espaços poéticos memoriais e das estruturas antropológicas do imaginário em filmes de ficção brasileiros atuais.

Devido à importância política e estética dos filmes pernambucanos em discutir e problematizar questões socioculturais tão emergentes como as relacionadas à modificação do espaço urbano e das interações entre os sujeitos, que o olhar antropológico sobre a produção cinematográfica do Recife é dirigido. O olhar dirigido à Recife precisa levar em consideração que as imagens sobre ela também são objetos do olhar (GOMES, 2013), então se torna primordial conduzir uma análise antropológica visual descolonizada visando o processo de decodificação do imaginário simbólico perpetrado na imagem cinematográfica (SHOTAT; STAM, 2006).

Diante desse contexto central, procuro responder: o que dizem as imagens poéticas em dois longas-metragens do diretor Kleber Mendonça Filho acerca dos

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espaços poéticos memoriais e dos enclaves fortificados, tendo como referência a construção imaginária dos espaços nos lugares de representação de modo a indagar a reestruturação da paisagem urbana e as novas configurações de sociabilidades? Aqui se relacionam também outros temas perpendiculares à problemática da comunicação na cidade contemporânea: a gentrificação, as relações de poder, a identidade cultural e a memória espacial-afetiva. De forma inicial, apontamos que os filmes Aquarius e O Som

ao Redor são exemplos cinematográficos de obras que discutem em seus contextos

fílmicos, respectivamente, os espaços poéticos memoriais e os enclaves fortificados.

Para a pesquisa de dissertação fiz um mapeamento dos filmes de ficção que abordam a construção da imagem fílmica da cidade do Recife. Em seguida, foi realizada a análise fílmica das produções com o objetivo de identificar a representação dos espaços poéticos e a produção do imaginário simbólico da cidade. Assim, a metodologia configura-se no regime de construir uma leitura dos conceitos de espaços poéticos, imaginação simbólica, imaginário social e processos identitários e da memória da cidade recifense na esteira levantada pelos Estudos Urbanos e Antropologia do Tempo.

O mapeamento dos filmes de ficção tem em vista a pesquisa de campo em sites, festivais, mostras, eventos e exibições particulares de filmes recifenses recentes que tratam da esfera urbana da cidade. A partir do mapeamento inicial, os filmes foram agrupados de acordo com as suas narrativas, estéticas, poéticas e sentidos. Nessa primeira etapa, para o mapeamento dos filmes de ficção, foram considerados os filmes lançados entre os anos de 2006 a 2016.

Em seguida, a análise fílmica dos filmes buscou as mensagens escondidas nas narrativas, seguida pela desconstrução do discurso fílmico sobre a fabricação da representação dos pequenos espaços de simbolização cotidianos. Nesse método da mitocrítica de Durand, os schèmes, alegorias, símbolos, imaginários e as representações são destacados do contexto fílmico. Os filmes são analisados em suas narrativas, discursos e estéticas que apresentaram os sentidos de lugares, espaços e memórias.

Visto isso, temos os seguintes procedimentos metodológicos: (1) identificação dos filmes de ficção que discutem internamente em suas narrativas fílmicas urbanas o espaço urbano recifense dentro do contexto simbólico da cidade imaginada do Recife;

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(2) discussão teórica dos conceitos de imaginação, imaginário, poéticas do espaço e memória em filmes de ficção; (3) análise fílmica da estética e do discurso fílmicos dos filmes objeto de investigação; (4) comparação entre as “realidades” fílmicas nos filmes analisados; (5) delimitar e analisar duas obras fílmicas que congreguem as particularidades conceituais apresentadas na discussão teórica.

A dissertação de mestrado está dividida em três capítulos que abrangem campos diferentes – imaginação simbólica, estudos urbanos e antropologia do cinema –, mas que procuram ser complementares na pesquisa. No Capítulo 1 – Imaginação simbólica: o

cinema como acervo antropológico imaginário desenvolvo sobre os processos que levam

as pessoas a narrar e imaginar. A partir das problematizações em torno das temporalidades imaginais e dos espaços de simbolização discuto o conceito de imaginação simbólica para admitir o cinema como uma expressão artística que serve como acervo antropológico imaginário. No Capítulo 2 – Estudos urbanos: cidade

imaginária e os espaços poéticos memoriais, apresento o potencial simbólico e imagético

da cidade – que pode ser imaginada e filmada – que figura em pesquisas antropológicas clássicas e contemporâneas, tratando o espaço urbano, as relações sociais e as memórias da cidade do Recife no contexto histórico-cultural. No Capítulo 3 – Antropologia do

cinema: espaços poéticos memoriais na obra de Kleber Mendonça Filho, fecho a tríade

sobre cinema, imaginação e espaços poéticos memoriais quando abordo dois longas-metragens recifenses como amostras da imaginação criadora e sonhadora da cidade por um viés poético e político. Finalizo dizendo que o cinema é precisamente uma elaboração complexa de representação alegórica e imaginária do mundo e das coisas.

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CAPÍTULO 1 – IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA: O CINEMA COMO ACERVO ANTROPOLÓGICO IMAGINÁRIO

A Aventura (Michelangelo Antonioni, 1960)

“Analisar intelectualmente um símbolo, é descascar uma cebola para encontrar a cebola”. Pierre Emmanuel, em Considération de l’extase.

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1.1 Introdução

O presente Capítulo 1 – Imaginação simbólica: o cinema como acervo

antropológico imaginário desenvolve sobre o cinema como atividade cultural de criação

e representação do mundo e do homem imaginário. A partir de discussões sobre o processo de elaboração da imaginação sonhadora, ou do imaginar como ato de criação, apresento porque o homem é capaz de produzir símbolos complexos que podem significar ideias e pensamentos sobre a realidade social e o contexto cultural em que vive. Nesse aspecto, a imagem projetada serve como elemento que difunde a imaginação no âmbito da representação, instigando signos complexos, como os signos alegóricos, na ordem do discurso e das narrativas fílmicas. Dentro desse ordenamento de ideias, os tempos, espaços e o imaginário são fatores constitutivos para a fabricação de imagens espaço-temporais do imagético, colocando o cinema como instituição que funciona como acervo antropológico imaginário do mundo. Neste capítulo, discuto perspectivas, teorias, métodos e categorias de autores que têm refletido sobre como a imaginação simbólica pode ser um campo de análise socio-antropológica. Esta direção epistemológica direciona para os estudos das imagens simbólicas dos filmes de ficção. Caminhando entre pensadores das diversas áreas do conhecimento – Filosofia, Geografia Cultural, História, Antropologia, Física Teórica, Estudos Culturais, Cinema e Sociologia –, apresento um debate inicial e exploratório da pesquisa de mestrado para dar resolução ao problema de fazer pesquisa antropológica em filmes de ficção. A reflexão sobre a imaginação simbólica, neste caso, coloca-se como uma trajetória teórica para destrinchar um lado ainda pouco definido pela Antropologia Social, que é o cinema de ficção como objeto empírico. A capa do capítulo é o frame daquela que talvez seja a obra-prima do diretor italiano Michelangelo Antonioni, chamada A Aventura. Este filme desenvolve na duração de sua narrativa as ausências e as presenças de um relacionamento amoroso; as imagens do filme poeticamente refletem tempos e espaços internos das personagens. A cena funde o lado metafórico de lidar com sensações humanas que se movem como areia na tempestade, do lado direito, e o sutil afago no contexto da paisagem-semblante, do lado esquerdo. Um cinema simbólico e imaginário!

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1.2 Imaginação, símbolo e imagem

A imaginação simbólica é uma atividade cultural. As formas pelas quais representamos a realidade é fundada em ambientes diversos da construção da imaginação. Imaginar é uma atividade cultural em construção, persuadida pelo contato com os objetos materiais da casa/privado – as mesas, as cadeiras, as camas – e os objetos materiais exteriores da rua/público – os parques, os shoppings, as festas – e os sujeitos ao redor que passeiam entre a casa e a rua – os familiares, os amigos, os desconhecidos. A imaginação simbólica é também motor da construção social da realidade, um ato de transgressão dos eventos da vida social.

Digo que imaginar é um ato de transgressão porque as norma(tiva)s aparecem com o tempo em nossas vidas a fim de regular a imaginação, no sentido da atividade cultural, para dar lugar as formas diretivas da vida social que condicionam os sujeitos a seguirem determinações imaginativas. Sendo assim, nossa imaginação pode ser sonhadora e criadora: ela pode imaginar livremente, sem assédio do pensamento restritivo; e pode projetar imaginações baseadas nas cosmologias pessoais e coletivas. A imaginação engendra o pensamento.

Como procedimento reflexivo para nosso estudo das imagens, a imaginação simbólica nos move enquanto atores do pensamento e produtores de interpretação social. Assim, imaginar é atividade de agenciamento do pensamento libertador dos sujeitos, uma porta para adentrar nos sonhos, desejos e anseios. Imaginar é criar, inventar, crer, supor, compor, reordenar, ressignificar, vislumbrar, presumir, fantasiar, verbalizar e, por ironia, imaginar. É verbo potente do pensamento e da mente humana, sendo vocábulo da ação, e por ela imagina o mundo.

Parece, nestes termos, que a ação do imaginar, enquanto etapa da atividade cultural da imaginação é de fato um nível da praxis da expressão humana presente nos diversos campos da produção simbólica, como nas artes plásticas, na performance e nos rituais simbólicos (TURNER, 2008). Da mesma forma, a imaginação simbólica é a expressividade da sensibilidade humana em orientar-se, a partir de elementos complexos gerais em contextos culturais como os mitos, na interação com a realidade social. A imaginação simbólica constitui-se como uma atividade cultural na

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contiguidade com os elementos objetivos e subjetivos da realidade social, que carregam por si só sentidos da construção da imaginação: somos tocados e tocadores da realidade, confluência de uma via dupla de direções imaginativas.

É neste ponto que compreendo que a consciência busca representar o mundo e as coisas. As expressões que as pessoas adotam para representar o mundo – e também os segredos guardados da consciência – são por meio de imagens criadas para simbolizar as marcas sensíveis daquilo que nos incomoda. É na sensibilização que os sujeitos investem naquilo que fazem deles seres culturais, estéticos e políticos. Esta representação da consciência se dá na consecução de imagens que representam as marcas sensíveis, como as memórias e os sonhos, na presença do ordenamento sensível, acumulado nas expressões artísticas, nos rituais, nas execuções cotidianas, o lado pouco provável de análise, o imaterial escondido na materialidade.

Para Gilbert Durand (1993), antropólogo fenomenológico que discute o potencial da imaginação simbólica na criação de atitudes geradoras de sentidos da realidade, o simbolismo possui um vocabulário. Os processos de construção das estruturas antropológicas do simbolismo congregam atividades motoras da fabricação do imaginário simbólico através de abstrações que dificilmente são inteligíveis do ponto de vista das pessoas. Dito de outro modo, as estruturas antropológicas do simbolismo, que leva às estruturas antropológicas do imaginário, não são compreensíveis no senso comum, muitas vezes elas estão impregnadas em narrativas cotidianas que estão dentro do contexto social em toda a sua complexidade de comunicação, ressignificação e criação de códigos e signos dos grupos.

Para chegar às estruturas antropológicas do imaginário preciso desvendar o vocabulário do simbolismo, suas ausências e suas permanências na imaginação simbólica. Durand (1993, pp. 82-87) define duas formas de elaboração da expressão do simbolismo na vida das pessoas: a primeira é de nível pedagógico e a segunda de nível

cultural. Para esta pesquisa adoto a definição de nível cultural, que “fornece [...] uma

linguagem simbólica já universalizável” quando elementos de forças de coesão contrárias “constituem espécies de substantivos, simbólicos polarizados por um par de padrões culturais facilmente decifráveis” (DURAND, 1993, p. 90). No nível cultural de expressão do simbolismo impera dois planos de circunscrição: um sobre as atitudes do

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corpo, e o outro das representações da sociedade. Desta última, das representações da sociedade, retiro o jogo de relações com as imagens simbólicas dos sujeitos que participam da construção do imaginário simbólico.

Então, tenho como proposta salientar o nível cultural das representações da sociedade – tudo aquilo que é projeção e que parte do ser humano, dos signos complexos aos gestos corriqueiros da vida cotidiana moderna. Como as abstrações não são inteligíveis do ponto de vista das pessoas, representamos o mundo por signos complexos, como as alegorias, que promovem a abstração de pensamentos não situados diretamente na realidade social. Logo, as imagens alegóricas são reminiscências das tentativas da consciência em admitir uma acepção abstrata de um pensamento ontológico. A alegoria subscreve nas entrelinhas do simbólico o inteligível.

Nesses termos, “a alegoria é tradução concreta de uma ideia difícil de compreender ou de exprimir de uma maneira simples. Os signos alegóricos contêm sempre um elemento concreto ou exemplificativo do significado” (DURAND, 1993, p. 9, grifo do autor). Aqui, procuramos estabelecer diálogo com a definição de signos alegóricos proposta por Durand, pois suas ideias acentuam a relação com o estabelecimento das alegorias enquanto traduções da realidade não objetivas do pensamento, fluídas da imaginação, e os signos como campos para a figuração de partes da realidade3. A análise das alegorias será melhor trabalhada em outro momento4, principalmente para que possamos revelar o discurso social contido nas narrativas fílmicas de filmes urbanos que tratam do aspecto da memória e do afeto.

3 Carlo Severi (2017, p. 224) assevera a etnografia da tradução “como uma chance para observar as

dinâmicas dos processos de pensamento, e para estudar como elas operam, tanto na adaptação a restrições quanto na exploração de possibilidades, em diferentes contextos culturais”. Sua metodologia de etnografia da tradução do pensamento se baseia na identificação de seres transmutantes na prefiguração de narrativas audiovisuais alegóricas do sentido simbólico de culturas indígenas amazônicas, em trançados (entre os Yekuana), iconografias (entre os Wayana) e músicas (entre os Wayampi). O objeto da tradução é sempre a relação intuitiva entre grupos de sons, palavras e imagens. A hipótese do autor é de que “poderíamos passar de uma oposição abstrata entre ‘pensamento’ (definido como racionalidade e categorização) e ‘linguagem’ (essencialmente definida como padrões gramaticais) ao estudo de um conjunto múltiplas relações entre formas de cognição (relacionadas, por exemplo, à ação ritual e ao pensamento visual) e formas intralinguais, interlinguais e intersemióticas de tradução” (SEVERI, 2017, p. 254).

4 No capítulo 3 trataremos de analisar o discurso fílmico a partir dos signos alegóricos nas mensagens

fílmicas. As alegorias do subdesenvolvimento, traço perene no cinema brasileiro, é uma chave para problematizar acerca das questões de ordem socio-antropológicas e históricas nas imagens fílmicas.

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Decifrar o fragmento do símbolo inserido num contexto de imaginação simbólica é parte da reconstituição antropológica dos mistérios que circundam a consciência humana. Por isso procuro analisar o símbolo para descobrir o surgimento das

imagens sobre a realidade social, tornando-se necessário considerar hermenêuticas que

reduzem o sentido do símbolo. Acreditando não ser possível resumir a imagem a um sintoma sexual recalcado no inconsciente biográfico do indivíduo – apesar de reconhecer a psicologia freudiana na abertura dada a história e à biografia do sujeito para a manutenção dos sentidos simbólicos –, e contrapondo-se à análise do traumatismo edipiano que não se reproduz em todos os casos humanos, Durand (1993, p. 44) defende que “as relações sociais estão sobrecarregadas de símbolos, são acompanhadas no seu mais íntimo pormenor por todo um cortejo de valores simbólicos” que falam sobre os mistérios traduzidos por signos alegóricos na vida cotidiana.

O fragmento do símbolo existente nos signos alegóricos tem muito a dizer, como já afirmei, sobre a realidade social. As memórias, as histórias e os afetos pessoais, quando guardados por muito tempo, encontram maneiras de ser representados sem precisar se apresentar. Os mitos são uma dessas tecnologias simbólicas universalizáveis de representar elementos culturais imateriais. As imagens, neste seguimento, conservam os signos alegóricos para dizer a respeito das marcas sensíveis, que são pessoais, mas influenciadas pelo coletivo e pelo cultural. Numa perspectiva dialética, as representações por mais que sejam atividades do pensamento são representações do coletivo, dado que o pensamento dialoga afirmativamente com pensamentos abrangentes. Este jogo de interações do pensamento se processa em contextos específicos dos relacionamentos sociais cotidianos e da contemporaneidade, sendo este um dos elementos subjetivos da construção social da realidade (BERGER; LUCKMANN, 2014).

De fato, não posso requerer uma dinamicidade estrutural ao pensamento representado por signos alegóricos, isso porque o pensamento se confunde com outros elementos ativadores da representação, como os signos e as narrativas míticas. Por outro lado, desenvolvi com melhor precisão sobre a construção da representação do

pensamento em signos alegóricos a partir das imagens simbólicas em filmes brasileiros

que tratam do aspecto do espaço afetivo, das memórias e das biografias de vida. Assim, neste momento não há interessa em identificar como o pensamento se transforma no

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processo de representação por signos alegóricos, tarefa inclusive arrolada por Durand em seus livros, mas sim o conteúdo edificado nas imagens simbólicas que falam sobre a potência motora da remodelação do pensamento. Feito isso, adentro por outro ângulo na trajetória antropológica das imagens e dos efeitos que dela decorrem.

Admito, junto de Durand (1993, p. 55, grifo do autor), que “para a consciência humana, nada é simplesmente apresentado, mas tudo é representado”. Nesse dilema, para estudar o símbolo só será possível pensar a expressão que ele projeta, sua fisionomia, oculta nas narrativas e no discurso, uma comunicação não-objetiva do pensamento, difícil de ser compreendida e mais elaborada do ponto de vista da perspectiva cientificista positiva. Nesse ensejo, chamaremos de projetista da imagem

simbólica o diretor de cinema5.

Com a intenção de meditar quanto a remodelação do pensamento através da confecção de realidades imaginais, a influência capitalizada de Henry Corbin e sua perspectiva histórico-filosófica na obra de Durand atravessa o campo da literalidade com que este segundo trata das questões da análise do símbolo. Para Corbin, a imaginação criadora é objeto de uma série de narrativas simbólicas inquietantes do consciente que fabrica visões múltiplas sobre a dada realidade apreendida. Uma imaginação ativa perscruta o universo perceptível pelos sentidos: acontecimentos visionários, histórias simbólicas compartilhadas, visões de Teofania, são alguns dos exemplos possíveis.

Dessa forma, a imaginação e a experiência espiritual são base para o mundus

imaginalis, que carrega a noção de alegoria, sendo esta “uma operação racional que não

implica a passagem para outro plano de ser ou para outro nível de consciência; é a figuração, em um mesmo nível de consciência, do que poderia muito bem ser conhecido de outra maneira6” (CORBIN, 1993, p. 26, tradução nossa).

5 Em parceria dos diretores de fotografia, arte, edição e o elenco, o diretor de cinema constrói um mundo

fantástico, uma realidade imaginada, uma imagem simbólica sobre os fenômenos sociais da vida social. Para efeito de nomeação, usaremos o termo projetista da imagem simbólica como referência para o indivíduo que em articulação com outros departamentos do cinema, constrói a imagem fílmica, e que projeta apenas uma minúscula e expressiva substância dos tempos e dos espaços sociais enquadrados pela câmera cinematográfica.

6 Tradução de: “una operación racional que no implica el paso a otro plano del ser ni a otro nivel de

conciencia; es la figuración, en un mismo nivel de consciencia, de lo que muy bien podría ser conocido de otra forma”.

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Noutro ângulo, Paul Ricoeur (1987) estabelece diálogo com a teoria da interpretação para desenvolver análise sobre a complexidade externa dos símbolos quando estes estão a “serviço” da metáfora. Em seu parâmetro, “a opacidade de um símbolo relaciona-se com a radicação dos símbolos em áreas da nossa experiência que estão abertas a diferentes métodos de investigação” (RICOEUR, 1987, p. 69). Melhor dizendo, o simbólico não pode ser lido pelo conceitual, mas pela escrita dos seus desenhos metafóricos, na produção dialógica das imagens. A teoria da interpretação de Ricoeur nos auxilia na reflexão sobre as orientações do campo do símbolo enquanto metaforização da realidade social; este fato é, em nossa opinião, um dos instigadores plenos do combustível da imaginação simbólica, pois a metáfora tem como função gerar significantes para os signos simbólicos no contraste das imagens que se interseccionam na produção de sentidos. O contraste resultante do contato entre as imagens simbólicas cria reações poderosas na dimensão afetiva, onírica e social nos leitores das imagens.

Para Durand (1993), uma didática para o surgimento da imaginação simbólica pode ser concebida se tomarmos como prerrogativa a existência nas imagens de um dinamismo antagônico. Isso quer dizer que a função simbólica no ser humano é a reunião dos contrários que se encontram para expressar entendimento das coisas do mundo, fazendo com que a representação do consciente por signos alegóricos se confirme naquilo que chamou de Weltbild.

Este dinamismo antagônico das imagens permite assinalar grandes manifestações psicossociais da imaginação simbólica e da sua variação no tempo. O desenvolvimento das artes, a evolução das religiões, dos sistemas de conhecimento e dos valores, os próprios estilos científicos, manifestam-se com uma regularidade alternante que foi assinalada há muito tempo por todos os sociólogos da história da cultura (DURAND, 1993, p. 76).

Como grandes sistemas de imagens, o Weltbild é nutrido pelo acervo da memória do mundo, dos processos socio-históricos da humanidade, por rupturas dos paradoxos em contextos de intensa essencialização das identidades culturais. Os grandes sistemas de imagens são organizados em dois regimes para a concretização do simbolismo: o diurno e o noturno. Para Durand (1997), o diurno é o lugar das imagens opositoras, instáveis em razão de sua inerente contraposição existencial; o noturno, por sua vez, é o lugar da harmonização dos contrários, união dialógica das ideias. Desse modo, um será a luz, que clarifica as posições, e o outro a noite, que torna apaziguadas

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as diferenças. As imagens sociais, construídas nesse enquadramento de compreensão do mundo – como também de desencantamento do mundo pelo racionalismo científico, como diria Max Weber –, transformam-se em marcadores históricos da experiência humana com os sentimentos: amor, dor, raiva, rancor, ódio, sofrimento, dúvida7.

Figura 1: afresco O Juízo Final (Michelangelo, 1535-1541).

Fonte: Inforescola.com.br.

7 As expressões culturais clássicas como a Literatura, a Música, o Teatro, as Artes Plásticas e, mais

recentemente, o Cinema (há pouco mais de 120 anos), construíram grandes sistemas de narrativas da humanidade, utilizando como objetos de elaboração psicológica os sentimentos e as sensações humanas. Alguns exemplos podem ser citados, em referência a estes campos da expressividade artística humana que exploraram a nível de complexidade a dimensão do simbólico na fabricação de representações – visuais, sonoras e escritas – a condição humana: na literatura, Crime e Castigo (Fiódor Dostoiévski, 1866); na música, Sinfonia n. 9° (Ludwig van Beethoven, 1824); no teatro, Romeu e Julieta (William Shakespeare, 1597); nas artes plásticas, Mona Lisa (Leonardo da Vinci, 1506); no cinema, Viagem à Lua (Georges Méliès, 1902).

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A Figura 1 mostra um exemplo notável nas artes plásticas, que conseguiu com maestria ressaltar duas dimensões simbólicas da experiência imaginária humana: o céu e o inferno no travamento do juízo final. Para além do contexto religioso e político do período em que fora concebido, os contrários, neste afresco de Michelangelo, de 1541, corrobora como as luzes no centro para o alto e a escuridão no baixo vêm a acrescentar à significação da obra a posição dos salvos e dos perdidos, dos imaculados e dos pecadores, e no centro, a poderosa presença de uma personagem que destila penitência e autoridade às almas em julgamento. Na parte inferior, os barcos levam os desalmados para o inferno, mostrando um clima catastrófico em ambiente profano. Essa imagem pictórica de Michelangelo rememora a obra literária de 1531, do português Gil Vicente, alegoria dramática chamada Auto da Barca do Inferno, que representa igualmente o julgamento de almas; antes disso, em 1472, o italiano Dante Alighiere, em sua essencial

A Divina Comédia, traz em poema épico a epopeia teológica em três atos: o Inferno, o

Purgatório e o Paraíso. As imagens poéticas do julgamento divino, nestas três obras, mostram como as imaginações são formalizadas, mesmo esteticamente, em suas linguagens: das artes plásticas a literatura clássica. A arte é uma das formas de se atingir o sobrenatural, o sonho e a imaterialidade dos sentimentos e das imaginações sonhadoras das pessoas. Os signos alegóricos construídos nas obras de Michelangelo, Vicente e Alighiere refletem noções oníricas para as paisagens imaginárias humanas.

Nesse lócus do símbolo, o conceito de arquétipo como “uma forma dinâmica, uma estrutura organizadora das imagens, mas que transvaza sempre as concreções individuais, biográficas, regionais e sociais, da formação das imagens” (DURAND, 1993, p. 56) me permite elaborar uma aproximação com a criação de imagens fílmicas que apresentam contornos das estruturas antropológicas do imaginário. A utilização do conceito de arquétipo para os estudos das imagens simbólicas enseja avistar uma concepção totalizadora do mundo que fala sobre as ações sociais repetidas, ressignificadas e reificadas pelo imaginário social, colocando “o símbolo como a explicação da estrutura do arquétipo” (PITTA, 2005, p. 17).

Nesse cenário, a intenção ontológica das realidades naturais arquetípicas na obra de Corbin chama a atenção para o aspecto da dualidade de localizações diferenciais: “(a) a natureza fundamental do arquétipo é acessível primeiro à imaginação e

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apresenta-se primeiramente como imagem, de tal modo que (b) todo o procedimento da psicologia arquetípica como um método é imaginar” (HILLMAN, 1988, p. 24)8. Em se tratando do exposto acima, o arquétipo é duplamente concebido em estruturas culturais de produção do imaginário social, delegando à imaginação a atuação de desfossilizar imagens em regimes severos de guarda noturnas.

O advento das imagens estáticas como as fotografias trouxe uma nova forma de registrar a realidade no corrimento do século XIX. Na base das artes plásticas, dos retratos de famílias, dos registros de eventos históricos, os estudos de Peter Burke (2017) apontaram que ocorreram uma série de mudanças em relação aos usos e a divulgação de imagens durante os séculos XIX e XX. Só para citar no âmbito da imagem impressa, ele destaca as tecnologias de gravura em madeira, entalhe, gravura em água-forte etc.

A mudança estrutural nos regimes de visibilidade da modernidade, trazida pela imagem fotográfica, mecanismo de registro dos(as) primeiros(as) antropólogos(as) de campo, vem a se tornar com maior ênfase por sua disponibilidade no começo do século XX como a referência para o modelamento da realidade social. A fotografia é um fato, uma revelação da situação social esculpida no espaço geográfico: o cenário, as pessoas, o estilo, a luz penetrando o ambiente, é “tudo realidade”. Este novo regime de visibilidade sacralizou espacialmente o instante onírico que retrata a fotografia.

Para Andre Bazin (2018, p. 32), “a objetividade da fotografia lhe confere um poder de credibilidade ausente em qualquer obra pictórica. [...] Somos obrigados a crer na existência do objeto representado, [...] tornado presente no tempo e no espaço. A fotografia se beneficia de uma transferência de realidade da coisa para sua reprodução”. Se a fotografia registra os desenhos findáveis do quadro cênico do ambiente, o cinema “vem a ser a consecução no tempo da objetividade fotográfica. O filme não se contenta mais em conservar para nós o objeto lacrado no instante. [...] Pela primeira vez, a imagem das coisas é também a de sua duração, qual uma múmia da mutação” (BAZIN,

8 Devo deixar claro não ser a proposta aprofundar na psicologia arquetípica de Hillman ou na psicanálise

de Freud, primeiro porque nossos estudos não têm a base teórica necessária para tal empreitada, e segundo, pois, estamos tentando definir um lugar de reflexão sobre a imaginação simbólica na obra central de Durand. Invés disso, problematizamos, com certo entusiasmo, acerca dos autores que fazem revelações consideráveis no âmbito da imagem, e de sua trajetória antropológica, como fizeram Hillman, Ricoeur e Corbin.

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2018, p. 33). Dizendo dessa posição de análise, o cinema requer daquele que olha e observa as imagens em movimento, a atenção total na temporalidade de sua duração.

A imagem pode ser nebulosa, descolorida, sem valor documental, mas ela provém por sua gênese da ontologia do modelo; ela é o modelo. Daí o fascínio das fotografias de álbuns. Essas sombras cinzentas ou sépias, fantasmagóricas, quase ilegíveis, já deixaram de ser tradicionais retratos de família para se tornarem inquietante presença de vidas paralisadas em suas durações, libertas de seus destinos, não pelo sortilégio da arte, mas em virtude de uma mecânica impassível; pois a fotografia não cria, como a arte, eternidade, ela embalsama o tempo, simplesmente o subtrai à sua própria corrupção (BAZIN, 2018, p. 33).

No final do século XIX, vem o cinema e suas imagens em movimento, produzindo um olhar dinâmico, espaço-temporal modificado, quase uma experimentação onírica da realidade vivida. Com o desenvolvimento da tecnologia de reprodução das imagens – tanto estáticas como a fotografia, quanto as em movimento como o cinema –, o traquejo com o registro e sua rápida divulgação, acarretaria, no alvorecer do século XX, uma virtualização no consumo das imagens-réplicas das obras de arte. Walter Benjamin (1983) chamou esse processo de a perda da aura na obra de arte em ensaio clássico a obra de arte na era de suas técnicas de reprodução.

Com pessimismo sobre as imagens-réplicas, sobretudo no campo do cinema e sua potência em inventar a vida moderna por discursos míticos de esclarecimento do mundo, Theodor Adorno e Max Horkheimer (1985, p. 25) afirmaram em seus fragmentos filosóficos:

A abstração, que é o instrumento do esclarecimento, comporta-se com seus objetos do mesmo modo que o destino, cujo conceito é por ele eliminado, ou seja, ela se comporta como um processo de liquidação. Sob o domínio nivelador do abstrato, que transforma todas as coisas na natureza em algo de reproduzível, e da indústria, para a qual esse domínio do abstrato prepara o reproduzível, os próprios liberados acabaram por se transformar naquele “destacamento” que Hegel designou como o resultado do esclarecimento.

Os símbolos iconográficos contidos nos dispositivos fotográficos e cinematográficos mostrados acima não perdem seu poder em remodelar, por sua representação imagética, a vida moderna. Também não perdem seu sentido simbólico em consagrar uma imagem transformada em sistema de comparação universal. Por isso, Durand (1993, p. 103) desvela os símbolos iconográficos como instauradores de uma significação, e nas circunstâncias de sua reprodução, “permitiam uma confrontação

Referências

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