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Diogo Álvares Caramuru e os primórdios da evangelização no Brasil

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Academic year: 2021

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e os primórdios da evangelização no Brasil

AMADEU TORRES*

1. As solenes e a muitos títulos notáveis comemorações dos 750 anos da concessão do Foral, por D. Afonso III, à póvoa de Viana em 18 de Junho de 1258, à «mea popula» de acordo com a expressão do Bolonhês no vetusto documento notarial, indirecta mas naturalmente coadjuvadas pelo programa Polis que mo-dernizou a então já vila que D. Maria II elevou a cidade de Viana do Castelo há 162, multiplicaram os festejos, oficiais e populares, entre os quais a magnífica efeméride anual do dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portugue-sas, com a presença do Chefe do Estado, e um inolvidável Cortejo Histórico. Terminou esse ano incomum de 2008 com uma vasta multidão de milhares de pessoas ovacionando, não sem uma taça de champanhe, à meia noite de 31 de Dezembro para 1 de Janeiro de 2009, a publicação da edição crítico-anastática da Epopeia ou Os Lusíadas do Brasil que é o CARAMURU1, e a inauguração do

monumento à gloriosa memória do mais célebre vianês de todas as épocas, Diogo Álvares ou, consoante o último decassílabo do Canto X com que Frei José de Santa Rita Durão finaliza o dito Poema, «Diogo Álvares Correa, de Vianna», mais conhecido por Diogo Álvares Caramuru, o apodo gentílico que o imortalizou na vida, na história e na literatura.

* Professor catedrático jubilado da Universidade Católica Portuguesa e da Universidade do Minho.

1 Cf. Caramurú. Poema épico do Descobrimento da Bahia. Composto por Fr. José de Santa Rita Durão, da Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho, natural da Cata-Preta nas Minas Gerais. Lisboa, Na Régia Officina Typografica, Anno MCCLXXXI. Com licença da Real Meza Censoria [307 pp.]. Vd. também Amadeu Torres, Caramuru – Poema épico do Descobrimento da Baía, edição crítico-anastática, Viana do Castelo, Câmara Municipal, 2008 [596 pp.].

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Ao declará-lo natural de Viana, Santa Rita Durão baseia-se, tal como nou-tras passagens, em Simão de Vasconcelos, na Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil2, o qual, como jesuíta que era e reitor que fora do Colégio da sua

Ordem na Baía, devia estar suficientemente informado. Terá nascido cerca da última década do século XV e tomado o nome de Diogo Álvares, patronímico este bastante vulgar no burgo e na região. Quanto ao sobrenome Correa, cujo hiato originou espontaneamente a ditongação para Correia, a opinião mais geral é de que se tratará de um acréscimo operado em terras brasilianas e não algo originário. O facto de Gabriel Soares de Sousa registar Correa, nada prova em contrário, pois se refere ao Diogo Álvares habitante na Baía de Todos os Santos. Contudo, o apelido Correa, embora raro na região minhota, é detectá-vel contemporaneamente ao nosso herói, como se pode verificar em estudo já publicado3.

Um grupo de utópicos da Corunha, em conluio com emigrantes da Galiza na Baía suam as estopinhas para rotulá-lo entre os seus, baseados no literalismo ambíguo de «galego-língua», isto é, «intérprete minhoto», usado pelo donatário de Porto Seguro, Pedro do Campo Tourinho, em carta a D. João III, de 1546, ignorantes da região dos povos galaicos e do nome desde há séculos aplicado a todos as gentes do Minho, sem exclusão da portuense, do que dá bem conta o autorizado historiador brasileiro Francisco Adolfo de Varnhagen. De resto, há documentação claríssima em que ele é chamado português, com todas as letras4.

1.1. Terá embarcado, pelos seus 17-18 anos, possivelmente em naves francesas, que em portos portugueses e espanhóis complementavam não raro as tripulações5, e naufragado junto à foz baiana do Rio Vermelho. Resgatado

dos rochedos coberto de limo e musgos como uma moreia, puseram-lhe o nome desse peixe, isto é, Caramuru. Guardado com alguns companheiros para engorda e sucessivo banquete antropofágico, valeu-se do bacamarte que

2 Cf. Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil e do que obraram seus filhos n’esta parte do

Novo Mundo. Em que se trata da entrada da Companhia de Jesu nestas Partes do Brasil, dos Fundamentos que n’ellas lançaram e continuaram seus religiosos, e de algumas noticias antecedentes, curiosas e necessarias das cousas daquelle Estado, Lisboa, A. J. Fernandes Lopes [1.ª ed., 1663], 2.ª ed. de 1885, pp. 25 ss.

3 Cf. Amadeu Torres, «“Diogo Álvares Correa, de Vianna”, e o fruste esgrimir de um artigo outonal», in A Aurora do Lima, Viana do Castelo, de 5 e 12 de Fevereiro de 2010. Quanto a Gabriel Soares de Sousa, cf. Notícias do Brasil. Descrição verdadeira da costa daquele Estado que pertence à coroa

do Reino de Portugal. Sítio da Baía de Todos os Santos, 4.ª ed., Lisboa, Publicações Alpha, 1989, pp. 33

e 76. Esta obra, divulgada em cópias desde 1587, só saiu a público muito mais tarde.

4 Cf. «O Caramuru perante a história», in Revista Trimestral de Historia e Geographia ou Jornal

do Instituto Historico e Geographico Brasileiro, Rio de Janeiro, 1848, pp. 120-152.

5 Cf. Teodoro Sampaio, História da fundação da cidade de Salvador, Salvador, Tipografia Benedi-tina, 1949, p. 159.

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ardilosamente sacou da nau, para com tiro estrondoso acalmar os indígenas e impor-se a eles, estarrecidos de medo, como um semideus, dono do fogo e do trovão, o que na verdade conseguiu, ascendendo a senhor e protector supremo daquelas paragens e gentes.

Apesar do convívio inicial com muitas índias e da numerosa descendên-cia originada, cortou ao fim de alguns anos com tal procedimento e constituiu família escolhendo a mais bela moça da tribo dos tupinambás, filha do seu grande chefe, a qual em Saint Malo, ao receber o baptismo, ficou com o nome de Catarina, registada Catherine du Brésil.

Com efeito, amigo de espanhóis e sobretudo de franceses, que aportavam ali nomeadamente em busca da madeira vermelha ou pau-brasil, embarcou com sua amada Paraguaçu num navio destes, quiçá dos Cartier, rumo ao famoso porto francês de longas rotas. Deu-se o baptismo desta em 30 de Julho de 1528; a madrinha, Catherine des Granches, era esposa de Jacques Cartier, descobri-dor do Canadá6. Santa Rita Durão, com a liberdade que lhe concedeu a poesia,

colocou o baptismo e casamento na corte de Henrique II e Catarina de Médicis; outros aventaram, afinal sem base, que tal nome ela tomou por homenagem à rainha D. Catarina, consorte de D. João III.

O regresso, diz-se que com os porões guarnecidos de artilharia para sua supremacia reforçada entre os índios, sucedeu talvez nos finais desse ano ou princípios de 1529, dado que grassava a peste nas redondezas. O que é certo é que em 1531 recebe com grandes honras, em colaboração com os nativos, a Pedro Lopes de Sousa e Martim Afonso de Sousa, em rota para S. Vicente, no Sul; em 1536 a Francisco Pereira Coutinho, o primeiro e pouco feliz donatário da Baía; em 1549 a Tomé de Sousa, incumbido de estabelecer o governo-geral por sobre todas as donatarias e fundar a primeira capital do vastíssimo território, que o foi até 1763, data em que o Rio de Janeiro lhe sucedeu na primazia.

1.2. Esta grande armada precedeu-a uma expedição de duas caravelas capitaneadas por Gramatão Teles, com o objectivo de preparar a Baía para tal recepção, o qual, segundo parece, foi portador de uma carta de recomendação de D. João III para Diogo Álvares, que trata como cavaleiro da Casa Real. Em-bora duvidosa para alguns, é aceite por outros dado que seria incompreensível o monarca enviar altos responsáveis para contactarem ninguém, ou não se dirigirem a uma personalidade de tamanho prestígio e poder, com certeza bem admirada na corte desde as notícias lá contadas por Pero Lopes de Sousa e outros. Sobeja razão cabe a Moniz Bandeira quando escreve: «Muito sentido não fazia (…) comunicar aos moradores a próxima chegada do governador-geral se não

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lhe desse [a Gramatão Teles] uma mensagem escrita para aquele homem que notoriamente lá habitava havia quatro décadas e exercia considerável influência sobre os índios. Os acontecimentos em seguida pareceram também confirmar o seu cumprimento por Diogo Álvares»7, a quem em 1553 notavelmente honrou

o Governador-geral, prestes a regressar ao Reino, ao nomear cavaleiros os seus três filhos Gaspar Álvares, Gabriel Álvares e Jorge Álvares, bem como o seu genro João de Figueiredo Mascarenhas, distinções logo reconhecidas pelo Rei em 1554.

Atente-se finalmente que de Diogo Álvares Caramuru, o nobre fidalgo vianense que deu impulso à brasilidade, e da princesa índia Catarina Álvares Paraguaçu, a «mais antiga figura feminina da história do Brasil» no sentir de Pedro Calmon, e «símbolo do congraçamento racial», tomaria vulto «a célebre Casa da Torre, berço da aristocracia do Recôncavo baiano e de famílias do vastíssimo território, com prolongamentos em cortes europeias e até na Casa Imperial brasileira».

«Por tudo isto quem passar pela Baía suba à Igreja de Nossa Senhora da Graça, o primeiro santuário mariano das Américas, que em 1586, ao falecer, Pa-raguaçu legou, com os terrenos anexos, à Ordem de S. Bento, e onde repousam os seus restos mortais»8; ou ao Mosteiro de Jesus, nome que ao tempo se dava

ao Colégio e Igreja dos padres da Companhia, e hoje é a Sé Primaz do Brasil, onde ficou sepultado (1557) Diogo Álvares Caramuru que no testamento dotou a Companhia com «a metade da terça», como escreve o P. Manuel da Nóbrega ao P. Miguel de Torres em 8 de Maio de 1558, da Baía, saudoso de um amigo que muito os ajudou e com invulgares atenções os distinguiu9.

2. Entre os primeiros missionários que, sob o regime do Padroado, puseram pés nas terras do Ultramar português, desde a África ao Brasil até às Índias, estiveram inquestionavelmente os franciscanos. Pero Vaz de Caminha, na sua Carta de Achamento do Novo Mundo pela armada de Cabral, datada de 1 de Maio de 1500, alude a oito religiosos de S. Francisco e nove padres seculares que nela seguiam; mas, passados os doze dias de descanso, lá continuaram na viagem para o Oriente. Após a última missa celebrada em Porto Seguro por Frei Henrique de Coimbra, no duodécimo dia volvido sobre a Descoberta, dispuseram-se para a largada, deixando apenas dois degradados, «os quais

7 Cf. Luiz Alberto Moniz Bandeira, O Feudo – A Casa da Torre de Garcia d’Ávila: da conquista dos

sertões à independência do Brasil [1.ª ed., 2000], 2.ª ed. revista e actualizada, Rio de Janeiro, Civilização

Brasileira, 2007, p. 100.

8 Cf. edição crítico-anastática (nota 1), p. 19.

9 Cf. Serafim Leite, Cartas do Brasil e mais escritos do P. Manuel da Nóbrga. Introdução, notas

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ambos hoje também comungaram», a Cruz-Padrão com as insígnias de D. Manuel e dois grumetes que fugiram para a floresta. Distribuíram ainda umas 30 ou 40 cruzes, que puseram ao peito dos índios. O próprio Vaz de Caminha apercebeu-se não serem estes contactos esporádicos caso de missionação (de 22 de Abril a 1 de Maio) digno de tal nome porque na Carta, recordado dos nativos, não se esquece de sugerir ao Rei que, se vier alguém com mais demoras aqui, «não deixe logo de vir clérigo para os baptizar, porque já então terão mais conhecimento da nossa Fé pelos dois degradados»10.

O monarca não olvidou a sugestão e em 1516 enviou alguns missionários para evangelização dos tupiniquins em Porto Seguro, mas sem especiais frutos, pois acabaram massacrados dois anos depois.

Em 1534 na armada de Martim Afonso de Sousa a caminho da Índia havia frades capelães que, de passagem pela Baía, baptizaram filhos de Diogo Álvares Caramuru e casaram duas filhas.

Quatro anos volvidos, seguiam na expedição de Alonso de Cabrera, que se dirigia ao Rio da Prata, dois frades portugueses e confrades espanhóis, os quais após naufrágio se estabeleceram em Santa Catarina onde algum resultado alcançaram entre os carijós, mas sem continuidade depois de 1547. Só com os jesuítas é que o labor apostólico prosseguiu11.

Quer dizer, houve repetidas tentativas pioneiras, esforços isolados, pirilam-pos brilhando por breves instantes, gestos louváveis mas dispersos e efémeros. «A missionação franciscana só conheceu grande incremento a partir de 1584, data da criação da Custódia de Santo António do Brasil, dependente da Província Capucha de Portugal»12. Ignoro a explicação desta coincidência curiosa: no citado

ano de 1584 estabeleceram-se no território os beneditinos, os carmelitas descalços e os dominicanos13. Por tudo isto, não acho nada desrazoável a observção do

P. Manuel da Nóbrga: «antes da vinda dos padres da Companhia de Jesus não havia cristandade nem quem pregasse o Evangelho no Brasil»14.

2.1. A missionação começa a sério em 1549, com a grande armada de Tomé de Sousa, constante de oito navios, donde desembarcaram a 29 de Março mais de mil homens e cerca de seiscentos funcionários e outra gente dos variadíssimos mesteres. Nela vinham cinco jesuítas e o seu superior

10 Cf. Carta de Pero Vaz de Caminha, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobri-mentos Portugueses, INCM, 2000, pp. 28-29 e passim.

11 Cf. Maria Adelina Amorim, Os Franciscanos no Maranhão e Grão-Pará, Lisboa, Univ. Católica Portuguesa, CEHR, 2005, pp. 51-54.

12 Cf. Id., ibid., p. 11.

13 Cf. Fernão Cardim, Tratado da terra e gente do Brasil, São Paulo, 1978, pp. 19 e ss. 14 Cf. Id., ibid., p. 12.

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e vice-provincial P. Manuel da Nóbrega, encarregados de um pentecostes brasílico sob a orientação e entusiasmo daquele que foi também o fundador da Província da Companhia de Jesus no Brasil e da cidade de São Paulo. Vinte e um anos volvidos, morria aos 63 anos no Colégio do Rio de Janeiro (1570), exausto de trabalhos mas exultante em face de tantos centros cristãos pujantes de vida.

Observa Serafim Leite15, citando carta de Nóbrega de 10 de Abril de 1549,

que entre os «quarenta ou cincoenta» moradores que havia na Baía, um era «Diogo Álvares, vianês (…)». Nóbrega tratou logo de traduzir para a língua tupi «as orações e algumas práticas de Nosso Senhor» e nos primeiros momentos não achou intérprete capaz. «Espero de as tirar o melhor que puder com um homem que nesta terra se criou de moço [Diogo Álvares Caramuru], o qual anda agora ocupado em o que o Governador lhe manda e não está aqui. Este homem, com um seu genro, é o que mais confirma as pazes com esta gente por serem dos seus amigos antigos». Fora, sem dúvida, Caramuru quem preparara tudo para uma pacífica e festiva recepção, mesmo no plano espiritual, como ressalta deste parágrafo de Nóbrega16:

«Chegamos a esta Baía a 29 de dias do mês de Março de 1549. Andámos na viagem 8 semanas [saídos de Lisboa em um de Fevereiro]. Achámos a terra de paz e quarenta ou cincoenta moradores da povoação que antes era [Vila Velha]. Receberam-nos com grande alegria e achámos uma maneira de Igreja [a primitiva Igreja da Graça] junto da qual logo nos apresentámos os Padres e Irmãos em umas casas a par dela, que não foi pouca consolação para nós, para dizermos missas e confessarmos» [Carta de Nóbrega, de 10 de Abril de 1549].

Estabelecida, em breve tempo, logo amizade entre Caramuru e o Superior dos Padres, este conquistou-lhe facilmente a colaboração para as andanças catequéticas entre os aldeamentos dos índios. Declara Nóbrega:

«Temos ordenado que Diogo Álvares esteja com eles como Pai e Gover-nador, por ter grande crédito e ser muito estimado deles todos» [Carta de 6 de Janeiro de 1550].

Da Carta do P. Francisco Pires, talvez de 1550, para os Irmãos de Portugal17,

Serafim Leite transcreve:

«O Padre Nóbrega ordenou com o Bispo [entretanto chegado, a instân-cias daquele, em 22 de Junho de 1552] que se fizesse com Diogo Álvares – por

15 Cf. Breve itinerário para uma biografia do P. Manuel da Nóbrega (1517-1570), Lisboa/Rio de Janeiro, Edições Brotéria/Livros de Portugal, 1955, p. 54.

16 Cf. Id., ibid., p. 52.

17 Cf. João de Azpilcueta Navarro et al., Cartas avulsas, Belo Horizonte, Editora Itatiaia/Editora da Univ. de São Paulo, 1988, p. 152; e Serafim Leite, o. c., pp. 54-55.

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língua dos índios Caramuru, ao qual têm grande crédito os índios, por haver 40 ou 50 anos que anda entre eles, e ser velho honrado – que andasse pelas aldeias com os Padres, prometendo-lhe ordenado [decerto para o serviço ser chancelado de ofício público] de El-Rei, o que ao Bispo pareceu muito bem, e logo o pôs em obra e lhe falou, e assim se fará; e está consertado ir um dia destes por todas as aldeias a pregar contra a abusão, que está semeada entre eles, e declarar-lhes a verdade e há-de se Pai [Caramuru] dos que se converterem».

Quanto ao Bispo, Pedro Fernandes Sardinha com quem, segundo consta, Diogo Álvares se cruzara aquando da sua deslocação a França, não obstante pessoa de virtudes e zelo, faltava-lhe tacto para se entender com os gentios, dos quais nem se considerava pastor. Chamado da Corte, rumou a Portugal em Junho de 1566 em barco que naufragou pouco acima da Baía, caindo nas mãos de selvagens e bem assim todos os embarcados, clérigos, leigos, casados, solteiros, mulheres, meninos, cerca de uma centena de pessoas depois comida por aqueles, ao que nos relata com certa minúcia uma carta de Nóbrega18 para

Tomé de Sousa.

É mais que aceitável não haver Diogo Álvares sabido a tempo desta des-graça, não só no respeitante a tantos embarcados como, não sob menor razão, quanto ao seu amigo e bispo de Salvador, embora nem sempre fosse fácil valer-se do seu prestígio, mormente se estavam na liça outras tribos.

2.2. De qualquer modo, a Companhia de Jesus deve-lhe, por um lado, a abertura dos árduos caminhos da evangelização, e por outro, o adestra-mento na língua tupi, que ele dominava e praticava em família, de tal modo que Catarina e as filhas nem entendiam o português. Azpilcueta Navarro sublinha-lhe o dom de escrever a língua dos índios, o que lhe permitia confiar-lhe sermões do Novo e Velho Testamento, mandamentos, pecados mortais, artigos da Fé e obras de misericórdia, etc., para serem vertidos em língua da terra19.

Santa Rita Durão, no seu Poema (vd. nota 1), não se esquece de relevar esta faceta catequética de Diogo Álvares: no Canto II, depois de Gupeva ter entrado com ele numa caverna em que encontram um quadro da Virgem Maria entre despojos de naufrágio (estrofes 27-31). No Canto VI, 14-15, a lapa que descobre em forma de uma igreja interpreta-a como símbolo e possibilidade de os nativos abraçarem a Fé cristã:

18 Cf. Serafim Leite, Cartas do Brasil e mais escritos do P. Manuel da Nóbrega, com introd. e notas históricas e críticas, Coimbra, Por ordem da Universidade, 1955, p. 330.

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«Eis aqui preparado, disse, o templo, Falta a Fé, falta o culto necessário; E quanto era de Deus feito contemplo Tudo o que é de salvar meio ordinário; Desta intenção parece ser exemplo Este insigne prodígio extraordinário; Onde parece que no templo oculto Tem disposto o lugar, e espera o culto. Quis mostrar nesta imagem porventura Que esta gente brutal não desampara; E que a qualquer humana criatura O remédio da cruz justo prepara: Que a estes do seu sangue dera a cura, Se aos instintos que têm não repugnara; Que advogada nos deu de empresa tanta, Preparando o lugar à Virgem Santa.»

E já que atrás subimos à Igreja de Nossa Senhora da Graça e até junto do Mosteiro Beneditino e do Mosteiro de Jesus, hoje a Sé Primaz, retornemos ao alto a fim de ler a placa de mármore, próximo à entrada principal da dita Igreja erigida por Diogo e Catarina, aí colocada aquando da comemoração dos quatro séculos da cidade de Salvador20:

«O 1.º CONGRESSO DE HISTÓRIA DA BAHIA TRIBUTA A GRATIDÃO NACIONAL A DIOGO E CATARINA ÁLVARES CARAMURU

PRIMEIRO CASAL CRISTÃO DESTA TERRA ONDE O MILAGRE DO SEU AMOR FLORESCEU

NA CIVILIZAÇÃO QUE ASSIM COMEÇOU E NA CIDADE QUE O IMORTALIZA

1549 - MARÇO - 1949»

Termino este excurso com uma observação de Serafim Leite21 enriquecida

com outra da Carta de Manuel da Nóbrega ao P. Miguel de Torres, de 18 de Maio de 1558, datada da Baía, cidade que em 2 de Julho de 1952 o honrou também com um monumento:

20 Cf. a edição crítico-anastática (nota 1), p. 19

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«Diogo Álvares, desde o primeiro contacto, manteve-se sempre bom e fiel amigo de Nóbrega, que dele escreve em 1558, pouco depois do seu falecimento» [em 5 de Outubro de 1557]: «Diogo Álvares Caramelu (sic), o mais nomeado homem desta terra», que nos consagrou «muito crédito e muito amor»22.

Dezembro de 2010.

22 A missionação jesuítica em terras do Cruzeiro do Sul dispõe hoje de vastíssima bibliografia, de entre a qual sobressaem os dez vols. da História da Companhia de Jesus no Brasil de Serafim Leite (Lisboa/Rio de Janeiro, 1938-1950), atrás citado a propósito de outras obras.

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