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Modelos em saúde : perspectiva crítica sobre as origens e a história

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Academic year: 2021

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Miguel Trigo é mestre em Saúde Mental. Psicólogo clínico. Depar-tamento de Psicologia da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias de Lisboa. Colaborador na Unidade Comunitária de Cuidados Psiquiátricos de Odivelas.

Modelos em saúde: perspectiva crítica

sobre as origens e a história

MIGUEL TRIGO

Partindo de uma perspectiva histórica sobre o desenvolvi-mento dos discursos e práticas relativas à desviância, à doença e à saúde, em particular a mental e a pública, iden-tificam-se dois modelos de intervenção — o modelo clínico e o comunitário. Seguidamente, apontam-se limitações e convergências entre cada um desses modelos, englobando--os no âmbito da segunda revolução da saúde e do nasci-mento da moderna saúde pública, a qual se centrou sobre os conceitos de prevenção da doença e promoção da saúde. Paralelamente, questiona-se um conjunto de mecanismos no domínio da saúde, os quais são entendidos enquanto dispositivos ao serviço de ideologias. A este propósito é realçada a necessidade de contextualizar a discussão no âmbito mais vasto da política e de uma economia de mer-cado que, cada vez mais, procura legitimar-se a partir de formas aperfeiçoadas e subtis de conhecimento do destina-tário sobre o qual exerce o seu poder — o sujeito psicoló-gico.

1. Introdução

Ao procurar compreender o homem contemporâneo ocidental, somos obrigados a questionar as próprias origens da cultura moderna. Neste olhar sobre a his-tória das civilizações e do pensamento humano devem evidenciar-se não só os aspectos particulares e determinantes da crónica de cada um desses grandes períodos, mas também as regularidades e as leis uni-versais que subjazem ao próprio materialismo da his-tória (Hegel, 1995). Importa, pois, encontrar a uni-dade temporal adequada à observação histórica e epistemológica, na medida em que as civilizações, as instituições, as mentalidades, as políticas, os ciclos económicos, as técnicas e as ciências têm um ritmo de vida e de crescimento particular. Este é o tempo da longa duração, captado pela história conjuntural, pela macro-história (Braudel, 1990).

Neste longo percurso de hominização podem delimi-tar-se cinco períodos caracterizados por uma especi-ficidade própria: a pré-história, a cultura greco--romana, a Idade Média, o Renascimento e a idade das luzes. Naturalmente, porém, que em todo este trajecto da história humana se evidenciam os contor-nos e a estrutura de uma complexa teia de mecanis-mos de controlo, de relações e lutas pelo poder, de ambição pelo domínio, do recurso à força e do uso da violência. Tomando por base a concepção de Claude Lévi-Strauss (1908-), é a própria noção antropoló-gica de «estruturalismo» que importa apreender. Esta, por seu turno, inspirou-se em Edward Sapir

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(1884-1939), segundo o qual a cultura e o social são as mais ricas linguagens simbólicas inconscientes. Nesta perspectiva, cada elemento de um conjunto só tem sentido pela sua relação com os outros e as rea-lidades apenas revelam parcialmente as relações que mantêm a diversos níveis (Thines e Lempereur, 1984). À maneira de Foucault (1987), trata-se tão--somente das infra-estruturas arqueológicas sobre as quais têm vindo a assentar as sociedades humanas. É, pois, a manifestação da íntima aliança entre os saberes humanos que consecutivamente se colocam ao serviço do poder.

Assim, o primeiro objectivo deste trabalho é procurar pôr a descoberto as lógicas e os mecanismos parti-culares, constantemente aperfeiçoados, de exercício do poder, domínio, controlo e previsão do homem pelo homem. Segundo a nossa convicção, é o sujeito psicológico, com as suas tendências, impulsos, moti-vações, gostos, crenças, comportamentos, escolhas, modos de vida, relações e enquadramento sócio-cul-tural, que constitui o cerne de todos os sistemas de acção e tutela, designadamente os que se referem aos sistemas de saúde. Por seu turno, as práticas relacio-nadas com o cuidar humano, os procedimentos, as estratégias e as políticas de saúde devem ser contex-tualizadas numa dimensão histórica e epistemoló-gica. A sua análise deve também ser conduzida con-siderando critérios de desenvolvimento e maturidade político-económica, técnico-científica e sócio-cultural, os quais traduzem de forma fiel as crenças e convic-ções vigentes em cada paradigma dominante, ou seja, em cada contexto ideológico. Segundo esta perspec-tiva, pretendemos descrever as condições e contingên-cias que promoveram a emergência de dois modelos predominantes de actuação no âmbito da saúde: 1. Modelo clínico, no qual se dá especial

importân-cia aos procedimentos diagnósticos e terapêuti-cos, baseando-se num sistema reactivo, onde a intervenção é desencadeada com o pedido de consulta, que visa dar resposta ao sofrimento do doente, expresso através de sinais e/ou sintomas e que termina com a alta ou a interrupção do trata-mento (Levav, 1992);

2. Modelo comunitário, no qual tanto a doença como a saúde se tornam objecto de intervenção, segundo uma atitude pró-activa, de antecipação sobre o pedido e baseando-se numa orientação de base epidemiológica, que possibilita a investiga-ção das necessidades da populainvestiga-ção em geral e dos grupos de risco (op. cit.).

Por outro lado, pretendemos também demonstrar que tanto a clínica hospitalar (modelo clínico) como os programas terapêuticos desenvolvidos no seio da

comunidade e da família (modelo comunitário) resul-tam, cada um deles, em práticas parcelares e insu-ficientes, com deficiente articulação entre as neces-sidades das pessoas que sofrem, os sistemas prestadores de apoio e a comunidade no seu con-junto. Esta parece ser uma das ilações a colher com base num olhar crítico sobre a passado e o presente destes modelos da saúde.

É, finalmente, com a gradual consolidação das con-cepções da moderna saúde pública, tentando concer-tar um sistema complexo de serviços de saúde e tutela, postos ao alcance de cada um e das comuni-dades, que em definitivo se apuram e articulam os mecanismos macrossociais de prevenção, controlo e ajustamento. Estes mecanismos compreendem, por ordem de prioridade, acções relacionadas com a pro-moção da saúde e prevenção das doenças, o diagnós-tico e tratamento precoce, a reabilitação e a reinser-ção (Ferreira, 1990). A este nível pretendemos, mais uma vez, por um lado, traçar os principais aconteci-mentos associados à origem e à história da moderna saúde pública, por outro, tornar evidentes os objecti-vos infra-estruturais subjacentes a esta nova forma de conceber os problemas da saúde humana, mas tam-bém da doença e da desviância. Começaremos, pois, por descrever quais as principais marcas que encon-tramos no nascimento do sujeito psicológico para, em seguida, podermos compreender de que maneira esse mesmo sujeito se vê reflectido nas práticas, nos modelos e nas ideologias no domínio da saúde (modelo clínico vs. modelo comunitário e moderna saúde pública).

2. Nascimento do sujeito psicológico

Tomando a pré-história (2 000 000 até 1100 a. C.) como ponto de partida, aquilo que imediatamente nos surge é um homem ainda marcado pelo sincretismo e pela perplexidade perante as estranhas forças da natureza. Na procura de compreensão e domínio em relação ao meio surgem as explicações mágicas, os rituais e todo um sistema cultural baseado na mitolo-gia. O homem é transformado pela natureza, mas também agente de transformação, quer através da relação divina e dos sacrifícios, quer pelo desenvol-vimento das técnicas de sobrevivência (por exemplo, caça e guerra) e das artes mágicas (por exemplo, pintura rupestre). Gradualmente, com as civilizações do Egipto e do Próximo Oriente (Mesopotâmia, Suméria e Babilónia) a pictografia, a ideografia e os hieróglifos cedem o seu lugar à escrita hierática e à escrita cuneiforme. Por volta do século III a. C. os

primeiros sistemas de escrita tinham atingido uma forma estável e eram ensinados (Ritter, 1995a).

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Apesar de o aparecimento da polis não ser ainda hoje cabalmente compreendido, sabe-se que o início de um modo de vida sedentário, os factores relativos à geografia, as necessidades de uma defesa comum e a falta de um poder central forte terão desempenhado um papel importante na unificação dos pequenos ter-ritórios. Contudo, deve igualmente procurar-se uma causa psicológica, onde a identidade de língua, a religião, os costumes e, enfim, a cultura são elemen-tos centrais (Pereira, 1988). A cidade ateniense foi bem o exemplo disto, emergindo através do desen-volvimento de uma série de condições técnicas, nomeadamente no plano das comunicações, da reserva de água, da produção agrícola, das condições de armazenagem, dos meios de defesa em proporção com as riquezas acumuladas (Macedo, 1987), mas também da prosperidade cultural e da reunião de um conjunto de intelectuais e sábios. Neste sentido, a cidade grega é o sinal de uma organização complexa e amadurecida, onde se coordenam actividades admi-nistrativas, políticas, religiosas, produtivas, económi-cas, culturais, sociais, educativas e militares. A este propósito, é interessante a teoria proposta por Frie-drich Engels (1820-95) em A Origem da Família, da Propriedade e do Estado (1980).

Com o desenvolvimento da escrita, da leitura e da matemática, a par do florescimento económico, em redor das grandes cidades portuárias, criam-se defini-tivamente as condições para o aparecimento da polis ateniense, onde o amor, a amizade e a ânsia pelo saber (philo-sophia) materializam o ditado clássico em que se diz «humano sou, nada do que é humano me é estranho» (Borrón, 1988). É precisamente este contexto que promove a emergência da mentalidade racional (logos) e do esplendor da cultura greco--romana. O logos apresenta-se aqui essencialmente como a modalidade do pensamento grego, baseado no raciocínio, no princípio da não contradição e nos silogismos, em ruptura com as concepções míticas e mágicas do homem da pré-história (Mora, 1991). Neste ambiente florescem também as escolas filosó-ficas (por exemplo, jónica, pitagórica, eleática, socrática, platónica e aristotélica) e a primeira grande Academia (antiga Academia) (Abbagnano, 1991a; Serres, 1995), podendo distinguir-se cinco períodos: o cosmológico, o antropológico, o ontológico, o ético e o religioso (Abbagnano, 1991a). Em resultado desta produção intelectual, foram numerosas as influências e os legados provenientes da antiguidade grega, desde a fundação do método da maiêutica, com Sócrates (470-399 a. C.), à medicina natural de Hipócrates (460-377 a. C.), ao idealismo e à concepção da Repú-blica (380-375 a. C.) de Platão (428-347 a. C.), à física qualitativa de Aristóteles (384-322 a. C.), ou mesmo à astronomia de Aristarco de Samos (310-230 a. C.)

e sua concepção heliocêntrica, aliás em contradição com a perspectiva geocêntrica de Cláudio Ptolemeu (367-283 a. C.), que dominou durante catorze séculos. Com o fim da hegemonia da civilização greco--romana, a partir da mudança da sua sede imperial para a cidade de Constantinopla (ano de 330) e, mais tarde, com a decadência das filosofias helénicas (por exemplo, estoicismo, epicurismo, cepticismo), ao entrarem em ruptura com as perspectivas da ciência alexandrina (Borrón, 1988), inicia-se um longo período de conturbação e indefinição, que veio alte-rar e talvez adiar em alguns séculos a emergência da moderna ciência. É o complexo período da Idade Média, marcado não só pela diversidade e heteroge-neidade económico-sócio-cultural, mas também pela hegemonia da ciência teológica. Segundo os padrões da cultura medieval, nomeadamente sob a influência da obra de Tomás de Aquino (1225-1274), Suma Teológica, a teologia surge como uma ciência colo-cada no cume da hierarquia de todos os conhecimen-tos. A teologia constitui-se como a ciência de Deus, tendo por objecto a causa das causas (Benoit, 1995). Na realidade, o próprio termo «escolástico» desig-nava o professor de Filosofia, ou Teologia, cujo título oficial era de magister. Este tinha como uma das principais actividades a docência na escola do claus-tro, da catedral, ou da universidade. Assim, a origem e desenvolvimento da escolástica encontram-se estri-tamente ligados às funções docentes (Abbagnano, 1984b).

Quanto ao homem medieval plebeu, o seu dever era permanecer onde Deus o tinha colocado. Elevar-se era sinal de orgulho, baixar-se constituía um pecado vergonhoso (Le Goff, 1989). Como tal, a vontade de Deus servia de legitimação para estabelecer o princí-pio da hierarquia e a aceitação do poder do senhor sobre o homem do povo. Acima de tudo, era neces-sário manter a organização feudal e a ordem social. Nesta doutrina maniqueísta, a norma servia para excluir os diferentes. Por um lado, o pobre, o indi-gente, o exilado, o pagão, o herético, o judeu, o inválido, o doente, o leproso, o imbecil, a prostituta, o infame, o desonesto, o marginal, o ladrão e o cri-minoso; por outro, o santo, que estava entre o céu e a Terra, e o mártir, que sofreu na carne sevícias e sacrifícios sobre-humanos. Paralelamente a todo o período medieval, não pode descurar-se a importân-cia dos movimentos assoimportân-ciados ao paganismo, ocul-tismo e neoplatonismo, os quais se traduziram pelas práticas alquímicas.

A partir do Renascimento começa definitivamente a questionar-se a noção grega de cosmos finito, bem como todo o saber fundado na física qualitativa de Aristóteles. Com a revolução coperniciana e a mate-matização da natureza torna-se inevitável que a

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escolástica e a teologia dêem lugar à justificação científica dos fenómenos (Koyré, s. d.). Esta pro-funda transformação, que pode ser definida como uma revolução científica (Kuhn, 1994), veio modifi-car a estrutura da inteligência humana, substituindo a ingenuidade do senso comum pela racionalidade científica (Carvalho, 1991). Trata-se, pois, do Renas-cimento na sua plena acepção, ou seja, o segundo nascimento, a renovação do homem nos seus poderes humanos, nas suas relações com os outros, o mundo e com Deus (Abbagnano, 1991a). É precisamente esta concepção naturalizada do homem e do mundo, indispensável ao estudo experimental, que permite o nascimento da investigação científica. Para tal foram importantes os contributos não apenas de cientistas, como Nicolau Copérnico (1473-1543), Galileo Gali-lei (1564-1642) e Johannes Kepler (1571-1630), mas também as concepções neoplatónicas de Nicolau de Cusa (1401-1464) e Marsilio Ficino (1433-1499), o humanismo de Pico de la Mirândolla (1463-1494), o idealismo e a utopia de Tomás Morus (1478-1535) e Tomás Campanella (1568-1639), ou a arte e a esté-tica de Miguel Ângelo (1475-1564). De facto, com as obras renascentistas de Campanella (A Cidade do Sol), Morus(A Utopia) e Francis Bacon (A Nova Atlântida), aquilo que se realça é o projecto de uma nova sociedade, utopicamente organizada, justa e moral. Aliás, tal projecto é retomado mais tarde com Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e o seu Contrato Social, no qual se estabelecem regras da convivência social, da igualdade e da liberdade humana. Também com Auguste Comte (1798-1857), na sua obra Reor-ganizar a Sociedade, já sob a influência do espírito positivista, voltam a equacionar-se os problemas da ordem e da desordem humana, sob a lei dos três estados. A este propósito, por que não referir igual-mente a visão e o retrato que, mais tarde, Burruhus Skinner (1904-1990), em Walden II: Uma Sociedade de Futuro, nos oferece sobre a sociedade do futuro, baseada nas tecnologias do controlo comporta-mental?

Apesar de o Renascimento não constituir, ele próprio, um período homogéneo, podendo mesmo encontrar-se um contra-Renascimento, nomeadamente no cepti-cismo de Michel Montaigne (1533-1592), onde se recusa o racionalismo em favor do primado da intui-ção, da emoção e da fé (André, 1987), sob a divisa «que sei eu?», o aspecto determinante foi o estabele-cimento das bases do paradigma científico e mecani-cista por Galileu. Porém, só com o contributo de René Descartes (1596-1650) se consolida em defini-tivo a passagem de uma razão estética para uma razão técnica e maquinal. É a revolução galilaico--cartesiana que estende o seu impacto à física, à bio-logia e à fisiobio-logia. Assim, pelo seu corpo, o homem

faz parte da natureza mecânica, chegando mesmo a falar-se de uma medicina cujos princípios gerais se encontrariam numa teoria geral dos animais-máqui-nas, a qual resultaria da aplicação das leis universais da física mecanicista e quântica aos corpos vivos. Neste sentido, o animal e o homem não funcionam de modo diferente de qualquer maquinaria fabricada pelos homens (Alquié et al., 1987). É a imagem per-feita do homem-máquina, concebido por Julian de La Mettrie (1709-1751).

Apesar de Descartes geometrizar o mundo, o pensa-mento das luzes recusa esse geometrismo, bem como a herança cartesiana (Auroux e Weil, 1996). É, com efeito, pela obra de Isaac Newton (1642-1707) que se ultrapassam as aporias metafísicas e se liberta a ciên-cia das especulações sobre a essênciên-cia do mundo. Para os filósofos do século XVIII, entre os quais se

desta-cam o inglês David Hume (1711-1776), os alemães Christian Wolf (1679-1754) e Immanuel Kant (1724--1804) e especialmente os franceses Charles Montes-quieu (1689-1755), Voltaire (1694-1778), Denis Diderot (1713-1784) e Jean d’Alembert (1717-1783), aquilo que importa é aplicar o modelo científico de Newton, recorrendo à razão para apreender o real, confiando plenamente nos sentidos e fazendo uso da experimentação (Thines e Lempereur, 1984). Nesta perspectiva, a filosofia das luzes constitui-se como um racionalismo empirista (Auroux e Weil, 1996) e utilitarista. É o espírito progressista e cosmopolita, que se destaca não apenas no reformismo autoritário do despotismo esclarecido, mas no empreendimento da revolução e do colonialismo. A razão surge, pois, como a luz e a guia do processo civilizacional. Por sua vez, os ensinamentos do grande livro da vida são vertidos para L’Encyclopédie, de d’Alembert e Diderot, que, com base na classificação dos conheci-mentos realizada por Francis Bacon (1561-1626; Halsey, 1991), dispõe os saberes segundo uma ordem alfabética.

Assim, sob a influência dos ideais liberais e de equi-dade da Revolução Francesa, a par de toda uma panóplia de filosofias psicológicas, ou psicologias filosóficas, como foi o caso dos anglo-saxónicos Thomas Hobbes (1588-1679), John Locke (1632--1704) e David Hume (1711-1776), dos franceses Étienne Condillac (1715-1780), La Mettrie e Pierre Cabanis (1757-1808) e do alemão Kant, para citar apenas alguns, começam a desenhar-se os contornos de um sujeito psicológico, livre na sua escolha, com características e valores próprios. A este homem deverá sobrepor-se o sujeito de direito, normalizado e tutelado por sistemas ideológicos, profundamente comprometido e concertado com um contrato social. Porém, desde logo se colocou a questão de como articular e harmonizar os interesses de cada um

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des-ses sujeitos. Define-se assim a necessidade de um outro elo de ligação, protagonizado pelo sujeito epistémico, objecto do estudo científico. Este emerge a partir do advento do positivismo e da sociologia de Comte. Assim se fecha o triângulo entre o psicoló-gico, o direito e a ciência. Não deixa, pois, de ser curioso que o nascimento do sujeito psicológico aconteça no mesmo período em que o comporta-mento se torna, ele próprio, alvo de investigação. Claramente é o início da preocupação, por parte das instituições de tutela, em encontrarem legitimação através da sua psicologização para melhor tutelarem (Franck, 1986). Compreende-se, finalmente, que a garantia da obediência, a adesão à norma e o equilí-brio da nação só podem ser assegurados através de um sistema que seja capaz de satisfazer necessidades básicas do cidadão e da pessoa, nomeadamente no que se refere às suas condições de vida, ao trata-mento e assistência na doença e à promoção da saúde. O sujeito psicológico passa, definitivamente, a ser reconhecido como o centro, o vértice, a lógica e a pedra angular sobre o qual deve assentar todo o funcionamento social, político e económico. Chegados a este ponto de junção, interessa-nos per-correr os trajectos dos discursos, dos conceitos e das práticas contemporâneas nos domínios da desviância, da doença e, mais recentemente, da própria saúde. Para nos informarmos sobre este percurso iremos observar as vicissitudes de dois modelos complemen-tares que nos servem como analisador. Por um lado, os modelos mais centrados no indivíduo e na sua doença — o modelo clínico; por outro, as orientações mais vocacionadas para a intervenção sobre a comu-nidade e a saúde — o modelo comunitário. Em cada um destes modelos poderemos observar a aplicação dos paradigmas, das crenças e das práticas vigentes e típicas de cada um dos períodos históricos em aná-lise, naturalmente com as suas limitações e insufi-ciências. Por outro lado, gostaríamos de demonstrar que em todo o percurso o fundamental é a tentativa do homem para se compreender e melhor conhecer, na expectativa de atingir níveis de estabilidade e organização social mais permanentes, envolvendo menor incerteza.

3. Modelo clínico

Nos povos primitivos a doença, em particular a men-tal, apresentou-se como um fenómeno inexplicável, atribuído a causas exteriores e a influências malévo-las de um ser, quer humano, quer extraterreno. Para enfrentar as forças misteriosas desse mundo animista, o homem recorreu a práticas mágico-religiosas, a técnicas de sugestão, à confissão, à intimidação e aos

rituais (Beauchesne, 1989). Os casos de crânios trepanados encontrados no Peru são elucidativos do tipo de crenças vigentes já durante o Neolítico (Ruiloba, 1994). Na verdade, a trepanação foi a pri-meira intervenção de tipo psicocirúrgico a ser prati-cada pelo homem (Ferreira, 1987). Sabe-se também, a partir de alguns documentos do período paleobabi-lónico, da existência de uma estrutura formal de conhecimentos médicos que apresentavam um aspecto semelhante aos textos de adivinhação nos quais surgiam invariavelmente duas partes: uma de descrição de sinais e sintomas («se um doente tem...») e outra de diagnóstico e prognóstico («então...») (Ritter, 1995a).

Só a partir da civilização greco-romana é que começa a delinear-se uma abordagem racional da doença. A filosofia e a medicina gregas vêm fundamentar o estudo da patologia numa observação sistemática dos fenómenos mórbidos com o intuito de identificar perturbações globais do organismo. A doença é enca-rada como uma ruptura do equilíbrio interno (Beau-chesne, 1989). Com o racionalismo da escola de Cós, iniciada por Hipócrates (460-377 a. C.), surge a teo-ria dos quatro humores, segundo a qual a doença resulta da interacção dos fluidos corporais (sangue, bílis amarela, bílis negra e fleuma). De facto, num dos escritos em que Hipócrates se dedica a estudar a então designada «doença sagrada» (doença mental) comenta a insensatez da crença numa origem divina, ou sagrada, para esses «ataques», uma vez que se tra-tava apenas de uma perturbação com causa natural e cura, à semelhança de outras afecções infecciosas. Na sua opinião, apenas o carácter excepcional, especta-cular e incompreendido poderia justificar uma tal con-cepção (Hipócrates, 1994). Galeno (130-200 d. C.), um fervoroso discípulo e sucessor dos ensinamentos hipocráticos, vem distinguir entre causas psíquicas e orgânicas nas doenças mentais (Ruiloba, 1994), adoptando-se uma tendência analítica e explicativa que prefigura a divisão do corpo em órgãos, criando--se as bases daquilo que viria a ser a concepção ana-tomoclínica (Beauchesne, 1989), mais tarde desen-volvida por Marie Bichat (1771-1802).

Ao nível dos mecanismos de controlo social, cabe destacar o papel desempenhado pelos momentos catárticos que eram oferecidos aos cidadãos, quer sob a forma de jogos (por exemplo, o circo, o desporto) e do teatro (por exemplo, a encenação, a comédia e a tragédia), quer através de espectáculos ainda mar-cados pela barbárie (por exemplo, pugilismo, os gla-diadores, os condenados à arena) (Pereira, 1990). De facto, na sua origem (364 a. C.), os jogos cénicos, que consistiam em danças realizadas por bailarinos ao som de flautas e por gracejos em versos toscos, tinham a função de afastar a peste (Pereira, 1990).

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Também as dramatizações que ocorriam no teatro e os espectáculos mais violentos exerciam uma função de válvula no controlo da pressão social. Ainda actualmente grande número das manifestações cultu-rais e desportivas conservam funções e traços seme-lhantes. A este propósito, refira-se o exemplo da tou-rada, ou mesmo do futebol, este último tantas vezes associado às manifestações de holiganismo. A pró-pria organização democrática conferia o direito ao cidadão de participar activamente na discussão e nas decisões dos assuntos relativos à coisa pública (res pública). Quanto às modalidades propriamente pêuticas, é sobejamente conhecido o recurso a tera-pêuticas como os banhos quentes e frios, as dietas alimentares, as sangrias e as purgas, a disciplina, o trabalho e o descanso (Hipócrates, 1994). Assim se inaugura e encerra, com Galeno e na sequência da queda do Império Romano, a crença na origem natu-ral das doenças e os ideais médico-filosóficos. Com o início da Idade Média renasce uma concepção demonológica, influenciada pelo modelo extranatural da doença mental, o qual culminou no exorcismo, na caça às bruxas e em práticas alquímicas que recupe-ram rituais ancestrais (por exemplo, ritos orgiásticos, tarantismo) (Ruiloba, 1994). Na verdade, o complexo problema da possessão não relevou directamente de uma história da loucura, mas da história das ideias religiosas e da escolástica (Foucault, 1991a). Por este motivo, a ideia de que os «possuídos» e as «feiticei-ras» pudessem apenas sofrer de uma doença natural suscitou não só grandes resistências que perduraram até ao Renascimento, mas em seu nome loucos exces-sos foram cometidos (Ey, Bernard e Brisset, s. d.). Porém, devemos também realçar a outra face do mundo medieval católico, de que é exemplo a activi-dade messiânica de Francisco de Assis (1182-1226), profundamente marcada pelo humanismo e espírito samaritano, nomeadamente na ajuda aos pobres e na dedicação que colocou no cuidar dos leprosos e dos doentes, a qual vem culminar na fundação da ordem religiosa dos Franciscanos em 1223 (Silva, 1996). Também neste domínio se tinham já verificado con-tributos notáveis através do pensamento de Santo Agostinho (354-430), que, inspirando-se no idea-lismo platónico, realçou o carácter central da interio-ridade, da personalidade e do desligamento em rela-ção aos bens materiais, influenciando neste ponto Assis (Abbagnano, 1992). Não se pode igualmente deixar de mencionar a figura singular de São Tomás de Aquino (1225-74), segundo o qual a natureza humana é constituída por alma e corpo, por existên-cia e essênexistên-cia (Abbagnano, 1985b), demarcando-se do dualismo neoplatónico dos agostinianos e dos franciscanos, mas aproximando-se da ordem dos dominicanos. Nesta linha, Aquino postulou a

existên-cia de um transtorno orgânico na base da loucura (Ruiloba, 1994).

Uma notável excepção à influência das concepções e práticas da escolástica ocidental ocorreu no seio da civilização árabe. Inspirados nos ensinamentos gre-gos, desenvolveram uma abordagem humanista e científica da doença que culminou na fundação do primeiro hospital mental em Bagdade por volta de 792 (Ruiloba, 1994). Esta proximidade à cultura grega estreitou-se a partir do califado de Harun Al--Raschid (785-809), com a tradução das obras de Aristóteles, Platão, Euclides, Ptolemeu, Galeno e outros autores da antiga Grécia. De entre os pensado-res árabes cabe realçar o nome do filósofo, matemá-tico e médico Alfarabí (?-950) pela sua cultura enci-clopédica e por ter introduzido, pela primeira vez, a distinção entre essência e existência, conceitos cen-trais na obra de Tomás de Aquino (Abbagnano, 1984a). Por outro lado, Avicena (980-1037), com o seu Cânone de Medicina, que foi a obra central da medicina medieval, e O Livro da Cura, uma vasta enciclopédia de ciências filosóficas, introduz não apenas na escolástica árabe, mas no Ocidente cristão, grande parte dos ensinamentos da obra de Aristóte-les. A este propósito não se poderia ainda deixar de referir Averróis (1126-98) e o contributo que deu na difusão do pensamento aristotélico, bem como na defesa do racionalismo e de uma doutrina do inte-lecto.

Na Europa, porém, os loucos, os leprosos, os aleija-dos, os criminosos e todos os tipos de desviantes continuam a ser preferencialmente mantidos afasta-dos afasta-dos espaços públicos, como medida de protecção contra a impureza e pelo perigo que poderiam repre-sentar. Esta prática, que se estende durante toda a época medieval, adquire novos contornos a partir do Renascimento (séculos XV e XVI), altura em que o

próprio sentido da loucura se transfigura, caindo-se numa concepção ambivalente (Foucault, 1991a). Por um lado, é a exclusão social dos indesejáveis, que eram expulsos das cidades e confiados a peregrinos, ou a barqueiros, tal como o ilustra a célebre pintura de Hiëronymus Bosch (1450-1516), A Nave dos Lou-cos. Por outro, é a exortação e o Elogio da Loucura, traduzidos em obras como a de Desidério Erasmo (1466/69-1536) e o romance de Miguel de Cervantes (1547-1616), El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha, ou mesmo na figura cómica, ingénua e alienada do bobo da corte. Esta alegre convivência de uma razão irrazoável, ou de um razoável desatino, vai ver-se definitivamente alterada à entrada do século XVII, com os progressos do racionalismo

carte-siano (Foucault, 1991b).

Se há homens que se enganam ao raciocinar, mesmo sobre as mais simples matérias, se os sentidos nos

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iludem, se a imaginação pode ludibriar-nos e se o erro ou a insensatez podem espreitar a cada momento (Descartes, 1986), admitamos até que um espírito maligno e poderoso nos manipule sempre e por todo o lado (Koyré, 1992), é, pois, imperioso duvidar e expugnar o que há de insano na razão para que ela se torne clarividente. O pensamento sensato, como exer-cício de uma razão soberana, deve ser o instrumento capaz de traçar a linha divisória entre os desatinados e os sensatos. Importa, pois, definir o sujeito de direito a partir de um sujeito psicológico livre, auto-determinado, racional, que certamente pensa, logo existe. Assim, é o percurso da dúvida cartesiana que coloca a loucura no domínio do irracional e, como tal, a lança para o mundo da exclusão, ao traçar uma linha divisória entre o racional e o irracional (Fou-cault, 1991b). É necessário tapar e afastar para bem longe da vista este desfile das vergonhas e das imun-dícies humanas. A feira das vaidades não pode ser perturbada na sua apatia social. A única solução pos-sível é a criação de hospitais e, de forma complemen-tar, operar um processo de grande internação. Por toda a Europa se criam estabelecimentos para inter-namento que não se destinam apenas a receber lou-cos, mas toda a espécie de desviados em relação à razão, à moral, à lei e à sociedade. É com este espí-rito que o governo francês abre em Paris os Hospitais Gerais de Bicêtre (para homens) e de la Salpêtrière (para mulheres), o Reino Unido cria as casas de cor-recção (houses of correction, 1575) e os sanatórios (workhouses, 1670) e a Alemanha as casas de deten-ção (zuchthäuser), as quais vieram ocupar os espaços deixados livres pelas gafarias (Foucault, 1991a). O trabalho nestas casas de internamento assume uma significação moral, dado que a preguiça se tornou a forma absoluta de revolta e desordem social, sendo necessário obrigar os ociosos a trabalhar (Foucault, 1991b). Poderíamos, pois, identificar estas práticas como os rudimentos daquilo que vem a ser conhe-cido como a ergoterapia. Note-se também que todos estes espaços não são estabelecimentos médicos no sentido actual, mas estruturas semijurídicas, uma espécie de entidades administrativas que, conjunta-mente com os interesses instituídos e os tribunais, julgam e executam (Foucault, 1991b), exercendo as funções de autênticas cloacas da sociedade.

Porém, esta foi uma das primeiras oportunidades de desenvolver a observação clínica e de introduzir os registos sobre a história da pessoa doente e da doença (Foucault, 1994). Gradualmente, a serena objectivi-dade do olhar médico, finalmente científica, permitiu descobrir a deterioração da natureza e a nosografia lá onde se decifrava apenas perversão e desviância. Na altura em que a definição objectiva da doença mental foi alcançada pelo positivismo, a medicina consegue

resgatar a alienação dos domínios religiosos e meta-físicos (Foucault, 1991a; Ey, Bernard e Brisset, s. d.). A partir de então, a loucura ergue-se enquanto enti-dade classificada como doença, saindo do jugo da teologia e da justiça para entrar na esfera da ciência. Em ambos os casos, porém, é a ideologia que medeia as relações entre o desviante, seja ele o louco, o cri-minoso ou o doente mental, e a sociedade normaliza-da. Como consequência, poucos anos após a Revolu-ção Francesa (1789-1799) e sob a influência de Phillipe Pinel (1745-1826) os sanatórios começam a ser convertidos e humanizados, transformando-se em centros dignos, com condições adequadas (Ruiloba, 1994). É precisamente o gesto simbólico de libertar dos seus grilhões os doentes do Hospital de Bicêtre (1793) que assinala o nascimento de uma concepção moderna na psiquiatria, cujo saber assenta no con-tacto directo com os pacientes. Contudo, apesar de o doente ter sido libertado, o manicómio permaneceu (Beauchesne, 1989). No novo mundo asilar dos séculos XVIII e XIX, a doença mental torna-se em

defi-nitivo um facto que respeita essencialmente à alma humana, inscrevendo-se na dimensão da interioridade e ganhando um estatuto e significado psicológico (Foucault, 1991a). Por este motivo, dá-se também o nascimento de um Homo psychologicus que é pertur-bável por natureza. Nas palavras de Barahona Fer-nandes (1990), uma das características básicas do homem é precisamente a de ser perturbável, desde o normal até ao anormal, neste caso a doença. Com a Introdução à Medicina Experimental, de Claude Bernard (1813-1878), desenvolve-se a ciência médica a partir do estudo experimental da fisiologia, modelo que vai repercutir-se em várias áreas da investigação em medicina, quer no que se refere à nosografia, quer ao desenvolvimento de teorias, modelos e técnicas. Bernard, opondo-se ao dualismo e aos modelos biomédicos, contribui também para o desenvolvimento de uma concepção unitária e monista do homem, onde reconhece o papel das variáveis comportamentais e psicológicas na etiologia da doença física. Nas suas palavras, as manifestações dos seres vivos são caracterizadas por uma solidarie-dade de fenómenos muito especial que, caso fosse negligenciada no estudo das funções da vida, ser-se--ia conduzido às mais falsas ideias e às mais erradas consequências (Bernard, 1978).

Ao nível da investigação nosológica, destacam-se Esquirol, com estudos sobre semiologia e inteligên-cia, Jean Falret (1794-1870), que descreve a loucura circular (mania e melancolia), Jean-Martin Charcot (1825-1893), que se interessa pelo grupo das neuro-ses, em particular a histérica, Karl Kahlbaum (1828--1899), que identifica a ciclotimia e a catatonia e, com um aluno seu, Ewald Hecker (1843-1909),

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estuda a hebefrenia, Henri du Saulle (1830-1886), que delimita o delírio de perseguição, e Jules Cotard (1840-1889), que vem destacar o delírio de negação (ou delírio de Cotard). Porém, é Emil Kraepelin (1856-1926), com a definição da demência precoce e a psicose maníaco-depressiva, que, em 1883, conse-gue sistematizar a primeira classificação de doenças mentais no seu Tratado de Psiquiatria. A perturbação mental passa então a ser definida como uma doença de etiologia somática e com um curso e prognóstico diferentes em cada uma das entidades. Reintroduz-se, assim, o modelo médico, inicialmente preconizado por Hipócrates (Ruiloba, 1994), segundo o qual: 1. A doença tem uma etiologia, ou causa; 2. Essa etiologia é orgânica;

3. A etiologia orgânica produz uma série de sinais e sintomas que se associam com uma frequência superior à do acaso;

4. Essa associação constitui uma síndroma; 5. A identificação do quadro sindromático permite a

realização de um diagnóstico;

6. Através do diagnóstico é possível adoptar uma terapêutica (biológica), a qual deve actuar sobre a suposta causa; finalmente

7. A ponderação do diagnóstico e da eficácia tera-pêutica permite emitir um prognóstico.

Em complemento destas abordagens descritivas e experimentais, onde se assinalam apenas as manifes-tações sindromáticas (sinais e sintomas), surgiram também modelos e teorias explicativas dos mecanis-mos e etiologia das doenças. Nesta linha, Bichat defende que as doenças resultam de alterações orgâ-nicas dos tecidos, o que constitui o ponto de partida da histologia. Distingue, assim, 21 tipos de tecidos, cujas combinações davam lugar aos diferentes órgãos, e defende o abandono da descrição do órgão patológico em favor de uma sistematização das doen-ças comuns a cada tecido. Foucault (1994), no livro O Nascimento da Clínica, subordina um capítulo ao título elucidativo «Abram alguns cadáveres» para situar, já no século XVIII, o nascimento de uma

anato-mia patológica fundada na clínica. Terá sido por essa altura que o cadáver passou a fazer parte do campo médico sem contestação religiosa ou moral. Com o decreto Marly ordena-se aos magistrados e directo-res dos hospitais que forneçam cadávedirecto-res aos profes-sores para as demonstrações de anatomia e o ensino das operações cirúrgicas.

Por Bénédict Morel (1809-1873) surge a teoria da degenerescência para explicar as modificações adap-tativas dos órgãos, transmitidas hereditariamente, e Theodore Ribot (1839-1916) cria o método patoló-gico, a fim de compreender os processos normais,

com base nos patológicos. Trata-se, pois, da institui-ção de um modelo clínico que se constitui a partir da observação das idiossincrasias e das regularidades dos sinais e sintomas do doente e que resulta quer de uma prática hospitalocêntrica, quer de um saber baseado no raciocínio médico (modelo médico) e no método patológico. Uma nova revolução estava então à espreita. Era imperioso saltar de um mento das manifestações visíveis para um conheci-mento baseado na interpretação do não visível. O próprio Wilhem Dilthey (1883-1911) vem realçar o facto de o objecto das ciências do espírito não ser externo ao homem, mas interno. O homem não pode ser conhecido através da experiência externa, como o objecto natural, mas sim através de uma experiência interna, a única pela qual se apreende a si mesmo (Abbagnano, 1985a). A este propósito, fará sentido lembrar a distinção de Dilthey a propósito do preender e do explicar. Na sua concepção, o com-preender é a operação fundamental no campo das ciências do espírito, ao passo que nas ciências natu-rais o homem ambiciona a explicação (Abbagnano, 1985a). Desta forma, explica-se a natureza e com-preende-se o homem. É, finalmente, com Sigmund Freud (1856-1939) que se opera a transição do sen-sível para o inteligível, ao postular a existência do inconsciente, como estrutura além da consciência ou da biologia (Carvalho, 1991), na qual radicam ener-gias pulsionais e conteúdos recalcados, especial-mente certos desejos da infância (Laplanche e Ponta-lis, 1990). Agora, mais do que nunca, acentuam-se os preconceitos somáticos e intelectualistas (Jaspers, 1987), acendem-se as hostilidades entre escolas de pensamento (por exemplo, humanismo, fenomenolo-gia, psicanálise, comportamentalismo), entre ciências (biomédicas e sociais) e agudizam-se os reducionis-mos (os «isreducionis-mos»).

Já no século XX, em especial a partir da década de 50,

e como resposta a este movimento intelectualista, no qual se tentam estabelecer relações entre os mecanis-mos da psicogénese, da psicodinâmica e da psicopa-tologia, desenvolve-se uma linha de investigação experimental em psicopatologia, na qual se multipli-cam as experimentações neurocirúrgicas (por exem-plo, lobotomia, hemisferectomias, split-brain), a experimentação comportamental sobre a actividade do sistema nervoso central (por exemplo, neuroses experimentais, privação sensorial, privação de sono, sonho e sono REM) e a indução experimental de psicoses através de drogas (por exemplo, alucinogé-nios e anfetaminas) (Ey, Bernard e Brisset, s. d.). Naturalmente que a este propósito da investigação científica seria importante discutir algumas das implicações éticas e humanas que se colocam, embora não seja este o momento oportuno.

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Na realidade, apesar dos francos progressos propor-cionados pelos desenvolvimentos do modelo clínico, um conjunto grande e complexo de limitações ao nível da actuação na área da saúde continuou a sub-sistir. Em primeiro lugar, o doente foi transformado numa entidade biológica, a tratar através de procedi-mentos biomédicos, ficando frequentemente por cui-dar e acompanhar o homem e a pessoa que sofre. Em segundo lugar, aquele que padece de distúrbios gra-ves do foro mental deixa de ser tomado como pessoa de pleno direito para passar a ser tutelado. Esta mudança radical do seu estatuto tem vindo a acarre-tar fenómenos de institucionalização, dessensibiliza-ção e, em certos casos, desumanizadessensibiliza-ção, onde o pró-prio sujeito psicológico corre o risco de perder a sua identidade e autonomia. Em terceiro lugar, e decor-rente destes processos de alienação, próprios das ins-tituições totalitárias, geram-se fenómenos profundos de estigmatização, em que o hospital passa a assumir o sentido pejorativo de asilo. Finalmente, o facto de a abordagem clínica se restringir quase por completo aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos implica que preocupações tão centrais quanto aquelas que se relacionam com a reabilitação e reinserção, bem como a prevenção e promoção da saúde, se coloquem em segundo plano. Necessariamente, outros modelos de actuação e outras preocupações devem nortear este sistema baseado no hospital, con-templando nesse esquema o papel fundamental da comunidade, da família, da reabilitação e da preven-ção. É o sujeito no seu todo que importa considerar e não apenas a sua doença. É a pessoa que se sente perturbada e diminuída, que tem uma história de vida, um meio e modo particular de sentir, que esta-belece laços, que tem desejos, motivações e gostos pessoais. Este é o sujeito psico(-pato-)lógico.

4. Modelo comunitário

Se até ao século XVIII a medicina tinha exercido uma

influência pouco significativa na protecção ou recuperação da saúde (Ferreira, 1990), com o gradual desenvolvimento da indústria, do comércio e da agri-cultura, a necessidade de manter a produtividade e, por inerência, a saúde das populações levou a que a medicina se tornasse um dos instrumentos-chave do equilíbrio entre o social, o económico e o político. Preservar a saúde da pessoa era garantir que a comu-nidade não adoecia e, com ela, o sistema produtivo, a economia e o poder político. Rapidamente a doença e o corpo, como força de trabalho, assumem o aspecto de uma entidade nosopolítica (Foucault, 1993a). De forma complementar, a obrigação de tra-balhar passa a constituir um dos direitos

fundamen-tais do homem. A interiorização da utilidade do tra-balho condiciona a própria realização do indivíduo, tal é a profundidade com que a norma faz parte da vida psicológica do sujeito. Agora é a actividade laboral que se apresenta como uma das condições da saúde, de tal forma que hoje a saúde pode ser defi-nida (Williams, 1984) como a sensação de estar apto para trabalhar, de ter força e vigor, de não se sentir doente ou de estar socialmente activo. Por outro lado, começa-se também a compreender não só a impor-tância de actuar sobre a doença individual, mas tam-bém a necessidade de encontrar os meios de assegu-rar a saúde pública. De facto, aquilo que se percebe é que a vida em comunidade acarreta, ela própria, perigos especiais para a saúde dos indivíduos. Doença individual e saúde pública passam a consti-tuir um elo indissociável na complexa rede das rela-ções entre a doença e a saúde. Então, se a saúde é melhor do que a doença, torna-se imprescindível constituir um sistema de serviços que identifique os problemas principais da comunidade e defina anteci-padamente programas de actuação (Ferreira, 1990). Neste movimento, que vai culminar na instituição dos sistemas nacionais de saúde e que é conhecido como a primeira era da saúde pública (1830-1950), quatro poderosas influências devem ser realçadas: 1. O desenvolvimento da bacteriologia a partir de meados do século XVIII, com James Lind

(1716--1794) a revelar a acção dos frutos citrinos na cura e prevenção do escorbuto (1748), Edward Jenner (1749-1823), que demonstra a possibili-dade de prevenir a varíola pela vacinação (1796), Joseph Lister (1827-1912, 1865), Robert Koch (1843-1910, 1882, 1883) e Louis Pasteur (1822--1865, 1881, 1885), que descobrem alguns dos agentes e modos de transmissão das doenças infecciosas e sintetizam soros e vacinas protecto-res contra algumas dessas doenças, e, um pouco mais tarde, Alexander Fleming (1881-1955), que descobre a penicilina (1928);

2. A formação de enfermeiras, que, em combinação com as medidas de assepsia decorrentes dos novos conhecimentos bacteriológicos, transfor-mou o hospital num centro para o tratamento de doenças e recuperação da saúde;

3. Os dados das estatísticas e dos inquéritos popula-cionais, que relacionam a mortalidade e a morbili-dade com as condições económicas e sociais das pessoas. Neste domínio, John Simon (1816-1904) estabelece os primeiros laboratórios de diagnóstico e controlo das doenças, bem como inquéritos para determinar as principais causas de morte (1868); 4. As concepções e a acção dos reformadores, nomeadamente o jurista britânico Edwin Chadwick

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(1800-1890), que contribui para o esclarecimento da opinião pública em matéria de saúde e acabará por influenciar decisivamente a actividade dos políticos.

Gradualmente, criam-se condições para a organiza-ção de órgãos centrais de poder, informaorganiza-ção e deci-são, bem como para a constituição de um serviço nacional de assistência à doença, apoiado em políti-cas sociais e de saúde, tendo como objectivo garantir a sustentação do crescimento sócio-económico. Este processo compreende três fases (Ferreira, 1990): 1. Um período caracterizado pelas obras de caridade

e a quase indiferença dos poderes públicos; 2. Início do interesse por parte dos poderes

públi-cos, que tomam a seu cargo alguns serviços que não eram assegurados pelas iniciativas particula-res;

3. O momento em que o Estado detém o monopólio da assistência à saúde, situação que só no decurso do século XX, com a moderna saúde pública, vem

a atingir a sua plena forma.

A este propósito, são paradigmáticos os casos da Alemanha, que responde a esta demanda através da estruturação da medicina de Estado, a França, com a medicina urbana, e o Reino Unido, com a medicina social.

4.1. O caso da Alemanha: medicina de Estado

Sendo a Alemanha do século XVIII profundamente

carente de unidade nacional e de um exército comum, o país resultava quase unicamente numa jus-taposição de pseudo-estados em permanente conflito, constituídos, quer por uma classe burguesa economi-camente estagnada e desocupada, quer por uma nobreza envolvida em disputas de poder constantes. Por este motivo, houve a necessidade de desenvolver a ciência da política, a qual tinha como objectivo o estudo do aparelho político e do Estado, mas também o acumular de conhecimentos para melhor assegurar o seu funcionamento. A necessidade de fortalecer o papel do Estado, de pacificar os conflitos em torno de objectivos comuns e de conseguir uma certa con-certação e paz social levou à criação de um corpo de funcionários médicos nomeados pelo governo, os quais eram responsáveis pela região no que diz res-peito à melhoria dos parâmetros de saúde. Paralela-mente, um departamento estatal é encarregado de centralizar as informações transmitidas pelos médi-cos a fim de registar e controlar os diferentes fenó-menos epidémicos e endémicos. Entre 1750 e 1770,

Rau propõe um conjunto de programas para a melho-ria da saúde das populações e em 1764 introduz e vulgariza o conceito de polícia médica (mediziniche-polizei), ao preconizar um sistema organizado de observações ao nível da clínica privada, do hospital e do próprio Estado. Por esta altura acontece também a normalização do ensino universitário médico. Os médicos decidem sobre os conteúdos curriculares e o Estado passa a fiscalizar os programas de ensino e a atribuição dos diplomas. Assim, antes de se aplicar a noção de normal ao doente começa-se por aplicá--la, em primeiro lugar, ao médico (Foucault, 1993a). Com Otto Bismarck (1815-1898) institui-se, pela pri-meira vez (1879), um seguro de doença generalizado e obrigatório, organizando-se um serviço de previ-dência para os trabalhadores, e, através das leis de 1881-1889, constitui-se o primeiro sistema nacional de segurança social que colocou a assistência médica ao alcance dos mais desfavorecidos. Sem dúvida, porém, os objectivos destas medidas eram mais de ordem económica, pretendendo promover um ambiente favorável à manutenção dos níveis de saúde dos trabalhadores e, assim, diminuir o absentismo, bem como preservar o sentimento de tranquilidade e estabilidade social dos beneficiários, e menos uma preocupação ao nível humanitário e da saúde (Fer-reira, 1989).

4.2. O caso da França: medicina urbana

Um outro desenvolvimento dos mecanismos de con-trolo em matéria de tratamento e prevenção da doença deu-se na França, intimamente associado ao processo de crescimento e urbanização das grandes cidades. Por exemplo, a propósito de Paris do final do século XVIII não podia falar-se de uma unidade

urbana, mas sim de uma malha heterogénea de terri-tórios e poderes rivais, os quais eram divididos entre a plebe, a Igreja, as comunidades religiosas e as cor-porações, os nobres, os burgueses e os órgãos esta-tais. Um pouco à semelhança do que ocorria na Ale-manha, também em França existia a necessidade de constituir as grandes cidades como corpos homogé-neos, coerentes e bem regulamentados não só por razões económicas e de produção, mas por uma estratégia política, decorrente da necessidade de con-trolar as tensões sociais entre ricos e pobres que se adivinhavam na aurora do século XIX. Por seu turno,

o desenvolvimento das urbes e o nascimento de uma população proletária pobre, oriunda do campo, são desencadeadores das revoltas de subsistência, as quais vêm perturbar a paz social e fazer perigar a estabilidade político-económica. Estas manifesta-ções, contemporâneas da Revolução Francesa, até

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então mais frequentes no meio rural, transferem-se para a cidade sob a forma de saques a celeiros, mer-cados e entrepostos comerciais. Na sua génese, a revolta resultava da incapacidade dos pobres garanti-rem para o seu sustento devido aos movimentos cíclicos da inflação, com a baixa dos salários e aumento dos preços (Foucault, 1993a). Perante este cenário, a angústia diante da cidade espalha-se e difunde-se o medo das epidemias, muitas das vezes associado aos numerosos cemitérios que invadiam as cidades. Um destes casos foi o Cemitério dos Inocen-tes, situado no centro de Paris, o qual só viria a migrar para a periferia da cidade após os protestos da população, sob a influência de Antoine Fourcroy (1755-1809), um proeminente químico do fim do século XVIII. Semelhante destino foi reservado aos

matadouros. Por esta altura aparece também o caixão individualizado e as sepulturas reservadas às famí-lias, onde se inscrevia o nome de cada um dos defun-tos. Naturalmente que as principais razões destas medidas não se situavam no domínio religioso, mas sim na esfera de uma actuação político-sanitária (Foucault, 1993a).

A medicina urbana surge, pois, com o objectivo de estudar os lugares de acumulação de tudo o que podia provocar doença e a sua difusão, donde decorre que o controlo da circulação de mercadorias e bens, mas especialmente da água e do ar, constituí-ram uma das principais prioridades. Tratava-se da velha crença na teoria do miasma, segundo a qual o ar e as emanações tinham influência directa sobre o organismo. A título ilustrativo, lembremos os relatos de Foucault (1994) na sua obra O Nascimento da Clínica, onde descreve alguns dos métodos utilizados durante o século XVIII para controlar a proliferação

das doenças infecto-contagiosas e assegurar a saúde pública através do recurso ao entaipamento, à qua-rentena e a uma medicina das epidemias. Daqui advém a necessidade de construir longas avenidas e corredores de ar a fim de assegurar o bom ambiente da cidade e o estado de saúde da população. Um dos exemplos referidos por Foucault (1993a) foi a des-truição de casas que se encontravam nas extremida-des das pontes, por se julgar impedirem a circulação do ar em cima dos rios e por se acreditar que reti-nham ar húmido entre as margens. Contemporâneas destas medidas são as obras públicas mandadas rea-lizar sob a direcção do marquês de Pombal (1699--1782), as quais se caracterizaram pelo traçado recti-línio e pela largura das avenidas que favoreciam a formação de um corredor de ar. Assim, por intermé-dio da medicina urbana, as ciências médicas puse-ram-se em contacto com a química de Fourcroy e Antoine Lavoisier (1743-1794) e com o naturalismo de Georges Cuvier (1769-1832), dando origem às

noções de (in)salubridade e higiene pública, as quais constituem a base das abordagens da saúde pública, da saúde ambiental e da engenharia do ambiente. Estas concepções iriam perdurar até ao século XIX,

como o ilustra o primeiro Congresso Internacional de Saúde, realizado em Paris (1851), ainda dominado pela discussão sobre a origem miasmática das doen-ças, uma vez que não se haviam obtido provas abso-lutas da etiologia bacteriana das doenças infecciosas (Ferreira, 1990).

4.3. O caso do Reino Unido: medicina social

É no Reino Unido, país onde o desenvolvimento industrial, urbano e do proletariado foi mais rápido e marcante, que surge uma nova medicina social (Fer-reira, 1990; Foucault, 1993a; Chave, 1984). Esta con-cepção da saúde é também uma das expressões do desenvolvimento científico e do aumento pelas preo-cupações humanitárias e sociais. Nesta Inglaterra revolucionária foram cruciais os contributos de Johan Frank (1745-1821), que delineou um esquema para a higiene e assistência, quer pública, quer privada. Igualmente central foi a contribuição do jurista Edwin Chadwick (1800-90), ao pretender conseguir a maior felicidade do maior número de pessoas, divisa, aliás, herdada da influência do filósofo Jeremy Bentham (1748-1832), para quem o bem da comunidade devia preceder qualquer consideração (Chave, 1984). De entre as concepções de Chadwick sobre a saúde pública, destaca-se a lei dos pobres, a qual consistiu numa intervenção sobre as necessida-des de saúde dos necessida-desfavorecidos. No seu célebre rela-tório The sanitary condition of the laboring popu-lation of the Great Britain (1842), Chadwick estuda as relações entre a doença e a pobreza nas comuni-dades trabalhadoras e conclui que a pobreza constitui a principal causa de doença. É com base neste rela-tório que desenvolve a ideia sanitária, a qual se com-põe por três partes:

1. Uma teoria sobre a causa da doença (insalubrida-de das condições (insalubrida-de vida, putrefacção dos lixos e má ventilação);

2. Um remédio para o problema (canalização de água potável e estruturas de saneamento básico); 3. Implementação de um sistema de fiscalização que culminou, em 1 de Janeiro de 1847, com a cria-ção dos medical officers of health, do qual é pro-tagonista John Simon como o primeiro médico de saúde pública da cidade de Londres.

Este corpo médico teve por função o controlo da vacinação, a organização do registo das epidemias, a

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localização dos focos de insalubridade (Chave, 1984), a assistência-protecção-controlo aos pobres e a constituição de uma medicina privada para os que podiam pagar, estendendo-se um cordão sanitário entre ricos e pobres (Foucault, 1993a). Assim se esboçam os contornos daquilo que virá a ser um ser-viço nacional de saúde destinado aos necessitados, mas também o nascimento de uma política de saúde equitativa, com base na prevenção e numa orientação populacional.

Foram precisamente estes os contributos cruciais que permitiram a passagem da primeira para a segunda era da saúde pública. A primeira era da saúde pública, que nos países desenvolvidos decorreu entre 1830 e 1950, foi, pois, dominada pelo modelo sani-tário, caracterizando-se por um padrão de morbili-dade e mortalimorbili-dade em que dominaram totalmente as doenças infecto-contagiosas e parasitárias, a falta de higiene e sanidade do meio ambiente, as carências alimentares, as doenças profissionais, a elevada mor-talidade (infantil, materna e nas restantes faixas etá-rias) e a baixa esperança média de vida. A partir de 1950 entra-se na segunda era da saúde pública (tam-bém designada por Richmond por segunda revolução da saúde). Entre o início da segunda era (1950) até 1970 dominou o chamado modelo social e a partir de 1970 em diante passa a falar-se do modelo comuni-tário. Esta segunda era da saúde pública é já marcada pela redução ou desaparecimento das anteriores cau-sas de morte, enquanto se desenvolvem novas doen-ças relacionadas com bactérias e vírus mal conheci-dos, mas também doenças crónico-degenerativas, como as cárdio-vasculares, cérebro-vasculares, tumo-res malignos, perturbações metabólicas, hipertensão, alergias, afecções ósteo-articulares, perturbações mentais, suicídio, alcoolismo, acidentes rodoviários e domésticos, etc. Nesta altura, porém, assiste-se à redução da mortalidade infantil e da mortalidade em geral e ao aumento da esperança média de vida (Fer-reira, 1989).

Quanto ao modelo comunitário propriamente dito, as suas influências mais marcantes encontram-se, quer na teoria geral dos sistemas, nos modelos da comu-nicação de Gregory Bateson (1904-80), na escola de Palo Alto e nas teorias ecológicas, quer nos movi-mentos científico-políticos da antipsiquiatria dos anos 60, liderados por Ronald Laing (1927-1989), Thomas Szasz (1920-), David Cooper e Franco Basaglia. Ao afastar-se do reducionismo biomédico, esta concepção pretende substituir o modelo centrali-zado no grande hospital por uma abordagem de cariz local, em que a comunidade, com os seus recursos, potencialidades e características próprias, se assume como o contexto privilegiado a partir do qual deve decorrer todo o processo de tratamento,

(re)habilita-ção de competências, reforço de capacidades e rein-serção. Estes objectivos deverão ser conseguidos através da acção sobre as políticas de saúde, a criação de ambientes sustentados, a potenciação da iniciativa comunitária (empowerment), o desenvolvimento de capacidades e a reorientação dos serviços de saúde (Green e Raeburn, 1988). Porém, a expectativa que se coloca no potencial de auto-organização dos recur-sos da comunidade e a responsabilização sobre o papel da família e das redes de apoio podem não só ser insuficientes para fazer face às necessidades con-cretas dos doentes e das famílias que com eles sofrem, como constituir um encargo excessivo para as já frágeis estruturas sociais e recursos que envol-vem estas pessoas e bolsas populacionais. Nesta perspectiva, parece imprescindível equacionar um modelo comunitário que seja, ele próprio, capaz de sustentar as necessidades pontuais, concretas e inevi-táveis das pessoas com doença, ou que se desviaram do conjunto das normas socialmente estabelecidas, ao invés de simplesmente deslocar o foco de respon-sabilidade na prestação de cuidados. Assim, o funcio-namento social e comunitário não pode substituir, ou compensar por completo, as carências pessoais mais básicas, especialmente se o campo de intervenção é o da psicopatologia e da delinquência. De facto, neste processo de desinstitucionalização e de movimento em direcção à comunidade corre-se também o risco de desproteger e marginalizar os mais necessitados (Palha, 1999), perdendo-se o rasto sobre o seu des-tino, as suas condições de vida e, eventualmente, a própria noção das taxas de incidência e prevalência da morbilidade. Sabe-se também que há alguns doen-tes mentais muito difíceis de manter na comunidade, não só pela grande dependência que revelam dos cuidados que lhes são prestados, mas porque apre-sentam comportamentos particularmente desajusta-dos, envolvendo atitudes agressivas e violentas, con-duta sexual desadequada, propensão à adição, ao roubo e ausência de adesão à medicação (Trieman, 1997). Neste caso é a criminalização dos doentes mentais que poderá estar em causa e a sua transins-titucionalização.

5. Moderna saúde pública

Quer os modelos baseados no raciocínio clínico, quer comunitário, tornaram-se cruciais não só na melhoria das condições gerais de saúde individual e populacio-nal, como também no controlo das doenças infecto--contagiosas e parasitárias (por exemplo, tuberculose, pneumonia, meningite, febre tifóide, parasitoses intestinais), prevalecentes na primeira era da saúde pública. Em resultado destas profundas

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transforma-ções, essencialmente de ordem político-económico--social, mas também técnico-científica, a morbilidade e mortalidade assumiram novos contornos, dando-se a entrada na segunda era da saúde pública (a partir da década de 50) (Ferreira, 1989). Gradualmente, os discursos deixaram de se centrar sobre as preocupa-ções relativas às epidemias, doenças e tecnologias biomédicas (técnicas diagnósticas e terapêuticas) para se deslocarem em direcção aos temas da saúde, da consolidação dos sistemas de cuidados primários e na garantia da qualidade na assistência prestada (nas décadas de 70 e 80). É, pois, com o nascimento de uma moderna saúde pública, decorrente da com-plexificação das perspectivas sobre o homem, que este se torna decisivamente antropológico e, neste sentido, bio-psico-social. A ideia de que a mente e o corpo estão ambos envolvidos nos processos da doença e da saúde exige um modelo deste nível, o qual aparece teorizado precisamente na década de 70, com Engel e o seu artigo intitulado «The need for a new medical model: a challenge for biomedicine» (Engel, 1977). A partir de então micro (por exemplo, perturbações celulares ou hormonais) e macroproces-sos (por exemplo, estado psicológico, suporte social) passam a ser encarados como interdependentes-comunicantes através da corrente sanguínea, de mecanismos aferentes e eferentes, do relacionamento interpessoal ou dos processos de filiação e integração social.

Numa reacção em cadeia, começa a associar-se o funcionamento humano aos estilos de vida e a pro-mover-se a manutenção de comportamentos saudá-veis. Estudam-se factores de risco para múltiplas doenças, no sentido de as prevenir, e desenvolvem-se modelos sobre vulnerabilidade à doença e aconteci-mentos de vida. Motivos técnico-científicos e polí-tico-económicos vão novamente constituir o rastilho desta segunda revolução da saúde. O primeiro contri-buto técnico-científico deveu-se ao estudo de Ala-meda (1959) que se iniciou com a instalação do human population laboratory. A principal inovação foi a tentativa de explicar não apenas os factores associados às doenças, mas também os que promo-viam a saúde (Ribeiro, 1994). Paralelamente (a partir dos anos 60), começa a desenvolver-se a psicologia médica (relação médico-doente e adesão à terapêu-tica), a medicina comportamental (terapêutica dos comportamentos associados à doença) e a medicina psicossomática (papel das emoções nas perturbações físicas). Perto dos anos 80 surge a saúde comporta-mental (promoção da saúde e prevenção da doença), bem como a psicologia da saúde (concepção holística da saúde e doença) (Teixeira, 1992). Ao nível polí-tico, destaca-se o papel de Marc Lalonde (1974), ministro da Saúde e Bem-Estar do Canadá, que

pro-põe a distinção entre «cuidados de saúde» (modelo clínico) e «campo da saúde» (modelo comunitário) (Ribeiro, 1994). Nos Estados Unidos da América são os indicadores económicos aqueles que ressaltam com maior evidência. Ao ser publicado um relatório sobre as despesas no sector da saúde, conclui-se que elas excediam o valor de 200 biliões de USD (mais de 10% do PIB), sendo que 60% a 90% dos proble-mas identificados tinham uma componente psicoló-gica manifesta. Neste sentido, peritos da saúde e do governo iniciaram um conjunto de investigações com vista a diminuir os encargos nesta área (Matarazzo e Carmody, 1983), que culminaram na publicação do relatório intitulado Healthy people: the surgeon general’s report on health promotion and disease prevention (1979), mais conhecido por relatório Richmond, nome do então secretário assistente para a saúde.

É neste espírito que a Organização Mundial de Saúde (OMS) define a saúde como o estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença. De forma pragmática (embora idealista), a OMS e a XXX Assembleia Mundial de Saúde vêm reafirmar estes princípios através da Declaração de Alma-Ata, ao definir um conjunto de 38 metas da saúde para todos até ao ano 2000 (OMS, 1985). Resultando de uma reacção contra a visão hospitalocêntrica, medicalizada e superespecializada, estas metas da saúde foram estabelecidas enfatizando a importância das estratégias de prevenção da doença e promoção da saúde a partir de uma total reorgani-zação dos sistemas de saúde. A nova concepção deverá assentar nos cuidados primários de saúde, bem como num profundo envolvimento e responsabi-lização das pessoas, famílias e comunidades (OMS, 1985). Esta é precisamente a perspectiva de Mahler, segundo o qual a saúde não é um bem que possa distribuir-se às pessoas, mas algo que tem de ser construído por elas a partir de si próprias. Na mesma acepção, Kickbush afirma que a saúde corresponde a um projecto social ligado a responsabilidades políti-cas e não a um empreendimento exclusivamente médico. Agora a intervenção não deve apenas ser vertical, como no modelo clínico, ou horizontal, como no modelo comunitário, mas ortogonal. É o sujeito psicológico, responsável, normativo, moral e ético, integrado na sua família e numa dada comuni-dade, mas também a população como um todo que interessa tomar como alvo estratégico de acção. O objectivo ideal passa a ser a constituição de um sistema com mecanismos intrínsecos de auto-regula-ção dentro das próprias comunidades, no qual o Estado-Providência apenas actue como gestor dos prevaricadores e desviantes ao culto dos «bons» e saudáveis estilos de vida.

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Porém, a grande dificuldade em articular e equilibrar uma política de saúde que contemple, num mesmo plano, as necessidades preventivas, curativas e reabi-litativas tem tornado esta filosofia um ideal de difícil consecução, especialmente quando os orçamentos para a saúde obedecem necessariamente a restrições orçamentais, que, por sua vez, implicam definição objectiva e precisa de prioridades. Estas prioridades, por seu turno, têm sido definidas em função de cri-térios de urgência e letalidade (doença aguda) e rara-mente dando a devida importância aos desenvolvi-mentos progressivos e crónicos, à disfunção resultante da doença ou ao residual. Como é natural, segundo tal lógica, será difícil encontrar lugar para a preo-cupação com a prevenção ou, ainda menos provável, a promoção da saúde daqueles que tão-pouco apre-sentam qualquer sinal ou indício de alteração.

6. Conclusão

Na abordagem dos actuais conceitos de desviância, doença e saúde importa dirigir um olhar em profun-didade sobre os seus contornos e trajectos. É esta observação que pode informar-nos acerca de um sen-tido mais pleno das práticas e discursos a seu res-peito. Na verdade, ao longo dos séculos a natureza humana tem-se mantido inalterada, muito embora se reconheçam concepções, culturas e modos adaptati-vos totalmente diversos e até estranhos à racionali-dade moderna. Será que o homem da Antiguiracionali-dade, possuído pelas forças sobrenaturais, é o mesmo, na sua essência, que o louco da Idade Média, ou o doente mental do iluminismo? Estas questões, que trazem à luz os diversos paradigmas do processo civilizacional, parecem ilustrativas das estratégias e princípios que serviram de base à organização social, económica, cultural, política e, finalmente, científica. Em definitivo, fica a convicção de que a linha de coerência em todo o percurso da história humana está intimamente relacionada com os mecanismos ideoló-gicos e simbólicos de aculturação, socialização, nor-malização e condicionamento. Não se trata aqui de negar a existência da doença, da perturbação, do desajustamento, da delinquência ou até do bem-estar e da qualidade de vida. Trata-se sim de alertar para a necessidade de relativizar e contextualizar as explica-ções que cada paradigma dominante propõe para as grandes questões que se colocam, as quais se regem sempre por um código de leitura e interpretação que obedece a regras implícitas determinadas pelos valo-res vigentes. A este propósito lembremos as noções de obstáculo epistemológico de Gaston Bachelard (1990) ou a de código de leitura do real proposta Boaventura Sousa Santos (1993).

Apesar do penoso caminho, é evidente que a aborda-gem dos fenómenos humanos, gradualmente, passou de um estádio sensível, baseado no senso comum, para um outro inteligível e de base reflexiva (Carva-lho, 1991). Ao transformar a figura do louco na cate-goria de doente mental, naturaliza-se a etiologia e assume-se a patibilidade como condição inerente ao humano. O movimento de afectação e dolência dei-xou de ser pensado de fora para dentro e num sentido místico para passar a ser compreendido de dentro para fora, segundo uma base racional. De forma complementar, aceita-se que a perturbação mental constitui uma patologia, não da dinâmica orgânica, ameaçando visivelmente a vida do homem, mas de uma vivência interna de tipo psicológico, que se ergue como uma fractura ao nível da natureza humana. Ao introduzir os conceitos de doença e per-turbação mental, faz-se uma distinção entre disfun-ções de teor essencialmente médico, com boa res-posta à farmacoterapia e etiologia fundamentalmente biológica (doença mental) e disfunções psicológicas, ou psicossociais, com resposta à psicoterapia e desencadeadas por situações vivenciais (perturbação mental). Poderia ainda falar-se de processos desadap-tativos, os quais se assemelham às perturbações, embora sejam referidos a reacções mais breves e transitórias, eventualmente desencadeados no con-texto de reacções de tendência adaptativa.

Por outro lado, assiste-se à introdução da matemati-zação na relação clínico-doente. Pelo raciocínio epi-demiológico e nosológico, a singularidade ideográ-fica dos sinais e sintomas é confrontada com uma frequência nomotética. Assim, pode avaliar-se melhor a dinâmica sindromática, intervir e, com maior exactidão, prever a evolução provável. Estes são já humildes saltos na ascensão gnoseológica. Por outro lado, a desordem, a desviância e a doença foram também alvos das intervenções de tipo comu-nitário, com vista a garantir a ordem, a segurança, a estrutura sócio-técnica, a saúde e a qualidade de vida. Segundo este modelo, compreendeu-se a implantação dos corpos no espaço, a distribuição das pessoas e suas relações, as organizações hierárquicas e dos canais de poder, aproximando-se a comunidade de um sistema panóptico. Curiosamente, o sistema panóptico, concebido por Bentham, foi inspirado no jardim zoológico que Louis le Vaux construíra em Versalhes. O panóptico é o mecanismo do poder levado à sua forma ideal, funcionando como uma espécie de sistema óptico em que o indivíduo não tem a possibilidade de se esconder do observador. A todo o momento ele pode ser olhado, vigiado ou controlado. Dada a polivalência com que foi conce-bido, ele pode utilizar-se nos hospitais, nas oficinas, nas escolas, nas prisões ou na sociedade. Cada vez

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