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Recomendações de leitura e terapias literárias

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Academic year: 2021

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Universidade de Lisboa

Faculdade de Letras

Programa em Teoria da Literatura

Recomendações de leitura e terapias literárias

Tiago Manuel Ribeiro Patrício

Dissertação para a obtenção do Grau de Mestre em Teoria da Literatura

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Universidade de Lisboa

Faculdade de Letras

Programa em Teoria da Literatura

Recomendações de leitura e terapias literárias

Tiago Manuel Ribeiro Patrício

Dissertação para a obtenção do Grau de Mestre em Teoria da Literatura

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Agradecimentos

Agradeço à Professora Ângela Fernandes pelo apoio desde o primeiro ano e pela forma como orientou e deu resposta às dificuldades geradas pela escrita desta tese.

Agradeço também ao Professor Miguel Tamen pela perspicácia na detecção das fragilidades dos argumentos e pelo voto de confiança para tratar este tema.

Deixo também um agradecimento especial aos professores dos seminários do Programa em Teoria da Literatura, bem como aos colegas que estimularam a abertura de novos caminhos e que possibilitaram a discussão em torno desta problemática.

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4 As there are in medicine the art of diagnosis and the art of cure, so in the arts, so in the particular arts of poetry and of literature, there is the art of diagnosis and there is the art of cure.

in Literary Essays, Ezra Pound

Dans la lecture, l’amitié est soudain ramenée à sa pureté première. in Sur la Lecture, Marcel Proust

Medicina para a alma

No pórtico da biblioteca de Tebas

Come, and take choice of all my library, And so beguile thy sorrow.

in Titus Andronicus, William Shakespeare

(…) literatura de boas intenções, isto é má literatura. in Florbela Espanca, Agustina Bessa-Luís

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Resumo

A biblioterapia pode ser definida como terapia através de livros e de leituras orientadas, mas apesar do reconhecimento crescente nas últimas décadas ainda é uma palavra ausente nos dicionários portugueses. Ezra Pound, no ensaio The serious artist, publicado em 1913, defende que na literatura também existe a arte de diagnosticar e a arte de curar, tal como em medicina. A partir destas qualidades associadas à narrativa literária, duas terapeutas, Ella Berthoud e Susan Elderkin, mantiveram um consultório literário em Londres e editaram em 2013 uma espécie de prontuário literário, The Novel Cure: An A-Z of Literary Remedies, no qual aconselham romances para diversas doenças e para outros imprevistos.

Estas autoras “prescrevem” romances literários porque consideram que apenas a forma narrativa oferece a possibilidade de desdobramento e da suspensão do tempo, uma vez que, segundo Marc-Alain Ouaknin, é através desses efeitos que se funda a possibilidade de regeneração e de abertura para outro tempo, numa temporalidade harmónica e equilibrada entre passado, presente e futuro. Paul Ricoeur também refere que o acesso ao tempo se dá através da narrativa, uma vez que o tempo é inapreensível e só se torna tempo humano na medida em que é articulado de um modo narrativo.

Considerando estas posições de autores e de terapeutas, pretende-se nesta dissertação contextualizar as aplicações da biblioterapia e comentar alguns efeitos conhecidos da leitura de alguns livros, bem como perceber de que forma se podem prescrever livros para determinados fins.

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Abstract

Bibliotherapy can be defined as therapy through books and oriented readings, but despite the increasing recognition in recent decades, this is still a missing word in Portuguese dictionaries. Ezra Pound, in his essay The serious artist, published in 1913, argues that in literature there is also the art of diagnosing and the art of cure, as in medicine. From these qualities associated with literary narrative, two therapists, Ella Berthoud and Susan Elderkin, held a literary office in London and decided to publish in 2013 a kind of literary handbook, The Novel Cure: an A to Z of Literary Remedies in which they advise novels for various diseases and other problems.

These authors "prescribe" literary novels because they consider that only narrative form offers the possibility of deployment and the suspension of time. According to Marc-Alain Ouaknin, it is through these effects that the possibility of regeneration and opening to another time happens, in a harmonious and balanced temporality between past, present and future. Ricoeur also refers that access time happens through the narrative, since time is inapprehensible and only becomes human time insofar as it is articulated in a narrative way.

Considering these positions of authors and therapists, the aim of this thesis is to describe the context applications of bibliotherapy and review some effects of reading books, thus trying to understand how it is possible to prescribe books for certain purposes.

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Índice

Introdução: a biblioterapia como questão literária e terapêutica……….. 8

Secção I 1) Biblioterapia, consolationes e outras modalidades……… 27

2) Explanando o conceito de Terapia..………..… 40

3) Prosa, poesia e escrita terapêutica………...46

4) A Literatura e a Medicina – Medicina Narrativa……….56

Secção II 1) A narrativa e a identidade pessoal..……… 61

2) Efeitos gerais e prescrições de romances, dois exemplos institucionais……….66

3) Recomendações, orientações e proibições de leitura ………... 72

4) Guia biblioterapêutico – The Novel Cure.……… 82

5) Poetas nas cidades.………..……… 105

6) Biblioterapia, uma prática baseada na opinião………..………….. 110

Anexos ...…... 115

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8 Introdução: a biblioterapia como questão literária e terapêutica

Quando era Farmacêutico tinha um enorme receio de errar na tarefa de interpretação das prescrições médicas escritas à mão e com caligrafias difíceis, uma vez que essas interpretações poderiam conduzir à dispensa de medicamentos errados ou a doses incorrectas e causar efeitos deletérios nos utentes. O temor era tanto maior se os medicamentos prescritos fossem para crianças, porque as pequenas diferenças de dose podiam causar efeitos mais graves e irreversíveis.

Quando decidi dedicar-me à escrita, achava que estaria livre da preocupação com os efeitos dos meus próprios textos, porque estava a entrar num terreno onde não era especialista e a ideia que tinha da literatura era a do mais perfeito senso comum: a ter efeitos, a literatura só teria efeitos positivos. É por isso habitual elogiar a leitura de textos literários a partir da sua utilidade e entre os seus efeitos benéficos é possível encontrar várias descrições como a melhoria do relacionamento entre as pessoas, o prazer estético, o aumento do conhecimento e uma maior capacidade de decisão (Fernandes 2004: 31-38), mas também é possível encontrar defesas menos inflaccionadas da literatura, atribuindo-lhes funções não menos importantes como a de proporcionar um modo de entender uma certa noção de humanidade (Fernandes 2004: 12).

Umberto Eco, o seu ensaio Sobre Leitura, afirma que a função da literatura não é transmitir ideias morais nem formar nos leitores o sentido do belo, mas acaba por concluir que: “uma das funções principais da literatura é a educação para a morte” (Eco 2003: 22-23). A partir daqui podemos pensar na responsabilidade que alguns autores, como Cícero, atribuíram à filosofia: “estudar filosofia não é mais nada do que a preparação para a morte”, tal como é citado por Michel de Montaigne num dos seus ensaios (Montaigne 1910

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9 (1580): 179 e observar a afinidade entre literatura e filosofia, pela responsabilidade destes dois discursos perante um dos momentos mais importantes da vida.

Harold Bloom também se interessou pela disseminação da ideia de bondade geral da literatura nos discursos produzidos pelo campo das Humanidades e dos Estudos Literários. No seu ensaio O Cânone Ocidental, alerta:

Os maiores escritores do Ocidente subverteram todos os valores, tanto nossos como deles. (…) se formos ler o Cânone Ocidental para formar os nossos valores sociais, políticos ou pessoais, transformar-nos-emos em monstros de egoísmo e de exploração (Bloom 2002: 39).1

Se concordarmos com Bloom, parece difícil aceitar que os discursos sobre a literatura possam ser reduzidos a efeitos definidos genericamente como benéficos para toda a gente. No entanto, é aceitável reconhecer que a leitura de certos livros pode mudar a vida das pessoas ou modificar crenças, as quais podem influenciar acções concretas. Harold Bloom, no prefácio do livro Como ler e porquê, oferece-nos a seguinte definição de literatura: “A literatura devolve-nos à alteridade, ao que é outro em nós, nos nossos amigos ou naqueles que poderão vir a sê-lo. A literatura de imaginação é alteridade e enquanto tal alivia a solidão” (Bloom 2001: 15).

O investigador Keith Oatley compara a interacção entre um determinado leitor e um determinado livro como um verdadeiro encontro no qual se desenvolve uma possibilidade de diálogo (Oatley 1999). A partir daqui podemos recorrer aos atributos associados à leitura e aproximá-la do conceito de amizade. No prefácio de Marcel Proust à sua tradução de Sésame et les Lys de John Ruskin, podemos encontrar algumas considerações sobre a

1 Todas as citações serão apresentadas em tradução conforme as referências bibliográficas finais. Nos casos

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10 leitura que favorecem este argumento, uma vez que Proust apenas concebia a possibilidade de diálogo íntimo e franco através dos livros, algo muito superior ao que ele considerava possível através da amizade com pessoas:

Sem dúvida, a amizade, que toma em consideração os indivíduos, é uma coisa frívola, e a leitura é uma amizade. Mas pelo menos é uma amizade sincera, e o facto de ela se dedicar a um morto, a um ausente, dá-lhe qualquer coisa de desinteressado, de quase tocante. É para além disso uma amizade livre de tudo o que constitui a fealdade das outras (Proust 1906: 60).2

Nos últimos anos foram editados alguns compêndios com listas de livros indicados para as mais variadas situações (mudança de casa, desemprego, divórcio, solidão, dificuldade em tomar decisões e problemas de saúde, desde a depressão até à gripe sazonal) e que são versões um pouco mais sofisticadas e sistemáticas das antigas listas elaboradas por alguns bibliotecários que os leitores podiam consultar para escolher os livros mais adequados a cada ocasião (Pehrsson & McMillen 2005). No entanto, os “Prontuários Literários” actuais pretendem estabelecer uma correspondência entre algumas qualidades dos romances e os problemas que os leitores atravessam (Berthoud & Elderkin 2013: Intr.).

Um dos guias mais recentes e mais ambiciosos tem o título The Novel Cure – An A-Z of Literary Remedies e foi escrito por duas autoras, Ella Berthoud e Susan Elderkin, que mantiveram um consultório literário durante vários anos em Londres em parceria com a “School of Life” fundada e presidida pelo escritor Alain de Botton. Esta espécie de prontuário literário pretende lançar contributos para que as narrativas literárias voltem a ser lidas por pessoas que procuram habitualmente ajuda em livros de não-ficção (classificados

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11 como de autoajuda), para enfrentar dificuldades, respostas para dúvidas existenciais e dilemas quotidianos, afiançando que a virtude do consolo e da ajuda para clarificar situações complexas foi desde sempre uma das funções da literatura (Berthoud & Elderkin 2013: Intr.).

Segundo as autoras, a qualidade moral poderá estar na história (que causa encantamento), no ritmo da prosa (que actua sobre a mente, acalmando ou estimulando) ou numa ideia ou numa atitude tomada por uma personagem (que sugere um dilema semelhante ao do leitor em causa):

Há romances com o poder de transportar o leitor para outra existência e de mostrar o mundo de um ponto de vista diferente. Quando o leitor está tão envolvido num romance que nem consegue parar é porque está a ver o que a personagem vê, a tocar no que ela toca e a aprender com o que a personagem aprende. Pode pensar que está sentado no sofá da sua sala, mas a parte mais importantes de si – os seus pensamentos, os seus sentidos e seu espírito – está noutro lugar (Berthoud & Elderkin 2013: Intr.).

Este entusiasmo em relação aos romances parte do princípio que as narrativas literárias nos tornam melhores pessoas e é defendido, em parte, por James Wood no seu ensaio A Mecânica da Ficção: “A literatura faz de nós melhores observadores da vida e permite-nos exercitar o dom na própria vida, que por sua vez nos torna mais atentos ao detalhe na literatura, que por sua vez nos torna mais atentos ao detalhe na vida” (Wood 2010: 95).

Martha Nussbaum, no seu artigo publicado em 1985 “Finely aware and richly responsible: Moral attention and the moral task of literature”, defende que os bons romances dão a noção correcta de um tom associado às virtudes clássicas, e o encontro entre o bom leitor e o bom romance é o momento chave para praticar aquilo que a autora

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12 designa como treino moral, durante o qual o leitor se esforça em participar nos afectos e nas emoções das personagens tomando-as como as suas próprias aventuras. Segundo Nussbaum, o romance garante, através do carácter ficcional, que o leitor ficará livre de ciúmes possessivos e de uma excitação vulgar em relação às personagens.

Apesar da complacência de Nussbaum em relação aos romances, assumir que os bons romances nos podem ensinar a ser melhores também deveria contemplar o oposto, ou seja, que nos podemos tornar piores pessoas depois de ler certos romances. Harold Bloom em O Cânone Ocidental afirma que ler “Shakespeare não nos faz melhores, tal como não nos faz piores” (Bloom 2002: 40). Contudo, a ideia de que podemos encontrar uma resposta para determinados problemas pela leitura de um livro e pelo exemplo de certas personagens é bastante aliciante. Segundo Umberto Eco, as personagens existem assim como existem hábitos culturais ou disposições sociais e estas, tal como as personagens, podem alterar os destinos das sociedades humanas (Eco 2011: 20). No entanto, para Candace Vogler não devemos sequer procurar exemplos a partir de personagens de romances (Vogler 2007: 28):

Porque as pessoas mudam e as personagens literárias não. O que parecia ser uma simples diferença epistemológica – as pessoas são mais difíceis de conhecer do que personagens literárias – torna-se na distinção fundamental entre as personagens literárias e as pessoas vivas (Vogler 2007: 29).

Segundo Vogler não se deve fazer experiências com questões éticas nem se pode generalizar a partir de exemplos de personagens (Vogler 2007: 32). Para a autora, esta atenção da filosofia moral na leitura de romances baseia-se na crença que a ficção pode fornecer uma ideia melhor dos desafios éticos da vida, como se fosse possível extrair instruções morais a partir da leitura de romances (Vogler 2007: 8). O exemplo citado a

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13 partir do romance The Golden Bowl de Henry James (publicado em 1904) ilustra bem esta tentativa, uma vez que Nussbaum começa por sugerir uma leitura literal da cena entre as personagens Adam e Maggie, depois segue o caminho da exegese textual e passa da leitura alegórica para a moral no sentido de definir aquela conversa entre um pai e uma filha como exemplar. Segundo Vogler, esta forma de ler romances pressupõe que o leitor chegue à anagogia, o último nível de exegese textual (segundo o modelo tradicional de hermenêutica bíblica), e que tome para si aquele tipo de comportamento nas suas futuras relações (Vogler 2007: 19). No entanto, Vogler considera que estas narrativas exemplares não oferecem soluções para os problemas práticos e “se fazem alguma coisa é tornar os problemas piores do que pareciam” (Vogler 2007: 20).

Para além deste conflito de posições, outro elemento importante associado à bondade das narrativas literárias é a noção de aventura. Esta ideia de que através da leitura o leitor toma as aventuras das personagens como as suas próprias aventuras é defendida por Nussbaum, mas rebatida por Cora Diamond no seu artigo “Missing the Adventure: Reply to Martha Nussbaum”, uma vez que viver as aventuras de personagens não representa nenhum ganho, mas sim uma perda, porque o leitor ao decidir ler prescinde de viver as suas próprias aventuras reais(Diamond 1985: 531).

Apesar disto, a ideia de que a literatura tem efeitos e que é preciso pensar sobre eles é tão antiga quanto Sócrates, pelo menos a personagem Sócrates apresentada por Platão. No Livro II da República, Sócrates adverte para o cuidado a ter com a poesia à qual os mais jovens estão sujeitos, revelando uma especial preocupação com a maturidade dos leitores. Para Sócrates não é possível consentir “que as crianças escutem fábulas fabricadas ao acaso e que recolham na sua alma opiniões na sua maior parte contrárias às que, quando crescerem entendemos que deverão ter” (Platão II.377b). Por isso os autores deverão ser vigiados e as fábulas seleccionadas a fim de afastar as más e escolher as boas para serem

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14 contadas às crianças pelas mães e pelas amas. Sócrates chega a dizer que “das que agora se contam, a maioria deve rejeitar-se” (Platão II.377b).

No Livro III, em diálogo com Adimanto, Sócrates considera que toda a poesia ou prosa que diga mal de Zeus não deverá ser proferida nem escutada, quer por jovens quer por velhos numa cidade com boas leis; porque isso seria pecaminoso, abusivo e absurdo (Ibid III.386c). No Livro X, Sócrates admite que:

(…) quando escutamos Homero ou qualquer outro poeta trágico imitar um herói que está aflito e se espraia numa extensa tirada cheia de gemidos, ou os que cantam e batem no peito, gostamos disso, e nos entregamos a eles, e os seguimos, sofrendo com eles, e com toda a seriedade elogiamos o poeta, como sendo bom, por nos ter provocado, até ao máximo, essas disposições (Ibid X.605c).

Porém, essas disposições são impróprias no que concerne à concepção de cidadão descrita na República de Platão: aquele que deverá manter-se tranquilo e forte na adversidade evitando comportamentos que o possam envergonhar. Daí que a escuta da poesia que louve ou regozije comportamentos pouco dignos deva ser afastada. Até este passo, Sócrates citado por Platão não se opõe a toda e qualquer forma de poesia, uma vez que a sua preocupação prende-se mais com a substância dos versos, em especial aqueles capazes de levar os homens ao erro e ao engano. A República de Platão insiste na defesa de um discurso coerente, argumentativo, mas justo e verdadeiro, por isso, todos os poemas ou fábulas que colocassem na boca dos deuses e dos heróis lamentações e injúrias seriam alvos de censura por estarem próximos de um discurso falso. No entanto, no início do Livro X, para além de questões de conteúdo, Sócrates alude à questão da doutrina sobre a poesia que deverá vigorar na cidade e afirma que não deverá: “aceitar a parte da poesia de carácter mimético” (Platão X.595a), uma vez que esta afecta os seus ouvintes e os afasta

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15 das qualidades cívicas baseadas na racionalidade, na ideia de bem e de justiça. Na República ideal de Platão só se aceitam “os amadores de poesia que falem em prosa, em sua defesa, mostrando como é não só agradável, como também útil, para os Estados e a vida humana” (Platão X.607d).

No entanto, Platão criou personagens semelhantes a pessoas reais para elaborar os seus diálogos e recorreu à mimese para expor os seus argumentos que advertiam para os perigos dessa própria mimese. Segundo Harold Bloom, a personagem Sócrates (de A República e de outros diálogos de Platão) tem atributos semelhantes aos de um herói Homérico que, tal como Aquiles e Odisseu, alcançou a imortalidade literária através de técnicas narrativas e dialógicas (Bloom 2008: 59-60). Platão começa por prescrever, no Livro III da República, o afastamento da poesia imitativa cujo conteúdo fosse contrário às qualidades cívicas que ele defendia, mas no Livro X argumenta que a própria poesia imitativa, e os poetas, não deviam fazer parte da educação das crianças gregas por se afastarem três graus da verdade, uma vez que a poesia mimética é uma imitação da natureza e dos objectos, que por sua vez estão abaixo das ideias na escala de verdade. Assim, considera o poeta como um imitador que:

(…) instaura na alma de cada indivíduo um mau governo, lisonjeando a parte irracional, que não distingue entre o que é maior e o que é menor, mas julga, acerca das mesmas coisas, ora que são grandes, ora que são pequenas, que está sempre a forjar fantasias, a uma enorme distância da verdade (Platão X.605b).

No livro III, a poesia que atribuía maus sentimentos aos deuses é considerada nefasta, uma vez que a personagem Sócrates considerava que tudo o que dizia respeito aos deuses era bom e participava na verdade. Desse modo, toda a poesia em que os deuses se mostravam caprichosos, maldosos e com sentimentos próximos dos mortais afastava-se da

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16 ideia de bem e nada de bom se poderia seguir a isso. Este critério de avaliação platónico continua presente, mas por vezes de forma paradoxal. Um dos exemplos é o modo como a biblioterapia, uma disciplina que se baseia nos princípios da “cura pelo livro” (Ouaknin 1996: 72) tem todo um programa de avaliação criteriosa de livros com base num cálculo de efeitos a partir das qualidades dos textos e dos modos como os leitores são influenciados por eles. Contudo, a biblioterapia demonstra, pelo menos em aparência, uma visão benevolente da literatura. Há estudos, como o do investigador Silke Heimes, em que são reconhecidas vantagens às várias abordagens da biblioterapia e da terapia pela poesia em vários domínios da medicina convencional (Heimes 2011: 5). Marc-Alain Ouaknin, um teólogo hebraico e autor do livro Biblioterapia, vai ainda mais longe e concede que:

(…) além do prazer do texto, a leitura oferece ao leitor, por identificação, apropriação e projecção, a possibilidade de descobrir uma segurança material e económica, uma segurança emocional, uma alternativa à realidade, uma catarse dos conflitos e da agressividade, uma segurança espiritual, um sentimento de pertença, a abertura a outras culturas, sentimentos de amor, comprometimento, superação das dificuldades, valores individuais e pessoais (Ouaknin 1996: 18).

Este somatório de efeitos positivos demonstra que os modos de ler que a bibliterapia preconiza para ensinar a melhor maneira como se deve viver apelam muito mais às emoções do que à racionalidade. Ou seja, para além de as virtudes do século V a.C. não serem as mesmas que a biblioterapia defende (tais como a empatia pelo outro e a benevolência, as quais Platão advertia como nefastas para não amolecerem o espírito dos cidadãos), a forma de olhar para a arte literária é oposta à forma racional e livre de fantasias que Platão defendia.

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17 Apesar de a maioria dos programas educativos europeus não exaltar a figura do guerreiro, nem a racionalidade esvaziada de emoções, uma vez que o discurso sobre as virtudes cívicas se alterou, mantém-se viva a ideia expressa em A República de que “a maior parte dos cidadãos nunca chegam a crescer e por isso se torna necessário alimentá-los de ficções benfazejas e não com as epopeias de Homero, em que os deuses são espectadores egoístas e maldosos, que se divertem vendo-nos sofrer no seu teatro da crueldade” (Bloom 2008: 44). Como exemplo a favor desta leitura de Bloom temos uma réplica de Sócrates no Livro III, na qual começa a expor as dificuldades em regulamentar o tipo de histórias que se deverão contar (que só irá concluir no Livro X):

(…) diríamos que os poetas e prosadores proferem os maiores dislates acerca dos homens: que muitas pessoas injustas são felizes, e desgraçadas as justas, e que é vantajoso cometer injustiças, se não forem descobertas, que a justiça é um bem nos outros, mas nociva para o próprio. Tais opiniões, dir-lhes-íamos que se abstivessem delas, e prescrever-lhes-íamos que cantassem e narrassem o contrário. Não achas? (Platão III.392b)

Se a biblioterapia se propõe ajudar as pessoas a encontrar respostas para os seus problemas e antever um caminho para os superar ou simplesmente encontrar consolo para os sofrimentos inevitáveis, considerar-se-á importante que não se restrinja o campo biblioterapêutico aos romances que apresentam visões positivas ou didácticas da condição humana, uma vez que os textos literários que fazem parte do cânone (e que resistem ao longos dos séculos porque afectaram de algum modo e influenciaram leitores de épocas diferentes) partilham pouco essa candura. No entanto, há outro dilema evidente: a biblioterapia propõe tratar pessoas através da leitura, mas a maioria dos livros que poderiam eventualmente funcionar como terapia “não têm hinos aos deuses nem celebram

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18 os homens bons” (Bloom 2008: 48) e não garantem nenhum ganho imediato para os leitores nem que algo de positivo aconteça nas suas vidas.

Reconhecendo as dificuldades em torno desta problemática, uma das soluções encontradas pelas biblioterapeutas Ella Berthoud e Susan Elderkin foi a criação de guias de leitura e a abertura de consultórios literários para ajudar os leitores a ganhar autonomia e competências para aprenderem a ler por si e poderem “tratar-se” a si próprios. Mais uma vez não podemos deixar de notar alguns ecos de A República de Platão no que concerne à necessidade de educar os leitores antes de lhes permitir ler todo o tipo de livros, em especial aqueles que recorrem à mimese: “Aqui entre nós (…), todas as obras dessa espécie se me afiguram ser a destruição da inteligência dos ouvintes, de quantos não tiverem como antídoto o conhecimento da sua verdadeira natureza.” (Platão X.595b).

É possível reencontrar a questão do antídoto em autores que o relacionam com uma espécie de saber acumulado por muitas leituras e que permite alguma distância analítica em relação aos textos, como uma imunidade ao poder empático dos textos de literatura imaginativa. Pode considerar-se que essa imunidade é a principal característica dos censores, os quais se arriscam a ler todos os livros e em quem certas concepções de Estado confiam para decidir quais os que poderão ser perigosos para o cidadão comum. Para além de todos estes problemas relacionados com os fundamentos e aplicações da biblioterapia, não é possível sustentar que os livros tornem os leitores melhores cidadãos apenas porque fornecem bons exemplos e bons sentimentos. No entanto, a crença de que o bem causa sempre coisas boas e os vícios próprios da natureza de cada coisa é que causam a corrupção levou Platão a afirmar o seguinte em relação à poesia e aos poetas imitativos:

(…) somente se devem receber na cidade hinos aos deuses e encómios aos varões honestos e nada mais. Se, porém acolheres a Musa aprazível na lírica ou na epopeia, governarão a

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19 tua cidade o prazer e a dor, em lugar da lei e do princípio que a comunidade considere, em todas as circunstâncias, o melhor (Platão X.607a).

Algumas defesas da literatura partilham com a biblioterapia a crença de que o contacto íntimo com a literatura torna as pessoas melhores, mas se assim fosse, os professores dos departamentos de Humanidades seriam pessoas generosas e não criariam conflitos com os colegas, tal como Stanley Fish explica num ensaio publicado no jornal New York Times em 2008:

É uma bela ideia, mas não há nenhuma evidência que a suporte ao passo que há uma grande quantidade de provas contra ela. Se fosse verdadeira, as pessoas mais generosas, pacientes, bondosas e honestas seriam os membros dos departamentos de literatura e filosofia das universidades, que passam o tempo inteiro com grandes livros e grandes pensamentos, mas para alguém como eu que passei por lá durante 45 anos, posso dizer-lhes que não é assim. Os professores e os estudantes de literatura e de filosofia não aprendem a ser bons nem sábios; aprendem a analisar efeitos literários (…) e a distinguir entre diferentes formas dos fundamentos do conhecimento3.

É importante também lembrar que em 1946, a Organização Mundial de Saúde (OMS) aprovou na reunião plenária que constituiu este organismo das Nações Unidas, um dos conceitos mais famosos de saúde e que a define como “o completo estado de bem-estar físico, mental e social, e não simplesmente a ausência de enfermidade”4. Esta definição é de tal modo exigente que coloca a ideia de saúde muito próxima daquilo a que se pode chamar de felicidade e que atrai profissionais de áreas tão distantes da medicina como escritores, músicos, pintores ou pessoas especializadas em domínios como a biblioterapia,

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Stanley Fish “Will the Humanities Save Us?” (2008) New York Times, Jan 6, 2008.

Disponível on-line: http://opinionator.blogs.nytimes.com/2008/01/06/will-the-humanities-save-us

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20 a aromoterapia ou a psicologia da felicidade a contribuir para concretizar as premissas da OMS. Outro dos problemas desta definição relaciona-se com a ideia de que algumas patologias são resultado de percepções erradas por parte dos doentes, baseadas em falsas expectativas ou em dificuldades em lidar com a frustração de não corresponderem ao tal estado de completo bem-estar físico mental e social e não simplesmente a ausência de enfermidade. Uma das soluções apresentadas para estas dificuldades é o recurso a uma aprendizagem mais vasta dirigida para o campo da narrativa. Segundo Anthony Rudd a noção de identidade pessoal está ligada à capacidade de contar uma história coerente sobre si próprio e a própria vida de cada um deverá ter um tipo de unidade característica de uma narrativa (Rudd 2009). Marc-Alain Ouaknin, autor do livro Biblioterapia, defende uma espécie de reencantamento do mundo mediado pela literatura e através de uma interpretação questionadora dos textos em vez de uma procura por respostas imediatas:

O espanto diante do mundo não pode ser adquirido de uma vez por todas. É preciso recomeçar sempre o difícil trabalho de retracção não somente em relação ao saber mas também em relação à pergunta. Uma pergunta que se tornou habitual não é mais questionadora. O questionamento não deve tornar-se num catálogo ou num museu de perguntas e respostas (Ouaknin 1996: 311).

Das várias disciplinas que recorrem aos textos literários com o intuito de promover uma maior consciência de si e resolver problemas de saúde, a biblioterapia foi a que conheceu o maior crescimento no contexto de internamento hospitalar e ambulatório, em doentes terminais, oncológicos, com dependências ou com traumas relacionados com violência física ou psicológica (Heimes 2011: 2-5). As principais modalidades associadas à biblioterapia são a escrita terapêutica, a poesia terapêutica e a leitura terapêutica, actualmente reconhecidas pelas áreas da Psiquiatria, da Psicoterapia e da Oncologia como

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21 terapias que contribuem para a melhoria da qualidade de vida de doentes e a sua forma de lidar com os tratamentos e com a proximidade da morte (Heimes 2011: 5).

Em relação a estas defesas da literatura pela sua componente terapêutica, poderíamos encontrar alguma concordância da parte de Harold Bloom, em especial com a primeira parte de um dos argumentos que constam do seu ensaio O Cânone Ocidental:

(…) ele (Shakespeare) pode ensinar-nos a maneira de aceitar a mudança tanto em nós como nos outros, e talvez até a forma final da mudança. Hamlet é para nós o embaixador da morte, talvez um dos poucos embaixadores enviados pela morte que não nos mente acerca da nossa relação inevitável com essa região desconhecida. A relação é completamente solitária, apesar de todas as obscenas tentativas que a tradição fez para a socializar (Bloom 2002: 40-41).

Mesmo fazendo a concessão de que a literatura pode ajudar ou servir de consolo num dos momentos mais terríveis da existência, a última frase de Bloom alude para a contradição entre ajudar alguém a aceitar melhor a morte e a própria ideia de consolo, uma vez que esse é um momento solitário, para o qual é possível afirmar que não há aprendizagem nem consolo possíveis.

O guia The Novel Cure recomenda o romance A morte de um apicultor5, do escritor sueco Lars Gustafsson, para pessoas que tenham de lidar com dores insuportáveis. Neste romance a personagem principal vive o agudizar de uma doença maligna (Berthoud & Elderkin 2013: 316-317). No entanto, em vez de secundar as premissas da biblioterapia, segundo as quais a leitura de romances é sempre positiva, este texto coloca-as em causa, especialmente nos últimos capítulos quando a personagem principal (que também é o narrador) afirma: “O que está a acontecer-me é repugnante, abominável e aviltante, e

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22 ninguém me convence a aceitar isto ou a persuadir-me de que é bom para mim” (Gustafsson 2001: 172). A partir desta frase, podemos admitir que suscitar o diálogo sobre temas difíceis ou lembrar ao leitor que não está sozinho com os seus problemas não garante nada, pois o leitor poderá reagir como o narrador deste romance.

Continua a ser difícil encontrar consolo para a morte e certos textos literários, prescritos como terapêuticos, podem piorar a situação dos leitores se estes depositarem demasiadas expectativas nesses textos “paliativos”, ou seja, nem sempre é bom suscitar conversas lúcidas sobre temas difíceis, especialmente quando não há solução para esses problemas.

A noção de que as patologias têm origem num desequilíbrio psíquico tem permitido a abertura a terapias não convencionais que propõem tratar esses desequilíbrios mesmo quando as doenças têm uma componente orgânica evidente. Essa crença é partilhada pelo senso comum e sustentada pelo ensaio Biblioterapia de Marc-Alain Ouaknin. Se aceitássemos o argumento de que o trabalho de reequilíbrio psíquico iria devolver o estado de sanidade a alguém assolado pela doença, poderíamos acreditar que a leitura de certos livros poderia corrigir activamente traumas e passar das palavras para o corpo. O problema é que apesar de existir uma correlação positiva entre a leitura e algumas reacções fisiológicas (como por exemplo, o aumento da frequência cardíaca durante a leitura de uma passagem com um ritmo narrativo acelerado ou o aumento da salivação ao ler palavras como lima, limão, laranja, ananás, toranja e maracujá ou ainda a secreção lacrimal ao ler um romance com um grande conteúdo emocional), não é possível estabelecer uma equivalência fidedigna entre leituras e reacções orgânicas, nem tampouco assumir a priori que um livro pode actuar de forma igual em glândulas, órgãos e sistemas. Continuando o raciocínio que relaciona a leitura com efeitos orgânicos e lembrando o conceito de “Bala

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23 Mágica”, criado por Paul Ehrlich (Ehrlich 1912) nos primeiros anos do século XX (segundo o qual, o medicamento ideal seria como um projéctil que destruiria o inimigo sem causar danos às células saudáveis do corpo, tomando as causas das patologias como os inimigos a combater e não os sintomas), poderíamos fazer, de uma forma grosseira, a transposição para os livros e levar a fantasia ao limite de acreditar que a leitura de “livros terapêuticos” ou de “livros mágicos” poderia actuar nos órgãos e nos sistemas fisiológicos tornando-os mais competentes.

Umberto Eco, a partir da sua leitura da Poética de Aristóteles, divide a “cura pelos livros” em dois modelos: o homeopático e o alopático. O primeiro centra-se na empatia dos leitores com as personagens, levando-os a uma descarga emocional (libertando-os); o segundo modelo propõe uma vinculação ao texto literário através da apreciação das qualidades da linguagem e pelo prazer que a leitura provoca (Eco 2003: 229). Apesar das dificuldades em relacionar a biblioterapia com os efeitos descritos e em encontrar um nexo de causalidade, não é possível afastar completamente a possibilidade de a literatura ter consequências. Um dos exemplos mais citados, pelos seus “efeitos adversos”, é o do primeiro romance de Goethe Os Sofrimentos do Jovem Werther, cuja leitura terá sido responsável por uma vaga não confirmada de suicídios na Europa e que ficou conhecida como Werthermania (Jack 2014: 18). É possível que Goethe tenha pressentido que a tragédia da sua personagem pudesse levar à imitação, daí a sua preocupação em introduzir uma epígrafe:

Tudo aquilo que consegui encontrar sobre a história do pobre Werther juntei-o incansavelmente para vo-lo aqui apresentar, sabendo que mo agradecereis. Ao seu espírito e carácter não podereis recusar admiração e amor, nem ao seu destino as vossas lágrimas.

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24 E tu, que sentes, como ele, o mesmo ímpeto, procura consolo nas suas penas e deixa que este livro seja um amigo se, por fado ou culpa própria, não encontrares perto nenhum mais real (Goethe 1998 (1775): epigr.).

Apesar disso, o romance teve um efeito oposto em jovens leitores que levaram a leitura do livro demasiado a peito e quiseram tomar a personagem Werther como um exemplo para as suas vidas, encontrando no suicídio uma solução elevada para os seus próprios problemas e desilusões amorosas. Goethe viria a confirmar na sua autobiografia (Aus Meinem Leben: Dichtung und Wahrheit)6, que a escrita deste romance lhe permitiu recomeçar uma vida nova, transferindo para a personagem Werther os seus sofrimentos e deixando-o morrer, salvando-se si próprio.

A análise do guia biblioterapêutico The Novel Cure e de outros estudos sobre aplicações práticas da biblioterapia poderá ajudar a compreender melhor a questão de prescrever livros para determinados fins: para adolescentes que acham que são as únicas pessoas no mundo (Berthoud & Elderkin 2013: 8); para pessoas no final da vida, quando estão a chegar ao final da sua própria história enquanto a vida lá fora continua (Clary 2010; Berthoud & Elderkin 2013: 106) e também para as crianças, para que não odeiem os livros, os pais, a escola, os professores e para que não se tornem jovens delinquentes (Thibault 2004). Os resultados e conclusões destes estudos serão discutidos na Secção II deste trabalho.

A defesa da literatura pelas suas qualidades éticas também chegou às Ciências Médicas através de um programa multidisciplinar que surgiu na década de 1990 nos EUA e no Reino Unido (Hurwitz 2000; Charon 2013), conhecido por Medicina Narrativa

6

Publicada na Alemanha em vários volumes até 1831 e inédita em Portugal. Tradução possível para português: A minha vida: Poesia e Verdade

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25 (Narrative Medicine/Medical Humanities). Este programa acabou por dar continuidade à abertura de algumas Faculdades de Medicina norte-americanas ao campo da literatura a partir do início da década de 1970. Um dos objectivos desta mudança nos currículos era a melhoria das capacidades de empatia dos estudantes de medicina, de modo a preparar os futuros médicos para uma prática clínica mais atenta aos doentes, levando-os a estabelecer um compromisso não apenas profissional mas pessoal com os doentes (Hudson 1997: 1246).

O projecto Medicina Narrativa também pretende que os próprios médicos possam dotar os seus doentes da capacidade de reconhecer melhor os seus problemas através do treino narrativo para que possam ser sujeitos activos na terapia (Charon 2013: 3-5). O problema é que, até agora, os estudos científicos realizados nesta área não passam do nível 5, o mais baixo da escala EBM (Evidence-Based Medicine7). Uma das soluções encontradas foi a criação de um novo parâmetro, o NBM (Narrative-Based Medicine), mais adequado ao tipo de trabalho desenvolvido (Charon & Wyer 2008: 296) e que será tratado no capítulo referente à Medicina Narrativa.

Uma vez analisados estes aspectos procura-se compreender até que ponto a biblioterapia se propõe a cumprir o seu principal objectivo: a aprendizagem das virtudes (equilíbrio entre as emoções, desejos e racionalidade) através da formação de leitores proficientes capazes de uma distância suficiente ao texto, sem perder a empatia com as personagens e, em última análise, com as outras pessoas. Pretende-se aqui fazer uma leitura atenta de alguns romances prescritos pelo guia The Novel Cure, cujos efeitos de leitura têm sido diferentes daqueles descritos no pequeno texto que acompanha a prescrição e que por vezes lembra o famoso folheto com o Resumo das Características do

7EBM - parâmetro constituído a partir de uma revisão sistemática da melhor literatura médica disponível,

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26 Medicamento (RCM) que acompanha todos os medicamentos regulamentados pelas autoridades de cada país.

Os três romances propostos para análise são Os Sofrimentos do Jovem Werther, de J.W. Goethe (publicado na Alemanha em 1774 com o título Die Leiden des jungen Werthers), À Espera no Centeio, de J.D. Salinger (publicado nos EUA em 1948 com o título The Cather in the Rye) e A Morte de um Apicultor de Lars Gustafsson (publicado na Suécia em 1978 com o título En biodlares död (Sprickorna i muren)).

Os primeiros dois romances serão analisados a partir dos efeitos que a leitura demasiado emocional provocou em alguns leitores: o romance de Salinger terá levado um jovem a assassinar John Lennon em 1980 e outro a alvejar o Presidente norte-americano Ronald Reagan no ano seguinte. Quanto ao romance de Goethe, pretende-se identificar no texto alguns elementos que possam explicar o vínculo do leitor com o protagonista (aparentemente nobre, generoso e impulsivo) e que explique a reprodução do seu acto desesperado, interpretando a morte por amor como heróica e a mais digna de valor. A leitura do romance de Lars Gustafsson será feita a partir das prescrições do guia biblioterapêutico, no que concerne às promessas de consolo num estado de dor e de proximidade com a morte inevitável.

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27 Secção I

1) Biblioterapia, consolationes e outras modalidades

A biblioterapia pode ser definida como uma forma de terapia através de livros e de leituras orientadas. Apesar de ser uma palavra ausente nos dicionários portugueses, a biblioterapia beneficiou de um reconhecimento crescente nas últimas décadas no mundo anglo-saxónico e, segundo a enciclopédia Webster International, a primeira referência à palavra data do ano de 1919, sendo actualmente definida da seguinte forma: “A biblioterapia é o uso de materiais de leitura seleccionados como adjuvantes terapêuticos em medicina e em psiquiatria. E como auxiliar na solução de problemas através da leitura dirigida”.8

De acordo com diversas fontes (citadas pelo artigo de Pehrsson e McMillen), Samuel Crothers terá sido o responsável pela criação do conceito de biblioterapia, ao ajudar doentes a entender os seus problemas de saúde e os seus sintomas através da leitura de certos livros. Segundo estes investigadores, as primeiras listas de livros compiladas nos EUA por bibliotecários para ajudar utentes com problemas específicos, numa prática semelhante às listas de biblioterapia usadas actualmente, datam de 1930 (Pehrsson & McMillen 2005). Com a aplicação da biblioterapia em diversas áreas terapêuticas e com a sua crescente popularidade, surgiram outras definições mais sofisticadas, como “processo de interação dinâmica entre a personalidade do leitor e a literatura, sob acompanhamento de um orientador habilitado”, fornecida por Caroline Shrodes em 1950 (apud Pehrsson & McMillen 2005: 3); “o uso da leitura para criar uma mudança afectiva, crescimento e

8

"Bibliotherapy." Merriam-Webster.com. Merriam-Webster, n.d. Web. 26 Sept. 2014. <http://www.merriam-webster.com/dictionary/bibliotherapy>

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28 desenvolvimento da personalidade" ou “a utilização da leitura orientada tendo em vista um resultado terapêutico” (apud Tanrikulu 2011: 1862).

Apesar de o conceito de biblioterapia ser um tema popular por via das suas aplicações por assistentes sociais, psicólogos, professores e terapeutas familiares, pode dizer-se que desde a altura da instalação das primeiras bibliotecas em hospitais psiquiátricos no século XVIII, os bibliotecários já trabalhavam em conjunto com a classe médica, em especial da área da psiquiatria e aconselhamento (Pehrsson & McMillen 2005). No entanto, segundo o investigador Ibrahim Tanrikulu, a prescrição de livros para melhorar a saúde e a moral das pessoas remonta à Antiguidade Clássica, quando era comum ver a inscrição “Medicina para a alma” no pórtico das bibliotecas das cidades gregas (Tanrikulu 2011: 1862; Briggs & Pehrsson 2008: 35), o que se coaduna com um dos principais argumentos na defesa da leitura literária: a literatura ajuda as pessoas a sentirem-se melhor.

As fronteiras entre filosofia e literatura não são um problema para a biblioterapia, mas uma oportunidade para recorrer a textos filosóficos como terapia: para Harold Bloom “a filosofia é uma arte literária” (Bloom 2008: 61) e para Aristóteles, a poesia mimética era mais filosófica e tinha um carácter mais elevado do que a história, pois a poesia trata preferencialmente do universal, ao passo que a história, do particular (Aristóteles 1451b 5-6).

Relembrando a tese de Cícero, que defendia que o estudo da filosofia servia para nos preparar para morrer (apud Montaigne 1910 (1580): 179), Martha Nussbaum, no seu livro Therapy of Desire defende que, em casos de enfermidades relacionadas com crenças, juízos ou aprendizagem social, a filosofia é necessária para trazer de volta as pessoas do estado de doença para um estado saudável, mas ao contrário de Cícero, afirma que: “toda a questão da filosofia é o desenvolvimento humano” (Nussbaum 1994: 34).

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29 Não é por isso de estranhar que Alain de Botton, o bibliterapeuta que dirige a School of Life em Londres, tenha escrito vários manuais a partir de textos literários (How Proust can change your life)9 e filosóficos (The consolations of philosophy10) com o intuito de ensinar os leitores a viver melhor. Para este autor, é tão importante aprender a viver como aprender a fazer sapatos ou jarrões de cerâmica, porém, a tarefa de orientar a vida costuma ser olhada como mais simples e acessível (Botton 2000: 26). Para levar o leitor a aprender a lidar com as contrariedades, o autor recorre à biografia e às citações de vários filósofos (Sócrates, Epicuro, Séneca, Montaigne, Schopenhauer e Nietzsche) cruzando-as com os tópicos que pretende ilustrar (impopularidade, falta de dinheiro, frustração, desajustamento, desgostos de amor ou dificuldades várias). No entanto, este livro para além de ser um guia de leitura de textos filosóficos pretende substituir-se aos próprios textos e fazer uma leitura consolatória dos mesmos. Apesar de não desaconselhar a leitura dos originais, Botton apresenta o livro como um manual acessível a todos os leitores sujeitos a alguns problemas que afectam de forma geral a humanidade e faz ligações constantes entre exemplos práticos contemporâneos e questões biográficas dos filósofos de que se socorre de modo a causar identificação, para depois persuadir e exortar o leitor a aderir aos seus ensinamentos.

Esta tentativa de ajudar as pessoas a sentirem-se melhor pode ser traduzida pela ideia de consolação, um género literário cultivado por alguns autores da Antiguidade. A Consolação a Hipocles, do filósofo grego Crantor, dirigida a um pai que perdera os filhos é considerada a primeira consolatio (Caroço 2011: 26). Esta consolatio tornou-se muito influente nos seus contemporâneos porque contrapôs uma moderação no estoicismo de Zenão (que exigia a insensibilidade perante a morte), daí que o desgosto fosse irracional e as consolationes formas educativas e terapêuticas de pôr a vontade individual em harmonia

9 Foi usada a edição portuguesa da Dom Quixote, com o título: Como Proust pode mudar a sua vida. 10

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30 com a vontade cósmica (Caroço 2011: 31-33). A influência de Crantor também chegou aos filósofos latinos por via da escola estóica, em especial a Séneca, a quem se devem várias consolationes, a mais conhecida é aquela que dedicou à sua amiga Márcia, com a intenção de a consolar e de a exortar a aceitar a perda do seu filho, e cuja tradução portuguesa tem o título de A Consolação a Márcia (Caroço 2011). Esta carta começou por ser uma carta pessoal a Márcia, na qual Séneca recorre a algumas técnicas perlocutórias para modificar a forma de pensar da sua amiga Márcia, que se lamentava havia três anos pela morte do seu filho, persuadindo-a a libertar-se do desgosto (Caroço 2011: 33). Porém, Séneca em vez de enviar a Márcia o texto numa carta particular quis que os seus argumentos chegassem a um público mais vasto tornando-a pública, como se a sua consolatio (com inúmeros conselhos para lidar com o inesperado) pudesse ser uma prescrição geral, uma espécie de bálsamo para quem tivesse sofrido uma perda semelhante ou uma vacinação para quem ainda não tivesse contactado com o sofrimento da morte de um filho, de forma que outros pais, irmãos ou filhos enlutados pudessem tirar partido do seu texto.

Séneca considera que uma dor exagerada não é natural e que a dor deve ser moderada e controlada pelo homem, refere-se à fragilidade humana, relembra que nascer implica morrer e que por isso devemos submeter-nos ao destino. Séneca dirige-se directamente a Márcia e recorre a dois exemplos de mulheres que perderam os filhos e enfrentaram de forma diferente a dor: Octávia (irmã de Augusto), que nunca se consolou pela perda do filho Marcelo e se entregou a uma dor sem medida, e Lívia (esposa de Augusto), que também perdeu seu filho Druso, mas que não se deixou destruir pelo sofrimento e viveu corajosamente conservando a lembrança da morte sem menosprezar os vivos (Raij 1999: 13). Esta consolatio apresenta de uma forma explícita um modo de agir sobre o destinatário e um modo de o encaminhar para a sabedoria através de vários recursos expressivos como a exposição, a persuasão e a exortação (Caroço 2011: 172),

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31 dando também dois exemplos para que Márcia possa encontrar um modelo a seguir: o de Lívia; e outro a evitar: o de Octávia.

Apesar da tentativa de consolar a sua amiga Márcia para que esta não se entregasse completamente à dor pela perda do filho (Raij 1999: 13), ficamos sem saber em que medida esta exortação se traduziu em alguma melhoria na vida de Márcia. Também não é possível determinar se o plano de Séneca de tornar público este texto teve influência na qualidade do sofrimento de outros pais que perderam os seus filhos ou se essa condição dolorosa se manteve apesar do reconhecimento que esta consolatio teve em muitos autores e pensadores subsequentes.

As autoras do guia The Novel Cure – An A-Z of Literary Remedies (Berthoud & Elderkin 2013) garantem que os amantes da literatura sempre usaram os romances como tónicos, consciente ou inconscientemente (apesar de nas últimas décadas a biblioterapia ter sido popularizada na forma de não-ficção ou de livros de autoajuda). No entanto, o reconhecimento da biblioterapia como disciplina de estudo e de aplicação prática tem levado ao alargamento do seu conceito de acordo com o tipo de abordagem ou com os investigadores envolvidos. A partir desta forma de terapia, surgiram várias modalidades dentre as quais destacamos algumas (traduzidas do inglês): aconselhamento bibliográfico, bibliopsicologia, terapia literária, terapia pela poesia ou terapia poética e narrativa terapêutica (Pehrsson & McMillen 2005: 3)11.

Ao tentar traduzir “Poetry Therapy” para Língua Portuguesa, podemos ter a tentação de escrever “Poesia Terapêutica” e a partir desse conceito pensar em poesia sintetizada para as sessões terapêuticas, em estrofes com propriedades curativas e em versos com actividade farmacológica. Esta abordagem quase estritamente utilitária tendo

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32 por base um cálculo prévio de efeitos leva-nos a regressar à ideia de “balas mágicas”, de Paul Ehrlich (mencionado na introdução) e a pensar a “Poesia Terapêutica” como um conjunto de estrofes com uma certa extensão, constituídas por versos com uma métrica tal que pudessem actuar como mantras ou melopeias revertendo os tais desequilíbrios que levam ao estado de doença.

Nas duas novelas que constituem o volume Franny and Zooey de J.D. Salinger, há uma oração que a personagem Franny aprendeu e que foi retirada do livro “O caminho de um peregrino”, texto russo do século XIX, que descreve a viagem de um peregrino pela Rússia para aprender como deverá seguir o conselho de S. Paulo aos Tessalonissences 5:17 e conseguir rezar continuamente. A viagem leva-o a um staretz12 que lhe ensina a oração a Jesus e que consiste em dizer ininterruptamente “Jesus Cristo Nosso Senhor, tende piedade de nós”13, até que a frase tome conta de quem a conseguir dizer ao ritmo do bater do coração. Franny passa a dizê-la ininterruptamente como um mantra até que entra em colapso nervoso e chora durante dois dias seguidos sem deixar de repetir esta oração, uma vez que, para ela, essa é uma forma de estar próxima de Deus (Salinger 2010: 62).

Na última parte da novela o seu irmão Zooey tenta descobrir a origem do problema e evitar que a mãe chame um padre ou marque uma consulta com um psicoterapeuta. Depois disso encarrega-se de comunicar com a irmã a partir de um dos telefones da casa e através de exemplos, de exortações e de uma revelação final consegue ajudá-la a sair do estado de prostração e de abandono à dor em que ela se encontrava (Salinger 2010: 130-131). Algumas das técnicas descritas por Salinger na forma como a personagem Zooey expõe uma recordação comum para depois começar a persuadir e a exortar a irmã parecem-se com algumas formas preparecem-sentes nas consolationes e que a bibliterapia parecem-se propõe recuperar e praticar de forma sistemática.

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Termo usado para designar o monge mais antigo dos mosteiros ortodoxos

13 Cf. "Lord Jesus Christ, have mercy on me" (Salinger, J.D.; Franny and Zooey, Penguin Books, London,

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33 O Guia The Novel Cure também prescreve estas duas novelas de Salinger para um problema específico: “capacidades intelectuais fora do comum”. E para justificar a escolha deste livro, é citada uma frase da mãe de Franny e de Zooey: “Não sei para que serve saber tanto e ser tão inteligente se isso não te faz feliz” (Salinger 2010: 77; Berthoud & Elderkin 2013: 50). As autoras do guia argumentam que a inteligência excepcional pode conduzir a uma vida de alienação, tédio e desapontamento perante os outros, mas os leitores que padeçam de “excesso de inteligência” poderão encontrar alívio e conforto nos diálogos entre as persongens centrais deste romance, especialmente na epifania que encerra a novela e que os poderá libertar da afectação e da irritação contra a mundo, levando-os a sentir a presença divina em todas as pessoas que os rodeiam (Berthoud & Elderkin 2013: 50-51).

Regressando à questão das melopeias, é possível encontrar alguns artigos científicos que reconhecem valor terapêutico na recitação de poemas, como é o caso de um estudo realizado em ambiente hospitalar, no qual se concluiu que o ritmo cardíaco, em doentes com arritmia sinusal respiratória (RSA), poderia ser estabilizado pela recitação de poemas com uma métrica de hexâmetro (Heimes 2011: 5). Neste caso, parece que apenas a componente técnica de recitação destes poemas interessa a esta forma de terapia pela poesia, uma vez que o conteúdo não é mencionado no estudo e não se percebe se o efeito de um metrómano electrónico com uma cadência semelhante poderia produzir os mesmos efeitos nestes doentes ou se uma oração, como a oração a Jesus, poderia ser mais eficaz.

A reflexão sobre os efeitos orgânicos dos aforismos, orações e outras formas de intervenção espiritual leva-nos para o campo das chamadas terapias imateriais (Hodge 2010), nas quais o poder da palavra vai para além da palavra escrita ou da palavra trocada entre duas pessoas. O investigador David Hodge, depois de estudar a influência da oração à distância e das “energias mentais”, sugeriu outro parâmetro para avaliar e validar decisões médicas e, em vez do EBM (Evidence-Based Medicine), propôs o EBP (Evidence-Based

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34 Practice). O EBP foi definido pela Associação Americana de Psicologia em 2006, como “a integração das melhores pesquisas clínicas existentes com as características culturais e vontades de cada doente” (Hodge 2010: 124) e, segundo o autor, deveria criar condições para estabelecer uma série de procedimentos para regulamentar as práticas da oração, quer à distância quer presencial, pelos profissionais de saúde a quem decidisse recorrer a elas. Segundo o artigo citado, os ensaios realizados com orações à distância permitem confirmar a efectividade desta prática, mesmo em doentes que desconheciam estar a receber uma oração a seu favor (Hodge 2010).

Contudo, a revista Lancet tem apresentado alguns estudos sobre as possíveis influências das chamadas “noetic therapies” (terapias não mediadas por elementos tangíveis) em doentes. Um estudo de 2005 incidiu em duas práticas: oração de intercessão e música ou imagens e terapia pelo toque (MIT) em doentes submetidos a intervenção coronária percutânea. Segundo este estudo, nem a oração à distância nem a terapia pelo toque provocaram melhorias significativas nos 748 doentes intervencionados (Krucoff 2005: 213-216).

Apesar das várias simulações e dos efeitos potenciais atribuídos à literatura, a dificuldade em clarificar e padronizar esses efeitos da literatura mantém-se. Mesmo assim, as várias modalidades da biblioterapia têm reconhecido uma popularidade crescente não só em consultas individuais, mas também em terapia familiar ou de grupo através de leituras em voz alta, leituras partilhadas, como trabalho de casa ou ainda através de leitura acompanhada de escrita (Pehrsson & McMillen 2005). Segundo estes investigadores, o mais importante na biblioterapia é o trabalho adicional que a leitura promove, em especial entre o terapeuta e o doente, o qual deverá potenciar os benefícios e não apenas a simples exposição à literatura (Pehrsson & McMillen 2005: 7). Neste diagrama podemos observar

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35 o nível de complexidade com que estas terapias baseadas em práticas artísticas explicam os seus modos de actuar inerentes à criação e à convenção artística e como tentam criar um sistema analítico para as suas práticas, com um rigor matemático, por vezes distante da liberdade criativa das áreas artísticas a que recorrem (Mazza & Hayton 2013).

Fig. 1. Modelo RES (Receptivo, Expressivo e Simbólico)

Este modelo resultou de uma revisão de conjunto a partir de vários artigos publicados na área da biblioterapia e das terapias pela arte e tenta sistematizar algumas destas práticas, tais como: a biblioterapia, a musicoterapia, a terapia pela poesia, pela leitura de jornais e revistas, pelo teatro e pela dança, pela narrativa e por outras “formas expressivas” (Mazza & Hayton 2013: 58). A biblioterapia aparece apenas como mais uma forma de usar livros, no quadrante Recepção/Prescrição, enquanto a terapia pela narrativa se enquadra no modelo Expressão/Criação, no qual os praticantes são convidados a produzir textos a partir das suas experiências. O quadrante Simbólico/Cerimonial inclui as

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36 artes performativas onde a terapia pela poesia se ajusta pelo seu carácter performativo (Mazza & Hayton 2013: 58).

A componente cerimonial destas intervenções com recurso à poesia, à música, ao teatro e ao conto oral é uma parte funcional da aplicação deste tipo de terapias. Segundo Ouaknin os rituais esvaziados de conteúdo são apenas repetições sem substância de cerimónias importantes, mas que perderam parte do seu significado (Ouaknin 1996: 18, 85). Para este autor, uma coregrafia em que apenas se repetem gestos desprovidos de uma memória ou de um sentido original está a uma distância de três níveis do acontecimento colectivo que originou o mito e fundou a identidade colectiva da comunidade (pp. 240). Contudo, apesar de estes modelos proporem a recuperação de alguns rituais associando-os a práticas artísticas e dando-lhes novos significados, para Mark-Alain Ouaknin, só através da biblioterapia, em que há um encontro entre o texto escrito e a força da língua, é que se poderá tornar cada leitor num intérprete privilegiado, ou seja, “aquele que faz as palavras dizerem mais do que elas querem, libertando-as da prisão do sentido único” (pp. 21). A biblioterapia como uma “cura pelo livro” (pp. 72) seria também uma hermenêutica consubstanciada através de movimentos descendentes e ascendentes até chegar à reabilitação por caminhos tortuosos. Para este autor, a descida é orientada pela leitura e não deve ser uma queda no vazio “nem uma perda na passividade do ser mas uma elevação, uma transcendência” (pp. 83). Para Ouaknin, a proposta da biblioterapia seria uma prática de leitura que “permitisse ao homem ir ao mais profundo de si” e inventar-se a cada vez de maneira diferente, “através de uma actualização de novas proposições de mundo para que, ao habitá-las, entrasse na alteridade de si e no movimento ético da própria metamorfose, uma vez que o homem é feito pelo texto na mesma medida em que ele próprio faz o texto” (pp. 200).

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37 Para evitar as leituras estreitas de um livro, o autor aconselha uma leitura hermenêutica, uma vez que “toda a leitura implica um fenómeno de interpretação e a interpretação é, em si, uma terapia” (Ouaknin 1996: 19). O problema que Ouaknin parece não reconhecer é que, mesmo que este tipo de prescrições funcionassem, não era possível esperar uma adesão da maioria dos leitores, uma vez que para poder levar a sério esta proposta da biblioterapia hermenêutica seria necessária uma vida monástica de leitura e meditação, em isolamento e com voto de silêncio, longe das preocupações quotidianas e da vida em comunidade.

Alguns especialistas em biblioterapia, como Pehrsson e McMillen, apontam para uma distinção fundamental entre as várias disciplinas e dentro da própria biblioterapia:

Provavelmente, a distinção mais útil a surgir foi entre a "Biblioterapia Clínica", que é implementada por um orientador qualificado ou terapeuta, e a "Biblioterapia do Desenvolvimento", que pode ser utilizada por professores e outros leigos para facilitar o desenvolvimento normal e a auto-realização com uma população essencialmente saudável (Pehrsson & McMillen 2005: 3).

Caroline Shrodes foi uma pioneira na área da biblioterapia e uma das primeiras autoras a tentar explicar como é que a literatura podia ajudar o trabalho terapêutico e a reconhecer que os processos de identificação, catarse e integração eram os passos fundamentais para que pudesse haver benefícios. Shrodes também adiantava que muitos escritores de ficção trabalhavam a partir desses pressupostos para criar empatia com o leitor (apud Pehrsson & McMillen 2005).

Uma forma de terapia denominada por Terapia Cognitivo-Comportamental (CBT) tem sido escolhida para tratamento de problemas psiquiátricos e destaca-se pela preferência por textos não ficcionais e de autoajuda nas suas práticas de aconselhamento

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38 biblioterapeuta (Pehrsson & McMillen 2005; Malouff 2010; Jeffcoat & Hayes 2012). Uma das patologias alvo deste tipo de terapia e com resultados positivos tem sido a Perturbação Obsessivo-Compulsiva (OCD). Segundo alguns estudos, aplicados maioritariamente a jovens e a crianças, a OCD é sensível à CBT (com recurso a técnicas narrativas baseadas em histórias tradicionais), que têm levado à redução de alguns sintomas como a ansiedade e a depressão (Ruini 2014: 123).

Apesar de a biblioterapia poder ajudar a tratar e a prevenir crises depressivas (Cuijpers 1997), considera-se que a influência familiar continua a ser a variável mais importante para lidar com o problema e que existem ainda poucos profissionais habilitados a exercer este tipo de terapia (Marques et al. 2010). Mesmo assim, muitos biblioterapeutas acreditam que os livros de não-ficção podem funcionar como literatura didática ao contribuírem para a compreensão do leitor e das suas próprias motivações. Contudo, aqueles que conduzem o leitor a uma forte experiência emocional, sem a qual nenhuma terapia é eficaz, são os livros a que Shrodes chama de “literatura imaginativa” (Pehrsson & McMillen 2005: 7). Mesmo assim, a maioria dos especialistas em biblioterapia concede que o uso de textos literários funciona apenas como um complemento e não substitui o processo terapêutico. Shrodes sublinha também que as reacções a um mesmo texto nunca serão idênticas: “Não é possível a equivalência de símbolos para duas pessoas, porque não há duas pessoas com estruturas psicológicas idênticas” (apud Pehrsson & McMillen 2005: 7). Regressando ao livro Biblioterapia, o seu autor considera que durante o processo da leitura há um diálogo profundo entre o texto e o leitor, através de uma actividade de cooperação textual, mas sem que as intenções do autor se actualizem no leitor (Ouaknin 1996: 193), uma vez que “a leitura é o encontro entre duas subjectividades, a do leitor e a do autor, que se enriquecem mutuamente” (pp. 198). Para além disso, Ouaknin adverte

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39 ainda para os perigos de fazer de cada livro um manual e estabelecer uma “textolatria” com os livros (pp. 199).

No entanto, a ideia generalizada de que ler só faz bem, qualquer que seja o livro e em qualquer circunstância, deverá ser perspectivada criticamente. Se por um lado, é difícil e pouco rigoroso criar tabelas entre livros e efeitos, tal como o Guia The Novel Cure tenta fazer, continua a ser difícil definir o que será um biblioterapeuta e que tipo de formação ou de certificação profissional deverá ter. Para lembrar como certos leitores levam demasiado a sério aquilo que lêem, Umberto Eco cita uma passagem de um livro do escritor italiano Pitigrilli (Dino Degre), o Dizionario antibalístico:

(…) o leitor que não tem ideias ou as tem em estado amorfo, quando encontra uma frase pitoresca, fosforescente ou explosiva, apaixona-se por ela, adopta-a, comenta-a com um ponto de exclamação, com um «muito bem!», um «certo!», como se ele sempre tivesse pensado assim, e aquela frase fosse o extracto quintessencial do seu modo de pensar, do seu sistema filosófico (apud Eco 2003: 73).

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Fig. 1. Modelo RES (Receptivo, Expressivo e Simbólico)

Referências

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