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A ingerência do direito penal do desporto : realidade ou projeção utópica?

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA

Faculdade de Direito

Mestrado em Direito Forense

– Processo Penal

Direito Penal Desportivo: A Ingerência do Direito

Penal no Desporto

– Realidade ou Projeção Utópica?

Orientador: Dr. Germano Marques da Silva

João Pedro Abreu Rodrigues

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UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA

Faculdade de Direito

Mestrado em Direito Forense

– Processo Penal

Direito Penal Desportivo: A Ingerência do Direito

Penal no Desporto

– Realidade ou Projeção Utópica?

Dissertação de Mestrado em Direito Forense, especialidade em Direito Processual Penal, sob a orientação do Professor Doutor Germano Marques da Silva

João Pedro Abreu Rodrigues 1 de Abril de 2019

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À minha família, à Luísa e ao Pedro, pela coragem, paciência e companheirismo.

Ao Professor Doutor Germano Marques da Silva pelo apoio e acompanhamento.

“O desporto tem o poder de superar velhas divisões e criar o laço de aspirações comuns.” Nelson Mandela – Discurso 1996.

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Índice

Índice de abreviaturas

Introdução ... 1

Capítulo 1 – O direito e o Desporto... 3

1. O Desporto no mundo: Uma perspetiva evolutiva ... 3

2. O Desporto em Portugal ... 5

2.1. Enquadramento Constitucional ... 6

2.2. Enquadramento Legal ... 9

Capítulo 2 – A responsabilidade penal desportiva: Mito ou Realidade? ... 15

1. O Desporto e o Direito penal – A violência no desporto ... 15

2. O Ilícito penal e disciplinar desportivo ... 17

3. Responsabilidade disciplinar e a Responsabilidade penal desportiva ... 21

Capítulo 3 - O desporto e o direito penal... 25

1. Corpo estranho ou parte integrante? ... 25

2. Os limites constitucionais à ingerência do direito penal no desporto ... 27

3. O Conceito Material de Crime ... 30

4. A concretização de um direito penal desportivo ... 32

Capítulo 4 – A legitimação da violência no desporto ... 34

1. A manifestação da autonomia individual enquanto expressão do atleta. .... 35

1.1. O papel (des)amenizador do consentimento em direito penal. ... 35

1.2. Teoria da aceitação do risco ... 39

(5)

2.1. A teoria da adequação social ... 41

2.2. A teoria do risco permitido ... 43

3. Posição adotada ... 45

Conclusões ... 49

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Índice de abreviaturas

Ac. – Acórdão;

Art.º – Artigo; Arts.º – Artigos; CP – Código Penal;

CRP – Constituição da República Portuguesa; Coord. – Coordenação;

DL. – Decreto-Lei d.C. – Depois de Cristo; Ed. – Edição;

LBAFD – Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto; MMA – Mixed Martial Arts;

n.º – Número; n.ºs– Números;

Op. cit. opus citatum;

p. – Página; pp. – Páginas;

RDFPF – Regulamento Disciplinar da Federação Portuguesa de Futebol; RDFPV – Regulamento de Disciplina da Federação Portuguesa de Voleibol; SAD’s – Sociedades Anónimas Desportivas;

Séc. – Século; ss. – Seguintes;

STA – Supremo Tribunal Administrativo; STJ – Supremo Tribunal de Justiça; Vol. – Volume;

(7)

Introdução

Desde cedo olhei para o direito e para o desporto, não como objetivos a alcançar, mas como máximas a seguir. Se por um lado via o arquétipo da cooperação, por outro via uma forma de coordenar e regulamentar uma arte capaz de unir o que a essência do ser humano insistia em afastar: a Humanidade.

Embora ainda acredite na conceção utópica de justiça, o fim da minha ingenuidade fez-me olhar para estas duas realidades por outra perspetiva. Hoje acredito que ambas as áreas têm mais questões a resolver do que objetivos a concretizar e é exatamente uma dessas questões que aqui procuro explorar. Imaginemos:

Estamos na final da Liga dos Campeões e Cristiano Ronaldo segue isolado para a baliza. Entre o melhor jogador do mundo e a glória eterna está apenas o guarda-redes. Rapidamente, no seu encalce surge Piqué enraivecido pela expectativa de ver aquele aumentar a conta pessoal à custa da sua equipa. Cego de raiva, atira-se com os dois pés às costas do seu colega de profissão que, desamparado, vem a bater com a cabeça no poste, caindo inconsciente no relvado.

Será a conduta de Piqué adequada ao desporto que pratica? Será a conduta adequada, de todo, a uma convivência em sociedade? Será que por ser desportista beneficia de alguma isenção penal? Mas como deverá Piqué ser punido? Será que se justifica uma atuação penal? Se sim, a que título? Se não, com base em que causa de justificação pode o preenchimento claro de um tipo objetivo de ilícito ser afastado?

São estas e muitas outras questões que procuro responder com esta dissertação de mestrado. Procurarei analisar os entendimentos doutrinários aferindo até que ponto a violência no âmbito desportivo – corporizada por ofensas à integridade física – assume recetividade penal, ou se, pelo contrário, a tutela sancionatória desportiva é suficiente para acautelar o dano causado e prevenir a repetição do resultado.

É desafiante concretizar o intento que me move. No entanto, e para que se possa formalizar, de forma consciente, a ingerência do direito penal numa área já

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regulamentada, importa sujeitar o pensamento a um conjunto de critérios, testando a admissibilidade da sanção penal.

Sigo consciente da dificuldade que encerra uma eventual projeção do direito penal no desporto enquanto atividade violenta, mas sigo motivado por estar a contribuir para a evolução de uma área com tanto ainda por explorar.

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Capítulo 1

– O direito e o Desporto

1. O Desporto no mundo: Uma perspetiva evolutiva

O fenómeno desportivo está intrinsecamente ligado ao desenvolvimento social e cultural do ser humano. Nas palavras de GUSDORF1, seria impossível imaginar uma comunidade onde a atividade desportiva fosse inexistente. É por isso que expor uma perspetiva evolutiva da forma mais elementar de convivência humana implica regressar 3.000 anos na história da humanidade, concluindo que estamos perante duas variáveis que evoluem proporcionalmente.

Há quase 3 mil anos atrás a atividade física era dirigida, essencialmente, à subsistência do ser humano não se podendo falar de um caracter padronizado e formalizado de desporto, mas antes de manifestações espontâneas e ocasionais. Os seus primeiros traços significativos consistiam na repetição de movimentos rudimentares, ainda que evoluídos para a época, direcionados, essencialmente, às atividades de caça2 e

de pesca. Com o passar dos tempos, muito por força do processo de socialização, a atividade física desportiva transitou para o meio educativo, religioso3 e bélico.

A primeira concretização formal de desporto organizado surge na Antiga Grécia em 776 d.C., com os primeiros Jogos Olímpicos, destinada a enaltecer uma realidade social de grande importância através de um festival religioso oferecido aos Deuses, onde se procurava evidenciar a beleza e coragem dos arquétipos heroicos da mitologia grega.

1 GUSDORF, “Lésperit des jeux”, in Jeux et Sports, Encyclopédie de la Pléiade, Tours, Gallimad, 1967,

p. 1157. Apud. COSTA, António da Silva, “Desporto e Análise Social”, in Sociologia: Revista Da Faculdade De Letras da Universidade do Porto, Vol. 1, nº 2, 1992, p. 101-109 em:

http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/art.º6671.pdf.

2 JOSÉ EDUARDO VIEIRA, refere, embora seja de opinião distinta, que “para a maioria dos autores a caça

seria, assim, a primeira modalidade a existir no mundo do desporto, justificando este facto com o argumento de que o Homem antes de aprender a usar os punhos como arma, utilizou outros instrumentos para se defender e atacar.”. VIEIRA, José Eduardo, “A Violência Associada ao Desporto: As Opções Legislativas no Contexto Histórico e Sociológico”, Instituto do Desporto de Portugal, p. 9

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Com o passar do tempo multiplicaram-se os jogos, mas, paulatinamente, afastou-se o pendor religioso que inicialmente os fundamentara. O ponto de cisão ocorre com a chegada destes ideais desportivos à civilização Romana cuja abordagem visava eternizar o Homem.

Por seu turno, a propagação do fenómeno desportivo pela Europa e pelo Mundo, moldou a sua evolução em função das diversas condições sociais, culturais e económicas vividas nos diversos países. Se em tempos de crise o desporto tornava-se rudimentar e quase clandestino, fruto do fraco investimento e da ausência de instâncias de controle, em tempos de prosperidade económica evoluía e assumia um papel cultural de união entre povos, raças e religiões.

Foi apenas no Séc. XIX, na sequência do progresso económico imposto pela revolução industrial Inglesa, que se alterou o entendimento anteriormente assumido no plano desportivo, passando de atividade de valorização pessoal do ser humano para um fenómeno recreativo congregador de massas, embaixador de um estilo de vida saudável e equilibrada.

O desporto torna-se o fenómeno social cuja potencialidade gritante já se verificava na alvorada da humanidade, manifestando “um dos domínios de atividade que mais tocam e aproximam cidadãos, independentemente da origem social, idade ou profissão.”4. A atividade profissionalizou-se, o desporto coletivo difundiu-se e agregou

fãs, apoiantes e simpatizantes em todas as faixas etárias, diminuiu distâncias, uniu gerações e suprimiu o preconceito.

A competitividade aumentou numa sociedade que abordava o desporto de uma perspetiva lúdica, mas séria, exigindo dos seus praticantes valores, eficiência e evolução.

4MORGADO, Maria José, “Corrupção e Desporto”, I Congresso de Direito do Desporto – Memórias.

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Como refere ANTÓNIO DA SILVA COSTA5, “Se o desporto antigo era praticado

como uma espécie de culto do corpo, o desporto moderno bem depressa se tornou num culto do progresso.”. O investimento proveniente do capitalismo económico6

consolidou numa perspetiva lucrativa, o entendimento que hoje temos do Desporto e da atividade desportiva7.

É com a competitividade levada a cabo pela profissionalização da atividade, pelo associativismo desportivo e pela propagação dos desportos coletivos, que estabelecemos, à priori, uma fronteira cuja essência do ser humano faz tremer e que de seguida abordamos.

2. O Desporto em Portugal

Segundo JOÃO LUÍS ROCHA, “O desporto, como atividade fora da sociedade civil, (…) assume tal dimensão no quotidiano, nos planos político, económico, cultural e social que a necessidade de uma disciplina jurídica é requerida dentro da actividade desportiva e fora desta”.8

O fenómeno desportivo apresenta dois grandes pontos de contacto legislativos. O primeiro permite beber do arquétipo hierárquico da regulação Estadual os contornos sob os quais este fenómeno se deve desenvolver. Falamos indubitavelmente da ordem

5 COSTA, António da Silva, “Desporto e Análise Social” op. cit. p. 102

6 Segundo JOSÉ EDUARDO VIEIRA, “o desporto é uma forma sublimada do Capitalismo”. VIEIRA, José

Eduardo, op. cit., p. 16

7 Encerrando uma síntese fenomenal, NORBERT ELIAS refere que “o desporto é, de facto, uma das

maiores invenções sociais que os seres humanos realizaram sem planear. Oferece às pessoas a excitação libertadora de uma disputa que envolve esforço físico e destreza, enquanto reduz ao mínimo a ocasião de alguém ficar, no seu decurso seriamente ferido”. ELIAS, Norbert, “Em Busca da Excitação”, Difel,

1992, Apud. LOPES, Jorge Mouraz, “Violência Associada ao Desporto”, in Sub Judice – Justiça e

Sociedade – Direito do Desporto, n.º 8, janeiro-março, 1994, Coord. MEIRIM, José Manuel, p. 35

8 ROCHA, João Luís de Moraes, “Sobre a autonomia do Direito do desporto”, in Sub Judice – Justiça e

Sociedade – Direito do Desporto, n.º 8, janeiro-março, 1994, Coord. MEIRIM, José Manuel, p. 6, Apud

MESTRE, Alexandre Miguel, "Causas de Exclusão da Ilicitude Penal nas Atividades Desportivas",

Revista Jurídica, n.º 22, ordenamento do território, março 1998, Nova Série, p. 496. No mesmo sentido MORGADO, Maria José, op. cit. p. 88, quando refere que “o mundo do desporto já não é só um mundo

lúdico, de fantasia e de beleza. (…) Hoje é um mundo implacável, para além da fantasia, com apetências económicas devoradores imparáveis”. Embora essencialmente dirigido para a temática da corrupção vale

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jurídica pública representada a montante pela Constituição da República Portuguesa. O segundo ponto é a própria ordem jurídica desportiva, desta feita titulada pela Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto (LBAFD).9

Por facilidade de referência iremos proceder a uma análise individualizada de ambas as previsões normativas.

2.1. Enquadramento Constitucional

A expressão constitucional do Direito ao Desporto em Portugal ocorreu em 1976, no pós 25 de Abril, sob a alçada da 1.ª Constituição Portuguesa. Este movimento legiferante do mais puro sentido democrático deu origem, nas palavras de JOSÉ MANUEL MEIRIM, à “constitucionalização do desporto”10.

A CRP prevê, no seu art.º 791112, sob a epigrafe “Cultura física e desporto” que:

“Todos têm direito à cultura física e ao desporto” e que “Incumbe ao Estado, em colaboração com as escolas e as associações e coletividades desportivas, promover, estimular, orientar e apoiar a prática e a difusão da cultura física e do desporto, bem como prevenir a violência no desporto.13

A previsão constitucional do direito ao desporto permitiu a proliferação social dos intentos manifestados pelo legislador, assumindo uma extensão considerável quanto

9 Quanto à convivência destas fontes normativas desportivas valem as palavras de JOSÉ MANUEL MEIRIM,

“… o Direito do Desporto bebe dessas duas fontes – uma privada e uma pública -, configurando-se assim

como um dos espaços sociais mais ricos em pluralidade jurídica”. MEIRIM, José Manuel “I Congresso de Direito do Desporto – Memórias” Coord. COSTA, Ricardo et al, Estoril, 2005, p. 31

10 MEIRIM, José Manuel, “O Desporto no Fundamental: Um Valor Lusófono”, in Revista “Povos e

Culturas” n.º 9, Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa, Universidade Católica

Portuguesa, 2004, Lisboa, p. 250

11 Com isto não desconsiderando a relevância da alínea b) do n.º 2 do art.º 64 e a alínea d) do n.º 1 do art.º

70 da CRP que visam a promoção da cultura desportiva com recurso a meios específicos.

12 Norma prevista no título III, “Direitos e Deveres Económicos, Sociais e Culturais” da Parte I, “Direitos

e Deveres fundamentais”.

13 Originariamente o art.º dispunha que “O Estado reconhece o direito dos cidadãos à cultura física e ao

desporto, como meio de valorização humana, incumbindo-lhe promover, estimular e orientar a sua prática e difusão.”. A sua evolução, até ao estado atual, foi fruto de diversas revisões constitucionais.

Para maiores desenvolvimentos MEIRIM, José Manuel, “Desporto e Constituição” in Sub Judice: Justiça

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às áreas, modalidades desportivas e classes sociais abrangidas pela norma14. Esta

constante escalada social, cultural e económica enforma a segregação fundamental de um direito dotado de um dinamismo sem precedentes, colocando-o em contacto constante com outros direitos fundamentais15 e reservando ao Estado16 a garantia de

aproveitamento da cultura física e do desporto17 a todos os cidadãos.

Estamos perante uma manifestação constitucional de um conceito aberto e universal passível de ser analisado das mais variadas perspetivas. Aqui cabem todas as modalidades, espécies e formas de expressão desportiva, ainda que a disposição mais preponderante seja a projeção económica aduzida a esta atividade fruto da profissionalização, coletivização e publicitação da atividade.

O n.º 2 do artigo em análise estabelece um conjunto de diretivas dirigidas ao Estado destinadas a conferir efetividade ao direito atribuído aos cidadãos no seu n.º 1. É, contudo, na parte final da norma que o legislador assumiu uma posição preponderante, estabelecendo enquanto incumbência estadual a necessidade de prevenir a violência18 no desporto.

Segundo GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA19, “Nas tarefas públicas, a Constituição destaca especialmente a prevenção da violência no desporto (…), obrigando o Estado a adoptar as medidas necessárias, apropriadas e proporcionais à

14 Para maior desenvolvimento da temática relativa aos intervenientes da atividade desportiva.

ALEXANDRINO, José Melo, “O discurso dos direitos”, Lisboa, 2011, pp. 336 e ss.

15 Para um maior desenvolvimento dos pontos de contacto entre o direito do desporto e outros direitos

constitucionalmente protegidos MEIRIM, José Manuel, “O Desporto no Fundamental…”, op. cit. p. 251-252; MEIRIM, José Manuel, “Desporto e Constituição…” op. cit. p. 38 a 41;

16 De grande importância os princípios decorrentes da norma constitucional indicados por JOSÉ MANUEL

MEIRIM,emMEIRIM, José Manuel, “O Quadro Jurídico do Sistema Desportivo Português” in Revista

Jurídica del Deporte, Coord. OLMEDA, Alberto Palomar, Año 2003, N.º 9, p. 138 e ss.

17 Definição de desporto fornece grande destaque à Dignidade da Pessoa Humana, vida e a integridade

física e moral dos cidadãos. Para maior desenvolvimento da questão. ALEXANDRINO, José Melo, “O

discurso dos direitos” op. cit. pp. 329 e ss.

18No mesmo sentido o art.º 52 do DL. n.º 248-B/2008 do Regime Jurídico das Federações Desportivas,

alterado pelo DL. n.º 93/2014 de 23 de junho. E o art.º 1 da Lei n.º 112/99 de 3 de Agosto que aprova o Regime Disciplinar das Federações desportivas.

19 CANOTILHO, J.J. Gomes e MOREIRA, Vital, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I,

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prevenção e punição de formas antidesportivas (violência…)”, cada vez mais frequentes na sociedade desportiva hodierna.

Esta prevenção deve ser garantida através de um modelo colaborativo instituído entre o Estado, as escolas e as associações e coletividades desportivas20, privilegiando a

cooperação entre os sectores público e privado relegando o “cadavérico princípio de subordinação do privado ao público”21 em detrimento de um serviço prestado pelo Estado e pelas entidades desportivas aos cidadãos, garantístico dos seus direitos, liberdades22 e garantias.

No entanto, em função do ecossistema quase fechado que se criou com a recondução do Desporto a um fenómeno económico e cultural, vimos nascer um ordenamento desportivo com um direito sancionatório próprio que foge à esfera de controlo do Estado. Este panorama é fruto da delegação de tarefas do Estado em pessoas coletivas de direito privado que por terem adquirido utilidade pública desportiva em função da proximidade e sensibilidade desportiva, praticam atos administrativos dotados de um considerável espectro de atuação.

É precisamente a vertente colaborativa da tutela constitucional do direito do desporto que nos permite criar a ponte para o desenvolvimento legal realizado pelo legislador ordinário, possibilitando uma análise cabal da adequação legal ao espectro constitucional.

20 O que por sua vez permite afastar a ideia de que a previsão constitucional deste direito pressupõe uma

estatização do desporto. MEIRIM, José Manuel, “O Desporto no Fundamental…” op. cit. p. 254

21 LOPES, José Joaquim Almeida, “A Justiça Desportiva” in Revista da Faculdade de Direito da

Universidade do Porto, Porto, 2007, p. 176.

22 ANDRADE, José Carlos Vieira de, “Os direitos fundamentais e o direito do desporto” in “II congresso

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2.2. Enquadramento Legal

Como já tivemos oportunidade de referir, em virtude da política de colaboração entre o Estado e entidades privadas de utilidade pública desportiva, são deixadas às organizações e associações desportivas poderes próprios23 que as individualizam

colocando-as, não à margem, mas num diferente patamar do direito.

Falamos em poder regulamentar, disciplinar e jurisdicional de vinculação prioritária estatuídos em função de uma maior proximidade ao fenómeno desportivo e que garantem a assunção de uma teoria pluralista24, alicerçada num respeito recíproco

entre ordenamentos.

Fruto da “interpenetração entre ordens jurídicas diferenciadas”25, à

regulamentação estatal do direito ao desporto junta-se uma ordem jurídica desportiva que reclama um espaço livre de criação legislativa e de reserva jurisdicional apta a subtrair eventuais conflitos desportivos à tutela dos tribunais estaduais26.

O que não se pode ignorar, como alerta JOSÉ MANUEL MEIRIM27, “é que nos

movemos em domínio de muito especial proteção constitucional: o do direito

23 CANOTILHO, J.J. Gomes e MOREIRA, Vital, op. cit. p. 935.

24 A doutrina Italiana conjetura duas teorias emergentes do contacto entre o ordenamento jurídico

desportivo e ordenamento jurídico estatal de pendor desportivo. Por um lado, temos a teoria monista ou unitária, segundo a qual existe um normativo que colhe influências dos dois ordenamentos, mas que é hierarquicamente titulado pelas fontes estaduais. Fruto desta sobreposição firmada, os tribunais estaduais assumem primazia na resolução de conflitos desportivos garantindo o princípio da tutela jurisdicional efetiva. Já segundo a teoria pluralista, o ordenamento jurídico desportivo ganha autonomia perante o ordenamento estadual, discutindo a competência para dirimir litígios emergentes de relações jurídicas desportivas com o Estado. PELLEGRINI, “L’evoluzione dei rapporti tra fenomeno sportivo e ordenamento statale”, Milano, 2007, pp. 4 e ss. 21 e ss. 40 e ss.; SANINO & VERDE, “Diritto Sportivo”, 2ª ed., Padova, 2008, pp. 9 e ss. Apud. ALMEIDA, Carlos Ferreira de, “Os sistemas

normativos do desporto” in Estudo em Homenagem a Miguel Galvão Teles, Coord. Jorge Miranda et al, Vol. I, Coimbra, 2012, p. 285

25 CANOTILHO, J.J. Gomes, “Internormatividade desportiva e homo sportivus” in Direito do desporto

profissional: contributos de um curso de pós-graduação, Coord. AMADO, João Leal et al, 2011 p. 7.

26 Principal motivo de conflito entre ordenamentos jurídicos, mas não o único. ALMEIDA, Carlos

Ferreira de, op. cit. p. 295.

27 MEIRIM, José Manuel, “Lei de Bases da Atividade Física e do desporto: Estudo, Notas e

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fundamental a uma tutela jurisdicional efetiva.” cuja exceção deve ter-se por devidamente fundamentada de um ponto de vista constitucional.

A LBAFD2829 corporiza o mecanismo responsável pela definição das bases,

princípios e orientações da atividade física e do desporto, a partir das quais as associações e federações desportivas devem pautar a sua conduta.

O enquadramento legal fornecido pela LBAFD inclui abordagens a políticas públicas e aos regimes jurídicos dos protagonistas do meio desportivo30 enunciando, em

virtude de uma prévia consagração constitucional os princípios que norteiam a atividade desportiva.

Não obstante o diploma, na sua globalidade, apresentar matérias de relevante conteúdo prático, quedemo-nos por uma abordagem do art.º 18 da LBAFD, com especial enfoque para os n.ºs 1 a 4, porquanto consubstancia, como afrente melhor se

exporá, o ponto de ingerência do direito penal no fenómeno desportivo.

À semelhança da generalidade do diploma, o legislador em vez de seguir um processo de construção dogmática progressiva começando por estatuir o princípio geral e, de seguida, revelar as exceções e desvios à regra, inverteu o processo ameaçando divergências quanto à valoração dos diferentes números do preceito legal.

O n.º 1 do artigo começa por indicar, sob as vestes de um preceito legal atributivo de competência aos tribunais administrativos, o princípio geral da impugnabilidade, nos termos gerais de direito, das decisões proferidas pelos órgãos da justiça administrativa.

28 Lei 5/2007 de 16 de janeiro. Composta por 44 arts.º, revela um desprimor de uma técnica legislativa

fraca e pachorrenta pautada pelo “Principio da redução a todo o custo”, levou JOSÉ MANUEL MEIRIM,

oportunamente, a classificar a LBAFD como um “Pronto a vestir”. MEIRIM, José Manuel, “Lei de

Bases…”, op. cit. p. 107

29 Não obstante existirem outras leis, de âmbito mais geral – Código Civil, Comercial, Processual Penal –

ou circunscritas a determinadas áreas de atuação – Lei n.º 13/2017 de 2 de maio – que regulam a atividade desportiva corporizando um pluralismo normativo.

(17)

Os atos públicos praticados por estes órgãos, exercidos na sequência de uma prévia atribuição de utilidade pública desportiva, são materialmente administrativos por isso impugnáveis junto dos tribunais administrativos competentes para o efeito31.

Contudo esta recorribilidade encontra-se na dependência de um requisito formal e limitada por um critério material. Exige-se a definitividade vertical, alicerçada no esgotamento de todas as instâncias internas32 como pressuposto formal de

recorribilidade, estando a mesma limitada pela figura do caso julgado desportivo33,

segundo o qual ficam consolidados os efeitos desportivos das decisões tomadas pela última instância competente na ordem desportiva.

Os n.ºs 2 e 3 do art.º 18, corporizam o cerne normativo da justiça desportiva

praticada pelas associações e federações desportivas. No n.º 2 enuncia-se a subtração à tutela jurisdicional estadual das questões estritamente desportivas, enquanto no n.º 3 determina-se o alcance dessas questões.

Quanto ao n.º 2 nada há a apontar pois, como já tivemos oportunidade de referir, justifica-se pela proximidade, sensibilidade e conhecimento técnico-desportivo detido pelas associações e federações desportivas.

O problema surge na concretização do conceito indeterminado “questões estritamente desportivas”. A doutrina tem vindo a apresentar importantes contributos nesta matéria.

Segundo ALEXANDRA PASSANHA34, são questões de facto e de direito

provenientes da aplicação das leis do jogo35, compostas maioritariamente, pelo

31 BORGES, Luís Pais, “A Justiça Desportiva: Que sentido e que Limites” in “Desporto & Direito:

Revista Jurídica do Desporto”, Ano V – N.º 13, Coimbra, 2007, p. 23 a 26

32 Não obstante a eliminação da consagração expressa do preceito legal que evidenciava a definitividade

vertical dos organismos competentes na ordem jurídica desportiva, a ideia defendida pela doutrina e aplicada pelos tribunais permanece viva na ratio da parte final deste n.º 1.

33 Para ulteriores desenvolvimentos sobre esta matéria. MEIRIM, José Manuel, “Lei de Bases…” op. cit.

p. 184 e 185; BORGES, Luís Pais, op. cit. pp. 31 e ss; MEIRIM, José Manuel, “A Federação Desportiva

como Sujeito Público do Sistema Desportivo”, Coimbra, 2002, p. 678 e 679

34 PASSANHA, Alexandra, “As Federações desportivas: contributo para o estudo do ordenamento

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julgamento de infrações, mormente disciplinares, cometidas em violação das regras que regem uma concreta prática desportiva.

No mesmo sentido apresenta-se JOSÉ JOAQUIM ALMEIDA LOPES36 que as

qualifica enquanto questões de facto e de direito resultantes da aplicação das leis do jogo.

De um ponto de vista jurisprudencial, temos duas orientações firmadas. Por um lado, o STA37 tende a reconduzir as questões estritamente desportivas ao previsto nas

leis do jogo. Por outro, a jurisprudência do STJ38, alarga em demasia o âmbito de

concretização jurídica deste conceito indeterminado, qualificando como questões estritamente desportivas as “leis do jogo, os regulamentos e as regras de organização de provas”.

Foi seguindo o azimute estabelecido pela jurisprudência do STJ, que o legislador ordinário, recorrendo-se de uma técnica legislativa desadequada determinou que “são questões estritamente desportivas as que tenham por fundamento normas de natureza técnica ou de carácter disciplinar, enquanto questões emergentes da aplicação das leis do jogo, dos regulamentos e das regras de organização das respectivas competições.”

O primeiro segmento deste n.º 3 não suscita qualquer problema pois decorre do mesmo fundamento que justifica que as questões estritamente desportivas estejam afastadas da competência dos tribunais estaduais.

instâncias desportivas previstas na Lei de Bases do Desporto, e a limitação de acesso aos tribunais para a composição de eventuais diferendos desportivos quando estejam em causa “questões estritamente desportivas” in “Desporto & Direito: Revista Jurídica do Desporto”, Ano V – N.º 13, Coimbra, 2007, p. 74 e 75.

35 ALMEIDA, Carlos Ferreira de, op. cit. p. 288 “…definem os requisitos materiais e pessoais do jogo, o

seu desenvolvimento e o modo de apurar o resultado de um jogo ou de uma competição. São regras técnicas; umas são regras constitutivas, porque determinam apenas e por si os efeitos de uma prática; outras são normas de conduta, porque modelam os comportamentos devidos e os efeitos da sua infração…”.

36 LOPES, José Joaquim Almeida, “A Justiça Desportiva: que justiça?” in Revista de Direito Público, ano

VII, janeiro/junho, 1994, n.º 13, p. 140 Apud., ALBUQUERQUE, Nuno, op. cit. p. 75.

37 Ac. do STA de 23 de Março de 2006 - Relator Santos Botelho. 38 Ac. do STJ de 18 de Abril de 1991.

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O problema situa-se na segunda metade da norma. O legislador determinou de forma lata, despreocupada e cumulativa os instrumentos normativos de onde podem emergir as referidas questões, ignorando a possibilidade de nele se preverem situações que belisquem de forma irreversível valores constitucionalmente intocáveis.39

Vale aqui de forma plena a menção de JOSÉ MANUEL MEIRIM quanto à análise deste preceito legal, referindo que “nessa expressão informativa se devem ter por incluídas apenas e tão só aquelas questões que resultem imediatamente da competição desportiva em concreto”40.

No mesmo sentido, cerrando as fileiras dos autores que retiram relevância ao vínculo absoluto da justiça desportiva, apontando para a necessidade de uma tutela eficaz dos interesses dos cidadãos, GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA referem que o cariz absoluto firmado pela norma “não pode significar uma completa preclusão da competência dos órgãos jurisdicionais do Estado (…) quando estão em causa direitos fundamentais dos cidadãos cuja tutela é constitucionalmente garantida através do recurso aos tribunais”41.

É evidente que o Estado ao atribuir a estes órgãos utilidade pública desportiva, possibilitando um considerável espectro de atuação, não quis, com certeza, dotá-los de uma libertinagem incontrolável devendo ter-se por assente que quando essas disposições regulamentares e disciplinares extravasem a componente técnica, dirigindo-se para concretizações legais suscetíveis de lesar irremediavelmente bens ou interesdirigindo-ses legal e constitucionalmente protegidos estranhos ao fenómeno desportivo, a intervenção dos tribunais estaduais não pode, em caso algum, ser descredibilizada.

39 BORGES, Luís Pais, op. cit. p. 32, onde apresenta exemplo elucidativo: “…um regulamento de prova

determina que só podem ser inscritos no boletim de jogo 10 atletas, 8 dos quais necessariamente de raça branca, circunstância que viola frontalmente o princípio constitucional da igualdade e da proibição de descriminação em razão da raça, ínsito no art.º 13.º da Constituição.”

40 MEIRIM, José Manuel, “Lei de Bases do Desporto Anotada”, 1.ª Ed., 2005, p. 101, Apud.,

ALBUQUERQUE, Nuno, op. cit. p. 75. No mesmo sentido, LUÍS PAIS BORGES propugna que “o vínculo ou reserva de jurisdição só pode conceber-se enquanto reportado e contido no respetivo espaço de valoração”, BORGES, Luís Pais, op. cit. p. 33

(20)

Reconhecendo a incoerência sistemática em que incorreu, o legislador ordinário n.º 4 do art.º 18 subtraiu ao vínculo jurisdicional que inaugurou as “… decisões e deliberações disciplinares relativas a infracções à ética desportiva, no âmbito da violência, da dopagem, da corrupção, do racismo e da xenofobia”, por encerrarem um conjunto de temáticas que não podiam deixar de estar sobre alçada estadual dada a necessidade de uma tutela que foge às possibilidades fácticas e jurídicas dos órgãos de justiça desportiva.

Daqui decorre que, embora à primeira vista possa transparecer uma imposição do vínculo da justiça desportiva, o art.º 18 acaba por se desdobrar em exceções que tendem em firmar a “desvitalização do poder desportivo autónomo”42, procurando erigir sobre as bases consolidadas do art.º 79 da CRP, a colaboração aí perpetrada, entre os órgãos da justiça desportiva e o Estado.

Valem as palavras de MASSERA, interpretadas por GOMES CANOTILHO43, quando

refere que o ordenamento jurídico desportivo deve deixar de ser entendido enquanto “um esquema excludente da justiça estatal para se transformar num instrumento de comunicação dos dois ordenamentos”.

Foi precisamente esta ideia que legislador procurou transparecer com o art.º 18 da LBAFD. Não ignorou a necessidade de munir os órgãos de justiça desportiva de um considerável espaço de conformação legislativa e jurisdicional, dada a maior proximidade e entendimento técnico, mas garantiu que verificados determinados pressupostos e atentos certos limites o vínculo cessava fazendo emergir a possibilidade de recorrer aos tribunais estaduais.

Não previu, contudo, que numa área de “competência exclusiva”, como é a perpetrada no n.ºs 2 e 3, pudessem existir questões suscetíveis de violar direitos

fundamentais, princípios ou normas de ordem pública que, pelo seu conteúdo, não devessem ser reconhecidas mas antes anuladas pelos tribunais estaduais.

42 CANOTILHO, J.J. Gomes, op. cit. p. 17

43MASSERA, Alberto, “Sport e ordinamenti giuridice: tensioni e tendenze nel diritto vivente in una

prospettiva multilaterale” Diritto Pubblico, 1/2008, p. 137 Apud CANOTILHO, J.J. Gomes, op. cit. p.

(21)

Tudo dito, cumpre concluir que quanto à confluência entre os ordenamentos visados verifica-se uma teoria pluralista, dado os espaços de autorregulação atribuídos às duas frentes, mas mitigada44 pelo não reconhecimento de decisões provenientes de

órgãos desportivos que violem direitos, regras e princípios constitucionalmente previstos.

Capítulo 2

– A responsabilidade penal desportiva: Mito ou Realidade?

1. O Desporto e o Direito penal – A violência no desporto

O Direito é uma realidade indissociável do Desporto por força da necessidade de regulação jurídica de uma atividade em constante expansão. Veja-se, a título de exemplo, a ligação estabelecida entre o Desporto e o direito comercial, por força das SAD’s e a conexão ao direito do Trabalho, em virtude dos contratos celebrados com os desportistas.

Pese embora a validade intrínseca das referidas conexões jurídicas, importa fazer transitar a nossa atenção para as relações mantidas entre o Desporto e o Direito penal. Os fenómenos atuais da criminalidade económica e hooliganismo no desporto fazem despoletar uma intervenção clara dos tribunais estaduais em matéria criminal, em detrimento da necessidade de preservação da ética desportiva.

A conexão entre estas duas realidades apresenta-se, contudo, ténue quanto às manifestações da violência no desporto por consubstanciar uma problemática que nunca se viu dissociada do fenómeno desportivo.

A progresso da realidade desportiva deu origem a um conjunto de características criadas pela evolução conjunta da mentalidade humana e do fenómeno desportivo que, em função profissionalização, coletivização e pendor económico aduzido a esta atividade “industrial”, levou à verificação de circunstâncias contrárias à ética desportiva entre as quais se destacam os fenómenos de corrupção, tráfico de influências,

(22)

coisificação de jovens atletas, e a violência excessiva dentro e fora das quatro linhas. Como bem refere MARIA JOSÉ MORGADO “Estes fenómenos modificaram o desporto, colocam-nos problemas novos, originam zonas de risco que exigem o reforço da tutela penal.”45

No que diz respeito à violência, seria incorreto quantificá-la como se pudesse ser introduzido numa fórmula matemática, o índice de condutas violentas verificadas ao longo da história do desporto46. Efetivamente, o cerne da questão que nos propusemos a

desenvolver implica que abordemos a violência como um ato isolado em função da sua verificação e não como um problema a combater na sua globalidade enquanto fenómeno social.

Foi neste contexto que se começaram a desenvolver teorias sobre a origem da violência nos fenómenos desportivos, colocando a pedra de toque na natureza do próprio individuo, quer do ponto de vista biológico quer psicológico, nos fatores sociais externos, ainda que com influência interna, com especial enfoque para o ambiente violento criado pelas claques que se deslocam aos recintos desportivos e “se convertem em sujeitos ativos e passivos dos atos violentos”47.

O ambiente gerado em torno do espetáculo faz emergir o lado mais emotivo do ser humano potenciando conflitos violentos quer entre agentes desportivos no recinto de jogo, quer entre os adeptos e claques no recinto e nas suas imediações.

A legislação penal portuguesa, sob a tutela da Lei n.º 39/2009, de 30 de Julho48,

destinada a prevenir a violência no desporto encontra-se submetida à segunda questão, deixando ao ilícito disciplinar desportivo o sancionamento de condutas que extravasem os limites de agressividade aduzidos a cada modalidade desportiva.

45 MORGADO, Maria José, op. cit., p. 89

46 Segundo JORGE BAPTISTA GONÇALVES “não é possível afirmar que as sociedades contemporâneas

sejam mais violentas do que foram no passado: a violência existe e sempre existiu em todas as sociedades humanas”, e seria errado se o fizéssemos ainda que fosse possível. GONÇALVES, Jorge

Baptista, “Os crimes na Lei Sobre a Prevenção e Punição da Violência no Desporto”, I Congresso de

Direito do Desporto – Memórias, Coord. COSTA, Ricardo et al, Estoril, 2005, p. 98.

47 Idem, Ibidem. p. 99

(23)

A questão que nos propomos a abordar neste capítulo subsume-se aos casos em que as condutas alicerçadas em atos violentos extravasam a tutela do ilícito disciplinar desportivo e promovem uma ingerência do direito penal reconduzindo-a aos casos de lesões provocadas por jogadores, no quadro circunstancial do jogo e por causa do jogo. 2. O Ilícito penal e disciplinar desportivo

Uma análise comparativa entre as normas que compõem o acervo legal desportivo e estadual permite, à priori, compreender a discrepância valorativa e formal entre elas. Se por um lado temos um direito desportivo disciplinarmente sancionado, por outro temos um direito estadual cuja violação poderá suscitar a aplicação de sanções penais.

A questão que ora nos propomos analisar apresenta uma relevância atual emergente da autonomia sancionatória, e não só, do ordenamento jurídico desportivo. Neste sentido propugna MARIA JOSÉ MORGADO49 que o modelo colaborativo estatuído

pela CRP “(…) originou, (…), um ordenamento desportivo à parte, que inclui um sistema punitivo penal, à margem do Direito penal comum, mais brando…”.

Segundo GERMANO MARQUES DA SILVA50 o direito penal é o “sistema das

normas jurídicas que atribuem aos agentes de certo comportamento como pressuposto uma pena ou medida de segurança criminais como consequência” que se distingue do direito disciplinar “pela natureza da sanção e pelos fins que cada um prossegue”51.

O Direito penal projeta-se no ordenamento jurídico português enquanto direito sancionatório dirigido à punição de condutas passiveis de ser integradas em determinado tipo objetivo de ilícito. Como tal, e em função da natureza das sanções aplicadas, este direito sancionatório de última ratio vê a sua área de atuação limitada a condutas carentes de tutela penal, insuscetíveis de serem sancionadas por disciplina

49 MORGADO, Maria José, op. cit., p. 87

50 SILVA, Germano Marques da, “Direito penal Português I – Introdução e Teoria da Lei Penal”, Vol. I,

3.ª Ed., 2010, p. 30

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jurídica menos gravosa, com intuito de proteger bens jurídicos fundamentais à sociedade hodierna.

O direito disciplinar, como bem sintetiza CONSTANTINO FERNANDES, “… aparece-nos como a necessidade de manter a disciplina especial de todos os agrupamentos (…) que tem por causa o dever de acatamento ou obediência especial a certa autoridade.” 52

O ilícito disciplinar53 desportivo não se distância muito da conformação

jurídica54 atribuída ao direito penal embora se desenvolva numa área sancionatória

distinta, até porque ambas procuram, através de um normativo tendencialmente proibitivo, vedar a prática de comportamentos indesejados contrários à ordem jurídica no seu todo ou, especificamente, aos princípios orientadores da atividade desportiva.

É com base neste acervo argumentativo que FIGUEIREDO DIAS afirma que o “direito disciplinar e as respectivas sanções conformam porventura o domínio que, de um ponto de vista teorético, mais se aproxima do direito penal e das penas criminais.”55

Estes dois tipos de ilício distinguem-se em função da natureza das sanções e dos fins prosseguidos por ambos. O ilícito disciplinar aplica, como consequência lógica da violação de uma regra técnica, advertências, repreensões, multas, suspensões de

52 FERNANDES, Constantino, “O Direito e os Desportos – Breve estudo do direito desportivo”, Lisboa,

1946, p. 91.

53 Segundo MARCELLO CAETANO o procedimento disciplinar é“visto como um processo administrativo

gracioso do tipo sancionador e de investigação sumária” em nome da celeridade atribuída às questões

em jogo, como é o caso do ascendente económico e financeiro gerado pela indústria desportiva.. CAETANO, Marcelo, “Do poder disciplinar no Direito Administrativo Português, 1932, Apud SILVA, Rui Alexandre, “Da Infração à Sanção Disciplinar na Regulamentação Desportiva” in O Desporto e o

Direito: prevenir, disciplinar, punir, Livros Horizonte, 2001, p. 66

54Ambos os tipos de ilícito comungam dos mesmos fundamentos de ordem jurídica e social, embora

tenham como grande diferença o facto de “o direito criminal (…) aplicado pelos Tribunais comuns e o

disciplinar por órgãos administrativos ou privados” sendo que no primeiro “a repressão é em defesa da sociedade, ao passo que a repressão disciplinar tem em vista o aperfeiçoamento e a boa execução de determinados serviços públicos e privados ou a manutenção de determinadas regras precisas para se conseguir o fim especial”. FERNANDES, Constantino, op. cit. p. 91

55 DIAS, Jorge de Figueiredo, “Direito penal – Questões Fundamentais, A doutrina geral do crime”,

(25)

atividade entre outras. Já o ilícito penal aplica, na sequência da subsunção de uma conduta a determinado tipo criminal, uma pena ou medida de segurança.

A discrepância valorativa entre os dois tipos de ilícito assume especial relevância quanto aos fins por eles prosseguidos.

Neste sentido, enquanto o ilícito penal desenvolve-se em torno da tutela criminal de direitos fundamentais essenciais à sociedade atingindo os infratores na sua liberdade, honra e dignidade, o ilícito disciplinar procura, através da atribuição de prerrogativas sancionatórias às federações, associações e ligas, garantir o respeito pelas regras do jogo, esgotando o espectro de eficácia da sanção na reposição da eficácia do serviço e não na lesão de direitos do agente56.

É incontornável que com o passar dos anos o desporto assumiu um cariz fortemente competitivo em função da profissionalização de um largo espectro de modalidades desportivas. É esta vertente competitiva que, aliada à natureza do ser humano, exige um acervo normativo aplicado por entidades competentes, dotadas de poder sancionatório, aptas a regular a violência e o confronto desportivo. 5758

É de relevar a posição assumida por RUI ALEXANDRE SILVA59 quando defende

que “no âmago de qualquer desporto, encarada a sua vertente desportiva, (…) tem de encontrar-se instituído um conjunto de normas que regulem tais relações

56 Neste sentido, DIAS, Jorge de Figueiredo, “Direito penal – Questões Fundamentais…”, op. cit. p.169,

quando refere que o “ilícito disciplinar é, ao contrário do ilícito penal, um ilícito interno, exclusivamente virado para o serviço, que se pode constituir ainda quando com ele se não tenha verificado uma abalo da autoridade estadual ou da administração;”

57 Veja-se, p.e., o n.º 1 do art.º 15 do RDFPF: “1. Constitui infração disciplinar o facto voluntário, ainda

que meramente culposo, que por ação ou omissão previstas ou descritas neste Regulamento viole os deveres gerais e especiais nele previstos e na demais legislação desportiva aplicável.” e o n.º do art.º 17.º

do RDFPV, “Considera-se infração disciplinar o facto voluntário, por ação ou omissão, e ainda que

meramente culposo, que viole os deveres gerais ou especiais previstos nos regulamentos desportivos e demais legislação aplicável.” Disponíveis em: https://www.fpf.pt e http://www.fpvoleibol.pt/

58 SILVA, Rui Alexandre, op. cit. p. 59, quando refere que “Toda a modalidade desportiva tem como

pressuposto da sua própria sobrevivência um sistema mais ou menos organizado de regulamentos que fomentam e impõem a disciplina no seu seio, garantindo que seja sancionada a violação de regras da competição”.

(26)

“conflituosas” …” funcionando como garantia da continuidade do espetáculo desportivo e da necessidade de cumprimento das normas de conduta violadas.

É esse o papel assumido pelas federações e associações desportivas que conjugado com as suas incumbências regulamentares visam garantir a uniformização das regras que pautam as várias modalidades, determinando a vertente sancionatória das infrações disciplinares desportivas.

Contudo, a imputação de uma sanção disciplinar desportiva deve ter subjacente a verificação de determinados pressupostos fácticos e materiais aptos a despoletar a subsunção da conduta ao direito. Assim, e na impossibilidade de deixar a concreta aplicação de sanções ao arbítrio desmesurado das entidades responsáveis, tem-se por assente a necessidade de respeitar determinados princípios orientadores60.

Importa ainda chamar à colação que, pese embora as diferenças entre os dois tipos de ilícito, não seria de desconsiderar uma eventual cumulação sancionatória pois, tal como sustenta GERMANO MARQUES DA SILVA61, “As sanções disciplinares são

independentes das penais, podendo existir sem elas ou acumular-se com elas”62 sem que nada se oponha, como defende FIGUEIREDO DIAS63, “uma vez que o princípio ne bis in idem é limitado à proibição de “ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo crime (CRP, art. 29.º-5)”.64

60 Veja-se neste sentido o princípio da oportunidade, do juízo de prognóstico e da proibição do arbítrio,

emergentes do princípio da igualdade, indicados por RUI ALEXANDRE SILVA,SILVA, Rui Alexandre, op.

cit, p. 78

61 SILVA, Germano Marques da, “Direito penal Português I...”, op. cit. p. 150

62 No mesmo sentido DIAS, Jorge de Figueiredo, “Direito penal – Questões Fundamentais…” op. cit. p.

172, quando refere que não obstante as duas realidades estarem orientadas para diferentes fins, “Os

fundamentos apontados de autonomia do ilícito disciplinar perante o ilícito penal dão todavia a compreender que ainda hoje possa defender-se (…) que relativamente ao mesmo facto, a medida disciplinar seja cumulável com a penal criminal”.

63 Idem, Ibidem, p. 172

64 Neste sentido, VALDÉS, Carlos Garcia, “Responsabilidad por lesiones deportivas” in Anuario de

Derecho Penal y Ciencias Penales, Tomo XLVI, Fascículo III, setembro-dezembro, Madrid, 1993, p. 971

Apud. MESTRE, Alexandre Miguel, op. cit. p. 498 quando refere que este princípio só pode ser invocado “para impedir a aplicação de uma determinada sanção quando o desvalor do direito é idêntico em

ambos os ordenamentos e estes, por sua vez, sancionam uma infracção de um mesmo dever e idêntico interesse jurídico.”

(27)

A verdade é que estamos perante dois ordenamentos autónomos despidos de constrangimentos em ambas as instâncias decisórias, cuja principal discrepância situa-se ao nível dos efeitos produzidos pela sanção aplicada.

As entidades com poderes disciplinares, sob as vestes de uma consideração distorcida desta autonomia, ignoram se o facto que despoleta a aplicação de uma sanção disciplinar consubstancia um ilícito penal, descredibilizando o seu reenvio para os tribunais judiciais, como se reinasse o princípio matricial da “lei do tribunal mais forte”.

No entanto, e como já tivemos oportunidade de adiantar, não podemos descurar que a reserva de jurisdição do ordenamento desportivo deve ser limitada a casos que não belisquem valores e princípios fundamentais estranhos ao fenómeno desportivo.

Quando um determinado comportamento desportivo usualmente sancionado disciplinarmente interfere com interesses legal e constitucionalmente protegidos, os tribunais do estado deverão ser chamados a intervir garantindo a tutela dos direitos fundamentais em causa. Está aberta a porta de entrada do direito penal no âmbito desportivo.

3. Responsabilidade disciplinar e a Responsabilidade penal desportiva

As questões que antecederam a temática que ora nos propomos a explorar, possibilitaram um enquadramento dogmático de duas realidades jurídicas de natureza eminentemente sancionatória.

Curiosamente, a fronteira que as separa surge da natureza das próprias sanções e dos objetivos a alcançar com essa punição. É este ecossistema criado em torno de dois consistentes blocos normativos que possibilita a responsabilização dos agentes que com a sua conduta despoletaram a aplicação de uma sanção.

A responsabilização penal e disciplinar pressupõe a violação de um dever funcional ou a lesão de um bem jurídico-penal constitucionalmente previsto mediante a verificação de determinados pressupostos que extravasam o mero preenchimento da norma que despoleta a aplicação da sanção.

(28)

Efetivamente, por corporizarem dois ilícitos sancionatórios não será de excluir no direito disciplinar desportivo a submissão das condutas aos princípios e garantias que norteiam o direito penal.

Veja-se a título de exemplo o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, processo n.º 00691/10.4BECBR, relator Carlos Luís Medeiros de Carvalho65, ao

afirmar que ao “(…) arguido assiste, no âmbito do processo disciplinar, o direito a um «processo justo», direito esse que, passa, designadamente, pela aplicação de algumas das regras e princípios de defesa constitucionalmente estabelecidos para o processo penal na certeza de que a tendência que se tem verificado para a progressiva autonomização do direito disciplinar relativamente ao direito penal “… é contrabalançada pelo progressivo alargamento das garantias do direito penal ao direito disciplinar.”.

No mesmo sentido, comprovando a quase uniformização dogmática em torno da questão, temos grandes nomes da doutrina nacional.

VITAL MOREIRA afirma que “(…) os princípios da “Constituição penal material

(…) aplicável no essencial às sanções disciplinares por directa exigência do princípio do Estado de Direito. 66

No mesmo sentidoJORGE MIRANDA67 quando considera “a extensão ao ilícito de

mera ordenação social e às sanções disciplinares (…) do princípio da proporcionalidade e mesmo de alguns dos princípios fundamentais de direito criminal e das garantias de defesa”.

Na senda dos autores acima mencionados, FIGUEIREDO DIAS68 defende que “…

direito disciplinar é (…) direito sancionatório e que por isso uma consistente defesa

65 Disponível em www.dgsi.pt. No mesmo sentido o Parecer n.º 19/2016 emitido pelo Ministério Público

– Procuradoria-Geral da República, disponível em https://dre.pt/, “o reforço garantista de regras sobre direito disciplinar público é empreendido por aproximações, necessariamente moderadas, ao regime mais exigente e rigoroso do processo penal.”

66 MOREIRA, Vital, “Administração Autónoma e Associações Públicas, 1997, p. 195.

67 MIRANDA, Jorge, “Manual de Direito Constitucional”, Tomo IV, 3.ª Ed., 1998, p. 203-204. 68 DIAS, Jorge de Figueiredo, “Direito penal – Questões Fundamentais…” op. cit. p.171

(29)

dos direitos dos arguidos impõe que sejam respeitados no essencial os princípios garantístico que presidem o direito penal”.69

Contudo, não podemos ignorar a frequência e a extensão atribuída a esta imputação garantística. Deve prevalecer a ideia de que ao direito penal e processual penal, por constituírem um normativo mais exigente do que os outros modelos sancionatórios, são conferidas garantias mais amplas emergentes da própria ratio da norma prevista no art.º 32 da CRP.

O Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 635/201570 aborda a questão nestes

termos quando refere que “A Constituição distingue o domínio penal dos demais, especificando, no artigo 32.º, as garantias que deve assegurar o processo criminal e sendo a partir desta identificação especificada para o processo criminal que têm sido irradiadas algumas daquelas garantias também para outros domínios sancionatórios. Encontramos exemplo claro dessa irradiação no n.º 10 daquele artigo 32.º, acrescentado pela revisão constitucional de 1989(…)”.

Ora, face ao que se referiu, não pode deixar de se considerar na tarefa de responsabilização do agente infrator a componente subjetiva que acompanha de forma intrínseca o comportamento passível de sanção. Desta feita, a culpa, com todas as suas componentes devem ser aferidas em função do caso concreto por forma a respeitar o princípio basilar de todo o direito sancionatório, nulla poena sinne culpa.

Entendimento concretizado por GERMANO MARQUES DA SILVA71 na sua obra

quando afirma que “É princípio fundamental do direito disciplinar que não podem aplicar-se penas disciplinares sem culpa.”. No mesmo sentido veja-se EDUARDO CORREIA BAPTISTA e FIGUEIREDO DIAS72, “na medida em que as penas disciplinares são

um mal infligido ao agente (…), deve qualquer ordenamento sancionatório em tudo

69No mesmo sentido CORREIA, Eduardo, “Direito Criminal”, Vol. I, Coimbra, 2007, p. 37, ABREU,

Luís Vasconcelos, “Para o Estudo do Procedimento Disciplinar no Direito Administrativo Português

Vigente: As Relações com o Processo Penal”, Coimbra, 1993, pp. 45 a 48.

70 Disponível em https://dre.pt/, publicado no Diário da República n.º 32/2016, Série II de 2016.02.16. 71 SILVA, Germano Marques da, “Direito penal Português I...”, op. cit. p. 152.

(30)

quanto não esteja regulado de modo expresso, aplicar os princípios que garantem e defendem o individuo contra o poder punitivo, acolhendo a culpa com todos os seus requisitos (…)”.

Daqui decorre que a legalidade da imputação sancionatória que despoleta a responsabilização do agente infrator pressupõe a análise da motivação externa do agente no momento da prática do facto.

Se a fundamentação que se adiantou não fosse suficiente para garantir o juízo ponderado entre o comportamento, a culpa e a sanção, bastava que se submetesse a questão a uma interpretação baseada na Constituição para que se constatasse que decorre do Estado de Direito Democrático e da Dignidade da Pessoa Humana a exigência da aplicação do princípio nulla poena sine culpa.

A culpa é, assim, o pressuposto necessário do juízo sancionatório e o limite máximo da sanção a aplicar, tendo como finalidade a prevenção de futuros acontecimentos análogos ao que despoletou a responsabilização do infrator.

Porém, ao contrário do verificado no âmbito penal, que fundamenta a pena numa necessidade de prevenção geral e especial, a sanção disciplinar esgota a sua finalidade na reafirmação da integridade, retidão e confiança do serviço desportivo o que, em última instância evidencia uma finalidade de prevenção especial.73

Do supra exposto podemos concluir que pese embora as discrepâncias valorativas entre os tipos de ilícito e os respetivos contornos de responsabilização dos agentes visados, ambos os ordenamentos jurídicos se encontram cobertos, embora em diferentes extensões, pelo manto garantístico do direito criminal em virtude de uma clara imposição constitucional.

Daqui decorre que uma eventual ingerência penal no plano desportivo permite preservar as garantias a que os desportistas estão adstritos no plano disciplinar.

(31)

Capítulo 3 - O desporto e o direito penal

1. Corpo estranho ou parte integrante?

Vivemos num século atípico alimentado pela importância transcendente conferida a um fenómeno sociocultural que evidencia uma catarse de paixões e interesses e impulsiona a educação e a economia.

É esta conceptualização atual do desporto que possibilita que o interesse dos seus espectadores não desvaneça nos momentos mais violentos e tenebrosos, sendo justificado pela euforia e incessante sede de vitória em que se encontram emersos os protagonistas das várias modalidades incorporadas neste universo.

Este entendimento justifica uma migração dos padrões sancionatórios para um patamar de tal forma afastado da realidade jurídica penal, que impõe pesadas restrições sobre a própria dignidade da pessoa humana em troca da continuidade do espetáculo desportivo.

Não obstante a validade sociológica do que se acabou de referir, não podemos concordar com a compressão deste princípio basilar. Sustentar posição diversa seria descredibilizar os ideais que os Pais da nossa Constituição quiseram fundar no seu art.º 1, fazendo depender a aplicabilidade deste direito sancionatório de uma vontade primária, quase que selvática, dos cidadãos Portugueses.

Prova inequívoca desta abordagem rudimentar é o regozijo dos espectadores perante a verificação de um comportamento violento, os impropérios bruscamente dirigidos aos juízes da partida na sequência do seu sancionamento e o facto de estes se bastarem pela amostragem de um cartão, como se essa manifestação de justiça célere fosse apta a acautelar os danos sofridos pelo ofendido.

A verdade é que hoje, de forma inelutável, chegam até nós peças e artigos jornalísticos, pelos mais variados meios de comunicação, exortando comportamentos criminalmente reprováveis por parte de atletas em recintos desportivos, e fora deles.

(32)

Contudo, e não obstante o elevado espectro de verificação destas manifestações abruptas de violência, a verdade é que raramente temos conhecimento de intervenções penais dos tribunais estaduais.74

O percurso até aqui realizado permitiu-nos identificar o “ponto de ingerência” do direito penal no âmbito desportivo e abrir portas à reclamação de competência dos tribunais estaduais em matéria desportiva. Como referimos, uma situação emergente da prática desportiva é suscetível de ser arbitrada em tribunais estaduais se o bem jurídico lesado coartar direitos fundamentais do ofendido.

Este entendimento depreende-se do n.º 2 do art.º 18 da CRP quando consagra, na sua modalidade de princípio da proporcionalidade, que a restrição de direitos fundamentais só poderá operar se estiver em causa uma violação agonizante de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.

Não devemos, todavia, entendê-lo como um ramo do direito displicente, preguiçoso e pachorrento que apenas intervém quando não há outro remédio. É a própria CRP que afirma este ordenamento como o guardião dos bens jurídico-penais e que exige a sua intervenção quando se encontrem beliscados os alicerces do Estado de Direito democrático.

Por conseguinte, na pendência de condutas que atinjam o núcleo essencial de bens jurídicos fundamentais, os tribunais estaduais, lançando mão do direito penal, afirmam a sua prevalência jurisdicional sobre outros ordenamentos sancionatórios que eventualmente a possam reclamar.

Contudo, seria demasiado redutível da nossa parte consolidar esta ingerência sem antes passarmos pelas restantes manifestações deste princípio que irão balizar, ou até obstar, à ingerência do direito penal no âmbito desportivo, reconduzindo-o para uma posição secundária e passiva em detrimento das sanções que nele se arbitram.

74 Qual Síndrome de Estocolmo! Se por um lado temos a multiplicação de fenómenos criminalmente

ilícitos no campo desportivo, por outro, em virtude uma patologia inerente à génese da “constitucionalização do desporto”, temos a escassez de submissão dessas condutas ao campo estadual ignorando por completo a sua eficácia na resolução desses litígios.

(33)

2. Os limites constitucionais à ingerência do direito penal no desporto

Num Estado de Direito Democrático a mancha interventiva da implacável máquina penal deve, em virtude de uma suportável convivência social, restringir-se à ideia da proteção de bens jurídico-penais essenciais à livre realização da personalidade do ser humano e ao desenvolvimento do meio em que este se insere.

Esses bens carentes de tutela encontram-se prescritos na Lei Fundamental ainda que a sua positivação não signifique, per si, a necessidade de uma salvaguarda criminal como adiante veremos.

Dispõe o n.º 2 do art.º 18 da CRP, sob a epigrafe “Força Jurídica” que: “(…) A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos;

O princípio da proporcionalidade preconiza o ponto de equilíbrio entre a restrição e a prevalência de interesses constitucionais em conflito, impondo aos tribunais a tarefa de ponderar, em virtude do valor constitucional e dos fins perseguidos pela norma, aquele que, no caso concreto, deve perdurar.

O estado de direito democrático, norteado pelo princípio da dignidade da pessoa humana, pressupõe uma atuação livre assente em pressupostos de tolerância e respeito pelo direito. Para que se possa coartar a eficácia plena de um destes núcleos essenciais, é necessário atender à proibição do excesso de acordo com ideais de adequação ao caso concreto, a necessidade e a proporcionalidade dessa restrição.

Com esta abordagem visamos voltar a testar a viabilidade da ingerência do Direito penal no âmbito desportivo, aferindo se a criminalização de uma conduta violenta obedece a critérios de necessidade, adequação e proporcionalidade. O que se referiu assume especial relevância dada a natureza e a gravidade das sanções penais e a urgência de determinar a necessidade da sua aplicação.

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