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Desafios encontrados na identificação das vítimas brasileiras de tráfico para fins de exploração sexual: consequências na atenção e a garantia aos direitos das vítimas

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Academic year: 2021

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Desafios encontrados na

identificação das vítimas brasileiras

de tráfico para fins de exploração

sexual: consequências na atenção e

a garantia aos direitos das vítimas

Resumo

O artigo pretende indicar alguns desafios encontrados na identificação da vítima brasileira de tráfico de pessoas, assim como desmistificar a idéia de que todas as mulheres brasileiras exercendo prostituição são vítimas de tráfico, levando em consideração os perfis das mulheres exercendo prostituição na Espanha. Utilizar-se-á o marco conceitual do Protocolo de Palermo e da Convenção contra o Tráfico de Pessoas do Conselho da Europa.

Partindo-se da prática na identificação das vítimas e das experiências de atendimento às vítimas de tráfico brasileiras para fins de exploração sexual na Espanha, identificada a partir de pesquisa inciada em 2008, verifica-se que nem todas as brasileiras em situação de prostituição na Espanha preenchem todos os elementos constitutivos para a configuração do crime do tráfico de pessoas descritos no Protocolo de Palermo, principalmente no que se refere aos meios empregados para o tráfico (ameaça, uso da força, coação, rapto, fraude, engano, etc), dificultando sua identificação e forçando uma indicação de vítima.

Grande parte dos aliciamentos se caracteriza pela informalidade, invisibilizando a figura do aliciador, dificultando sua identificação pela polícia e suscitando consequências jurídico-protetivas à vítima.

Na perspectiva do atendimento aparecem alguns desafios importantes: 1. A necessidade de criar Acordos Bilaterais e Multilaterais entre países de origem e de destino que criem mecanismos de comunicação, encaminhamento e acompanhamento para a assistência das vítimas que retornam

Verônica Maria Teresi ¹

1Advogada. Mestre em Direito

Internacional pela Universidade Católica de Santos (2007). Professora da ESAMC/Santos e pesquisadora associada do Instituto Universitario de Desarrollo y Cooperación de la Universidad Complutense de Madrid (IUDC-UCM). Foi consultora da Organização das Nações Unidas contra Drogas e Crimes (UNODC) e do Ministério de Justiça

Autor para correspondência: Verônica Maria Teresi

e-mail: veronicateresi@gmail.com

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ao Brasil; 2. Garantir o atendimento às vítimas de tráfico que não se identificam nessa condição.

Assim, os desafios revelados pela prática necessitam de uma base teórica para a construção de conhecimento sobre o complexo fenômeno do tráfico de pessoas.

Introdução

A complexidade do fenômeno do tráfico de pessoas exige que as abordagens e as análises sejam cada vez mais cuidadosas e particulares, evitando generalizações que levem à perda de elementos fundamentais, principalmente no que se refere à atenção e respeito ao direito das vítimas.

Nesse sentido é que buscaremos analisar a situação particular das brasileiras vítimas de tráfico para fins de exploração sexual na Espanha.

A percepção de que vivemos em um mundo cada vez mais interligado, onde as fronteiras nacionais já não parecem estar tão longe, intensifica a realidade ou a visibilidade do fenômeno da migração internacional.

Somados a essa realidade, sabemos que os sistemas econômicos de poder geram profundas desigualdades sociais por todo o mundo, refletindo-as nos processos migratórios. Nesse sentido, verificam-se as migrações forçadas, entre elas, o contrabando internacional e o tráfico de pessoas.

Há diferenças conceituais entre migração, contrabando de pessoas e tráfico de pessoas que devem ser analisadas permitindo a compreensão e a criação de mecanismos de enfrentamento contra os dois últimos.

A migração pode ser definida como um fenômeno social que ocorre quando há o deslocamento de pessoas, voluntariamente e sem o intermédio de terceiros, de um lugar para outro, envolvendo Estados Nacionais. Tanto o contrabando de pessoas quanto o tráfico de pessoas são considerados crimes, mas, por se referirem ao deslocamento de pessoas, são considerados como espécies do gênero

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O contrabando de pessoas, também chamado de tráfico de migrantes (ou smuggling, em inglês), se verifica quando uma pessoa é transportada consensualmente por terceiros a outro país, por meios ilegais, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, benefício financeiro. A utilização do “serviço” de terceiro se dá porque essa pessoa não pode ingressar no país destino pelos meios legais, por não ser nacional ou residente permanente e não preencher os requisitos necessários para obter o visto exigido. No contrabando, há o consentimento da vítima que pactua com terceiro o transporte até o destino pretendido1.

Essa modalidade criminosa não contém o elemento da coerção e do engano. Assim, o tráfico de migrantes não é reconhecido como uma violação dos direitos humanos, mas uma violação às leis migratórias e pressupõe a participação voluntária de imigrantes com as redes de tráfico na intenção de obter a entrada ou admissão ilegal ou irregular em outro país. Considera-se assim, um crime contra o Estado.

Por outro lado, o tráfico de pessoas envolve o deslocamento de pessoas através do engano, da coerção ou do aproveitamento de sua condição de vulnerabilidade social, com a intenção de explorá-la no destino final, obtendo benefício financeiro. Esta exploração pode ser sexual, trabalho forçado, casamento forçado e extração de órgãos. Diz-se que há a comercialização da pessoa através do tráfico de pessoas.2 Neste caso, considera-se que há um crime contra a pessoa e

uma das piores formas de violação dos direitos humanos, especificamente o direito à vida, à liberdade e ao direito de não ser submetido à escravidão em nenhuma de suas formas, diferentemente do que ocorre com o tráfico de migrantes.

1

O Protocolo Facultativo à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, relativo ao Combate ao Tráfico de Migrantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea, que será posteriormente analisado, conceitua, em seu artigo 3º que o “tráfico de migrantes significa a promoção, com o objetivo de obter, direta ou indiretamente, um benefício financeiro ou outro benefício material, da entrada ilegal de uma pessoa num Estado Parte do qual essa pessoa não seja nacional ou residente permanente”.

2O Protocolo Facultativo à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, relativo à Prevenção, à Repreensão e à Punição do Tráfico de Pessoas, principalmente mulheres, crianças e adolescentes estabelece como tráfico “o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou de situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tem autoridade sobre outra, para fins de exploração. A exploração deverá incluir, pelo menos, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, a escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a extração de órgãos.”

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Levando em consideração a definição de tráfico de pessoas dada pelo Protocolo de Palermo, três elementos devem ser levados em consideração para caracterizá-lo: a ação; os meios (engano, rapto, coação, situação de vulnerabilidade) e o fim da exploração da pessoa com objetivo de lucro.

Há configuração do tráfico de pessoas, mesmo que o transporte seja feito com o consentimento da vítima, uma vez que há a exploração dessa pessoa no destino final. Entende-se que a vítima tem direito à proteção especial, porque sua vontade está viciada (pelos meios utilizados). O consentimento, assim, é irrelevante para a caracterização do tráfico.3

A complexidade dos fenômenos que envolvem o deslocamento de pessoas aparece e se apresenta com inúmeras facetas, levando muitas vezes a caracterizar determinadas situações como tráfico de pessoas, quando se pode estar diante de uma migração voluntária.

Verificam-se casos de pessoas que começam voluntariamente pagando intermediários para conseguir ingressar a outro país, uma vez que não conseguiriam ingressar sozinhos, o que configuraria o contrabando de imigrantes. Ocorre que, muitas vezes, acabam sendo angariadas por redes de tráfico com fins de exploração por diversos fatores: há abandono do intermediário ou elas são vendidas para que devolvam a dívida contraída, o mais rápido possível.4

Podemos falar em perfil de vítimas de tráfico?

Falar da existência de um só perfil de brasileiras que se insere no mercado sexual espanhol, seja como uma estratégia de migração, seja porque é uma vítima de tráfico, é desconhecer a complexidade da temática ou limitar essa complexidade em detrimento da realidade que se apresenta.

Muito embora o atrativo dos recursos financeiros obtidos rapidamente no exercício da prostituição seja relevante para a inserção das vítimas no mercado sexual, percebe-se em alguns casos a

3

O Protocolo de Palermo, que será mais adiante abordado, estabelece

explicitamente em seu artigo 3º, alínea “b” que: “o consentimento dado pela vítima de tráfico de pessoas tendo em vista qualquer tipo de exploração descrito na alínea a do presente artigo será considerado irrelevante se tiver sido utilizado qualquer dos meios referidos na alínea a.”

4Esse tipo de situação é verificado intensamente com as mulheres africanas que pretendem ingressar na Espanha.

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prevalência de outros elementos - como, por exemplo, a violência intrafamiliar- que impulsionam essas mulheres a aceitar convites para a concretização desse processo migratório, muitas vezes expostas a condições de tráfico.

Informações recebidas de organizações que oferecem atendimento direto a essas mulheres, assim como entrevistas realizadas com diversas mulheres5 que estão exercendo prostituição na

Espanha, identificam problemas com suas famílias no Brasil como um dos motivos para a vinda à Espanha. Pesquisa anterior, de 2002, já indicava esse tipo de problema como uma das motivações para sair de casa e do país.

Uma brasileira de 16 anos foi resgatada na noite de anteontem de um prostíbulo em Catuatê, no Paraguai (...) a menina deixou a casa dos pais, em Foz do Iguaçu, há nove meses. Mãe e filha reconheceram que a menor saiu da casa porque era constantemente espancada pelo pai, que tentou até estuprá-la (...)6

Muitas vezes, essas mulheres, ao aceitarem ir para outro país, mesmo estando cientes de que irão trabalhar7 no mercado sexual, não

imaginam as condições reais que as esperam ali. Quando chegam, inicialmente, até saldar sua dívida, encontram-se com seus documentos retidos pela rede de tráfico, confinadas em locais próprios para a prostituição, padecendo de maus-tratos, exploradas - uma vez que não podem sair até pagarem toda a dívida contraída com a viagem, transporte e alojamento – sofrendo ameaças constantes contra suas famílias e, principalmente, contra seus filhos.

Outras vivem em apartamentos (pisos) compartilhados com outras mulheres que trabalham nos mesmos espaços que elas, sendo este apartamento alugado pelo dono do clube que explora o local do exercício da prostituição. Muitas vezes, até o pagamento da dívida,

5 No período da pesquisa de campo realizada, entre março de 2008 e dezembro de

2008, foram entrevistadas aproximadamente 70 mulheres brasileiras exercendo prostituição, algumas sendo vítimas de tráfico.

6 Pestraf 2002.

7É importante notar que, nesse contexto, a utilização da palavra trabalho é empregada sem qualquer pretensão de levantar a discussão sobre a essencialidade do tipo de atividade a que se refere a prostituição, ou seja, se deve ou não ser considerada uma forma de trabalho. Utiliza-se a palavra trabalho uma vez que as próprias mulheres entrevistadas assim a utilizavam quando se referiam ao exercício da prostituição.

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essas mulheres não podem sair sozinhas desses apartamentos, sendo acompanhadas pela “Mami”8.

Também existem casos de mulheres que são enganadas quanto à atividade que desempenharão na Espanha. Um exemplo bastante recente refere-se a uma rede desarticulada em Navas del Rey, a poucos quilômetros de Madrid.9

Cuatro mujeres que lograron huir de un club de alterne de Navas del Rey (2.400 habitantes) han permitido la detención de seis personas que obligaban a prostituirse a inmigrantes brasileñas, a las que cobraban altas cantidades de dinero. Los agentes de Extranjería también han encontrado cocaína y marihuana con la que supuestamente traficaban los acusados, según la Dirección General de la Policía.

Las mujeres eran captadas en Brasil con la falsa promesa de venir a trabajar a España. Cuando estaban en el taxi que las llevaba al club Varadero, en Navas, los encargados de la organización les informaban de que habían contraído una deuda con la organización de 3.000 euros. Para pagarla, tenían que prostituirse y cumplir unos requisitos. Entre ellos, consumir cocaína si el cliente así lo exigía, y comprar la droga que iban a tomar. "Y pagaban una cantidad más alta por la dosis, por supuesto", explicaron fuentes judiciales.

Las mujeres también eran obligadas a mantener relaciones sexuales con el dueño y con los amigos de éste sin cobrar a cambio. Si alguno de ellos quería hacerlo sin condón, no podían oponerse, según declararon las mujeres. En caso de salir del local por asuntos personales, debían ir acompañadas por algún responsable de la organización. También les imponían otras normas, como hacer jornadas muy largas y vestir de forma provocativa. Además, les daban órdenes de cómo comportarse con los clientes. Si se negaban, recibían fuertes palizas.

Cuatro mujeres aprovecharon una salida con clientes para pedirles que las ayudaran a poner una denuncia. Lo hicieron en Toledo y ya no regresaron al club de alterne. Días después, los dos vigilantes del local la emprendieron a golpes con un cliente al que confundieron con uno de los hombres que ayudaron a las inmigrantes.

Los agentes de la Unidad contra Redes de Inmigración y Falsificación (UCRIF) entraron en el local con un

8 “Mami” é geralmente uma mulher de confiança do dono do clube, que cuida e controla a vida dessas mulheres.

9 Ver em El Pais: 29 inmigrantes eran maltratadas y obligadas a prostituirse

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mandamiento judicial el pasado viernes y detuvieron a los seis responsables de la organización. En el club se hallaban 25 mujeres, de las que 19 estaban de forma irregular en España

Outras mulheres consideram que realmente concordaram em pagar o valor devido e se submetem às redes de tráfico, aceitando as condições impostas pelo aliciador. Não há percepção de que estão sendo exploradas, nem muito menos traficadas. Verifica-se que essas mulheres somente reconhecem o tráfico de pessoas quando há prostituição forçada (por meio de coação e ameaça). O tráfico resultante do aproveitamento da condição de vulnerabilidade da vítima não é entendido como tráfico por elas mesmas.

Máfias... que a polícia te mostre uma única máfia que seja! Nem duas, nem 3, isso não existe. O que fazem é deportar mulheres sem papéis, que sabiam o que vinham fazer aqui, que queriam fazer isso!

O que é Máfia? É cobrar o dobro por uma passagem? Isso não é máfia, isso é algo que acontece. Você quer vir para a Europa, mas não tem dinheiro para a passagem. A passagem custa 1000 euros, eu compro para você, porque eu tenho o dinheiro, mas cobro 3000. Você aceitou, pronto, feito. Máfia é quando tem uma mulher como escrava, prisioneira, quando a vendem. Isso tem aqui, com as romenas. Mas a polícia prende elas e não os homens que estão na calçada da frente controlando! E elas têm que trabalhar queiram ou não, não podem parar para comer, ou tem que comer o que eles dão para elas. Isso é máfia, com brasileira não tem isso não. (Trabalhadora sexual, 43 anos, há 5 trabalhando na Espanha)10.

A leitura feita pelas mulheres referente ao que se considera tráfico é diferente do que estabelece o Protocolo de Palermo, principalmente quando se verifica o meio do abuso da situação de

vulnerabilidade.

As mulheres consideram que a exploração sofrida no exercício da prostituição é resultante da própria atividade que elas exercem, não havendo abuso por parte do dono do clube.

10PISCITELLI, Adriana. Traficadas ou Autônomas? A noção de consentimento entre

brasileiras que oferecem serviços sexuais na Espanha. Prelo in: Brasília: Ministério

da Justiça. Dilemas jurídicos do enfrentamento ao tráfico internacional de seres humanos.).

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Outro elemento importante que complementa essa percepção é a maneira como se dá o aliciamento/convite às mulheres brasileiras. Muitas vezes é feita pelas próprias mulheres que estão exercendo prostituição na Espanha e que trazem outras de sua rede social (amigas, irmãs, primas, vizinhas, etc) na intenção de possibilitar a realização do projeto migratório de outra mulher do seu círculo social. É importante ressaltar que essas mulheres não percebem seu papel de aliciadoras. Entendem que estão contribuindo com a realização do processo migratório dessas mulheres. Essa forma de aliciamento “invisibiliza” a figura do traficante, não o excluindo. O traficante “invisibilizado” é aquele que paga a passagem, os custos da viagem dessa mulher, lhe possibilita os documentos necessários para a entrada na Espanha11 e disponibiliza o local para o exercício da prostituição.

Essa mulher que aceita o convite de uma pessoa próxima do seu círculo social não visualiza a situação de tráfico a que pode estar sendo exposta. Sua percepção é de estar sendo ajudada a migrar para realizar um sonho de melhorar suas condições de vida ou necessidade de suprir rapidamente deficiências financeiras encontradas no Brasil.

A perspectiva dessas mulheres inseridas no mercado sexual espanhol sempre aparece como uma atividade momentânea, até conseguir dinheiro suficiente para retornar ao Brasil e desenvolver uma atividade profissional autônoma ou até mesmo inserir-se em outra atividade na Espanha12. Porém, a inserção profissional na Espanha é difícil pela situação de irregularidade em que se encontram. Quase todas entram como turistas, tendo o visto expirado em três meses. Existe a possibilidade de ampliação do visto por mais três meses, mas nenhuma a providencia porque ou estão em situação de privação de liberdade nesse período até pagarem suas dívidas contraídas com as redes que as levaram à Espanha, ou não têm

11Já há indícios de que alguns/algumas traficantes já estão utilizando o recurso das “Cartas convite” para garantir a entrada das mulheres, sem maiores problemas na imigração. A “Carta Convite” é um documento exigido pela polícia de imigração espanhola, feito junto ao Corpo de Polícia Nacional: uma pessoa residente na Espanha se compromete a receber em casa a pessoa com a qual, supostamente, tem certa ligação familiar ou de amizade.

12 Verificam-se casos de mulheres com título universitário que, mesmo vindo à Espanha para exercer a prostituição, na intenção de resolver um problema financeiro, sua pretensão, a longo prazo, é tentar legalizar seu diploma na Espanha para poder exercer sua profissão.

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motivação para justificar a ampliação da estadia na Espanha. Assim, passam à situação de irregulares frente às autoridades espanholas.13

Essa situação de irregularidade as torna mais vulneráveis frente aos proxenetas que muitas vezes ameaçam denunciá-las às autoridades policiais espanholas se não fizerem o que eles determinam e em relação à tentativa de sair da prostituição e inserir-se em outra atividade, pela ausência de possibilidades de conseguir outra inserção profissional.14

Verificam-se algumas características do perfil da mulher esperada para o mercado sexual espanhol, possibilitando a argumentação no sentido de que as organizações criminosas se apropriam das expectativas do mercado sexual dos países de destino, utilizando o tráfico de mulheres para conseguir atender a demanda esperada por esse mercado lucrativo. Pode-se argumentar que o mercado sexual espanhol tem certa preferência pelas características físicas e principalmente culturais das mulheres brasileiras e que esses são alguns dos motivos pelos quais o número de mulheres brasileiras exercendo prostituição na Espanha é tão elevado.15

Entretanto, esse aspecto das características da mulher brasileira não deve ser entendido como o principal motivo que fundamenta o alto índice de brasileiras na Espanha. As redes criminosas se articulam e se aproveitam de sistemas que tenham controle migratório ineficiente, onde haja vulnerabilidade social e ausência de Políticas Públicas efetivas de combate e atendimento às vítimas. Além disso, essas redes de tráfico adaptam-se às mudanças dos controles migratórios dos países de destino, criando novas metodologias de inserção.16

13A pena para um imigrante irregular é a deportação. Na Espanha esse termo técnico não existe. Eles utilizam o termo expulsão. O termo expulsão é utilizado tanto para a pena resultante de uma infração administrativa (exemplo: por irregularidade documental) como para uma pena judicial (no caso de cometimento de crime por parte de imigrante).

14A contratação de um imigrante irregular na Espanha é considerada uma infração administrativa grave pela lei de estrangeiros, com multas altíssimas ao empregador. Isso inibe consideravelmente os empregadores na contratação de imigrantes irregulares.

15Essa fantasia criada em relação ao perfil das brasileiras faz parte de um padrão clichê resultante de características provindas das sociedades patriarcais e machistas em que vivemos, na qual a mulher ainda aparece como um objeto de satisfação das fantasias masculinas.

16Atualmente verifica-se que as fronteiras espanholas estão muito atentas à imigração de mulheres brasileiras, seja ou não por meio das redes de tráfico, dificultando a entrada no espaço espanhol. Deve-se destacar, conforme diálogos

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Nesse sentido é que verificamos a mudança de nacionalidades predominantes no exercício da prostituição na Espanha nos últimos oito anos. Analisando os dados, e detendo-nos às prevalências de nacionalidades latinas, podemos verificar que nos últimos oito anos houve prevalência sucessiva das mulheres dominicanas, das colombianas e, posteriormente, das brasileiras.17 Atualmente verifica-se um aumento considerável na preverifica-sença de paraguaias no mercado sexual espanhol.

Para além do perfil de mulher esperado pelo mercado sexual espanhol, a pesquisa constatou algumas características predominantes: mulheres entre 18 e 30 anos, com baixa escolaridade (apesar de que cada vez mais se identificam mulheres com segundo grau completo e nível superior), pertencentes a famílias matrifocais, com indícios de violência doméstica e mulheres que nunca tinham exercido prostituição no Brasil.

A maternidade transnacional

Analisando os projetos migratórios de mulheres que decidem sair de seus países, sejam elas vítimas de tráfico ou não, verifica-se a existência de práticas sociais, econômicas e principalmente o exercício de papéis sociais que devem ser cumpridos com as pessoas que ficam em destino (no caso, Brasil). Quanto aos papéis assumidos, as características das mulheres que migram não diferem das características das mulheres brasileiras vítimas de tráfico na Espanha.

Verificam-se fluxos migratórios não homogêneos, que se originam de contextos sociopolíticos, econômicos e culturais diferentes, adquirindo características singulares conforme seus processos particulares e históricos.

A participação da mulher como primeiro escalão da cadeia migratória gera a formação e reacomodação de vínculos entre as relações de poder pré-existentes, as assimetrias nas relações de gênero dentro dos grupos envolvidos na migração internacional ou, em alguns casos, reconfiguração de outras relações de poder.

mantidos com as polícias espanholas e pelas próprias impressões de algumas ONG´s visitadas, uma tendência atual para o tráfico de mulheres paraguaias. Portanto, há necessidade de começar ações mais pontuais, de cooperação e de pesquisa para evitar que essas redes se desenvolvam nesse país.

17GUARDIA CIVIL ESPAÑOLA. “Informe Criminológico. Tráfico de Seres Humano con fines de explotación sexual”. Madrid, años 2000 a 2008.

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Desde a década de 1980 verifica-se uma mudança na composição dos fluxos migratórios latino-americanos, principalmente para a Europa. Antes, esses fluxos eram predominantemente masculinos. A partir dessa década, visualiza-se a chegada e incorporação do coletivo feminino às migrações internacionais, causando mudanças consideráveis na configuração desse fenômeno, como explica Claudia Pedone:

Este hecho se relaciona con algunos temas fundamentales: resignificar el valor otorgado al trabajo femenino, puesto que, en la sociedad de origen está afianzada la idea de que el aporte que la mujer realiza con su salario sólo constituye “una ayuda”; poner en marcha nuevos mecanismos para controlar la sexualidad de la mujer tanto si migra como si permanece en lugar de origen; redefinir los roles familiares desempeñados hasta el momento y asumir los cambios estructurales que pueden darse en los mismos.18

Neste sentido, é essencial destacar a importância da cadeia migratória e das redes migratórias no contexto da feminização das migrações. Por cadeia migratória se entende a transferência de informação e apoios materiais que, preferentemente, familiares e amigos oferecem aos potenciais migrantes para decidir ou concretizar sua viagem e também o apoio necessário nos aspectos necessários para sua incorporação na sociedade de destino.

A migração feminina muda os papéis exercidos pelas mulheres em origem e tem consequências, principalmente, em duas perspectivas: 1. a ampliação do papel das mulheres na produção; 2. a mudança de sua relação de poder diante do seu grupo doméstico, com alteração das relações simbólicas existentes.

Um dos motivos pelos quais se verifica o aumento da migração feminina se fundamenta na informação de que há maior demanda de empregos femininos nos destinos, no contexto das redes migratórias.

Com essa reflexão sobre a inclusão da mudança de papéis da mulher nos processos migratórios não se pretende igualar o fenômeno da migração com o fenômeno do tráfico de pessoas. Sabe-se que são

18 PEDONE, Claudia. “Las relaciones de género en las familias ecuatorianas dentro del conexto migratorio internacional hacia el Estado español.” Treballs de la Societat Catalana de Geografia, Barcelona, Nº 56, 2003. Ver en:

http://www.iecat.net/pperiodiques/openlink.asp?URL=ShowArticleFile.asp?FileID= {4252846D-333A-41BF-BA48-35970B511B52}&FileType=application/pdf

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fenômenos diferentes, um relativo ao movimento de pessoas e o outro relativo a um crime transnacional. A migração deve ser entendida sempre como um fenômeno positivo e o tráfico de pessoas deve ser combatido.

Por outro lado, parece interessante examinar a semelhança que existe nas relações que se constroem, de um lado, entre as mulheres migrantes e, do outro, as relações que se constroem entre as mulheres vítimas de tráfico, desde o início do processo do aliciamento e na mudança de papéis desempenhados por essas mulheres diante da sua família, suas relações afetivas e a sociedade de origem e destino.

A alteração das relações simbólicas existentes entre essas mulheres e suas famílias, muitas vezes é o que estimula a permanência delas em situações de exploração e é o que as faz ter vontade de retornar a essa situação, em caso de ser deportada por situação de irregularidade documental. Nesses casos, o retorno ao Brasil, depois de um processo administrativo de deportação, significa voltar a ter o mesmo “valor” simbólico de antes, não ter cumprido o seu projeto migratório, mesmo que esse tenha sido executado sob intensa situação de exploração.

A ampliação do papel das mulheres na produção garante uma melhora de seu status diante de seu grupo doméstico, com o aumento da autoestima e com a garantia de outra forma de autoridade no núcleo doméstico.

As relações simbólicas resultantes da migração feminina devem ser analisadas, uma vez que trazem consequências consideráveis nas relações dessas mulheres com seu grupo social mais próximo e também das relações dessas mulheres com a sociedade em geral.

A migração feminina traz, em muitos casos, o fim da submissão à autoridade masculina, seja de seu pai, irmãos e marido, nos casos em que essa figura esteja presente na vida dessa mulher.

Por outro lado, ainda que haja o fim da submissão da mulher frente à autoridade masculina, a migração impõe novas obrigações, principalmente a de manter economicamente sua família, seguir mantendo o funcionamento do grupo doméstico em origem durante sua ausência e, assim que se estabelecer no destino, reagrupar a família, principalmente seus filhos.

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Nesse contexto, a manutenção do grupo doméstico se garante pelas relações entre as mulheres em um grau de horizontalidade e solidariedade. As mulheres trocam bens e serviços para possibilitar a manutenção do grupo doméstico na origem (no caso, o Brasil).

Outro aspecto a ser analisado refere-se às trocas de serviços quando as mulheres migrantes conseguem reagrupar seus filhos em destino. O grupo social que a ajudou na inserção e adaptação também é o grupo que passa a auxiliá-la com o cuidado para com seus filhos. Por exemplo, no caso das mulheres em situação de prostituição, verifica-se uma rede de apoio das mulheres que se revezam no trabalho, umas cuidando dos filhos das outras.19

A feminização das migrações se fortaleceu uma vez que as mulheres passaram a ver a migração como uma maneira de oferecer a seus filhos a possibilidade de garantir seus estudos, com melhores condições de futuro, ademais, no caso dos filhos reagrupados em destino, os benefícios do Estado do Bem-Estar europeu.

A maternidade é um aspecto da migração bastante importante, que muitas vezes não é levado em conta com a importância que deveria. As relações desestruturadas ou a mudança das pessoas que representam figuras familiares de referência é um ponto relevante no estudo das migrações e do fenômeno que envolve as mulheres vítimas de tráfico.

Nesse contexto, a maternidade compartilhada é um aspecto importante da migração feminina e caracteriza a maternidade transnacional. As mulheres migram, deixam seus filhos geralmente aos cuidados de uma outra pessoa (mãe, irmã, tia), mas nunca deixam de se desvincular deles. A expectativa das migrantes é garantir a criação dos filhos, mesmos que seja à distância, mas proporcionando-lhes as melhores condições. Há casos em que a perspectiva muda: a mulher procura a estabilidade para reagrupar a família em destino.

Além disso, a feminização da migração converteu novamente as avós em mães, quando estas já acreditavam que haviam concluído essa etapa em suas vidas. As consequências para a vida dessas avós, que começam a assumir responsabilidades que já não tinham que assumir, influencia na formação e percepção da criança do que é um

19Esse exemplo citado refere-se ao caso de uma das mulheres entrevistadas durante a pesquisa realizada no ano de 2008. “A” estava há 1 ano na Espanha. Já havia pagado sua dívida há 5 meses. Continuava trabalhando em um clube na Galícia. Havia ajudado a trazer sua irmã “B” para trabalhar no mesmo clube. As duas se revezavam no trabalho, para cuidar do filho; nos dias em que “A” trabalhava, “B” ficava com a criança. Enquanto “B” trabalhava, “A” cuidava da criança.

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núcleo familiar e como se formam as relações entre as diferentes pessoas desse núcleo.

A maternidade transnacional, resultado das migrações transnacionais, tem consequências profundas nas relações pessoais dessas mulheres e principalmente de seus filhos, que acabam gerando efeitos nos círculos sociais mais extensos.

A maternidade transnacional é um elemento essencial encontrado no perfil de muitas das mulheres que exercem a prostituição e das vítimas de tráfico para fins de exploração sexual na Espanha uma vez que a grande maioria das mulheres entrevistadas possui filhos no Brasil.

A figura do aliciador / aliciadora

No Brasil, apesar da percepção da prevalência de homens como aliciadores/agenciadores das vítimas de tráfico,20 verifica-se o

grande número de aliciadoras mulheres que conseguem convencer outras mulheres das vantagens da inserção nas redes sexuais, através de suas experiências “bem-sucedidas” com a prostituição no exterior. Percebe-se que essas aliciadoras já estiveram em condição de vítimas, mas conseguiram pagar sua dívida e foram inseridas na estrutura das redes de tráfico para exercer um poder de convencimento sobre outras mulheres. Ou, ainda, que essas aliciadoras se envolvem sentimentalmente com algum traficante ou dono de clube de prostituição e se tornam as principais fontes de aliciamento de mulheres no Brasil.

O exemplo do pequeno município de Uruaçu, localizado no interior de Goiás, a menos de 200 Km de Brasília, mostra bem as possibilidades oferecidas às brasileiras mais pobres pelo comércio do corpo no estrangeiro. A cidade de pouco mais de 25 mil habitantes dispõe de poucas oportunidades de geração de renda para as mulheres. Segundo a matéria publicada pela Revista Veja, em sua edição de 05/02/2005, a confecção de terços, que permite uma remuneração mensal de menos de um salário mínimo é a maior empregadora da força de trabalho feminina do município.

Em 1997, uma jovem da cidade deu um exemplo diferente. Foi para a Espanha para trabalhar na prostituição. Em pouco tempo, várias moças de Uruaçu seguiram a mesma trilha. Em 2004, as chamadas “Espanholas” (mulheres que construíram um patrimônio

20A PESTRAF indica que 59% dos aliciadores são homens, contra 41% de aliciadoras mulheres, pg.64

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em Uruaçu se prostituindo na Espanha) tinham consolidado sua imagem na cidade como mulheres de sucesso, a ponto de não mais esconder a origem dos ganhos obtidos no exterior. Hoje elas são donas de aproximadamente 60% dos imóveis para alugar no município.21

La Policía desarticula una organización que se dedicaba a introducir ilegalmente a mujeres brasileñas en España. Las investigaciones lograron determinar que uno de sus componente de la red, Oscar S. tenía una compañera sentimental brasileña y que ambos se trasladaban con relativa frecuencia a Brasil. En este país, se dedicaban a la captación de mujeres con el siguiente perfil: menores de treinta años, físicamente agraciadas, madres solteras o mujeres divorciadas o separadas, con problemas intra familiares y económicos y de escasa formación cultural, quienes residían en el barrio de donde era natural la pareja de Oscar.(…)22

Fica evidente o papel desempenhado pela mulher aliciadora no Brasil.

Verificam-se também casos de mulheres que, sem terem consciência de que estão aliciando suas amigas e parentes, conseguem o contato e muitas vezes ajudam com dinheiro para a entrada de outras mulheres nos países de destino.

Constata-se também que muitas mulheres vítimas de tráfico indicam outras mulheres brasileiras para irem à Espanha, com contatos, local para o exercício da prostituição, conseguindo, em contrapartida, diminuir parte de sua dívida contraída com a rede criminosa. Porém, ao contrário do que possa parecer muitas vezes, elas não têm a percepção de que estão traficando mulheres e se beneficiando com isso. A percepção é a de que se está ajudando uma amiga ou parente a melhorar de vida e, ao mesmo tempo, estão diminuindo suas dívidas.

Independente da existência dessas redes de aliciadores, verifica-se a existência de uma diversidade de possibilidades

21 Revista Veja, edição 05/02/2005 22Disponível em:

http://www.mir.es/DGRIS/Notas_Prensa/Policia/2004/np051202.htm. Acesso em:29/12/08

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viabilizando a migração para inserir-se no mercado sexual. As migrantes envolvem conhecidos, amigos, parentes e namorados.23

Complexidades na identificação de supostas vítimas de

tráfico para fins de exploração sexual

A complexidade que envolve o fenômeno do tráfico de pessoas, somada a importância de se ter em mente que estamos lidando com um crime apontado atualmente como a segunda maior fonte de lucro ilegal do mundo (depois do tráfico de drogas e de armas) e considerando que nem todas as mulheres brasileiras que exercem prostituição na Espanha são vítimas de tráfico, revela a necessidade de compreendermos a dificuldade de identificar as possíveis vítimas e ainda garantir que elas tenham uma atenção especializada e garantidora de direitos.

Outro aspecto que deve ser levado em conta é a ausência de percepção, por parte da mulher, da situação de tráfico e exploração a que ela se vê submetida quando chega à Espanha. Mesmo que a mulher saiba que sua atividade na Espanha será o exercício da prostituição, muitas vezes ela desconhece as condições nas quais se realizará essa atividade: a retenção dos documentos, o impedimento de sair livremente do local “de trabalho”, as regras impostas pelos encarregados do local, a obrigação de trabalhar onde lhe seja determinado, etc.

Outro aspecto interessante refere-se ao fato de que, mesmo não aceitando as condições de trabalho a que são impostas, os compromissos assumidos com a família em origem são mais relevantes do que deixar tudo e retornar ao Brasil. Os valores simbólicos construídos, as obrigações financeiras e a ausência de outra perspectiva em origem alteram o paradigma dessas mulheres, levando-as a aceitar essa condição como sua.

Essas mulheres entendem que essas são as condições necessárias pelas quais elas têm que passar, não tendo a perspectiva de que estão sendo exploradas.

Complexidade na identificação do traficante

23Ver AGUSTÍN, Laura Maria. Trabajar en la industria Del sexo, y otros tópicos

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Pode-se ainda observar que, desde o aliciamento, as mulheres não identificam a figura de um traficante. Muitas vezes, o convite para ir à Espanha é feito por uma outra mulher do mesmo círculo social e inclusive familiar, sempre com a perspectiva de que o convite pretende ser uma tentativa de ajuda para melhorar as condições de vida, garantir um futuro melhor para os filhos e, principalmente, ser alguém diferente de quem se é no Brasil.

O aliciador é aquele que financia a viagem dessa mulher e na chegada dela ao destino será quem terá total disposição sobre suas condições no exercício da prostituição. Porém, essa figura é totalmente invisível para essa mulher que sai do Brasil.

Sua percepção somente é a de que é uma imigrante que está “tentando sua vida fora do país” com a ajuda de uma amiga ou parente.

Complexidade na identificação do traficante pela polícia

As normativas internacionais atuais referentes ao tráfico de pessoas, principalmente o Protocolo de Palermo de 2000, foram elaboradas na perspectiva fundamental de garantir a Segurança dos Estados Nacionais contra os delitos transnacionais, principalmente o tráfico de pessoas, contrabando de pessoas, tráfico de armas e de drogas, conforme a Convenção contra o Crime Organizado Transnacional. Nesse contexto, a perspectiva de garantia dos direitos das vítimas é pensada e executada como secundária.

A título de exemplo, analisando a política da União Européia sobre as comunicações que se referem ao tráfico de pessoas, percebemos que o tráfico é abordado de forma indireta, ao vinculá-lo diretamente com o tema da imigração irregular, sempre pensando em aspectos da migração relacionados com a segurança estatal.

Ainda que o discurso da União Européia reconheça em várias ocasiões24 a importância de um enfoque equilibrado e global

(destinado a promover correlações entre a migração e o desenvolvimento, e pensando em uma estratégia a longo prazo de combate contra as causas da migração forçada), e analisando cuidadosamente seus termos, verifica-se uma forte intenção de

24

Ver as comunicações da UE: COM (2001) 672 final, COM (2005) 621 final, COM (2006) 735 final, Pacto europeo sobre inmigración y asilo, de 24/09/2008.

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controle e segurança, e menos intensamente a perspectiva e medidas efetivas de cooperação para a garantia progressiva do desenvolvimento dos países de origem, diminuindo assim a contenção das causas da migração forçada e do tráfico de pessoas.

Nessa perspectiva, pode-se identificar que as políticas regionais analisam a questão do tráfico de pessoas desde o controle e a segurança regional, dando os indicativos das políticas a serem construídas em nível nacional. Nesse sentido, os Estados vêm desenvolvendo medidas e políticas para o combate ao tráfico de pessoas nessa mesma linha, deixando a perspectiva do resgate e garantia dos direitos das vítimas num segundo plano.

Atualmente, a Espanha segue essa mesma linha. Pela Lei de

Estranjería25, em seu artigo 59, há necessidade de denúncia por parte

da vítima para que esta possa ser considerada como tal e assim receber os benefícios decorrentes dessa condição, por exemplo: 1. direito a ser considerada uma testemunha protegida; 2. direito a residência (temporária ou definitiva); 3. direito a ser atendida por uma organização de atendimento especializado (atendimento psicológico especializado, atenção jurídica específica).

Verifica-se ainda que o artigo 117 do Real Decreto 2393/04 estabelece que se a vítima deixa de colaborar ou cooperar com a polícia ou a justiça, a concessão da documentação pode ser revogada pelas autoridades. Na prática, conforme informações obtidas junto às entidades que prestam assistência às vítimas de tráfico na Espanha, muitas vítimas não querem colaborar com a polícia e/ou com a justiça uma vez que as informações aportadas por elas não são entendidas como suficientes pelas autoridades policiais e judiciais para a concessão da documentação e da isenção da responsabilidade administrativa.

Quando a mulher decide não denunciar e se encontra em situação de ilegalidade documental, é iniciado um procedimento administrativo de expulsão, que muitas vezes se finaliza na deportação dessa mulher ao seu país de origem.

25

Ver as comunicações da UE: COM (2001) 672 final, COM (2005) 621 final, COM (2006) 735 final, Pacto europeo sobre inmigración y asilo, de 24/09/2008.

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A denúncia da mulher, então, é essencial para lhe garantir a condição de vítima de tráfico. Como se verificou anteriormente, as mulheres brasileiras não se identificam como vítimas de tráfico, seja pela não visualização e desconhecimento de quem é a figura do traficante; seja pela não percepção da exploração decorrente da prostituição; seja porque não querem prejudicar as pessoas (do seu círculo social) que a trouxeram à Espanha, seja porque têm que continuar mandando dinheiro às suas famílias através do exercício da prostituição, não podendo assim ser caracterizadas pela polícia como vítimas de tráfico, não tendo direitos como tal.

Na prática, a maioria das mulheres brasileiras exercendo prostituição ou em situação de tráfico, e em situação irregular encontradas pela polícia espanhola, é deportada ao Brasil por ser considerada imigrante irregular. Essa mulher, que eventualmente seja uma vítima de tráfico, mas que se negue a colaborar com a polícia espanhola, voltará ao Brasil sem nenhuma atenção específica e especializada garantida pelas legislações internacionais.

É necessário que haja compreensão, pela própria polícia, de que as redes de tráfico de brasileiras são informais, não existindo a figura de um grande traficante por trás. Assim, não há como concretizar-se a identificação real do traficante, ficando prejudicada a colaboração, ao menos nos termos determinados pela legislação.

A ratificação pela Espanha da Convenção do Conselho da Europa contra o Tráfico de Mulheres para fins de Exploração Sexual deverá ser um grande passo no comprometimento do país para a garantia dos direitos das vítimas de tráfico, independente de sua condição de regularidade documental.26 Esse documento internacional

traz uma nova perspectiva sobre a necessidade de garantia dos direitos das vítimas, prevendo medidas específicas nesse sentido, entre elas o direito do período de reflexão27.

Igualmente a aprovação do Plano Estatal contra la Trata de

Mujeres para Fines de Explotación Sexual, na Espanha, pelo

Conselho de Ministros, em 2009, indica uma predisposição e uma preocupação do Estado espanhol com essa realidade.

26 A Espanha assinou a Convenção, mas ainda não a ratificou.

27 Período de reflexão é o período previsto na Convenção do Conselho da Europa que garante um período mínimo de um mês para que a mulher identificada como suposta vítima de tráfico seja atendida e reflita sobre a situação vivida e se deseja colaborar com a polícia. Nesse período, não é iniciado o procedimento de expulsão.

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A dificuldade na identificação de supostas vítimas de

tráfico pelas organizações de atendimento direto

28

Na perspectiva da identificação e atendimento das supostas e já identificadas vítimas de tráfico, aparece um desafio importante para as organizações de atendimento: a de garantir assistência a quem é vítima, mas não se considera como tal.

Partindo-se da prática na identificação das vítimas e das experiências de atendimento às vítimas de tráfico brasileiras para fins de exploração sexual na Espanha, verifica-se que a brasileira vítima de tráfico não preenche todos os elementos descritos no conceito dado ao tráfico de pessoas no Protocolo de Palermo, principalmente no que se refere aos meios empregados para o tráfico (ameaça, uso da força, coação, rapto, fraude, engano, etc), dificultando sua identificação e forçando uma indicação de vítima.

Conforme verificamos no decorrer do texto, muitas mulheres brasileiras na Espanha sabiam exatamente que viriam exercer prostituição e viajaram voluntariamente, sem sofrer ameaças, rapto, fraude, engano, etc. Essa condição não retira, por si só, sua possível condição de vítima de tráfico, conforme o próprio Protocolo de Palermo. Outras, no entanto, viajaram enganadas. Nesses casos, a identificação da própria vítima com a situação do tráfico é mais fácil.

Além disso, o conceito de tráfico de pessoas trazido pelo Protocolo de Palermo pode ser tipificado internamente pelos Estados, segundo outras definições. Ademais, a noção de “exploração” trazida pelo Protocolo não é suficiente para definir e delimitar o crime, ainda mais quando falamos da exploração da prostituição. A falta de delimitações dificulta a caracterização do crime.

Essas dificuldades de conceitos, somadas às abordagens feministas sobre a prostituição, podem gerar discrepâncias na identificação de supostas vítimas de tráfico e até mesmo deixar vulneráveis as mulheres que não são vítimas de tráfico e que se identificam como trabalhadoras do sexo.

28 Durante a pesquisa realizada com diversas organizações de atendimento direto, localizadas principalmente em cinco Comunidades Autônomas da Espanha, Galícia, Astúrias, Andaluzia, Madrid e Catalunha, pôde-se perceber a existência de diversas metodologias de trabalho, diversas tendências de compreensão sobre o fenômeno da prostituição e do tráfico de pessoas, sendo possível identificar as consequências dos elementos anteriormente descritos, revertidos nas práticas de atenção.

(21)

A perspectiva do atendimento deve ser sempre a de promover o bem-estar das mulheres29, garantindo o que efetivamente elas

buscam. Essa perspectiva é muito diferente da perspectiva que considera saber exatamente o que essa mulher deseja, como se não tivesse a capacidade de decidir sobre suas próprias necessidades.

Assim, se o trabalho conduzir à identificação de uma vítima de tráfico, esta deve ser atendida e orientada nessa perspectiva, tentando resgatar os seus direitos violados. Por outro lado, se a mulher atendida não apresentar indícios de tráfico, ela deve ser atendida na perspectiva de suas demandas.

Analisando as práticas de atenção identificadas durante a pesquisa, conseguimos intuir que as organizações que, independente de seus posicionamentos pessoais e institucionais, pretendiam a promoção do bem-estar dessas mulheres, atendendo-as como mulher, na perspectiva de sujeito de direitos, independente de sua ligação com o tráfico ou com a prostituição, conseguiam melhor aceitação e a verdadeira criação de vínculos da mulher com o serviço. Exemplo dessa experiência é o resultado de um trabalho publicado pelo Projeto SICAR- Astúrias, que desenvolveu a perspectiva das necessidades das mulheres através de oficinas realizadas com as próprias mulheres. 30

A necessidade da criação de acordos bilaterais e

multilaterais para o atendimentos das vítimas de tráfico

Outro aspecto relevante e essencial, no contexto da temática do tráfico de mulheres é a necessidade da criação de redes de atendimento transnacionais. Uma mulher identificada como vítima de tráfico e que retorne ao seu país de origem deve ter iniciado seu processo de atendimento ainda no país de destino, com a continuidade do acompanhamento e monitoramento no país de origem.

A pesquisa realizada na Espanha identificou a necessidade de articulação das redes de atendimento às vítimas brasileiras de tráfico, através da criação de uma política pública de Estado. Além disso, a pesquisa possibilitou a articulação das instituições públicas e privadas responsáveis pelo atendimento às vítimas, seja na Espanha como no

29PISCITELLI, Adriana. VASCONCELOS, Márcia. (Org.) Universidade Estadual de Campinas. Revista semestral do Núcleo de Estudos de Gênero – PAGU. Cadernos Pagu (31) julho-dezembro de 2008.

30

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Brasil, provocando a co-responsabilidade destes Estados para a assinatura de um termo de compromisso conjunto nessa temática.

Atualmente, estes dois Estados estão discutindo os termos desse acordo bilateral e organizando internamente seus serviços e instituições para o atendimento das vítimas.

Importante ressaltar que essas ações estão incluídasnos Planos Nacionais de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas nos dois Estados. O Brasil vem criando uma metodologia de atendimento específica para as vítimas de tráfico a ser aplicada pelos Centros de Referência da Mulher, criados e distribuídos pelo Brasil.

Conclusão

Este texto pretendeu identificar a situação das mulheres brasileiras na Espanha em situação de prostituição e sua possível vinculação com o tráfico de pessoas para fins de exploração sexual.

A problemática do tráfico de pessoas é bastante grave pela violação de direitos , exigindo uma postura firme por parte dos Estados no sentido de garantir políticas públicas de enfrentamento e atenção às vítimas, nunca esquecendo as políticas de cooperação necessárias para a prevenção e a tentativa da eliminação das vulnerabilidades sociais e econômicas que levam a esse crime.

Por outro lado, entende-se que não compreender a situação da migração feminina e principalmente da prostituição como uma estratégia migratória é extremamente perigoso e igualmente transgressor dos direitos das pessoas. Vale ressaltar ainda que, na Espanha, é necessário incluir os transsexuais nessa estratégia migratória, pelo elevado número de transsexuais identificados.31

O texto procurou também analisar as dificuldades na identificação das vítimas de tráfico pelas próprias vítimas, assim como analisar algumas das deficiências na legislação espanhola que dificultam a efetiva atenção às vítimas de tráfico.

31

FUNDACIÓN TRIANGULO. Trabalhadores masculinos del sexo: aproximación a la prostituición masculina en Madrid. 2006

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Na perspectiva do atendimento, procurou expor algumas pistas, retiradas da análise das práticas de atendimento, no sentido de melhorar a atenção às mulheres como sujeito de direitos, independente de sua condição de vítima de tráfico ou de pessoa no exercício da prostituição.

Além disso, procurou demonstrar a necessidade da criação efetiva das redes de atenção transnacionais s vítimas de tráfico, por meio de acordos bilaterais e multilaterais entre os países de origem e de destino.

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