Reflexões - Primeiros Passos
Em algum lugar
Ana Maria Tabet de Oliveira
- O senhor acha sua vida vazia?
- Não, de forma alguma. Somos de uma família bem posicionada socialmente, meu pai é um funcionário de alto cargo num banco de grande porte, foi preso por ter sido associado às questões de espionagem nesta época de guerra... mas, graças a Deus, já está solto e nossa família já está bem, novamente.
- Qual sua idade? - 31 anos.
ste pequeno diálogo surgiu da aplicação do questionário de análise comportamental, o “GDS – Escala de Depressão Geriátrica”, ocorrido durante uma série de testes e entrevistas aplicados como parte do projeto de mestrado no Programa de Estudos Pós-Graduados em Gerontologia - PUC-SP, diálogo que provocou estranhamento na pesquisadora.
No projeto de mestrado, como fisioterapeuta, criei um protocolo de atendimento fisioterapêutico, na perspectiva da Gerontologia - estudo do processo do envelhecimento a partir de uma ampla abordagem biopsicossocial - a ser aplicado em encontros semanais de duas horas, em 14 idosos diagnosticados com Doença de Alzheimer (DA) leve a moderada, atendidos em um centro-dia de SP, pelo período de seis meses, e avaliados em três aspectos: cognição, funcionalidade e comportamento, em três fases – no início do atendimento, aos três meses e ao final dos seis meses, por meio de testes e questionários aplicados diretamente neles e em seus familiares.
O diálogo mencionado se deu na segunda fase das avaliações, com o Sr. P.W. e surgiu a questão: em que local e época se encontrava aquele distinto e culto senhor, diagnosticado com Doença de Alzheimer, grau leve. Com 74 anos, via-se com 31 anos e estava em meados de 1940 (época da II Grande Guerra Mundial), morando com seus pais, não sei em qual local. Nem tinha se casado
E
ainda. Ele estava em algum lugar, em algum outro lugar e em outro tempo. Não o real. Não o nosso tempo e lugar.
Essa desorientação e confusão têmporo-espacial e apagamento da memória de curto e médio prazo são alguns dos vários sintomas da demência do tipo Alzheimer, a mais prevalente das demências.
O geriatra e professor do curso de mestrado em Gerontologia, Prof. Dr. Paulo Canineu, informa-nos sobre como entender a demência. Afirma que ela é
[...] uma deterioração da capacidade intelectual caracterizada por perda progressiva das habilidades cognitivas e emocionais, suficientemente grave para interferir nas atividades de vida diária (AVDs) e na qualidade de vida (QV). (CANINEU, 2013)
As fisioterapeutas Perracini e Fló (2011) afirmam que o diagnóstico de demência segue os critérios do Diagnostic and Statistical Manual of Mental
Disorders (DSM- IV) e preconiza a existência de déficit de memória e de, pelo
menos, mais de um domínio cognitivo, como linguagem, habilidades visuoespaciais e função executiva. As autoras informam sobre as várias causas de demência, sendo que a Doença de Alzheimer é considerada a mais prevalente, equivalendo de 50% a 60% dos casos, quando ocorre degeneração neuronal associada à presença de alterações microscópicas, os emaranhados neurofibrilares e as placas senis.
A realização de uma anamnese ampla e precisa, a escuta do próprio paciente e seus familiares mais próximos, além da realização de testes neuropsicológicos específicos são fundamentais antes de qualquer aprofundamento.
O neuropsiquiatra Leonardo Caixeta (2012), do Instituto de
Psiquiatria/HCFMUSP, enumera os critérios diagnósticos do DSM-IV para demência (adaptado da American Psychiatric Association – APA): a) redução da memória em curto prazo; b) pelo menos um dentre os seguintes: 1) dificuldade de abstração; 2) dificuldade para julgamentos e para controlar impulsos; 3) afasia (distúrbio da linguagem) e/ou apraxia (incapacidade para executar atividades motoras, apesar da compreensão e da função motora estarem normais) e/ou agnosia (dificuldade de reconhecimento): 4) modificações da personalidade.
Segundo a neurologista Sonia Brucki (2011), da FMUSP, o diagnóstico de Doença de Alzheimer pode ser classificado como: possível, provável ou definido, pelos critérios NINCDS/ADRDA (National Institute of Neurological and
Communicative Disorders and Stroke/Alzheimer’s Disease and Related Disorders Association), que formulou os critérios diagnósticos para DA mais
utilizados até hoje em estudos científicos, em 1984.
O psiquiatra Orestes Forlenza (2012) do IPq-HCFMUSP, tratando do diagnóstico de DA, orienta a realizar outros exames como: tomografia
computadorizada (TC); ressonância nuclear magnética (RNM); tomografia computadorizada por emissão de fóton único (SPECT), ou tomografia por emissão de pósitrons (PET), além de exames laboratoriais e do líquido cefalorraquidiano (líquor).
Por sua vez, os psiquiatras Bottino, Laks e Blay (2006), da FMUSP, UFRJ e UNIFESP/EPM, respectivamente, definem a Doença de Alzheimer como um tipo de demência neurodegenerativa, progressiva e, até o momento, inexorável. A fase clínica da doença inclui o comprometimento de memória e de vários domínios cognitivos como atenção, imaginação, compreensão, concentração, raciocínio, julgamento, percepção, além de prejuízo das atividades funcionais e comportamentais.
Podemos classificar as demências em: a) Tipo Alzheimer e b) Tipo Não-Alzheimer. As do tipo não-Alzheimer são várias: demência vascular, demência dos corpúsculos de Lewy, demência frontotemporal, hidrocefalia de pressão normal, demências degenerativas e subcorticais, demências tóxico-metabólicas, dentre outras (CANINEU, 2013).
Quanto ao tratamento, existem as abordagens farmacológicas e a não-farmacológicas. Podemos afirmar que os efeitos do tratamento farmacológico em uso, mundialmente, para as demências em geral e a Doença de Alzheimer em particular, favorecem apenas um discreto retardo na evolução natural da doença, sendo capaz de proporcionar melhora parcial ou provisória da cognição, dos aspectos funcionais, comportamentais e dos sintomas neuropsiquiátricos destes pacientes.
Os inibidores da acetilcolinesterase – donepezil, galantamina e rivastigmina – são as principais drogas licenciadas para o tratamento específico da DA; seu uso baseia-se no pressuposto déficit do neurotransmissor acetilcolina que ocorre nessa doença. Através da inibição das suas principais enzimas catalíticas, a acetilcolinesterase e a butirilcolinesterase, esses medicamentos aumentam a disponibilidade sináptica de acetilcolina. Como resultado, obtém-se efeito sintomático leve sobre a cognição, beneficiando certas alterações não-cognitivas da demência. Outra conhecida droga para tratamento dessa doença é a memantina, que age sobre o neurotransmissor glutamato, que tem a função de estimulação de diversas funções cognitivas e da memória. (FORLENZA, 2012).
Quanto às abordagens de tratamento não-farmacológico, preconiza-se a interação entre pacientes, terapeutas e familiares - de forma multiprofissional e interdisciplinar – abordagem importante no retardo da progressão do quadro demencial.
Quando pensamos em manejo não-farmacológico, as estratégias devem englobar duas grandes áreas: a emocional/comportamental e a funcional/cognitiva, considerando as funções que permaneceram, e não as que já se perderam, desenvolvendo-se planos que sejam “estágios-específicos”,
segundo a APA (demência leve, moderada e grave), essência do trabalho de estimulação, de reabilitação (CAIXETA, 2012).
O tratamento não-farmacológico multidisciplinar envolve a fisioterapia que atua, principalmente, nas perdas de capacidade funcional, interferindo no planejamento, elaboração e sequenciamento do movimento, na execução motora das atividades, o que leva a um prejuízo da marcha, hipertonia, incoordenação motora, fraqueza muscular, movimentação involuntária, tremores, instabilidade postural, dentre alguns dos acometimentos.
Utilizam-se alongamentos, exercícios de fortalecimento muscular, caminhadas, atividades de socialização, exercícios de psicomotricidade, de relaxamento, musicoterapia, aromaterapia, dentre as principais abordagens.
Objetiva-se com o tratamento fisioterapêutico, principalmente, a manutenção e melhora da força muscular, da amplitude de movimento, do equilíbrio e da marcha. A fonoaudiologia, a terapia ocupacional, a psicologia – com a “reabilitação neurocognitiva”, o aconselhamento psicológico e psicossocial, manejo interpessoal e do ambiente, a “terapia de orientação da realidade”, a “terapia das reminiscências”, dentre outras -, a nutrição e a enfermagem são outras disciplinas utilizadas no tratamento não-farmacológico.
A abordagem gerontológica diz respeito à observação da heterogeneidade dos idosos com os quais trabalhei. Como observado pelo médico e diretor da UNATI (Universidade Ativa da Terceira Idade/RJ) Renato Veras, e o médico epidemiologista da UERJ Roberto Lourenço (2010), pode haver diferenças de acordo com a história de vida, e quanto às alterações ocorridas no processo de senescência natural ou patológica - no momento em que começaram a desenvolver sintomas de demência, segundo relato dos familiares – observação de um processo multifatorial, nos seus aspectos biológico, psíquico, sociocultural e espiritual.
A estranheza ante o diálogo que inicia este texto, o medo, a sensação de que pode acometer qualquer indivíduo, não importando o nível sociocultural, foi o impulso desse projeto, com a aplicação de protocolo de exercícios fisioterapêuticos, com abordagem gerontológica, no grupo de idosos diagnosticados com DA leve a moderada do centro-dia no qual foi realizada a pesquisa. Observação e percepção dos aspectos funcionais, cognitivos e comportamentais reagem a proposta, não como quem “observa um experimento”, mas com o real interesse pelo que o atendimento pode beneficiá-los. Os idosos dementados, pessoas com uma história de vida única, singular, mas que não tem (ou tem pouca) relação com o presente.
O ponto-chave do projeto é a forma de trabalhar com esse grupo de idosos: dividido em dois grupos: metade é auxiliado na execução dos exercícios, desenvolve contato físico, e a outra metade realiza e desenvolve os exercícios individualmente, sem auxílio e cooperação mútua.
Cada grupo realizou os exercícios por três meses, depois se inverteram os grupos e os protocolos: os que não tinham contato e cooperação mútua passaram a ter e vice-versa. Os dois grupos realizaram os dois protocolos, os exercícios para serem realizados individualmente e os para serem feitos em cooperação. A questão do contato, da interação, da socialização, o que isto proporciona positivamente a eles, ou não, está em fase de avaliação global parte final do projeto.
A motivação para esse estudo partiu da observação de pessoa próxima a pesquisadora, por cerca de seis anos, motivando o profundo desejo de auxiliar, de proporcionar bem-estar e melhora na qualidade de vida no presente, seja no âmbito físico/funcional, no emocional/comportamental e no cognitivo.
O projeto, em processo de conclusão, objetiva observar os benefícios da interação durante a realização dos exercícios fisioterapêuticos em pacientes com Doença de Alzheimer,
Referências
BOTTINO, Cássio M.C.; LAKS, Jerson; BLAY, Sérgio L. Demência e
transtornos cognitivos em idosos. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan,
2006.
BRUCKI, Sonia M.D. et al. Demências. Enfoque multidiscipinar. São Paulo: Editora Atheneu, 2011.
CAIXETA, Leonardo e cols. Doença de Alzheimer. Porto Alegre: Editora Artmed, 2012.
CANINEU, Paulo; CAOVILLA, Vera. Você não está sozinho. Nós estamos com
você. São Paulo: Novo Século Editora, 2013.
FORLENZA, Orestes et al. Doença de Alzheimer. Uma perspectiva do
tratamento multiprofissional. São Paulo: Editora Atheneu, 2012.
PERRACINI, Monica R.; FLÓ, Claudia M. Funcionalidade e envelhecimento. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan, 2011.
VERAS, Renato; LOURENÇO, Roberto. Formação humana em geriatria e
gerontologia. Rio de Janeiro: Editora DOC, 2010.
Data de recebimento: 29/10/2013; Data de aceite: 17/11/2013.
____________________________
Ana Maria Tabet de Oliveira – Fisioterapeuta (Centro Universitário São
Camilo), com especialização em Fisioterapia Cárdio-Pulmonar pela UNICID, formação em RPG (Reeducação Postural Global) pelo Instituto Phillippe Souchard, mestranda do programa de “Estudos Pós-Graduados em Gerontologia” da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).