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SUCESSÃO NO TRONO DA GOMEIA: UMA QUESTÃO POLÍTICA OU DE GÊNERO? 1

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Academic year: 2021

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SUCESSÃO NO TRONO DA GOMEIA: UMA QUESTÃO POLÍTICA OU DE

GÊNERO?1

Ivete Miranda Previtalli Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – São Paulo

RESUMO

É reconhecido o papel proeminente das mulheres no candomblé. Detentoras das tradições religiosas e culturais, a mãe de santo são saudadas e respeitadas e mereceram destaque nos estudos sobre religiões afro-brasileiras, devido principalmente à posição mais alta que a mulher ocupa em um sacerdócio. Entretanto, quando Joãozinho da Goméia faleceu, houve uma disputa pela sua sucessão. Na época foi designado por um jogo de búzios que, uma menina, Sandra Regina Reis dos Santos (Sessi Caxi), seria sua herdeira. A sucessão dividiu o terreiro e o candomblé, na luta pelo poder. Sobre esse assunto, um ogã, filho de santo de Joãozinho, em uma entrevista me disse: “Esse negócio é uma politicagem, que diz que a mãe de santo é Sessi Caxi. Mas, ela não é mãe de santo, porque casa de angola aberta por homem, mulher não senta em cargo.” A partir dessa afirmação eu pergunto: Até que ponto a questão de gênero foi determinante na sucessão da Goméia? No candomblé angola mãe de santo não pode suceder pai de santo?

Palavras chaves: Candomblé angola, sucessão, gênero.

INTRODUÇÃO.

Este trabalho procede do questionamento que surgiu sobre uma afirmação de um dos meus interlocutores que fez parte do trabalho do campo, realizado sobre o candomblé angola de São Paulo, na elaboração de minha tese de doutorado.

Tata2 Onirê Gansu, filho de Joãozinho da Gomeia e hoje vinculado a Gomeia de São Paulo, ao ser questionado sobre a sucessão ao trono do famoso pai de santo Joãozinho, disse:

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Trabalho apresentado na 28ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 02 e 05 de julho de 2012, em São Paulo, SP, Brasil.”

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2 Esse negócio de querer a Gomeia lá (no Rio de Janeiro) é uma politicagem que diz que a mãe de santo é Sessi Caxi. Mas, ela não é mãe de santo, porque casa de angola aberta por homem, mulher não senta em cargo. Haja vista, por exemplo, o Bate- Folha que era de Seu Bernardino e quem toma cargo é ogã. Mulher não senta no trono, não senta como mãe de santo. Ela é secundária. Mas o pai de santo, o zelador é sempre homem. Ele é quem toma cargo de zelador.

O que chama a atenção nessa afirmação do tata é a negação da possibilidade de uma mulher assumir o cargo de mãe de santo dentro de um terreiro de candomblé que foi fundado ou dirigido por um homem. É reconhecido por diversos estudos (Carneiro31991, Lima 1982, Landes 2002, Bernardo 1998), que a mulher como mãe de santo ocupa o mais alto grau hierárquico dentro de muitos terreiros de candomblé.

Na cultura ocidental, na relação com o sagrado, a questão de gênero vai se interpor de maneira a permitir o avanço da mulher na hierarquia religiosa apenas até determinado ponto, ficando reservados aos homens os mais altos graus sacerdotais. Ao contrário, no candomblé, a mãe de santo se localiza no mais alto grau da hierarquia, e agrega em volta de si um séquito de seguidores que podem ser os adeptos envolvidos com os processos iniciáticos e os clientes que vem aos terreiros a procura de conselhos e tratamentos espirituais.

Dentro do terreiro, Vivaldo da Costa Lima diz que ela “exerce toda a autoridade sobre os membros do grupo – em qualquer nível de hierarquia – dos quais recebe obediência e respeito. O chefe do grupo está naturalmente investido de uma série de poderes que se evidenciam na sua autoridade normativa, muitas vezes acrescentada

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Tata é um cargo masculino nos candomblés angola que pressupõe que este homem não caia em transe.

3 O nome mais difundido e utilizado nas casas de candomblé para designar os sacerdotes ou sacerdotisas é

pai ou mãe de santo e conforme Édison Carneiro: “O título de mãe vem do fato de o chefe do candomblé aceitar iniciadas (filhas, no futuro) para criar a devoção aos deuses. Depois de efetivamente admitidas na comunidade, estas iniciadas se consideram filhas espirituais do chefe do candomblé – e nesse sentido é que se emprega a palavra mãe. Desde que toda gente, dentro ou fora do candomblé, tem um espírito protetor, que deve habitar o seu corpo, e desde que o chefe do candomblé precisa preparar a iniciada para receber, em si mesma, a visita mais ou menos frequente da divindade, - um processo que exige tempo, convivência diária, prática de um conjunto de cerimônias secretas no interior do candomblé, com a orquestra especial de tambores e de instrumentos musicais africanos, - fazer o santo vale por uma segunda educação, que confere ao chefe da seita a ascendência de mãe em relação à filha.” (CARNEIRO. 1991, p.103)

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3 pelas manifestações de uma personalidade forte e de uma aguda inteligência”. ( LIMA, 1982, p.82)

Toda análise social ou antropológica vê os diferentes trabalhos e atividades próprias de mulheres e de homens. Assim quando olhamos para a comunidade do candomblé percebemos também a existências destas diferenças. O que é interessante notar é que enquanto na sociedade abrangente encontramos o homem como provedor e a mulher presa aos domínios da casa e das crianças, na comunidade do candomblé a mulher sem deixar de ser a mãe é também dona de um poder que lhe trará prestígio na esfera pública. Embora haja uma hierarquização entre as diversas atividades, o que acontece é que a mãe de santo tem acesso à esfera pública que lhe confere importância tanto quanto a esfera privada que já é própria da mulher.

Entretanto na afirmação do meu interlocutor uma mulher não poderia ocupar, dentro de um terreiro de nação angola, um cargo de mãe de santo ao substituir um pai de santo falecido. Isso não quer dizer que não haveria mães de santo no candomblé angola, pois são muitas, mas o que transparece na fala do tata é outra questão, que tem a ver com a presença masculina a ocupar o lugar que era legitimado pela presença feminina.

Em um artigo sobre o matriarcado cultural e o homossexualismo masculino nos candomblé baianos do começo do século XX, Ruth Landes (2002) chama a atenção para um novo tipo de liderança religiosa que estava aparecendo na época de sua pesquisa, que era masculina e homossexual. Landes (2002) coloca que “circunstancias incomuns encorajam certos homossexuais passivos a forjar um novo e respeitado status para si mesmos.” (LANDES, 2002, p. 320)

Nos antigos candomblés queto as mulheres eram as sacerdotisas soberanas e protagonistas das danças que não eram permitidas para os homens. Tampouco as iniciações eram feitas para os homens assim como eram realizadas para as mulheres. Landes (2202) assinala que apenas ocasionalmente meninos eram “feitos”, isto é, iniciados como as meninas. Eram casos específicos, principalmente quando algum mal atentava contra a vida da criança ou quando a criança, ainda gestando, havia sido prometida para alguma divindade e nascera menino e não menina como era esperada.

Preferivelmente, aos homens “assentava-se o santo”, ritual que preconizava a proteção de alguma divindade, mas eram excluídos de certos mistérios femininos. Landes (2002) chamou-os de iniciados passivos ou inadvertidos que podiam na maioria das vezes tornarem-se ogans, cargo genuinamente masculino nos terreiros. Os homens

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4 que caiam em transe, no rito nagô ou queto, eram advertidos para não dançarem, quando possuídos por uma divindade, no espaço reservado às mulheres.

Entretanto a elaboração do candomblé de caboclo, que introduzia um novo elemento no panteão afro-brasileiro que eram os espíritos de antigos indígenas, estruturou novas relações, organizando uma nova forma de candomblé mais maleável quanto as diferenças entre as ocupações de homens e mulheres nos rituais. Dessa nova categoria de candomblé onde as restrições eram muito mais relaxadas, a figura masculina pode se tornar chefe do culto.

Os pais de candomblé caboclo surgiram em grande número e segundo Landes (2002) eram, em sua maioria, muito jovens, por volta de seus 20 anos de idade, bonitos, mulatos e homossexuais. Pai Joãozinho da Gomeia correspondia a esta descrição, pois muito jovem se fez sacerdote de um culto ao caboclo, era exímio dançarino e apresentava sem embaraço sua homossexualidade.

Entretanto Joãozinho não era o único pai de santo homossexual da época e tampouco todos eram pais de santo do candomblé de caboclo. Dentre os citados por Landes encontram-se: Bernardino do terreiro Bate-Folha (congo/angola), Procópio do terreiro Ogunjá (queto), Ciriaco do Tumba Junçara (congo/angola), Manuelzinho de nação angola. Landes separava os pais de santo de candomblé caboclo dos que eram pais de santo de nações de candomblé congo/angola e queto, dizendo que os primeiros eram mais afeminados enquanto os outros eram mais contidos evitando trejeitos e mantendo-se mais reservados quanto suas aventuras amorosas.

Atenho-me ao terreiro do Bate-Folha, por ter sido aquele citado pelo meu interlocutor como exemplo e percebo que esse terreiro tem uma característica peculiar em relação à presença masculina na continuidade de seu quadro sacerdotal.

O Sr Manuel Bernardino da Paixão, fundador desse terreiro, foi iniciado entre o final de 1906 e começo de 1907 pelo africano bakongo Manoel N’kosi. Em 1916 Bernardino funda o terreiro do Bate-Folha da Mata Escura. Chamo a atenção para estas datas, pois parece que diferentemente do candomblé queto, o candomblé congo/angola do Bate-Folha começa com um homem que já havia sido iniciado por um sacerdote também masculino.

O que parece é que no candomblé do Bate-Folha, embora o número de mulheres iniciadas seja muito maior do que o de homens, não havia interdito para a iniciação masculina. Há uma sequencia de homens que ocuparam o cargo de sacerdotes dentro desse terreiro e outros que fundaram terreiros famosos de nação congo/angola.

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5 Atualmente é tata Munguaxi quem senta no trono e Néngua Ganguasese quem exerce as funções de mãe de santo sem, no entanto, ser a representante primeira do terreiro. Essa casa de candomblé tem uma herança patrilinear que vem sendo reproduzida há quase um século.

Retornando a questão da Gomeia de Joãozinho, mesmo sendo identificada como candomblé angola, parece estar mais ajustado às categorias pertinentes aos candomblés de caboclo definidas por Landes, onde surgem inúmeros pais de santo que assumiram o cargo sacerdotal antes ocupado pelas mães de santo dos antigos candomblés queto da Bahia.

A questão sobre a herança de seu trono torna-se pertinente após a morte de Joãozinho, pois além de revelar uma grande disputa, indicou pelo sistema de adivinhação, uma mulher como sua herdeira. A afirmação de meu interlocutor de que “uma mulher jamais ocuparia o lugar de um sacerdote homem em um candomblé angola”, neste caso, induziu-me a pensar nas questões políticas que envolveram a sucessão, indo além da questão da patrilinearidade que poderia ser uma das normas do candomblé angola.

O REINADO

João Alves Torres Filho ou Joãozinho da Gomeia, ou ainda, como era conhecido João da Pedra Preta, um nome alusivo ao seu caboclo, foi um pai de santo polêmico devido, principalmente, ao seu pouco compromisso com as regras ortodoxas dos candomblés jeje-nagôs. Contudo isso não foi empecilho para que alcançasse fama, e mesmo com pouca idade4, seu nome se projetou no meio do povo-de-santo e dos “intelectuais, artistas e pesquisadores que nos anos 30 empreenderam estudos em Salvador.” (LODY, SILVA.2002, p. 156)

Ainda que oscilasse entre a aceitação e a rejeição, Joãozinho tornou-se um pai de santo nacionalmente conhecido ocupando lugar de prestígio, lado a lado a pais e mães de santo de terreiros tradicionais da Bahia.

Em 1946, Joãozinho transferiu-se da Bahia para o Rio de Janeiro, fundando em Duque de Caxias a Casa angola de Joãozinho da Gomeia. Embora o pai de santo tivesse

4 A senioridade é um fator importante para a hierarquia do candomblé, que têm a velhice como símbolo

de sabedoria devido aos anos de aprendizado na convivência dentro da comunidade do candomblé, detentora de tradição oral.

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6 mudado para o Rio, a Gomeia de Salvador continuava suas atividades coordenadas por uma filha de santo de Joãozinho.

Foi a partir do Rio de Janeiro que Joãozinho expandiu o candomblé angola para São Paulo, iniciando a partir dos anos 60 grande número de sacerdotes paulistas advindos da umbanda e fez na metrópole grande número de filhos.

A Gomeia do Rio teve uma grande projeção tanto nos meios religiosos como fora dele. Isso se deu devido a uma característica do pai de santo que conforme Lody e Silva, “havia nele uma tendência a travar relações e estabelecer alianças com outros segmentos, principalmente com políticos, artistas, intelectuais e pesquisadores.” (LODY e SILVA. 2002, p.170). A Gomeia acumulou poder e tornou-se um terreiro invejado e seu governo cobiçado.

A HERDEIRA CONTESTADA

Enquanto Joãozinho viveu seu reinado foi absoluto, entretanto com sua morte, surgiram as disputas e a cobiça pelo trono. Morto o pai de santo a incerteza reinou sobre o terreiro. Os ritos de morte que separam o morto de seus orixás e da comunidade do candomblé encaminhando-o para o mundo dos mortos, também aniquilam seus poderes e domínios. A indicação do herdeiro, se não tiver sido designado anteriormente pelo pai ou mãe de santo morto, deverá ser recomendado pelo jogo de búzios, tarefa de extrema importância para a comunidade e para o pai de santo realizador do jogo, mas ingrata, pois se agradará alguns, também arregimentará muitos inimigos.

No dia 28 de março de 1971, Sandra Regina Reis dos Santos, filha de santo de Joãozinho, uma menina de apenas nove anos de idade, cujo nome de iniciação é Sessi Caxi, foi designada como a nova mãe de santo do Terreiro da Gomeia do Rio de Janeiro. (ZIEGLER, 1977)

Ziegler descreveu o momento em que os búzios foram manipulados por Tião do Irajá, um pai de santo que pelo menos por filiação não era vinculado ao terreiro de João, mas que tinha muita proximidade com Joãozinho enquanto vivo.

Ziegler escreveu:

A festa começou às 8:00 horas da manhã e prolongou-se até as 11:00 da noite. Às 17:00 horas os trabalhos tiveram início. Era o babalorixá Tião do Irajá quem oficiava. Rodeado pelos principais Ialorixás e Babalorixás da diáspora do Brasil,

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7 interrogava sem cessar os Orixás, manejando 16 búzios, conchas que haviam pertencido ao pai-de-santo João, e indicando por suas respectivas posições, sempre mutáveis, a vontade progressiva dos Orixás. [...] a adivinhação que, após sete horas ininterruptas de jogo das conchas, termina finalmente com a surpreendente designação da criança-rainha [...] (ZIEGLER, 1977, p.81)

Sessi Caxi, aos nove anos de idade, tornou-se a mãe de santo de um cobiçado terreiro e no dia seguinte a sua indicação longa fileira de adeptos vindos de vários cantos do Brasil foram render-lhe homenagem. Um pai de santo que fez parte da minha pesquisa de campo na região de Campinas me contou que ele havia visto Sessi Caxi em um programa do Chacrinha. Ele contou:

Era uma menininha. Foi de armação (vestido armado que as mulheres usam no candomblé). Botaram no programa uma cadeira e colocaram ela sentada lá. Lembro-me que disseram que ela era a nova mãe de santo da Gomeia. Uma menina de seus oito ou nove anos.

Porém a mãe de santo menina não reinaria até a reabertura do terreiro que se daria após o termino dos atos fúnebres de Joãozinho. O candomblé permaneceria adormecido e Sessi Caxi não tomaria posse até que fosse declarada sua maioridade sacerdotal. Ogã Valentim que já cuidava com muito zelo do terreiro da Gomeia e que tinha uma autoridade incontestável, continuaria à frente.

Contudo a indicação não foi aceita sem desacordos. A leitura dos búzios foi questionada. Ziegler ouviu do filho-de-sangue5 de João, José dos Santos Tavares, que seu pai jogava com 14 búzios e no jogo da sucessão que deveria ser feito com os búzios do pai de santo morto, havia 16 conchas. Outra polêmica foi a de que acreditava-se existir um testamento de Joãozinho que designava seu herdeiro. Entretanto, Joãozinho não havia deixado testamento algum.

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8 Reações violentas surgiram depois da indicação da sucessora. Os inúmeros filhos de Joãozinho, que também almejavam sentar no trono de um dos terreiros mais ricos do Brasil, atacaram a escolha de Tião. Os filhos da Gomeia inconformados com a indicação da menina declararam um conchavo elaborado por Tião e Valentim, que resultara na usurpação da influência social e política que Joãozinho havia constituído em vida.

NOVO DESFECHO

Entretanto, um desfecho inusitado foi dado para a Gomeia do Rio. Gitadê, filho de santo de Joãozinho e já estabelecido em São Paulo após anos da morte do pai de santo, transferiu os assentamentos de Joãozinho, juntamente com outros de alguns filhos da Gomeia do Rio, para São Paulo, fundando outra Gomeia, a paulista.

Gitadê havia comprado um sítio para Jequiriçá, que era seu caboclo boiadeiro. É nesse sítio que hoje está instalada a Gomeia. Muitas histórias foram contadas sobre a transferência da Gomeia do Rio para São Paulo. Nem todas concordavam com esse acontecimento, mas ela se transferiu para São Paulo e eternizou a memória do Sr. João da Pedra Preta, tata Londirá na capital paulista.

A história contada pelo tata Onire Gansu envolve fatos relacionados com a cosmovisão do candomblé angola. Numa reunião festiva no sítio do caboclo Jequiriça, foi revelada, numa visão recebida por Adokan, filha da Gomeia baiana, a presença de Iansã, Oxossi, do caboclo Pedra Preta e do espírito de Joãozinho que entraram numa boca de mata.

Ao saber do acontecido, foi o caboclo Jequiriçá, manifestado em pai Gitadê, quem tomou uma decisão polêmica e importante, que era trazer os pertences religiosos de Joãozinho para São Paulo. Certamente, naquele momento, os pertences sagrados de Joãozinho ainda estavam na Gomeia do Rio e a disputa não havia sido resolvida entre os vários filhos de Joãozinho. Ao mesmo tempo, Ogã Valentim havia falecido e a Gomeia não estava sendo bem cuidada. Enchentes tinham invadido o terreiro levando a lama para dentro dos quartos sagrados. Mesmo assim, transferir da Gomeia do Rio de Janeiro para São Paulo e os assentamentos do pai de santo falecido, era uma tarefa que suscitava muitas controvérsias.

Foi a manifestação do sagrado que legitimou, no primeiro momento, a transferência da Gomeia para São Paulo. O sagrado se revelou, na visão da filha de

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9 santo de Joãozinho, na presença do caboclo e dos orixás, na presença espiritual do próprio pai de santo morto, além do espaço que já era sacralizado ao caboclo Jequiriça. Isso se deu porque “o sagrado equivale ao poder e, em última análise, à realidade por excelência. O sagrado está saturado de ser. Potência sagrada quer dizer ao mesmo tempo, realidade, perenidade e eficácia” (ELIADE, 2001, p. 18).

Pai Gitadê só acataria as ordens do caboclo se a comunidade do candomblé, representada por pais e mães de santo idôneos, atestasse que a atitude que seria tomada estava correta. No candomblé, as sucessões famosas, devido à notoriedade do pai ou mãe de santo falecido, a importância do terreiro e a tradição oral, normalmente são atestadas pelos sacerdotes mais prestigiados e respeitados pela comunidade religiosa do candomblé.

No caso de Joãozinho da Gomeia, não foi diferente. Tata Onire Gansu citou diversos sacerdotes que foram consultados, dando a benção à atitude de Gitadê, inclusive a renomada mãe de santo, Menininha do Gantois. Assim, para completar os testemunhos, foi feita a festa de inauguração. Quatorze anos após a morte de Joãozinho foi inaugurada a Gomeia de São Paulo, com uma cerimônia de morte, que foi o sirrum de 14 anos de Joãozinho.

Voltando a morte de Joãozinho e a sua sucessão, chamo a atenção para uma observação de suma importância assinalada por Ziegler, que é a sucessão na antiga Gomeia da Bahia, que ainda estava em funcionamento nessa época. Na Gomeia baiana não houve problemas com a sucessão. Vale notar que a festa pública da sucessão na Bahia foi tão celebrada e comentada nos jornais e revistas como a que foi realizada em Duque de Caxias.

Sobre essa sucessão Ziegler escreve:

A iaô Samba Diamungo, africana iniciada de longa data pelo próprio teocrata, curvava-se sem problemas à onipotência do ritual. Contudo a escolha era feita também por intermédio dos búzios. É permitido supor que neste caso, que as paixões, os ciúmes e os ódios despertados pela investidura de Sandra Regina em Caxias não se inspiraram unicamente na preocupação louvável do respeito ao dogma. A extraordinária irradiação espiritual da nova Gomeia entre os intelectuais, burgueses e

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10 oligarcas da cidade do Rio de Janeiro, a influencia política e a riqueza financeira que a acompanhavam fazem do governo da nova Gomeia uma jogada excepcional. Como o governo em todo estado poderoso, os pretendentes lutam com energia e perfídia pelo controle da Gomeia, (ZIEGLER, 1977, P. 86).

O que chama a atenção entre as duas sucessões é que elas estão em discordância com o que havia me afirmado meu interlocutor, isto é, “uma mulher não poderia tomar cargo de mãe de santo na Gomeia do Rio, pois havia sido fundada por um homem”. Isso se justificaria, por ser um preceito do candomblé angola. Contudo, isso não parece ter sido um preceito importante para a Gomeia baiana, uma vez que lá, o pai de santo foi substituído por uma mulher sem nenhum interdito ou polêmica.

Em São Paulo, Mãe Manude6 que me cedeu entrevista alguns anos antes de sua morte, disse-me que quando morresse o herdeiro indicado para sua casa seria seu filho, mas ela deixaria para sua nora, porque ela era muito mais preparada para o cargo. Realmente o terreiro ficou para Mãe Pulquéria, nora de mãe Manudê, mas não podemos ignorar que a herança considerada a mais indicada seria para seu filho, não por ele ser homem, mas por uma questão que envolvia o patrimônio material e cultural que a velha mãe de santo havia construído. O terreiro ficou para uma mulher pelo seu preparo teológico e seu comportamento perante a religião, não por uma questão de gênero que designaria a permanência de uma mulher à frente daquela casa de candomblé.

Diferentemente, no caso do Bate-Folha, há uma patrilinearidade que vigora nas sucessões. Entretanto nem todos os terreiros de angola pareceu-me serem da mesma forma. Nesse caso seria necessária uma pesquisa sistemática mais ampla.

No caso da Goméia, caberiam muito mais justificativas de cunho político, para a não ocupação do trono de Joãozinho pela menina eleita, do que pelo fato dela ser uma mulher. Isso é logicamente concluído, uma vez que, na Gomeia baiana, uma mulher, Samba Diamungo, empossou o cargo de mãe de santo e se sentou na cadeira do pai de santo Joãozinho. Desta forma, acredito que, como entendeu Ziegler: “A teologia africana é então apenas uma das armas possíveis para promover esta ou aquela das estratégias em jogo.” (ZIEGLER, 1977, P. 86).

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BIBILOGRAFIA

BERNARDO, Teresinha. Memória em Branco e Negro. Olhares sobre São Paulo. São Paulo, Editora UNESP, 1998.

CARNEIRO, Edison. Religiões Negras. Negros Bantos. 3a edição. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1991.

ELIADE, Mircea. O Sagrado e o profano. Essência das religiões. 5° tiragem, Tradução: Rogério Fernandes. São Paulo, Martins Fontes, 2001.

LANDES, Ruth. A Cidade das Mulheres. 2a edição. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2002.

LIMA, Vivaldo da Costa. A Família De Santo – nos candomblé jejes-nagos da

Bahia. Um estudo de relações intragrupais. Salvador, Corrupio, 2003.

LODY, Raul e SILVA, Vagner Gonçalves. Joãozinho da Goméia o lúdico e o sagrado na exaltação ao candomblé. In: DIAS, Vagner Gonçalves (org.). Caminhos da Alma. São Paulo, Selo Negro, 2002, p.152-181.

ZIEGLER, Jean. Os Vivos e a Morte. Uma “sociologia da morte” no Ocidente e na

diápora africana no Brasil e seus mecanismos culturais. Rio de Janeiro. ZAHAR

Referências

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