1 Dia da Universidade Coimbra, 1 de Março 2014
Discurso de Encerramento do Presidente do Conselho Geral Doutor Emílio Rui Vilar
2 [Vocativos]
1. É para mim um grato privilégio encerrar esta sessão comemorativa dos 724 anos da Universidade de Coimbra.
A celebração do dia da Universidade, em que me formei e a cujo Conselho Geral tenho hoje a honra de presidir, evoca-me, simultaneamente, ressonâncias afectivas - as da memória do tempo de estudante e de dirigente associativo que intensamente vivi - e o sentimento da responsabilidade – pelo dever de assegurar a condução do órgão de governo a quem cabe definir o desenvolvimento estratégico, as linhas gerais de orientação e a supervisão da instituição. Tarefa nem sempre fácil, mas que encaro como retribuição, tardia e parcial embora, do muito que aqui recebi de alguns mestres notáveis e de uma fraterna convivência académica e circum-escolar.
A memória, até pelo confronto radical entre uma época de opressão política (mas também de luta inventiva e de esperança) e o tempo de democracia (mas também de profunda crise económico-financeira e social), ajuda a dar o justo valor às transformações operadas e a colocá-las em contexto. Por outro lado, a vivência actual e os desafios inerentes à situação que experimentamos, nas suas múltiplas incidências, obrigam-nos a pensar e a perscrutar o futuro, num quadro em que as dificuldades e os constrangimentos do imediato nos conduzem, quase como uma armadilha, ao dia-a-dia e ao curto prazo. Voltarei a este tema.
No domínio celebratório, que aqui nos convoca, a minha voz pouco ou nada acrescentaria à história e à historiografia da Universidade. O percurso de mais de sete séculos desta instituição, pela sua riqueza, pela diversidade de muitos momentos altos e de outros menos bons, pelo enorme sedimento humanístico, científico e social que é o soclo de uma identidade ímpar, não pode nem deve, hoje ser factor de comprazimento e autocontemplação. Sem pôr em causa os ensinamentos do passado e o capital da experiência, deve antes ser uma alavanca para a mudança e um incentivo para enfrentar os desafios.
3 2. Outra razão de júbilo pessoal vem do facto de o laureado com o Prémio Universidade de Coimbra 2014 ser o Professor António Sampaio da Nóvoa, pessoa que muito estimo e admiro, como académico e como cidadão empenhado em causas cívicas. E que, como Reitor, me acolheu no colégio honorífico da Universidade de Lisboa, a cidade que adoptei para viver e trabalhar, num momento simbólico que foi o do encerramento das comemorações do centenário da sua Universidade.
Com o rigor conceptual, o brilho e a elegância literária que lhe conhecemos, o Professor Sampaio da Nóvoa trouxe-nos uma oportuna reflexão sobre a interacção e interdependência dos termos universidade e liberdade. A liberdade substantiva que é condição da verdadeira autonomia da universidade e, por outro lado, o contributo de uma universidade liberta para o futuro da sociedade portuguesa.
A entrega da Carta de Curso aos Doutorados é um sinal de vitalidade e a expressão visível do largo espectro do labor da Universidade e da sua capacidade de atrair e formar os melhores.
Senhoras e Senhores Doutores
Congratulo-vos e a todos formulo votos de sucesso pessoal, profissional e académico. Sois, a partir de agora, portadores de um título que vos dá acrescidas responsabilidades científicas e, sobretudo, sociais.
Também quero dirigir uma saudação especial aos aposentados e jubilados da Universidade e exprimir-lhes o meu apreço e a minha solidariedade perante a severa penalização de espectativas que “extraordinariamente” vem agora afectando todos os pensionistas no nosso país.
3. O Senhor Reitor – a quem cabe estatutariamente propor os planos estratégicos de médio prazo para a Universidade – veio apresentar-nos o tema eminentemente actual da estratégia de globalização.
Mais uma razão para, como há pouco sugeri, revisitarmos as questões que se levantam no nosso horizonte e reflectirmos sobre o modo como melhor e mais eficazmente as poderemos enfrentar.
4 É um facto inelutável que as universidades vão deixando de ser escolas eminentemente nacionais, defendidas pelas muralhas da tradição e do privilégio, e estão, cada vez mais, no campo aberto da competição pela atractividade, por força da liberdade de prestação de serviços e por uma crescente mobilidade dos estudantes, favorecida pela nova língua franca e por sistemas de equiparação e equivalência. É assim na Europa, em maior escala no mundo anglo-saxónico e, em crescendo, nos chamados países emergentes.
Recordo-me de, há poucos anos, no Abu Dhabi, ter assistido à assinatura de um contrato de “franchising” pela circunspecta e estatal Sorbonne com o governo dos Emirados Árabes Unidos…
Mas, o que queria especialmente sublinhar, é que me parece urgente sacudirmos dos nossos ombros – sem a ignorar ou menosprezar – a pressão negativa do que chamei ser a armadilha do imediato e do curto prazo que nos queima energias e nem sempre nos deixa ver mais longe.
Não esqueço que o RJIES e os Estatutos da Universidade dizem claramente que não cabe ao Presidente do Conselho Geral representar a Universidade nem pronunciar-se em seu nome. Mas pode, como membro do Conselho, interrogá-la e deve exprimir as preocupações que decorrem da avaliação das circunstâncias que, ao condicionarem o funcionamento corrente, estão a pôr em causa o seu desenvolvimento futuro.
Escreveu o Padre António Vieira: “ O homem, filho do tempo, reparte com o mesmo tempo ou o seu saber ou a sua ignorância: do presente, sabe pouco; do passado, ainda menos; e do futuro, nada”.
Mas, porque é inerente à natureza humana, pela crença ou pela razão, tentar antecipar o porvir, Vieira é precisamente o autor de uma célebre “História do Futuro” …
Mesmo que recusemos a adivinhação, não podemos ignorar, séria e responsavelmente, as consequências futuras das nossas acções e omissões presentes.
5 Ora, voltando a Vieira, diz ele que do presente sabemos pouco. Eu diria, se os Físicos presentes me perdoarem a ousadia analógica, que algumas das actuais políticas públicas para o ensino superior - ponto de partida para qualquer esforço prospectivo – relevam do princípio da incerteza (ou da indeterminação), o grande contributo de Heisenberg para a física moderna: se conhecermos a posição de uma partícula não logramos medir correctamente a velocidade; se formos capazes de dar um valor preciso à velocidade não determinamos a posição da partícula.
De onde partimos, para onde vamos, a que ritmo caminhamos?
O Senhor Reitor já referiu alguns claros exemplos de medidas que são causa da nossa preocupação e perplexidade. Tinha aqui elencado mais alguns, mas, por cortesia com o Senhor Secretário de Estado [do Ensino Superior], vou saltar o parágrafo.
[Com efeito, para além dos sucessivos cortes no financiamento corrente e de investimento e das contradições e indefinições no apoio à formação doutoral e à investigação, as propostas mais recentes como a da regionalização, incluindo a criação de conselhos regionais (ao nível das NUT2) como órgãos de coordenação e redimensionamento da oferta de ensino superior, são fonte da maior preocupação e perplexidade.]
Todavia, nestes afloramentos das políticas públicas, o que não me é fácil descortinar é o que provém da pressão do processo geral de ajustamento financeiro (que, aliás compreendo e partilho) do que é mero reflexo ideológico de desvalorização relativa do ensino público e de uma visão meramente aplicacional da ciência.
Devo dizer que não questiono a necessidade de se discutir e de se redimensionar, a nível nacional, a rede do ensino superior e a actual oferta. Mas, quando tantos apelos são feitos ao reforço da competitividade externa do nosso país, é difícil entender que se infirmem os principais centros de geração de conhecimento e da sua translação. Sobretudo no que diz respeito à renovação do seu pessoal docente e de investigação.
A questão que não se pode iludir é que podemos estar a pôr em risco as condições mínimas para manter um valor intrínseco à nossa concepção de universidade que é a autonomia.
6 A autonomia da universidade é condição da qualidade do seu trabalho tal como é a contrapartida da responsabilidade pelo bom uso dos recursos públicos que lhe são afectos, com base em obrigações recíprocas que devem ser estáveis, claras e previsíveis.
Será o Estado moderno inevitavelmente modesto, como nos propunha Michel Crozier, nos anos oitenta? Porventura. Mas é-lhe exigível a clareza e a fundamentação democrática das escolhas e da definição de prioridades; tal como o respeito pelo princípio da proporcionalidade entre o que é pedido e os meios disponibilizados bem como a salvaguarda das legítimas expectativas criadas pelo próprio Estado. Só assim o contrato social, alicerce da nossa vida colectiva, se poderá manter contra os ventos do populismo e da negação dos valores da nossa cultura.
Mas, não podemos esperar o movimento do pêndulo porque é uma ilusão o regresso a fórmulas do passado. Quer porque tais as soluções seriam intrinsecamente inviáveis, quer porque o “mundo plano” do processo de globalização nos exige que ganhemos a competição pela capacidade de sermos diferentes e de afirmarmos as nossas vantagens comparativas. É preciso recusar os assomos de nostalgia do passado, como Talleyrand quando recordava a
“douceur de vivre”, reflexo da inércia natural da procura do conforto e segurança.
O desafio é difícil. Sem dúvida, mas é em nós próprios que temos que procurar o princípio das respostas. Poucas instituições, como a Universidade, têm dentro de si as competências, os saberes, as metodologias e o treino para levar a bom termo este inadiável exercício de “éclaireur”, de pisteiro do futuro.
Apesar das incertezas e das perplexidades do presente, apesar do esforço de gerir em permanente escassez, é urgente pensar prospectivamente a Universidade para que, amanhã, possa continuar a honrar o seu passado e, renovada e sustentável, seja portadora dos ingredientes de que são feitas as sociedades do futuro.