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Vista do Caderno espaço feminino nº19

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Academic year: 2023

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CADERNO ESPAÇO FEMININO UBERLÂNDIA-MG VOLUME 16 N. 19 p.1-144 Jul./Dez.2006

ISSN 1516-9286

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Profa. Dra. Vera Lúcia Puga (INHIS/UFU)

CONSELHOEDITORIAL

Profa. Dra. Eliane S. Ferreira (DECIS/UFU)

Profa. Dra. Jane de Fátima Silva Rodrigues (Uniminas/UDI) Prof. Dr. João Bosco Hora Góes (UFF/RJ)

Profa. Dra. Kênia M. de Almeida Pereira (Unitri/UDI) Profa. Dra. Maria Lygia Quartim de Moraes (Unicamp/SP) Profa. Dra. Mirian Goldenberg (UFRJ/RJ)

Profa. Dra. Mônica Chaves Abdala (DECIS/UFU) Profa. Dra. Vera Lúcia Puga (INHIS/UFU)

Profa. Dra. Vânia Aparecida Martins Bernardes (Católica/UDI) Profa. Dra. Suely Gomes Costa (UFF/RJ)

Profa. Dra. Suely Kofes (Unicamp/SP) Profa. Dra. Eli Bartra (UNAM/México) Profa. Dra. Margara Millan (UNAM/México)

CONSELHOCONSULTIVO

Profa. Dra. Eni de Mesquita Sâmara (FFLCH/USP) Profa. Dra. Glória Careaga (PUEG/México) Profa. Dra. Joana Maria Pedro (UFSC/SC) Profa. Dra. Luzia Margareth Rago (IFCH/Unicamp) Profa. Dra. Maria Izilda Santos de Matos (PUC/SP) Profa. Dra. Rachel Soihet (UFF/RJ)

Profa. Dra. Sônia Missaggia Mattos (UFES/ES)

Profa. Dra. Sonia Montecino Aguirre (CHILE/ Fac. Ciências Sociales) Profa. Dra. Tânia Navarro Swain (UNB/DF)

COMITÊEDITORIAL

Profa. Ms. Cláudia Costa Guerra Profa. Ms. Dulcina Tereza Bonati Borges Prof. Ms. Edmar Henrique Dairell Davi Profa. Ms. Marta Regina Alves Pereira

TRADUÇÃO: Sandra Chaves Gardellari

CAPA: Maria José da Silva DIAGRAMAÇÃO: Eduardo M. Warpechowski

CADERNOESPAÇOFEMININO é uma publicação do Núcleo de Estudos de Gê- nero e Pesquisa sobre a Mulher, do Centro de Documentação e Pesquisa em História (CDHIS), da Universidade Federal de Uberlândia – EDUFU.

Revista Indexada em Data Índice de Ciências Sociais (IUPERJ) – CLASE-

CICH-UNAM e Hispanic American Periodicals Index – HAPI

Portal Feminista www.portalfeminista.org.br Qualificada pela CAPES

UNIVERSIDADEFEDERALDEUBERLÂNDIA

REITOR: Arquimedes Diógenes Cilone VICE-REITOR: Elmiro Santos Resende

DIREÇÃOEDUFU: Maria Clara Thomaz Machado

EDUFU – Editora da Universidade Federal de Uberlândia Av. João Naves de Ávila, 2121 – Bloco A, Sala 1A – Santa Mônica Cep 38408-100 – Uberlândia-MG

Telefax: (34) 3239-4293 / Fone: 3239-4512 www.edufu.ufu.br / e-mail: livraria@ufu.br

CADERNOESPAÇOFEMININO, v. 16, n. 19, Jul./Dez. 2006

Universidade Federal de Uberlândia, Instituto de História, Centro de Documentação e Pesquisa em História (CDHIS), NEGUEM.

Semestral (publicada em Janeiro de 2007)

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Apresentação ... 5

ARTIGOS

O trabalho feminino “doméstico” em escolas ... 11 Fátima Machado Chaves

Mulheres negras no mercado de trabalho:

empregadas domésticas ... 45 Marta Helena Rosa da Silva

A co-educação como política pública:

a manutenção da escola mista com o

advento da igualdade de gênero ... 57 Daniela Auad

Uma cartografia da imprensa feminista no Brasil .... 77 Elizabeth da Penha Cardoso

O feminino retratado: fotografia e representação do corpo na pós-modernidade ... 105 Ângela Prada de Almeida

BIOGRAFIA

Leonor Schwindt: primeira miss de Uberlândia .... 121 Jane de Fátima Silva Rodrigues

NOTAS

Mortalidade de mulheres em idade fértil em

Uberlândia – MG no período de 2001 a 2005 ... 127 Aloísio Gomide, Cláudia Rodrigues Pereira Roque,

Hermínia Mendonça Pereira Resende, Rúbia Pereira Barra

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Cep: 38400-902 – Telefones (34) 3239-4236 | 3239-4204 | 3239-4501 E-mail: neguem@inhis.ufu.br ; cdhis@ufu.br

Site publicações: www.neguem.ufu.br Universidade Federal de Uberlândia Instituto de História

Centro de Documentação e Pesquisa em História – CDHIS

Núcleo de Estudos de Gênero e Pesquisa sobre a Mulher – NEGUEM

Periodicidade: Semestral Tiragem: 600 exemplares Pede-se permuta

Pédese cange On demande échange We bitten um austausch Si richiede lo scambio

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Recebemos no final do ano de 2006 com grande satisfação um ofício comunicando a decisão do Comi- tê de Seleção da Direção Geral de Bibliotecas da Uni- versidade Nacional Autônoma do México em aceitar a inclusão da publicação Caderno Espaço Feminino em sua base de dados Clase. Devido ao caráter multidisciplinar das pesquisas na área das Ciências Humanas, temos interesse em publicar trabalhos produzidos nas dife- rentes disciplinas, e realizar o intercâmbio junto a ou- tras universidades fazendo circular o conhecimento.

Recentemente temos dinamizado nossa troca de pes- quisas com o México o que vem enriquecido nossas produções. Continuamos com o objetivo de manter o padrão de excelência que foi conseguido até agora, melhorando ainda no que for possível nossa avalia- ção, discutindo os temas mais debatidos no momento no campo dos estudos de gênero e sexualidades.

Neste número trazemos trabalhos mais apro-fun- dados sobre questões ainda polêmicas da descoberta prático-teórica da multiplicidade feminina. A partir destes estudos não dá mais para fixar isolando o gêne- ro de outras determinações sociais, de outras variáveis independentes, de outras pertenças coletivas das mu- lheres. A nova exigência passa a ser que estas análises não podem ignorar o fato histórico-empírico-existen- cial de que a experiência de gênero, está intrinsicamente vinculada com outros aspectos significativos de per- tença cultural — a classe e a raça — sob pena de não se dar conta da verdadeira relação de opressão que o próprio sexismo representa.

Nesse sentido, o artigo de Fátima Machado Cha- ves, “O Trabalho Feminino ‘Doméstico’ em Escolas” inves- tiga como as desigualdades sócio-econômicas na trans-

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versalidade com as raciais e as de gênero contribuem para o processo saúde/doença de serventes e meren- deiras em escolas municipais da cidade do Rio de Ja- neiro. De acordo com a autora são, em geral, mulheres negras e pobres, ex-empregadas domésticas, com du- pla, ou te tripla, jornada de trabalho. O texto de Marta Helena Rosa da Silva, “Mulheres Negras no Mercado de Trabalho: empregadas domésticas”, amplia esta discus- são remontando à história do preconceito no Brasil e sua relação com o mercado de trabalho.

O artigo, “A Co-Educação como Política Pública: a manutenção da escola mista com o advento da igual- dade de gênero”, partindo de uma extensa pesquisa bibliográfica e pesquisa de campo, traça as linhas ge- rais de uma política pública de co-educação com a qual seja possível construir relações de gênero mais igualitárias nas atividades das salas de aula e nos jogos e brincadeiras dos pátios. Pensar as relações no espa- ço escolar requer refletir sobre as relações sociais de gênero, que formam nossas concepções de bom alu- no, aprendizagem, sexualidade, saúde, disciplina, in- fância além de contribuir na construção de diversos discursos que extrapolam os muros escolares.

Sobre a imprensa feminista editada no Brasil pós- 1974, Elizabeth da Penha Cardoso responde a três questões fundamentais, no seu artigo, “Uma Cartografia da Imprensa Feminista no Brasil”: quantos são os registros de publicações feministas editadas em território brasi- leiro, quais Estados e cidades as sediaram e qual o perfil dessas publicações, de que assuntos trataram.

Em “O Feminino Retratado: fotografia e representa- ção do corpo na pós-modernidade”, Ângela Prada de Almeida analisa trabalhos de artistas mulheres con- temporâneas realizados em três suportes: fotografia, performance e vídeo. Para tanto, utiliza uma aborda- gem teórica multidisciplinar, combinando teorias da linguagem fotográfica com abordagens na área de gê- nero sobre a representação do corpo feminino.

Na sessão BIOGRAFIA o Caderno conta com mais

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uma contribuição da historiadora Jane de Fátima Silva Rodrigues trazendo a experiência de vida de “Leonor Schwindt” que nasceu em 04 de outubro de 1898, na cidade de Jabotical, SP, mas chegou a “Uberabinha”

em meados da década de 1910. Em dezembro de 1915, aos 17 anos, foi eleita miss Uberabinha.

Na sessão NOTAS o Caderno traz um “Levantamen- to da mortalidade de mulheres em idade fértil em Uberlândia- MG, no período de 2001 a 2005” feito por Aloísio Gomide, Cláudia Rodrigues Pereira Roque, Hermínia Men- donça Pereira Resende, Rúbia Pereira Barra.

A todos(as) uma boa leitura!

O COMITÊEDITORIAL

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em escolas em escolas em escolas em escolas em escolas

Fátima Machado Chaves

Resumo: Investigamos como as desigualdades sócio-eco- nômicas, na transversalidade com as raciais e as de gênero contribuem para o processo saúde/doença de serventes e merendeiras em escolas municipais da cidade do Rio de Janeiro. São, em geral, mulheres negras e pobres, ex-em- pregadas domésticas, com dupla, ou até tripla, jornada de trabalho.

Palavras-chave: Desigualdades Sociais. Relações de Gê- nero. Relações Raciais. Saúde da Trabalhadora. Educação Pública.

Abstract: We studied how the social-economical diffe- rences, in conjunction with the ethnical and gender dissi- milarities contribute to the process of health/illnesses of servants and snack preparers in municipal schools in the city of Rio de Janeiro. They are, in general, poor black wo- men, whose previous job was as house maids, with double or triple work journey.

Keywords: Social Differences. Gender Relationships. Ra- cial Relationships. Health of the Working women. Public Education.

Fátima Machado Chaves. Doutora em Saúde do Trabalhador na Escola Nacional de Saúde Pública /FIOCRUZ, em 2004.

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No mestrado pesquisamos1 a transversalidade das desigualdades sócio-econômicas, com as de gênero e as de raça2, problematizada nas atividades de traba- lhos de serventes e merendeiras3 e seus processos de saúde/doeça, funcionárias administrativas4 responsá- veis pela limpeza e pelo preparo e distribuição da ali- mentação em escolas municipais da cidade do Rio de Janeiro.

Na coleta de dados, usamos a metodologia da his- tória oral com entrevistas semi-estruturadas. Nosso campo de observação foram quatro escolas munici- pais, situadas em locais sócio-geográficos distintos, nomeadas ficticiamente: as escolas “Centro”, “Sul” e

“Sudeste”, respectivamente, encontram-se nos bair- ros do Maracanã, Urca e Copacabana, social e econo- micamente de elites, enquanto a escola “Oeste”, loca- lizada em Realengo, representado como periferia ur- bana. O universo de entrevistados, cujos nomes são fictícios, foi de vinte e um trabalhadores — dezenove mulheres (dez merendeiras públicas, três serventes públicas e seis terceirizadas) e dois homens (serven- tes terceirizados). Nas escolas Centro, Sul e Oeste, foram classificados racialmente por nós5, a partir dos fenótipos mais comuns: cor da pele, aparência facial e tipo de cabelos, mas alguns declararam a cor que soci- almente possuíam. Os depoentes, na escola Sudeste, em número de treze — onze mulheres (seis meren- deiras e cinco serventes) e dois homens (dois serven- tes) —, demonstrando nossa variedade de cores, auto- classificaram-se assim: a) “brancas”: duas merendeiras e uma servente; b) “clara”: uma merendeira; c) “ne- gras”: três merendeiras e uma servente; d) “morenas/

os”: três serventes; e) “pardas”: duas merendeiras e uma servente; f) “preta” uma servente; g) “mulata”:

uma merendeira. Classificamos de “brancas” as me- rendeiras que se auto-identificaram como “parda” e

“mulata”.

Partimos, em nossa investigação, das premissas da coexistência das relações de gênero e de classe, bem

1 Dissertação de Mestrado em Saúde do Trabalhador na Es- cola Nacional de Saúde Públi- ca/FIOCRUZ, 2004.

2 Desde esse início, decidimos não grafar com aspas a catego- ria raça. O uso analítico dessa categoria é discutido por Silva

“na América Latina, de um modo geral, desenvolveu-se um conceito de raça mais ba- seado nas características fenotí- picas e socioeconômicas do in- divíduo [...] raça seria melhor definida como “raça social”, dado que se refere a um grupo de pessoas que é julgada como similar em sua natureza essen- cial socialmente definida, do que resulta as relações raciais serem mais relações de estru- tura social do que de raça ge- neticamente concebida”. SIL- VA, Nelson do Valle. Uma no- ta sobre “raça social” no Bra- sil. In: Estudos Afro-Asiáticos.

Rio de Janeiro: Centro de Es- tudos Afro-Asiáticos. Univer- sidade Cândido Mendes, 1994, p. 69.

3 A expressão merendeira para designar este tipo de profissi- onal na escola seria uma carac- terística sendo apenas do Rio de Janeiro. Em Minas Gerais, chamam-nas de “serventes” e em alguns estados de “canti- neiras”. Decidimos manter a terminologia “merendeira”, apesar de sabermos que está contestada pelas trabalhadoras escolares, pois desenvolvem atividades que é própria de cozinheira.

4 Gramaticalmente, usaremos o feminino para designar “fun- cionárias administrativas” ou

“funcionárias de apoio”, refe- rindo-se apenas às merendei- ras e serventes, pois, em geral, são mulheres. Especificare- mos, porém, as diferenças e/

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como da centralidade do trabalho, incorporando o tra- balho doméstico, o formal e informal como modalida- des singulares, mas complementares do processo de produção6. Ressaltamos a relação interna entre a reali- dade do trabalho e a do mundo reprodutivo e a per- manência das relações sociais de gênero7. A utilização dos conceitos “relações sociais de sexo” e “relações sociais de gênero”, surgidos a partir de 1980, respecti- vamente, na França e na Inglaterra, implica uma preo- cupação tripla: ruptura radical com as explicações bi- ológicas das diferenças entre as práticas sociais mas- culinas e femininas; afirmação de que estas diferenças são construídas socialmente com bases materiais, de- vendo ser apreendidas historicamente e, por fim, que estas relações sociais se baseiam numa hierarquização, portanto, numa implicação relacional de poder8.

Na medida que se admite a dinâmica da totalidade social, o ponto de vista “das especificidades das práti- cas e culturas femininas tende a privilegiar a subjetivi- dade e as inter-relações produção-reprodução, cami- nhando para o paradigma da transversalidade das rela- ções sociais”9. Percebemos que “a relação entre os sexos não se esgota na vida conjugal, mas é ativa no lugar do trabalho, enquanto que a relação de classes não se esgota no lugar de trabalho, mas é ativa, por exemplo, na relação com o corpo ou na relação com as crianças”10. Assim, descobrimos, também, que as relações raciais não se exaurem nos contatos extra- econômicos, mas permeiam as relações de trabalho11. Logo, se “uma mulher se pensa também dentro de uma rede de relações sociais. Como trabalhadora [...]

como jovem ou velha, como, eventualmente, mãe ou imigrante”12, a mulher classifica-se como branca ou como negra. Ela exerce ou vivencia a subordinação, constrói sua identidade individual e coletiva, assim como elabora suas práticas de acordo com a posição ocupada também nas relações raciais. Por conseguin- te, as mulheres negras brasileiras vivenciaram uma subordinação tripla: gênero, raça e classe social13. Em

ou semelhanças encontradas no universo masculino e no feminino desses servidores.

Esses nomes oficiais da Secre- taria Municipal de Educação, no entanto não são apropria- dos para caracterizar, de forma rica, suas atividades e contri- buições educativas.

5 Distinguimos, semelhante- mente ao IBGE, pretos e par- dos, porém, quando nos refe- rimos ao conjunto dos mes- mos, utilizamos a terminolo- gia “negra”, de acordo com a discussão intelectual atual.

6 HIRATA, Helena. La marche du temps. Paradigmes du travail, un “point de vue transversal”.

Futur Antérieur, 1993, p. 5-10;

KERGOAT, D. Relações so- ciais de sexo e divisão sexual do trabalho. In: LOPES e WALDOW (Org). Gênero e Saúde. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996, p. 19-27.

7 BRITO, J. C. de. Saúde, traba- lho e modos sexuados de viver. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999, p.

19-20.

8 KERGOAT, Danièle. Lutas Operárias e Relações Sociais de Sexo: da construção do sujei- to coletivo no universo do tra- balho operário. In: ANAIS.

Seminário Internacional: padrões tecnológicos e políticas de gestão, comparações internacionais. São Paulo: USP/BID, 1989, p. 271;

CASTRO, Mary Garcia. Traba- lho, gênero, raça: quais os de- safios políticos? In: ROCHA, Maria Isabel Baltar da (Org.).

Trabalho e gênero. Mudanças, per- manências e desafios. Campinas:

Unicamp / São Paulo: Ed. 34, 2000, p. 100-101.

9 BRITO, J. C. de. Enfoque de gênero e relação saúde/traba- lho no contexto de reestrutu- ração produtiva e precarização do trabalho. Cadernos de Saúde

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nossa pesquisa, preocupamo-nos em verificar como a diferença racial se constrói através do gênero, como o racismo divide a identidade e a experiência de gênero, e como a classe é moldada por gênero e raça14. Situa- ção contada pela merendeira Mila:

a vida da mulher negra é mais sacrificada, sabe por quê? Porque ela tem preconceito duas vezes: por ela ser mulher e por ela ser negra. O homem só carrega o preconceito dele ser negro, e a mu- lher não, a mulher tem esses dois preconceitos. Então, ela tem a vida muito mais difícil, muito mais sacrificada. E, além disso tudo, ainda mora na periferia das cidades.

A tripla relação de gênero, de raça e de classe fun- ciona de modo co-extensivo, sua articulação torna-se fator fundamental para o aumento de práticas discri- minatórias e de maiores desigualdades no mercado de trabalho para as mulheres negras: o maior subemprego, a ocupação nos postos mais baixos da escala salarial

— primordialmente os trabalhos manuais e/ou do- mésticos —, a remuneração desigual em ocupações de igual categoria, a discriminação na admissão, na pro- moção e na qualificação, as demissões injustas15, assim como a desqualificação das identidades as quais per- tencem.16

Ao relacionar o trabalho das merendeiras e ser- ventes às situações de gênero, raça e classe demons- tramos que estas sofrem as decorrências das desigual- dades sociais que exacerbam as dificuldades das clas- ses subalternas brasileiras, em grande parte negra e parda, na apropriação da parcela de bens, serviços e direitos sociais, políticos e culturais produzidos17. Por serem mulheres e negras, as disparidades sócio-eco- nômicas e políticas são potencializadas pelas assime- trias de gênero e raça, assentadas usualmente em pre- conceitos e discriminações.

Tradicionalmente, a identidade masculina hegemô- nica na sociedade ocidental baseia-se na possibilida- de do homem ser “genitor” e “provedor” e, na função

Pública. Rio de Janeiro, 2000, p. 201-214.

10 KERGOAT. 1996. Op. Cit. p.

23.

11 BENTO, M. A. S. Trabalho, gênero, raça: quais os desafios políticos? In: ROCHA, Maria Isabel Baltar da (Org.). Traba- lho e gênero. Mudanças, perma- nências e desafios. Campinas:

UNICAMP; São Paulo: Ed.

34, 2000, p. 367-378.

12 KERGOAT. 1996. Op. Cit. p.

22.

13 CRUZ, Isabel C. Fonseca da e PINTO, A. Soares. Condições para a saúde e o bem-estar?

Inquérito sobre as mulheres negras do Estado do Rio de Janeiro. Cadernos de Saúde Públi- ca. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2002, p. 1.

14 STOLCKE, Verena. Sexo está para gênero assim como raça para etnicidade? Estudos Afro- Asiáticos. Universidade Cân- dido Mendes, 1991, p. 101- 119.

15 BRASIL Brasil, gênero e raça:

todos unidos pela igualdade de oportunidades. Brasília:

Ministério da Justiça/ Progra- ma Nacional de Direitos Hu- manos, 1998.

16 Bento, Op. Cit.

17 MINAYO, Maria Cecília de Souza. Condições de vida, de- sigualdade e saúde: a partir do caso brasileiro. In: VIII CON- GRESSO da Associação Latino- Americana de Medicina Social e XI Congresso International Aso- ciation of Health Policy. Havana, Cuba, julho (mimeo), 2000, p.

12.

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de “chefe de família”, manter a autoridade moral e a honra da casa, adquirindo o “direito” de controlar a sexualidade das mulheres — esposas, irmãs, filhas. Essa dominação masculina seria uma das modalidades de violência de gênero vinda do controle social e “das formas ‘ideacionais’ de socialização e domesticação das mulheres”18. A normatização cultural de gênero, acarretando discriminação e submissão feminina, como a desvalorização profissional da mulher, embora não compreenda atos de agressão física, configura uma modalidade de violência simbólica. Não se admira, portanto, que o controle da sexualidade feminina pelo homem através do casamento e do nascimento dos filhos foi uma das razões de algumas merendeiras e serventes terem sido impedidas de continuar a estu- dar, assim como entrarem no mercado de trabalho re- munerado, anteriormente ao da escola, conforme seus depoimentos:

eu casei e meu marido não deixou eu trabalhar. Estudar e tra- balhar, ou… achava que eu tinha que ficar em casa. E engravidei [...] três meses depois já estava gravida do meu primeiro filho [...] Ele tinha ciúme. Na época eu tava com 22 pra 23 anos, eu era relativamente, não muito bonita de rosto, mas eu tinha um corpo muito bonito, umas perna muito bem torneada. Ele acha- va que se me deixasse muito, assim, estudar, fazer faculdade, de repente… Mas aí, ele era uma pessoa ciumenta. Tanto que eu, quando eu fazia o científico, [...] ele me esperava até as quatro aulas [...] Então, eu optei pra ficar em casa. E depois surgiu esse concurso, eu fiz. Eu não estudei porque [...] era primeiro grau, eu tinha condições de fazer (Gilda).

Com esse raciocínio, a merendeira acredita que a escolha de ficar em casa foi sua e demonstra a interiorização da construção ideológica de gênero que permite que o homem seja o protetor da honra femi- nina. De acordo com esta ideologia o marido admitiu a possibilidade dela trabalhar na função de merendeira em escola pública, atividade laboral menos qualifica-

18 SAFFIOTI, Heleieth I.B. Vi- olência de gênero no Brasil atu- al. Estudos Feministas. Rio de Janeiro: UFRJ, 1994, p. 444.

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19 ANYON. Jean. Intersecções de gênero e classe: acomoda- ção e resistência de mulheres e meninas às ideologias de pa- péis sociais. Cadernos de Pesqui- sa. São Paulo, 1990, p. 13;

SAFFIOTI. Op. Cit. p. 453.

da comparada à sua escolaridade (ensino médio com- pleto), significando um local de trabalho feminino e, por ventura, não propiciador da infidelidade conjugal.

A trajetória de vida da merendeira e também fono- audióloga resume a situação submissa da esposa que fica em casa, cuida de filhos(as), incentiva a profissão masculina, mas, violentando seus anseios, descuida da sua, conscientizando-se disso, às vezes, bem mais tar- de. Auto-avaliando-se, conta que a “mulher quando fica apaixonada, fica burra”:

quando eu me formei eu tive muitas oportunidades, mas infeliz- mente eu fui me envolver com a pessoa errada [...] o pai do meu filho, ele tinha já dois filhos, então o que que ele fez? Moráva- mos longe. Ele me tirou do trabalho que eu fazia, daquela mi- nha vida, aquela coisa que eu tinha assim de acadêmico, de correr atrás [...] Ele me tirou disso pra ficar dentro de casa, como dona de casa, cuidando das crianças. Então isso me preju- dicou muito, muito, muito. Enquanto eu coloquei ele lá em cima, que ele não tinha nem o segundo grau direito na época que me conheceu, tava terminando, e eu coloquei ele dentro de uma facul- dade, incentivei, claro, né, pra ele poder melhorar, e hoje em dia ele tem uma profissão boa, conseguiu se formar em Geografia, acho que tá fazendo mestrado ou [...] já fez uma especialização.

Quer dizer, ele tá só melhorando, melhorando, enquanto que eu fiquei parada no tempo, porque eu fui abdicar da minha vida em função dele (Mila).

A produção e a reprodução social das formas de controle da sexualidade feminina pelo homem seja pai, marido ou irmão, faz parte da criação da mulher, sen- do controlada e mediada no ambiente privado da casa pela própria mãe. Porém, como sujeito ativo, parte das mulheres consegue romper com a relação dominada/

dominante, na medida que “a construção da identida- de de gênero envolve um processo permanente de acomodação e resistência”19. A mesma depoente con- firma isso:

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aqui em casa a minha mãe criou a gente, que a mulher tem que ser aquela submissa, aquela coisa assim voltada pra, pro mari- do, pra casa, pros filhos, e tudo, né. Eu já tô até rebelde, porque eu arrumei um filho sem casar [...] fui morar com o pai dele, me separei, entendeu? Voltei pra casa, agora tô com namorado [...]

Eu sou até um pouco rebelde pra, pra formação que eu tive.

Entendeu? Os meus irmãos! Ih! me recriminavam à beça. Mas aí eu falei assim: ‘Ah, eu, a vida é minha’! (Mila).

Uma servente, embora admitisse que o trabalho doméstico é “dobrado. Ser dona de casa, é filho, é marido, pra lavar, passar e cozinhar pra essa turma toda [...] éramos cinco”, por necessidade econômica, trabalhou também em escola pública, local mais fácil de conciliar ocupação remunerada com sua responsa- bilidade doméstica. Os dois serventes entrevistados nada declararam sobre outros trabalhos. Porém, para isso, ela resistiu ao controle do marido e aos apelos da mãe:

Eu sempre tive vontade de trabalhar fora porque eu acho que mulher não é pra ficar em casa. Só cuidando de casa, marido e filho. [...] o meu marido nunca, nunca, admitiu. Eu fui, com o risco até duma separação. Mas eu falei: ‘Eu vou trabalhar, eu não vou ficar dentro de casa. São quatro filhos pra gente dar conta. Não é mole não’. […] A minha mãe mesmo era contra:

[...] ‘você não não tem necessidade’. ‘Eu não sei o dia de ama- nhã, eu tenho que ir também. Não sou aleijada. Eu tenho que trabalhar também’. Graças a Deus eu sou perfeita, né. Aí fui à luta, contra a vontade dele. Era dois contra um: a minha mãe e o meu marido contra mim. [Diziam] que tava com vontade de largar os filhos. Hoje em dia eu digo pra ele: ‘Tá vendo? Se eu não fosse, como é que ficava, hein?’ Eu não gosto de ficar depen- dendo […] acho que ele não era obrigado a ficar ali sozinho, se matando, e eu… Dava tempo também de eu ir, por isso eu fui.

Falei: ‘Vou trabalhar em escola, não é o dia todo, venho pra casa ajeito a minha vida, cuido dos meus filhos’ (Maria).

Constata-se, após as décadas de 1970, um amplo

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acesso das mulheres ao mercado de trabalho com modalidades, ritmos e amplitudes diferentes. A femi- nização da força de trabalho deve ser vista apenas no setor remunerado, porque as mulheres sempre traba- lharam em atividades domésticas, agrícolas, artesanais ou mesmo em serviços voluntários e assistenciais, mas que não foram registradas nem valorizadas nas econo- mias nacionais20. Historicamente, muito antes das mu- lheres das classes médias, as das classes subalternas ininterruptamente trabalharam em dupla jornada. Des- de o século XIX, na cidade do Rio de Janeiro, foram as mulheres negras e pobres, caracterizadas como “po- pulares”, vivendo mais como autônomas do que assa- lariadas, que improvisaram as fontes de subsistência de suas famílias porque, numa diferença entre os se- xos, as mulheres arrumavam trabalhos mais facilmen- te que os homens, na medida que tinham maior possi- bilidade de venderem seus serviços: lavar, cozinhar, costurar, bordar, fazer e vender doces e salgados, pros- tituir-se, empregar-se como domésticas. “Por sua vez, os homens pobres encontravam nas mulheres um abri- go seguro em face dos dissabores da existência, mar- cada pelo desemprego ou pelos parcos ganhos”21. Essa situação histórica repete-se hoje com as serventes ter- ceirizadas:

eu acho que mulher é mais fácil de arrumar trabalho [...] por- que a gente tem mais opção. [...] pode trabalhar de babá, fazer isso, fazer aquilo, o homem já fica mais difícil. E é mais fácil a gente correr atrás do que eles, pra gente fica mais fácil, [...] mais peituda. A gente corre mais atrás [...] È! Ainda mais como nós temos os filhos [...] pensa mais do que eles [...] o pai das minhas filhas, o tempo que eu fiquei com ele, eu trabalhava mais do que ele. Ele conseguia ficar três, dois meses no serviço, enquanto [...]

eu fiquei um ano e sete meses [...] ele ficou três meses. Ele entrou juntinho comigo. Pra tu vê. O serviço dele era mole, o meu não [...] eu tomava conta dum senhor de idade, tinha que dar banho, carregar ele no colo, pra passear. O meu era mais duro. E tra- balhava de segunda a domingo (Carmem).

20 BENERÍA, Lourdes. Mujer, salud y trabalho: uma visión glo- bal. Quadern Caps, Madrid, 1994.

21 SOIHET, Rachel. Mulheres pobres e violência no Brasil urbano. In: DEL PRIORE (Org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: UNESP, 1997, p. 379-280.

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A gestão da esfera doméstica, modalidade de tra- balho central na vida do conjunto das mulheres e es- tratégia no funcionamento da sociedade, é o exemplo- arquétipo de trabalho não assalariado, não remunera- do, não profissional, não formal e não estatutário22. O capitalismo calculou o custo com a reprodução do trabalho, considerando certa a contribuição invisível, não remunerada do trabalho doméstico das mulheres23. Os dados a seu respeito são pouco sistemáticos. De forma geral, sabe-se que a ausência de socialização doméstica entre o casal significa um empecilho nas condições em que a mulher pode trabalhar fora de ca- sa, reduzindo sua autonomia material, pois há uma cor- relação entre o trabalho feminino a tempo parcial e a carência em infra-estruturas para o cuidado de crian- ças. Embora venha acontecendo uma mudança lenta no domínio da socialização das obrigações familiares, o trabalho essencial da reprodução fica a cargo das mulheres, visto que ainda asseguram gratuitamente as tarefas domésticas, mesmo em países desenvolvidos:

em 1991, na França, as mulheres dedicavam de 27 a 33 horas semanais enquanto os homens, de 3 a 5 até 18 horas.25

Entretanto, verifica-se no trabalho doméstico uma desigualdade de classe, de raça e inter gênero femini- no, pois quando realizado como remunerado, é reser- vado às mulheres dos segmentos de baixa renda, que têm opções limitadas de inserção nomercado de tra- balho dado seu baixo nível de qualificação26. Na ver- dade,

As empregadas domésticas pertencem a um grupo profissional formado por uma divisão seletiva obrigatória do trabalho, cujos critérios são selecionados por alguns grupos sociais que reservam e privilegiam outros grupos com profissões melhor reconhecidas socialmente e marginalizam outros grupos, levando em conta para isso, a cor da pele, a religião, a língua etc. [...] os grupos discri- minados não conseguem, em geral, modificar os limites destas barreiras.27

22 BENERÍA. Op. Cit.

25 VOGEL, Laurent. Um contri- buto do Quebeque para um debate indispensável ao mo- vimento sindical na Europa.

In: MESSING, Karen (Org..) Compreender o trabalho das mu- lheres para o transformar. Portu- gal: CITE, 2000, p. 15.

26 AGUIAR, Neuma. Rio de Ja- neiro plural: um guia para polí- ticas sociais por gênero e raça.

Rio de Janeiro: Rosa dos Tem- pos: IUPERJ, 1994, p.49.

27 SANTOS-STUBBE, Chirly dos, 1998. Cultura, cor e soci- edade: a questão da etnicidade entre as empregadas domésti- cas. Estudos Afro-Asiáticos. Rio de Janeiro: Centro de Estudos Afro-Asiáticos, Universidade Cândido Mendes, 1998, p. 58.

23 STOLCKE, Verena. Mulher e Trabalho. Estudos Cebrap 26:

Trabalho e dominação. São Paulo: Editora Brasileira de Ci- ências, 1980, p. 106-109; SOI- HET. Op. Cit. p. 363.

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A discussão sobre o trabalho doméstico remune- rado apresentou-se necessária não apenas pela com- paração e representação no cotidiano escolar sobre as atividades exercidas por merendeiras e serventes como semelhantes às das empregadas domésticas, pela assi- metria entre masculino e feminino nesta responsabili- dade, “mas também pela importância que isso tem no condicionar, desde a infância, atitudes e estereótipos na criança brasileira a respeito da posição “natural” da mulher de cor na sociedade”.28

Contrariamente à afirmação que o trabalho domés- tico remunerado diminuiria, ou até desapareceria, pes- quisas demonstram a expansão do mesmo nos Esta- dos Unidos, porque se ampliaram as oportunidades econômicas oferecidas às mulheres escolarizadas, ge- ralmente da classe média alta e em grande parte bran- cas, sendo justamente o grupo social que procura e tem condições de pagar por serviços domésticos de outrem, revelando as “desigualdades raciais, étnicas e de cidadania entre mulheres”29. Historicamente, imi- grantes latino-americanas e mulheres de cor sempre foram importantes fontes de oferta de mão-de-obra para essa ocupação, na medida que “os empregadores muitas vezes preferem contratar mulheres de outra raça ou etnicidade como domésticas, porque a dife- rença de status favorece a negociação das relações de trabalho na intimidade da casa”.30

No Brasil, “o trabalho das empregadas domésticas [...] configura uma situação-limite de desvalorização do trabalho e, mais ainda, do trabalho feminino em especial, desvalorização que atinge a identidade das mulheres que o realizam”31. O valor negativo pelo trabalho doméstico no Brasil, diferentemente de paí- ses europeus, tem a ver com a escravização africana e com as relações raciais brasileiras após abolição e du- rante o século XX. Semelhante às sociedades escra- vistas nas quais a distinção social se confundia com o não se sujeitar a tarefas consideradas humilhantes, o desprezo ao trabalho em troca de salário, seja qual

28 PINTO, L. A. C. O negro no Rio de Janeiro. 2. ed. Rio de Ja- neiro: UFRJ, 1998, p. 117.

29 MILKMAN, R., REESE, E. e ROTH, B. A macrossociolo- gia do trabalho doméstico re- munerado. Revista Latino-ame- ricana de Estudios del Trabalho, 1998, p. 144.

30 Idem, p. 155-156.

31 MELLO, Sílvia Leser de. Tra- balho e sobrevivência: mulheres do campo e da periferia de São Paulo. São Paulo: Ática, 1988, p. 9.

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fosse, era fundamental para marcar uma diferença so- cial básica. Assim,

devido a sua íntima associação com a escravidão, o trabalho braçal, no Brasil, é considerado uma condição socialmente de- gradante e humilhante. O serviço de casa, considerado funda- mental na vida doméstica nos Estados Unidos [...] é encarado no Brasil, como impróprio e inadequado para as pessoas de clas- se média. Em vez disso, essas tarefas — juntamente com cozi- nhar e cuidar das crianças — são designadas a empregados do- mésticos mal-remunerados ou pessoas contratadas para estes ser- viços. O fato central da vida da classe média é que ela representa uma fuga do mundo do trabalho braçal, do mundo do povo, degradado e associado à pobreza.32

Como após a abolição da escravatura o negro per- manecesse marginalizado, cabendo-lhe ainda somente trabalhos pouco remunerados, foi fácil e socialmente importante para as famílias com alguma possibilidade econômica, mesmo pequena, continuarem a desprezar o trabalho doméstico, porque a mão de obra do mes- mo era abundante e de baixo custo financeiro, em ge- ral, de mulheres negras e pobres. Situação diferencia- da com a de outros países, notadamente os mais in- dustrializados, onde as famílias quase não têm auxilia- res, tendo uma maior socialização das tarefas de casa.

Na transversalidade das relações sociais, o valor negativo do trabalho doméstico para os brasileiros poderia também estar ligado às próprias relações de gênero, na medida que a questão da execução desse trabalho é um dos pontos dos conflitos familiares.

Considerado de responsabilidade feminina, os homens, de forma geral, recusam-se a fazê-lo, sendo, nas clas- ses médias e alta, em grande parte, transferido para as empregadas domésticas, reduzindo assim a tensão en- tre marido e mulher. Contudo, as desigualdades de gênero e de raça se entrecruzam com as de classe, re- forçando-as. O que ocorre entre as famílias mais po- bres? O trabalho doméstico não é dividido e não é

32 ANDREWS, George Reid, 1998. Os Negros e brancos em São Paulo (1888-1989). Bauru, São Paulo: EDUSC, 1988, p. 264- 265.

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transferido para outros. Logo, a responsabilidade quanto à sua execução, com maiores dificuldades devido ao pouco acesso aos equipamentos eletro-domésticos, recai totalmente sobre a mulher que, normalmente, já tem uma ocupação mal remunerada, caracterizando uma efetiva dupla jornada de trabalho. Esse comportamen- to demonstra que as relações de gênero nas classes subalternas são ainda mais perversas. Exemplifica-se pela trajetória da merendeira:

Eu não conseguia aceitar aquela coisa dele ser mulherengo e eu ficar dentro de casa tomando conta dos filhos dele e ele com mu- lher na rua... Então, isso me desequilibrou. Eu fiquei emocio- nalmente desequilibrada [...] Eu morava com os dois filhos dele.

Além do meu, os dois dele. Aí, me deixou totalmente desequili- brada, e as crianças eram influenciadas pela mãe [...] mandava eles fazerem uma série de maldades comigo, sabe. Sujava roupa demais, o que eu fazia de comida eles comiam tudo, acabavam com tudo. Eu tinha uma vida horrível, sabe. E não abria mão daquela vida porque eu era apaixonada. Tanto que eu — isso foi desde praticamente do início do nosso relacionamento —, só consegui me desligar dele quase nove anos depois. Entendeu? Quer dizer, então, esses nove anos que eu fiquei com ele até [...] arru- mei trabalho de “fono” também, mas não foi aquela coisa que eu pudesse me dedicar, porque eu era dona de casa e ainda tinha que tá fazendo tudo isso (Mila).

Embora avanços teóricos, ainda não se tem avalia- do eficientemente, nos processos de saúde de mulhe- res, a dominação masculina com seu padrão de sexua- lidade ativa, exercitada publicamente desde cedo, nem de suas práticas e culturas subjetivas, como a manu- tenção das relações de dominação entre homens e mulheres e a dificuldade do acesso ao trabalho remu- nerado, construídas na responsabilidade feminina com a família configurada na dupla jornada de trabalho.

Mila, separada, obteve, judicialmente, pensão alimen- tícia para seu filho e continua a lutar para manter e melhorar sua posição social:

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ele passou a ajudar agora há pouco tempo [...] eu consegui uma pensão, que ele trabalha no IBGE e também é funcionário do Estado, sendo que a pensão do Estado até hoje não recebi, por- que acho que não chegou até lá o ofício do juiz. Então, eu vou ter que recorrer pra poder ganhar essa pensão [...] Também, ele não ajuda em mais nada, só isso. [...] pra manter o menino, com o meu salário de merendeira e mais os R$ 180,00 que ele acha que já é muito pra dar. E o padrão de vida que a gente tem é um padrão razoável, porque o menino estuda no Colégio Pedro II, eu não posso deixar ele ser inferior às outras crianças de lá.

Então, eu tenho que procurar manter o nível. Então, eu tenho que tá sempre fazendo compra com cheque, cartão de crédito, pra poder ter uma vida mais ou menos organizada (Mila).

A maioria das funcionárias de apoio entrevistadas localizaram no trabalho doméstico a desigualdade en- tre os gêneros, pelo qual elas são ainda responsáveis, embora trabalhadoras remuneradas: “Responsabilida- de da mulher é marido, ela tem que dar conta na rua e tem que dar conta em casa, da educação, nas tarefas da casa, é complicado isso aí, sacrifica muito a mu- lher” (Marlene). Uma servente terceirizada revela o fenômeno feminino da dupla jornada de trabalho da mulher pobre:

Porque nós [...] trabalhando fora [...] ainda tem que cuidar dos filhos, quem tem marido, tem que cuidar do marido, da casa, ainda fazer compras [...] organizar dentro de casa, que é passar roupa, lavar roupa [...] Botar criança pra escola, ver dever de criança de escola. E o marido? Muitos deles não tem...

(Carmem).

As experiências de vida conjugal de funcionárias mostram que os homens “ajudam” em casa: “ele tra- balha também, ele me ajuda bastante. Ele lava louça, ele lava banheiro, ele me ajuda... no que ele puder me ajudar ele me ajuda” (B). Outros nada fazem, no máxi- mo, ajudam a conservar. Logo, a vida de mulher

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é diferente! Muito diferente. Ih, não tem nem comparação! Não é? É diferente. Com certeza! Homem não tem aquele compro- misso de limpar casa, de lavar uma louça, de fazer comida. Pelo menos o meu não tem, se não fazer ele fica com fome.(risos) Faz não (risos) (Marta., grifos da depoente)

As funcionárias explicam as relações de gênero no casamento: seus maridos, cansados, repousam após o trabalho, todavia, “a gente mulher, né!? Além de can- sada [...] temos que fazer ainda mais, ainda cansar mais um pouco em casa. Mas ele não, chega, toma o banho dele, janta e vai dormir, né!? Então, é assim que funci- ona” (Elisa). Eduardo, solteiro, concorda que “mulher

‘rala’ mais. Só enfrentar um tanque, não é? Enfrentar um tanque, fazer o almoço. Mulher trabalha mais. Cui- dar dos filhos”. As mais pobres apresentam uma tripla jornada de trabalho, pois executam também outras ati- vidades informais, consideradas tipicamente femininas:

faxinas, passar roupa e congelar alimentos. Pode até acontecer de terem, simultaneamente, dois empregos:

“Entrei para o município por concurso [...] trabalhava de manhã na escola e a tarde eu continuava na casa [de família] [...] meus filhos estavam [...] 11 anos e 12 (Marlene). Entretanto, os dois serventes entrevista- dos nada declararam sobre outros trabalhos.

Logo, na forma que se apresentam as desigualda- des de gênero e as de classe, o trabalho doméstico acaba tendo um papel de manutenção das relações de dominação entre homens e mulheres, simbólica e con- cretamente, devido aos efeitos gerados pelas dificul- dades femininas no plano do trabalho remunerado, na sobrecarga de responsabilidades, acarretando e ampli- ando problemas de saúde às mulheres pobres. A des- valorização do trabalho doméstico não é marcadamente relacionada à sua naturalização? No Brasil, 100% dos empregados domésticos são do sexo feminino, cuja escolaridade vai do ensino fundamental (84%) até o ensino médio (16%), sendo variada a classe social, indo do nível B (4%), C (29%), D (49%) a E (17%), portan-

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to, a a maioria pertence aos níveis sócio-econômicos inferiores, pois 66% compõem as classes “D” e “E”.

Em relação à raça social, com uma percentagem de 3% sem respostas, majoritariamente apresentam a cor negra, num total de 61%, sendo 37% de pardas e 24%

de pretas, enquanto 33% são de cor branca e 3%, ama- rela33. Dito de outra forma, a categoria de trabalhado- res nos serviços domésticos forma o segmento inferi- or do mercado de trabalho urbano, congregando as pessoas menos escolarizadas e pior remuneradas. Além do mais, “a combinação dos termos ‘preta’, ‘pobre’ e

‘empregadinha’ se refere a uma categoria social consi- derada por muitos como de baixíssimo status social, opondo-a ao empregador ‘branco’ e ‘rico’34. Contempo- raneamente, verifica-se, entre as empregadas domésti- cas, uma

tentativa de embranquecimento que funciona psicologicamente como degrau para maior aceitação social com base em uma ilu- são de mudança de posição sócio-econômica, assim como a tenta- tiva de alcançar maior poder social. Constatamos ainda o poder psicológico que a escala sócio-econômica provoca nestas mulheres pertencentes ao grupo afro-brasileiro; escala esta que representa o branco em cima, rico, poderoso e socialmente aceito e o negro embaixo, pobre, marginalizado e socialmente rejeitado.35 Parte desse fenômeno geral aplica-se no particu- lar, quando descortinamos, nas escolas municipais, ca- racteristicamente femininas, a existência de uma maior incidência de mulheres negras nas atividades escola- res tipo “domésticas” consideradas extensão do lar, como cozinhar e limpar. Na escola oeste, dentre de- zoito professoras brancas, haviam três pretas e quatro pardas, enquanto das cinco serventes, existia só uma branca e uma parda. A situação das merendeiras e ser- ventes guarda resquícios da situação discriminatória da escravização: de escravas negras, quitandeiras e cri- adas domésticas tornaram-se funcionárias subalternas, responsáveis pela merenda, limpeza e venda de seus

33 SANTOS-STUBBE, Chirly dos. Op. Cit. p. 53.

34 FRY, Peter. O que a Cinderela negra tem a dizer sobre a polí- tica racial no Brasil. Revista USP, São Paulo, 1996, p. 130.

35 SANTOS-STUBBE, Chirly dos. Op. Cit. p. 55.

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36 CHAVES, Fátima Machado. O trabalho de serventes e merendeiras de escolas públicas da cidade do Rio de Janeiro. Dissertação de Mes- trado. Niterói:. Faculdade de Educação. Universidade Fede- ral Fluminense, 1998, p. 52.

37 MELLO, Sílvia Leser de. Tra- balho e sobrevivência: mulheres do campo e da periferia de São Paulo. São Paulo: Ática, 1998, p. 98.

quitutes. Uma professora definiu a cozinha de esco- las: “como se fosse uma grande cozinha de fazenda.

A imagem que me vem mais próxima, por causa dos panelões e aquelas mulheres negras trabalhando, cor- tando e fazendo...”36. Tais constatações permitem “su- gerir que no Brasil os negros passaram diretamente da senzala para o trabalho doméstico”37. Em muitas es- colas, as atividades de merendeiras e serventes são vistas como de empregadas domésticas:

Muitas [professoras] se acham patroas da gente e até as vezes estipulam coisas que até é contra a natureza, vê que tá errado, e muitas vezes, para não ficar pior na situação de trabalho a gente muitas vezes até cumpre as normas, mas elas se, se acham do- nas, patroas da gente (I).

Essa equivalência é tão comum, que os cursos de treinamento dados pela SME no momento da contra- tação, ensinam: “Vocês estão ali para servir aos alu- nos, tem vocês ali para preparar a merenda, não é para fazer comida preparada para ninguém; não é para dar

‘uma’ de empregada doméstica, porque vocês são fun- cionárias públicas”38. Há merendeiras que reagem e negam essa representação:

As pessoas não lhe respeitam. Quem está dentro de uma direção da escola confunde as coisas: acha que você tem que largar o seu serviço pra fazer comida diferente pra elas; ir na rua pra elas; é como se fosse uma empregada doméstica Tem muita empregada doméstica que é muito mais bem tratada dentro da casa dos seus patrões do que dentro de uma escola, a gente sendo funcionária pública. Aí, eu sempre lutei por esse direito, eu sou uma funcio- nária pública.39

Se a precariedade sempre esteve associada ao tra- balho feminino40, desvalorizado nas estruturas econô- micas e nas simbólicas, mais ainda o é o trabalho des- qualificado reservado às mulheres pobres e negras, como as merendeiras e serventes. De fato, suas vidas

38 CHAVES, Op. Cit. p. 77.

39 Idem, p. 52.

40 BRITO. 2000, Op. Cit.

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refletem as tramas de relações sociais de gênero, clas- se, de raça, que exigem abordagens transversais. An- teriormente às atividades escolares, iniciaram ocupa- ções laborais também femininas típicas de mulheres negras e pobres — faxineiras, cozinheiras ou auxilia- res de enfermagem. Muitas (14 entre as 19) foram empregadas domésticas: “E aí eu estava desemprega- da, tinha o concurso, eu resolvi fazer [...] Eu era do- méstica, cozinheira, depois de dez anos congelan- do, fazendo comida congelada, até fazer o concurso”

(Ângela). A servente Lene disse: “antes deu trabalhar para o município eu trabalhava muitos anos numa casa de família [...] eu tinha 14 anos”.

Logo, ser merendeira ou servente é antes de tudo não ser empregada doméstica. Entretanto, se tanto as condições do trabalho quanto os salários dessas fun- cionárias, em geral, parecem ser bem mais precários41 que os do serviço doméstico em casas de família, ques- tionamos porque preferem trabalhar nas escolas? As serventes terceirizadas foram explícitas ao mostrar as desvantagens e dificuldades de serem empregadas domésticas ou seja, não há ilusão, em casa de família vivencia-se uma maior exploração que ser servente, mesmo terceirizada, em escolas precarizadas:

Bom, na... casa de família paga mais, mas só que a gente somos mais explorada, porque a gente tem que dormir lá e aí a gente tem que acordar lá, não tem hora para dormir. Aqui não, aqui é bem melhor. A gente ganha menos, mas não é tão explorado como lá. Mas valeu a pena, dá para estudar e... sei lá (risos).

Dá para gente fazer as coisas que a gente quer, não é? Em casa de família quase não tem tempo (Paula).

acho que é bem mais difícil trabalhar em casa de família do que trabalhar em firma de limpeza [...] Porque em casa de família você, às vezes, não todas, mas, às vezes, assim, o pessoal desconfia muito de você, não tem confiança em deixar você sozinha dentro de casa, porque não te conhece. E aqui não [escola], vai fazer três anos já que eu trabalho aqui, conheço tudo mundo, o pessoal gosta de mim, eu não tenho do que reclamar daqui não (Bianca).

41 BRITO, J., ATHAYDE M. e SILVA, E. Trabalho de meren- deiras: relações entre atividade de trabalho nas escolas e pro- dução de saúde/doença. Rio de Janeiro: DP&A., 2004;

CHAVES, Op. Cit.; CHAVES, F. M. Vidas negras que se esvaem.

Experiências de saúde das funcio- nárias escolares em situações de tra- balho. Tese (Doutorado). Es- cola Nacional de Saúde Públi- ca. Fundação Oswaldo Cruz.

Rio de Janeiro, 2004; NUNES, B., BRITO, J. e ATHAYDE, M. Experiência, desenvolvi- mento profissional e saúde das mulheres-merendeiras- serventes. In: ATHAYDE, M, et al. (Org.). Trabalhar em esco- las? Só inventando o prazer. Rio de Janeiro: IBUP/CUCA, 2001, p. 51-70.

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Assim, sem formação profissional, evitando o es- tigma social de empregadas domésticas, as serventes terceirizadas aceitaram como suas as atividades de lim- par em escolas, mesmo com pouca segurança de em- prego. Preferiram o espaço de trabalho público, mes- mo que tão precarizado, reafirmando, de certa forma, as relações conflituosas existentes no serviço domés- tico remunerado e a exploração da trabalhadora, devi- do à indefinição da jornada de trabalho.

De forma geral, o local feminino de trabalho assa- lariado é o dos setores de serviços, sendo essa prefe- rência explicada pela naturalização de “qualidades”

femininas, tais como, paciência, perspicácia, cuidado, responsabilidade, obediência, disciplina, organização, docilidade, rapidez, sacrifício, desinteresse etc., des- prezando-lhes a inteligência e a criatividade. Ou seja, o trabalho feminino é concebido pelo sistema de “qua- lidade” em vez de qualificação42. No entanto, no de- correr da vida humana, existem qualificações específi- cas que não deixam entrever quando se deram, como, por exemplo, aprender a cozinhar, a limpar e a cuidar.

A essas atividades, ligadas aos valores morais, espiri- tuais, às emoções e ao afeto e, portanto, economica- mente desvalorizadas, não se permitem reivindicações, porque fazem parte delas a entrega, o sacrifício e a doação, considerados, na nossa sociedade, inerentes ao sexo feminino.

Entretanto, as qualidades/qualificações específicas femininas, resultam “de anos de treinamento e apren- dizado, desde meninas até se tornarem mulheres, no trabalho doméstico”43. As merendeiras e serventes, de famílias numerosas e miseráveis, aprenderam suas fun- ções escolares em suas tarefas domésticas, desde cri- anças, com familiares e patroas ou porque gostam de cozinhar:

E também não fiz nenhum curso especial fui aprendendo na prática cozinhar para muita gente. Antes, quando a gente fez o concurso a gente fez uma aula, um teste prático e eu, até no meu

42 LOPES, Marta Júlia Marques.

Divisão do trabalho e relações de sexo: pensando a realidade das trabalhadoras do cuidado de saúde. In: LOPES e WAL- DOW. (Org). Gênero e Saúde.

Porto Alegre: Artes Médicas, 1996, p. 57.

43 NUNES et. al. Op. Cit. p. 67.

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dia, do meu teste prático, eu me dei bem. Eu sempre fui filha assim de família grande, de família que gosta de se reunir. Os nordestinos têm isso, gosta de se reunir e cozinhar para muita gente, gosta de comer, de beber. Pra começar, eu tinha uma base…para cozinhar para muita gente (Isabel).

no ano passado me interessei em fazer concurso. Primeiro porque eu gosto de cozinhar, adoro cozinhar, não é? Sempre cozinhei (risos) [...] Venho de uma família muito grande (risos) Somos onze irmãos, aí já viu, não é? E como eu trabalhei a minha vida inteira em casa de família, eu comecei a cozinhar com 15 anos de idade, [...] minhas patroas me ensinaram a cozinhar, me explicava e eu aprendi. Sempre fui muito curiosa em relação a comida, não é? Que gostei e gosto. E desde então, eu estou sempre na cozinha, não é? Sempre cozinhando, fui aprendendo. Quer dizer, fui não, estou aprendendo ainda aprendendo em questão de grande quantidade, porque a gente... Eu acho que quem faz para um, para dois, faz para mais, não é? E a gente vai...

Como é que se diz? Fazer por amor, gostar. Porque se você gosta de fazer um serviço, você não tem problema. Não vai ter proble- ma nenhum executar aquele, porque você está fazendo o que você gosta de fazer, não importa a quantidade ou a qualidade do material que você tem, você vai procurar melhorar, dar o melhor de si para conseguir aquilo (Amanda).

Sabia cozinhar [...] aprendi com a minha mãe. Em casa [...]

A lição que ela me dava de, de cozinha, eu aprendi muito, por- que ela cozinha muito. A comida dela era muito gostosa, muito temperadinha. Tudo assim, temperada de um dia pro outro, pra pegar o sal, pra pegar o gosto. E eu segui essa linha dela. Tanto que lá no colégio, aonde eu trabalho, as pessoas adoram minha comida (Gilda).

As brincadeiras infantis foram verdadeiros treina- mentos: “a gente brincava, a gente fazia aquela casi- nha, fazia panelinha de barro com cabinho, fazia aque- las mesinhas de tabuinha, aí preparava os matinhos e dizia que era legumes, que era legumes. E as pedri- nhas branquinhas era o arroz”44.

Na realidade, esse aprendizado da arte de cozinhar ao longo de suas vidas garante-lhes um saber que não

44 Idem, p. 205.

(30)

lhes é desapropriado, nem pelo mercado capitalista ou pela administração escolar. Ao analisar as atividades dessas mulheres, verificamos que no dia a dia fazem mais do que lhes foi prescrito, cozinhar e distribuir refeições, têm o domínio pleno desse processo de trabalho, pois, mesmo que o cardápio da merenda seja definido por outros, elas só contam, na prática, com a experiência, quer dizer, com a “inteligência” delas, atra- vés de uma lógica própria desenvolvida e aprendida no trabalho real, cozinhando várias refeições diárias.

Por exemplo, fazem o controle do total das merendas distribuídas, sabem verificar se a quantidade de gêne- ros alimentícios está adequada e se a comida será sufi- ciente para o número de alunos, servindo-os de tal forma, que não falte a nenhum e ajustam os cardápios às características de seus usuários. Enfim, são elas que dão as informações necessárias para a equipe de direção elaborar o “mapa da merenda”. Assim, o tra- balho real que executam na confecção da merenda, embora seja desenvolvido sob as relações de trabalho capitalistas, não pode ser enquadrado simplesmente como “manual”. Suas atividades são desenvolvidas

seguindo uma organização de trabalho bem peculiar, com a for- mação de coletivo de trabalho, com regras específicas, onde a experiência e os saber-fazer dessas mulheres são mobilizados para dar consecução ao esperado. O alto nível de variabilidade do trabalho na cozinha faz com que as merendeiras engendrem modos operatórios reguladores (constituindo assim sua ativida- de) e vivenciem coletivamente as repercussões do trabalho sobre a saúde.45

Essa atividade de trabalho é associada às habilida- des femininas, marcadas pelas desigualdades de gêne- ro, de raça e de pobreza, quer dizer, as merendeiras e serventes prepararam-se ao longo da vida para as ati- vidades que desenvolvem, tornando-se competentes pela forma que são socializadas/ educadas como mu- lheres pobres e negras. Logo, são pouco compreendi-

45 BRITO et. al. Op. Cit. p.2

(31)

das e valorizadas não somente pelos educadores, mas também pelos pesquisadores das questões do traba- lho. A compreensão desta atividade, através da análise do trabalho real, pode contribuir para sua afirmação como trabalho profissional e qualificado.

Todos espaços escolares modelam a construção das identidades de seus usuários, principalmente para a camada subalterna que a freqüenta. Nas unidades escolares municipais cariocas, o trabalho de meren- deiras e serventes apresenta um sentido de “produção de vida”, contribuindo na formação escolar da futura força de trabalho. Desempenham um papel importan- te na educação pública, o qual não se limita à prepara- ção de alimentos e de higienização dos ambientes, na medida que essas funcionárias têm percepção, com- preensão e sensibilidade para outras dimensões da vida dos(as) alunos(as), ligadas à problemática de gênero na sociedade brasileira, socializando-os numa afetiva atividade concreta maternal de ensinar, cuidar e disci- plinar46. Detecta-se homologias entre as tarefas da ali- mentação e da limpeza do lar com as atividades do preparo da merenda e da limpeza escolar, assim como entre a dedicação, o carinho e o cuidado dos(as) fi- lhos(as) e o zelo pela conduta dos(as) alunos(as), ex- plicitadas espontaneamente pelas funcionárias: “eu achava que se eu faço pros meus filhos, porque que eu não vou fazer pros alunos?” (Maria).

eu me ponho no lugar de mãe mesmo deles [alunos]. Eu fico até pensando nos meus filhos, tento preparar a merenda como se fosse preparar merenda para os meus filhos. Porque a minha filha uma vez falou para mim que a comida do colégio dela era ruim […] merendeiras faziam a comida com má vontade. A comida não saia a gosto das crianças. É falavam! Davam a opinião deles e não se importavam com isso sabe!? Não procura- vam melhorar. Ela falou pra mim: “mãe a senhora vai traba- lhar de merendeira, faz comida com carinho para as crianças”.

E eu nunca mais esqueci disso, entendeu!? É que eu achei isso assim […] me ponho no lugar delas. Como é que você vai comer

46 NUNES et al. Op. Cit. p. 56- 57.

(32)

47 Idem, p. 204.

uma comida sem carinho? Acho que vai fazer até mal para a pessoa né!? (Elisa).

As merendeiras conhecem o comportamento dos alunos durante o recreio, bem como suas preferências alimentares, então utilizam “competências práticas” para melhorar o sabor, o aspecto e a qualidade da merenda oferecida aos alunos, colocando “amor na panela, por isso que a comida sai gostosa” (Gilda.). Então,

galinha preparada em grande quantidade, para servir 300 alu- nos em panelas enormes poderia estar fadada a não ter cor nem sabor, não possuir nenhum dos atrativos essenciais para seduzir as crianças. Faz-se necessário, portanto, o uso da inteligência sutil, astuciosa, é cheia de nuanças. Ela acrescenta, então, ingre- dientes mágicos para despertar o apetite dessas crianças, inicial- mente, a partir do olfato e da visão, de sensações que invadem seu corpo e que continuam quando os alunos, prazerosamente, saboreiam a comida [...] a cozinheira queima açúcar e, nessa calda, frita a carne antes de acrescentar os demais temperos, para, só então, cozinhá-la; o resultado é irresistível.47 Participando do currículo oculto, disciplinam os hábitos alimentares, ensinando os alunos a aceitar de- terminados alimentos e evitar o desperdício, mostram regras de etiquetas, tornando-as responsáveis pela saú- de nutricional e socialização dos alunos:

nós também somos educadores, porque desde o momento que uma merendeira chega perto dum aluno, diz assim ‘Está errado, essa caneca não é pra ser colocada aí, é pra ser colocada aqui’, né?

‘Oh, o resto da comidinha não é pra deixar dentro do prato, tem […] a lata de lixo, você bota o restinho de comida ali’. Nós tamos educando a criança a chegar num lugar, ou em casa mes- mo, ter esse mesmo procedimento (Gilda.).

Além disso, dependendo de suas experiências, são também conselheiras pessoais de alunos ou responsá- veis por atividades educacionais extra-classe:

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