INTRODUÇÃO
A Dissertação que agora se apresenta teve o seu ponto de partida na investigação levada a cabo nos anos de 1987 e 1998, pelo grupo de Mes- trado de História Medieval da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. O trabalho foi desenvolvido no âmbito do Seminário dedicado ao estudo da Sociedade na Baixa Idade Média Portuguesa, orientado pelo Professor Doutor Luís Adão da Fonseca. Os estudos centraram-se na Ordem de Santiago e materializaram-se no levantamento documental do Livro dos Copos1, importante e extenso cartulário mandado compilar por ordem de D. João II, no qual se encontram vertidos os actos e negócios que na época foram considerados mais relevantes para a memória da Ordem em Portugal.
O crescente interesse que a nível nacional tem vindo a suscitar o estudo das Ordens Militares é resultado, em grande parte, do trabalho ultima- mente desenvolvido na Escola do Porto por inspiração do Professor Luís Fonseca. O presente estudo integra-se neste projecto amplo de investiga- ção. Não se trata, apenas, de entender o que foram as Ordens Militares; é necessário determinar o papel desempenhado por cada uma destas insti- tuições no contexto político, ideológico e religioso da Reconquista, bem como na definição, construção e expansão dos reinos cristãos peninsulares.
O panorama era diferente, até há pouco tempo; havia poucos estudos sobre as Ordens Militares e os que existiam eram parcelares, raramente se detendo, em exclusivo, na análise das instituições. Perante isto, conside- rando o trabalho desenvolvido envolvendo um conjunto de temas deveras aliciantes, avançar no sentido de uma dissertação foi uma consequência óbvia.
1 A.N.T.T., Corp. Relig., Ordem de Santiago, Livro dos Copos, com a cota B-51-275.
Leia-se, a propósito, trabalho de FONSECA, Luís, 1991, A memória das Ordens Militares: o Livro dos Copos da Ordem de Santiago, in “As Ordens Militares em Portugal. Actas do 1.º Encontro Sobre Ordens Militares”. Palmela: Câmara Munici- pal de Palmela, Col. Estudos Locais, pp. 15-21.
Definido um campo de investigação – a Ordem de Santiago – havia que estabelecer o âmbito cronológico. Se em relação ao termo inicial não se colocavam dúvidas, uma vez que a Ordem foi instituída no ano de 1170, em relação à baliza final, foram diversas as possibilidades conside- radas:
– Poder-se-ia optar por encerrar a investigação na morte do mestre Paio Peres Correia, no ano de 1275. Paio Peres é uma figura chave para a compreensão da Ordem no período compreendido entre as décadas de 40 e 70 do século XIII, bem como das vicissitudes da política castelhana em parte dos reinados de Fernando III e Afonso X e da conquista da Andaluzia. Apesar de correcta, esta base de traba- lho conferiria ao estudo uma dimensão temporal menos alargada que o desejado, deixando de lado o processo de separação dos espatários portugueses, face a Uclés. Além disso, determinar arbitrariamente um limite cronológico, naquele ano de 1275, suscitaria parte das objecções que normalmente se colocam quando se constrói compar- timentações estanques na História: se o valor simbólico da data é importante, os problemas que então se patentearam vinham do pas- sado… A morte do homem que durante 33 anos governou a milícia, imprimindo-lhe a sua personalidade, outra coisa não fez do que tra- zer à luz do dia velhas feridas, depois patenteadas ao lado de outras mais recentes. O desenlace de 1275 não as sarou, como se verá;
aquilo a que com propriedade se pode designar como a “questão mestral” conservou-se uma realidade constante do decurso dos anos que se seguiram.
– Alternativamente, poder-se-ia avançar com o estudo até à barreira de 1288, ano em que os espatários portugueses obtiveram autorização do Pontífice para proceder à eleição de mestres provinciais. Mas a questão não ficou encerrada em 1288, pelo contrário. Se é um facto que foi então que tudo começou, não é menos verdade que dali a algum tempo os cavaleiros portugueses regressaram à obediência do mestre de Uclés e nela se mantiveram por bem mais de uma década, enquanto isso correspondeu ao interesse da Coroa, antes de voltarem a recuperar a sua independência. Tudo isto se passou no reinado de D. Dinis, que neste assunto desempenhou um papel crucial. Em qualquer dos casos, a situação foi apenas resolvida, de iure, no século XV, confirmando uma autonomia que já era de facto.
– Um outro limite temporal, não menos aceitável, seria 1325, o ano da morte de D. Dinis. Pelo modo como interveio nos assuntos das Ordens Militares e em particular na questão da autonomia espatária, a acção deste monarca foi decisiva para a redefinição do perfil da
milícia no período pós-Reconquista. À sua morte, a Ordem apresen- ta-se muito diferente daquilo que o Lavrador encontrou meio século antes, quando subiu ao Poder.
Relacionado com o sentido desta data, o ano de 1329 ficou marcado pelo desaparecimento do mestre Pedro Escacho, homem próximo de D. Dinis, um dos mais comprometidos na conclusão do processo separa- tista. De novo, importa advertir para os riscos de interpretação que decor- rem da elaboração arbitrária de compartimentações em História… racio- nalizações pensadas a posteriori. Com efeito, há que ter precaução no modo como se estabelece cada um desses momentos que pretendem ser de corte ou ruptura. Em especial, quando se trata de estudar a existência das instituições, que muitas vezes ultrapassam as vidas das personagens que as dirigem e lhes conferem rosto. As suas mortes podem traduzir-se em cortes e abalos que muitas vezes dão lugar a transformações. E como as mudanças de fundo, muitas vezes, não são percebidas pelos contemporâ- neos dos acontecimentos, as fontes, raramente, nos oferecem delas mais que sombras ténues e difusas. É pouco frequente, nos homens, a capacida- de para conjugar e integrar correctamente a maior parte dos sinais que a vida nos faculta; exorbita-se, com frequência, a importância de aconteci- mentos acessórios, eventos que aos olhos dos espectadores contemporâ- neos se perfilam para assumir no processo do Devir o significativo papel de históricos. E com frequência, as pessoas enganam-se: a miopia face ao contemporâneo parece ser algo irremediavelmente inscrito na nossa he- rança genética, especialmente quando se trata da insistente incapacidade de ler no Mundo, os mais aterrorizadores dos sinais.
– A solução encontrada acabou por ser intermédia, cronologicamente falando. O desaparecimento de D. Dinis, em 1325, vencido, alguns meses antes, na guerra civil que o opusera ao infante D. Afonso, obrigara a um reposicionamento das Ordens Militares e das suas che- fias, que na ocasião se haviam conservado ao lado do monarca, con- tra o príncipe que agora cingia a Coroa. No caso da Ordem de San- tiago, os acontecimentos dos anos que se seguiram à ascensão de Afonso IV, nomeadamente os que tiveram lugar em 1327, sugerem que terá havido, por parte da milícia, a consciência da necessidade de se renovar e adequar-se ao novo poder. E à nova situação de auto- nomia… No ano de 1327 a Ordem autorregula-se; estabelecem-se novas regras. Pedro Escacho era então mestre em
Portugal; tendo em
vista o que fora no Passado mas também o que devia ser no
Porvir, fez-se então aprovar e publicar uns
Estabelecimentosdestinados a orientar a vida da Ordem num contexto que era
substancialmente diferente do da sua fundação ou daquele em
que vivera e se afirmara
o mestre Paio Correia2. Em 1327 fecha-se um ciclo para a Ordem de Santiago em Portugal que não mais voltará à dependência do Mes- trado de Uclés. Na realidade em que agora se move, os interesses da Coroa e do monarca figuram em primeiro plano.
Forjada em Cáceres, em 1170, engrandecida depois, nos campos da Reconquista, na luta contra o Infiel, volvidos 157 anos, o Mundo era diferente. Separada de Uclés e com os mouros afastados das fronteiras do reino, a razão de ser da milícia espatária em Portugal estava em causa.
Deste modo, posto que a sua finalidade já só podia ser outra, os Estabelecimentos de 1327 procuram defini-la. Continuando a existir, por certo, uma vez que nenhuma instituição naturalmente decreta a sua morte.
Continuando, ao serviço de Deus e dos Reis. Justificando a sua existência aos olhos de Um e perante os outros3.
O presente trabalho debruça-se sobre este ciclo. A forma como, de 1170, a Ordem do Bem-Aventurado Apóstolo Santiago, chegou a 1327.
Este foi, em muito, um trabalho colectivo. Naturalmente trata-se de um trabalho de autor – nem de outro modo poderia ser – mas empregar o vocábulo colectivo foi o modo mais significativo que encontrei para expressar o quanto devo a todos aqueles que, de uma forma ou outra, me concederam o seu precioso auxílio.
Gratidão quero expressar, em primeiro lugar, para com o Professor Luís Adão da Fonseca, Director desta Dissertação. Estou-lhe particular- mente grato por três razões que cumpre salientar:
– Primeiro, porque aceitou prestar o seu apoio ao trabalho de alguém de merecimentos tão discutíveis e de tão parco saber;
– Gratidão, também, pelas pistas que me abriu no caminho da investi- gação, por um lado, no decurso da parte lectiva do Curso, por outro, quando mais tarde como Amigo, me abriu as portas de sua casa;
– Por último, gratidão pelas suas palavras e também pelas críticas.
Umas e outras estão na base, certamente e em grande medida, dos eventuais méritos que este trabalho possa apresentar.
2 Estabelecimentos de Pedro Escacho: A.N.T.T, Corp. Relig., Ordem de Santiago, Livro das Tábuas Ferradas, com a cota B-50-141; tb. no Livro dos Copos, aos fólios 179r-182r.
3 Pode ler-se nos Estabelecimentos de Pedro Escacho: (...) para ser certo el rey que he o que se faz dos beens da Ordem que som para serviço de Deus e dos Reys (...), Livro dos Copos, fol. 181r.
Gratidão para com o Professor Humberto Baquero Moreno. Gratidão pelo modo como de imediato se disponibilizou em sustentar a minha candidatura a Bolseiro do Instituto Nacional de Investigação Científica, entretanto extinto. Sem ela – importa dizê-lo – muito deste trabalho não teria sequer tido tempo para ser pensado.
Gratidão em geral – mas nem por isso menos sentida –, aos demais Docentes do Curso que integrei, Professores Armindo de Sousa, Luís Carvalho Homem e José Marques. Não foi pouco, sem dúvida, o que graças aos seus ensinamentos me foi dado aprender.
Cabe aqui uma especial referência à colega Cristina Cunha, que com amizade pôs ao meu dispor material policopiado de grande valor. Revesti- ram particular interesse algumas das conversas que ocasionalmente tra- vamos.
Quero igualmente exprimir a minha gratidão à Isabel Lago. Antes de mim, também ela se debruçou sobre o estudo da Ordem de Santiago;
comigo partilhou muita da sua sabedoria e sempre, isso sempre, com o máximo do carinho.
Ao Joel Mata, meu colega de Curso, que como eu fez da Ordem de Santiago matéria de seus estudos, agradeço a documentação que, prove- niente do fundo documental de Santos, amavelmente me deu a conhecer.
Agradeço também ao Dr. João Paulo Rocha Pinto, da “DOURO”, que amavelmente me facultou o acesso ao material informático da empresa e ao Dr. Pedro Álvares Ribeiro, que igualmente e sem reservas, colocou ao meu dispor o seu notebook, assim correndo grandes riscos, vista a minha insisten- te inabilidade no que concerne a informática. As suas boas sugestões deram um contributo inestimável à boa apresentação gráfica do trabalho.
Por fim os amigos. Eles estão no coração. Gratidão pelo apoio presta- do, moral e logístico. Ao Osório, à Helena, ao Samuel e à Rita. Sempre se mostraram prontos a ajudar; especialmente quando a sala de trabalho se encontrava dominada por uma desordem avassaladora. E eles lá estavam, com uma boa sugestão. Fazendo frente à entropia.
Agradeço a todos aqueles que sempre se interessaram pelo curso dos trabalhos: à Paula Brito, em Paris, que não deixava de ir telefonando; à Alexandra e ao Pedro; também ao Miguel, sem esquecer a Lígia, que sempre se revelou uma Amiga, especialmente quando me recebeu na sua casa de Lisboa, durante as minhas andanças pela “Torre”.
A minha palavra mais especial fica para o António Manuel. Foi ele quem, em primeiro lugar, me facultou o acesso aos computadores da
“DOURO”, sem esquecer os trabalhos que comigo partilhou até à última hora… Tantas vezes com prejuízo do próprio descanso.
Concluo com um misto de agradecimentos e desculpas. À Ana. Obri- gado pela tua ajuda, em particular no que respeitou ao trabalho dactilográ- fico. Afinal, o curso do Verão de 88 sempre veio a revelar-se útil... Des- culpas. Pela minha tantas vezes má disposição. Desculpas também à Mãe;
nas últimas semanas foi através do telefone que tivemos possibilidade de nos ver...
A todos, o meu obrigado. É vosso também, este trabalho.
Mário Cunha Julho de 1991